1 BEATRIZ SIMONAIO BIRELLI A FRANÇA NAS CRÔNICAS DE MÁRIO DE ANDRADE: o nacional e o estrangeiro no periódico Diário Nacional (1929-1932) ASSIS 2012 2 BEATRIZ SIMONAIO BIRELLI A FRANÇA NAS CRÔNICAS DE MÁRIO DE ANDRADE: o nacional e o estrangeiro no periódico Diário Nacional (1929-1932) Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista para a obtenção do título de Mestre em Letras (Área de Conhecimento: Literatura e Vida Social) Orientador: Daniela Mantarro Callipo ASSIS 2012 3 Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte. Catalogação na Publicação Biblioteca do Instituto Federal de São Paulo – Campus Piracicaba – IFSP Birelli, Beatriz Simonaio. B617f A França nas crônicas de Mário de Andrade: o nacional e o estrangeiro no periódico Diário Nacional (1929 – 1932) / Beatriz Simonaio Birelli ; Orientadora: Daniela Mantarro Callipo. - Piracicaba, 2012. 187 f. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras de Assis. Departamento de Letras Modernas. Área de Concentração: Teoria Literária e Literatura Comparada. 1. Mário de Andrade. 2. Literatura Comparada. 3. Relações Brasil - França. 4. Crônica. 5. Diário Nacional. I. Callipo, Daniela Mantarro, orient. II. Título. 4 BIRELLI, Beatriz Simonaio. A FRANÇA NAS CRÔNICAS DE MÁRIO DE ANDRADE: o nacional e o estrangeiro no periódico Diário Nacional. 2012. 187 f. Dissertação (Mestrado em Letras). – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Assis, 2012. RESUMO Utilizando o livro Táxi e crônicas no Diário Nacional, organizado por Telê Porto Ancona Lopez (2005), pretende-se estudar o gênero crônica, bem como apresentar hipóteses que elucidem a importância das alusões aos literatos franceses Marcel Proust, Julien Benda e Blaise Cendrars, presentes em 14 das 173 crônicas de Mário de Andrade que compõem a obra. Antonio Candido (1977, p.12) afirma que já no século XVIII, a língua francesa era a “língua universal das pessoas cultas”. Um século mais tarde, estava no “clímax de seu prestígio e de sua função civilizadora”, tornando-se “ensino obrigatório e indispensável”. No Brasil, os escritores acompanhavam as discussões literárias e filosóficas que ocorriam na França, pois a Independência e o Romantismo tornaram urgente a afirmação da nossa nacionalidade e a ex-colônia passou a nutrir uma espécie de desprezo por toda e qualquer forma de vínculo que pudesse colocar a literatura brasileira em situação de submissão à portuguesa. A França, grande centro irradiador de cultura da época, passou a ser a fonte de inspiração para os escritores que liam e admiravam as obras de Balzac, Victor Hugo e Dumas Fils. Esta irradiação chegou ao século XX, tornando-se presente na obra de Manuel Bandeira, Oswald de Andrade e Sérgio Milliet. É neste panorama que se insere Mário de Andrade e que iremos analisar seus textos jornalísticos, focalizando a maneira pela qual o escritor utilizou-se do elemento francês em suas crônicas, inserindo-o em um discurso leve e coloquial. Palavras-chave: Mário de Andrade; Crônicas; Diário Nacional; Relações Brasil-França. 5 BIRELLI, Beatriz Simonaio. LA FRANCE DANS LES CHRONIQUES DE MÁRIO DE ANDRADE: le national et l’étranger dans le journal Diário Nacional . 2012. 187 f. Mémoire de Master en Lettres – Faculté de Sciences et Lettres, Université de l'État de São Paulo (UNESP), Assis, 2012. RÉSUMÉ: En utilisant le livre Táxi e crônicas no Diário Nacional, organisé par Telê Porto Ancona Lopez (2005), nous avons l’intention d’étudier le genre chronique, ainsi que présenter des hypothèses qui élucident l’importance des allusions aux écrivains français Marcel Proust, Julien Benda et Blaise Cendrars, présentes dans 14 des 173 chroniques de Mário de Andrade qui composent l’oeuvre. Antonio Candido (1977, p. 12) affirme qu’au XVIIIe siècle la langue française était déjà le « langage universel des personnes cultivées ». Un siècle plus tard, elle était au « sommet de son prestige et de sa fonction civilisatrice », et son enseignement est devenu « obligatoire et indispensable ». Au Brésil, les écrivains accompagnaient les discussions littéraires et philosofiques qui avaient lieu en France, car l’Indépendance et le Romantisme ont précipité l’affirmation de notre nationalité et l’ ancienne colonie a commencé à nourrir une sorte de mépris pour toute forme de lien qui puisse mettre la littérature brésilienne en situation de dépendance par rapport à celle du Portugal. La France, centre irradiateur de culture de l’époque, est devenue une source d’inspiration pour les écrivains qui lisaient et admiraient les oeuvres de Balzac, Victor Hugo et Dumas Fils. Cette irradiation est arrivée au XXe siècle et était présente dans les oeuvres de Manuel Bandeira, Oswald de Andrade et Sérgio Milliet. C’est dans ce contexte qui s’inscrit Mário de Andrade et que nous irons analyser ses textes journalistiques, en se concentrant sur la façon dont l’écrivain a mis l’élement français dans ses chroniques, vu qu’il l’a inséré dans un discours léger et familier. Mots-clés: Mário de Andrade; Chroniques; Diário Nacional; Relation Brésil-France. 6 A Daniela Falco Pereira Picca [in memoriam], irmã de alma, pelo apoio e eternas lembranças. 7 AGRADECIMENTOS À CAPES, pela concessão de bolsa de Mestrado, apoio financeiro indispensável para a realização desta dissertação. Às professoras Carla Cavalcanti Silva e Gabriela Kvacek Betella, pelas considerações esclarecedoras feitas no exame de Qualificação. Ao professor Gilberto Martins que, sem intenção, incutiu em mim o amor pela Literatura e por Mário de Andrade. A Karina Anhezini, professora, aluna e amiga, pelas indicações bibliográficas na área de História. Ao professor Marcos Antonio de Moraes, referência desde o início de meu trabalho com Mário de Andrade, por ter aceitado o convite para participar da banca de defesa. Aos funcionários da Seção de Pós-Graduação, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, campus Assis, por atender, pacientemente, a todas as minhas necessidades. Aos meus pais e padrinhos, por terem sempre entendido e apoiado minhas escolhas. A Mariana Birelli, Livia Delort e Natália Altem, pelo apoio incondicional, desde sempre. A Rafael Falco Pereira, por acreditar neste trabalho e nunca me deixar desistir. Aos amigos que fizeram parte deste processo, em especial, Ionara Satin, Veluma Alves Marzola, Carlos Eduardo Santos Zago, Aline Gianazzi Lino, Glaucia Fernandes, Adriana Ribeiro de Assis, Luana Almeida e Mariana Casoni. 8 A Daniela Mantarro Callipo, por ter me ensinado a amar a língua e a literatura francesa, pelos anos de orientação, pela confiança, pela paciência em corrigir meus textos, pelo companheirismo diário, pela atenção dispensada, por ter sido participante ativa durante todos estes anos, elementos imprescindíveis para a realização deste trabalho. Enfim, a todos que, direta ou indiretamente, participaram da realização desta dissertação, em especial, Leonardo Birelli, Helenita Faco Guimarães, Fernanda Tolosa e Luzia Falco. 9 SUMÁRIO INTRODUÇÃO A crônica ………………………………………………………………………………10 A crônica de Mário de Andrade ....................................................................................12 Capítulo 1: A “vida ao rés-do-chão” mariodeandradeana ............................................16 1.1: O Diário Nacional: uma luta pelo nacionalismo a partir da França .......................25 1.2: Presença da cultura francesa no Brasil.....................................................................30 Capítulo 2: Mário de Andrade e Marcel Proust..............................................................36 2.1: As limitações da linguagem e a literatura contemporânea: um estudo das crônicas “A linguagem” – I e “A linguagem” – III.......................................................................36 2.2: As personagens proustianas vistas por um “turista aprendiz”..................................52 2.3: O Romantismo visto pelo crítico Mário de Andrade .............................................. 68 2.4: Marques Rebelo e Proust: uma análise de Oscarina .............................................. 80 Capítulo 3: Mário de Andrade e Julien Benda ..............................................................91 3.1: Intelectuais sem comprometimento social: “l’art pour l’art” X “l’art engagé” .......91 Capítulo 4: Mário de Andrade e Blaise Cendrars ........................................................120 4.1: O Brasil visto por um francês: a presença de Blaise Cendrars nas crônicas “De-a- pé” – III e “Blaise Cendrars”........................................................................................ 120 4.2. O pai do futurismo no Brasil: a reação de Mário de Andrade .............................. 132 4.3: O papel do intelectual no século XX: um estudo de L’or, de Blaise Cendrars..... 143 Considerações Finais ................................................................................................. 152 Referências Bibliográficas......................................................................................... 177 10 INTRODUÇÃO A crônica Gênero de origem europeia, que apresenta a objetividade jornalística e a subjetividade literária, a crônica, nesta acepção, surgiu no século XV, quando Fernão Lopes foi o encarregado de reunir elementos a respeito da história portuguesa a fim de preservá-la e compôs a Crônica histórica de Fernão Lopes, descrevendo a realidade de maneira ficcional. (MOISÉS, 1984, p. 40-43). Inicialmente, o cronista preocupava-se em narrar os acontecimentos importantes e históricos com fidelidade, assumindo a função de historiar a memória dos fatos e zelar por ela, em uma época em que não existiam os jornais. Entretanto, foi Fernão Lopes que estabeleceu este caráter compilador dos cronistas medievais, introduziu a análise e conseguiu retratar literariamente a sociedade portuguesa. No Brasil, Pero Vaz de Caminha inaugurou o gênero ao escrever a el-rei D. Manuel uma carta a respeito dos índios “muito bem curados e muito limpos” e fornecer sua visão sobre a terra “graciosa”, “chã” e “fremosa”. (BOSI, 2006, p. 15) A crônica passa a fazer parte do jornal no século XIX, na França, chamando-se, em princípio, feuilleton. O termo era utilizado para indicar os textos localizados no rodapé dos jornais, que versavam sobre culinária, beleza, crítica de livros e peças, mas ali também eram publicadas algumas narrativas, entre outras novidades, cuja finalidade era entreter. Devido ao barateamento dos jornais e à crescente procura pelas narrativas jornalísticas, os “produtores” logo perceberam suas vantagens econômicas, e o espaço do feuilleton recebeu lugar de honra nos jornais, passando a ter diversa significação: novo modo de publicação do romance em “fatias diárias”. Em 1836, a expressão “continua amanhã” já fazia parte do cotidiano da população; mas, é em 1838, com a obra Capitaine Paul, que Alexandre Dumas lança as características fundamentais da técnica folhetinesca: diálogos vivos, personagens tipos, encadeamento das ações, cortes narrativos, técnica de suspense, redundância, para explicar ou reativar a memória dos leitores, inserção de personagens conforme as necessidades narrativas, explicações historiográficas e tentativa de prender a atenção do público. (MEYER, 1996, p. 57-64) 11 Desse modo, na década de 1840, a fórmula literária do romance-folhetim estava consagrada, com a ajuda dos escritores que eram chamados para colaborar nos periódicos, como Eugène Sue, Balzac, Soulié, Paul Feval, Ponson du Terrail, Montepain e o já citado Dumas. Tal receita foi seguida por muitos autores e boa parte da ficção da época aderiu ao modo de produção folhetinesco, mesmo que não fosse romance- folhetim. Os outros textos que faziam parte do feuilleton foram deslocados para rodapés internos, ficando conhecidos, depois, como crônicas. Logo os jornais brasileiros aderiram à nova ideia, sendo que os primeiros feuilletons foram traduzidos, praticamente simultâneos a sua publicação na França; mas, aos poucos, surgiram textos nacionais que abordavam assuntos relevantes do cotidiano. Assim como na França, houve no Brasil um distanciamento entre as duas produções literárias e a crônica se diferenciou do folhetim, sendo escrita com a finalidade de divertir e de contar os fatos ocorridos durante o período de uma semana ou de uma quinzena. Grandes nomes da literatura do oitocentos dedicaram-se ao gênero: Alencar, Macedo, Machado, Bilac. Antonio Candido, em seu “A vida ao rés-do-chão” (1992, p. 15), afirma que as primeiras crônicas jornalísticas brasileiras remontam ao período de 1854 e 1855, pois o autor encontrou no Correio Mercantil do Rio de Janeiro artigos que apresentavam questões e acontecimentos do dia. Além das inúmeras definições, crônica, etimologicamente, advém do grego chronos, cujo significado direto é tempo, o que resulta em uma de suas características definidoras: a relação com o presente, o caráter contemporâneo, podendo sempre se transformar, acompanhando as mudanças da vida moderna. O cronista relata literariamente os acontecimentos diários, sejam eles sociais, políticos, literários, artísticos ou individuais, de acordo com o seu modo de ver o mundo. A crônica apresenta linguagem coloquial, sendo mais comunicativa e, portanto, mais próxima do leitor. Deste modo, é gênero híbrido, pois apresenta características tanto do jornalismo, como da literatura. Ela é feita “ao correr da pena”, sem pretensões iniciais de durar, pois seu objetivo é comentar com criatividade, humor e subjetividade os episódios ocorridos no dia e relatados de forma séria pelo jornal. Sendo assim, possui uma ligação com o contexto em que foi produzida, parecendo, em princípio, estar relegada ao esquecimento. 12 No entanto, muitas foram retiradas do jornal e inseridas em livro, pois, por trás dessa aparente frivolidade e descompromisso, os cronistas, além de abordarem questões sociais e culturais que provocam a curiosidade dos leitores de hoje, apreendem a realidade e os problemas subjetivos atemporais do ser humano. Para Candido (1992, p. 19), “por baixo delas há sempre muita riqueza para o leitor explorar [...] por serem leves e acessíveis talvez elas comuniquem mais do que um estudo intencional a visão humana do homem na sua vida de todo o dia”. Independentemente de escolas literárias e dos gêneros a que se dedicavam, muitos foram os autores que publicaram crônicas no século XX: Mário de Andrade, Olavo Bilac, João do Rio, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Rubem Braga, Alcântara Machado, Raquel de Queiroz, entre outros. Dentre tantos cronistas, aquele que nos interessa mais de perto é Mário de Andrade. A crônica de Mário de Andrade Apesar de Mário de Andrade ser um escritor reconhecido pelo público e pela crítica brasileira, pouco se sabe sobre os seus textos jornalísticos. Talvez o fato de ter publicado somente um livro de crônicas, Os Filhos da Candinha, tenha contribuído para que o reconhecimento do modernista brasileiro neste gênero literário tenha ficado em segundo plano. O meu interesse pelos estudos da crônica mariodeandradeana, mais especificamente pelas marcas francesas presentes nestes textos, surgiu na Graduação. A primeira leitura de Os Filhos da Candinha já mostrou que a presença de alusões e citações na língua francesa era vasta e o estudo destas referências era importante para a compreensão dos textos, uma vez que poderiam ser desconhecidas do leitor atual. Dessa forma, desenvolvi um projeto de Iniciação Científica, intitulado “Marcas francesas em Os Filhos da Candinha, de Mário de Andrade”, financiado pela FAPESP. Com o intuito de continuar este estudo no Mestrado, selecionei a obra Táxi e crônicas no Diário Nacional, – organizada por Telê Porto Ancona Lopez (2005) – uma coletânea de 173 crônicas que o escritor paulista escreveu para o periódico Diário Nacional. A presença francesa se encontra em 98 crônicas, manifestando-se de todas as 13 formas: uso da língua; alusões a lugares da França, a personagens históricos, músicos, pintores, escritores e literatos, e citações de trechos de textos em francês. Devido ao grande número de referências francesas, o corpus desta pesquisa se restringiu aos literatos mais citados e aludidos por Mário. São eles: Marcel Proust, Julien Benda e Blaise Cendrars. Sendo assim, os capítulos foram elaborados a partir do conjunto de crônicas de cada escritor, uma vez que facilitaria a compreensão das ideias do modernista brasileiro em relação aos autores franceses citados. No primeiro capítulo, foi feita uma exposição sobre o percurso literário de Mário de Andrade, mais especificamente no que concerne ao gênero crônica, com o intuito de mostrar a importância deste gênero literário híbrido na carreira do escritor, e na construção de seu pensamento crítico. Ademais, este capítulo apresenta a relação de Mário e de seus escritos com a pátria de Victor Hugo. Já os capítulos seguintes foram destinados às análises: no capítulo 2, agrupamos os textos que apresentam referências a Marcel Proust, escritor francês mais aludido por Mário no período de 1929 a 1932, em suas crônicas publicadas pelo Diário Nacional; no capítulo 3, as que possuem alusões a Julien Benda e sua célebre obra La Trahison des clercs; e, por fim, no capítulo 4, aquelas em que o escritor cita o nome de Blaise Cendrars, sua vinda ao Brasil e sua relação com os modernistas brasileiros e Marinetti, quando este veio ao nosso país. As análises serão feitas seguindo os métodos da Literatura Comparada, e baseadas nos conceitos de dialogismo de Bakhtin (1990) e de intertextualidade de Kristeva (1974), Genette e Samoyalt, pois há, nas crônicas mariodeandradeanas, outras vozes que nelas se manifestam e outros textos que se entrecruzam. Para o crítico Mikhail Bakhtin (1990, p. 88), todo ato de linguagem é uma ação, pois constitui o homem e é constituído por ele, e todo discurso é uma reação, pois retoma os textos anteriores e os possíveis posteriores: A orientação dialógica é naturalmente um fenômeno próprio a todo o discurso. Trata-se da orientação natural de qualquer discurso vivo. Em todos os seus caminhos até o objeto, em todas as direções, o discurso se encontra com o discurso de outrem e não pode deixar de participar, com ele, de uma interação viva e tensa. Apenas o Adão mítico que chegou com a primeira palavra num mundo virgem, ainda não desacreditado, somente este Adão podia realmente evitar por completo esta mútua orientação dialógica do discurso alheio para o objeto. Para o discurso humano, concreto e histórico, isso não é possível: só em certa medida e convencionalmente é que pode dela se afastar. 14 Contudo, este diálogo só se forma efetivamente se o leitor tiver repertório; ou seja, se ele não possuir conhecimentos sobre o texto dialogado, não perceberá a relação estabelecida entre as obras e/ou escritores. A partir dos conceitos de dialogismo e polifonia de Bakhtin, Julia Kristeva elaborou o conceito de intertextualidade, muito utilizado nos estudos de Literatura Comparada. Segundo Kristeva (1974, p. 64)), uma obra é o resultado de todas as leituras de seu escritor; ou seja, é “um mosaico de citações”, sendo que esses outros textos aparecem absorvidos e transformados na obra. Para ela, “em lugar da noção de intersubjetividade, instala-se a de intertextualidade e a linguagem poética lê-se pelo menos como dupla”. Seguindo as trilhas de Kristeva, Genette (1982) propõe que esse fenômeno seja denominado transtextualidade, que é definida pelo crítico como aquilo que coloca um texto em relação, “manifesta ou secreta”, com outro texto. Genette estabelece cinco tipos de relações transtextuais: o primeiro, a intertextualidade, ocorre quando há presença efetiva de um texto em outro texto por meio de uma citação; o segundo é denominado paratextualidade e refere-se às epígrafes, dedicatórias, prefácios, entre outros; ou seja, sinais acessórios que cercam o texto; o terceiro tipo é a metatextualidade, definida como uma relação de comentário ou de crítica em relação a outro texto, sem obrigatoriamente citá-lo; o quarto tipo é a hipertextualidade, que analisa as relações que unem o texto B (hipertexto) ao texto A (hipotexto), isto é, o texto B deriva do texto A, como ocorre na paródia, no pastiche, na imitação. Finalmente, o quinto tipo é denominado arquitextualidade, que inclui discursos, gêneros literários e modos de enunciação e é o tipo mais difícil de ser observado, por causa de suas características abstratas. Nas crônicas de Mário de Andrade que compõem o corpus desta pesquisa, observa-se a predominância da intertextualidade e da metatextualidade, segundo a concepção de Genette, como se verá nas análises dos capítulos II, III e IV. Para Samoyault (2008, p. 50), a alusão a um autor ou a uma obra é denominada referência, visto que ela, “não expõe o texto citado, mas a este remete por um título, um nome de autor, de personagem ou a exposição de uma situação específica”. A análise dessas referências se insere no âmbito dos estudos comparatistas, cujo objetivo é demonstrar, com o levantamento das semelhanças e principalmente das 15 diferenças entre as obras analisadas, de que forma o escritor se apropriou do outro texto em seus escritos e verificar a nova função que a “unidade estranha” adquiriu em um novo contexto. Os estudos de Literatura Comparada podem desenvolver-se de várias formas. Para Leyla Perrone-Moisés (1990, p. 91), Qualquer estudo que incida sobre as relações entre duas ou mais literaturas nacionais pertence ao âmbito da literatura comparada. Essas relações podem ser estudadas sob vários enfoques: relações entre obra e obra; entre autor e autor; entre movimento e movimento; análise da fortuna crítica ou da fortuna de tradução de um autor em outro país que não o seu; estudo de um tema ou de uma personagem em várias literaturas etc. É preciso, entretanto, tomar cuidado com o estudo das fontes, para que não se comece a “ter miragens”, como alerta a pesquisadora. A localização de uma fonte deve servir para reflexões e não para definir uma lista infindável (e pouco científica) de influências, como era feito antes da década de 1970, em que os estudos comparatistas eram empregados para mostrar a superioridade da literatura estrangeira europeia, principalmente francesa, em relação à brasileira. Nesta pesquisa, a comparação será feita para mostrar e justificar o modo como se deu a inserção das marcas francesas nas crônicas escolhidas, com o objetivo de tentar revelar o “patrimônio cultural” de Mário de Andrade, o “chão cultural” da época em que escrevia, além de ajudar na compreensão da crônica, colaborando, dessa forma, com os estudos a respeito das Relações Culturais entre o Brasil e a França no século XX: “em síntese, a comparação, mesmo nos estudos comparados, é um meio, não um fim”. (CARVALHAL, 1986, p. 7-8). O contexto cultural e histórico no qual o escritor estava inserido também deve ser estudado, para melhor compreendermos seus textos, uma vez que as crônicas possuem uma relação estrita com o momento de sua produção, mesmo que não se restrinja a ele e, como ensina Pierre Brunel (1989, p. 45), "Cada um dos elementos está carregado da significação do contexto do qual foi retirado." 1 1 “Chacun des éléments est lourd de la signification du contexte dont il est arraché” [tradução nossa] 16 CAPÍTULO 1 A “vida ao rés-do-chão” mariodeandradeana Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta, As sensações renascem de si mesmas sem repouso, Ôh espelhos, ôh Pireneus! ôh caiçaras! Si um deus morrer, irei no Piauí buscar outro! [...] Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta, Mas um dia afinal eu toparei comigo… Tenhamos paciência, andorinhas curtas, Só o esquecimento é que condensa, E então minha alma servirá de abrigo. (Eu sou trezentos..., Mário de Andrade) Mário Raul de Morais Andrade inicia sua carreira de jornalista em 11 de novembro de 1915, com a notícia misturada à crítica musical, intitulada “No Conservatório Dramático e Musical – Sociedade de Concertos Clássicos”, na seção “Notas de Arte”, do jornal paulistano O Commercio. Nesta primeira colaboração isolada do escritor, encontra-se o bom aluno e já professor do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, tímido2, católico, com uma prosa bem comportada de congregado mariano que, até 1920, pedirá autorização a seu confessor para ler as obras incluídas na lista do Índex.3 No período de 1917 a 1920, colabora com artigos, reflexões, poemas e crítica de música em diversos jornais e revistas, como A Cigarra, A Gazeta, O Echo, A Garoa, Revista do Brasil, Papel e Tinta, mostrando suas hesitações entre ser católico, tradicional e moderno. Alguns textos apresentam uma linguagem um pouco mais desenvolta e arrojada, modificada pelo contato com as vanguardas europeias, que conheceu na exposição de pintura de Anita Malfatti em 1917. É neste mesmo ano que 2 A assinatura que deveria ter sido “M” não foi publicada pelo periódico. 3 As informações sobre o percurso literário de Mário de Andrade foram retiradas, principalmente, de: LOPEZ, Têle Porto Ancona. Mário de Andrade cronista na imprensa. 1991. 154 f. Concurso de Livre- Docência – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1991. _____. De São Paulo: cinco crônicas de Mário de Andrade, 1920-1921. Organização, introdução e notas de Telê Ancona Lopez. São Paulo: Editora Senac, 2004. 17 publica sob o pseudônimo de Mário Sobral seu primeiro livro de poesias: Há uma gota de sangue em cada poema, versos retóricos, harmônicos e pacifistas, dirigidos contra o militarismo alemão, mas que apresentavam certas soluções renovadoras. A exposição de Anita em São Paulo foi um marco e um incentivo para os escritores que buscavam uma renovação estética. Sabe-se que Mário compareceu à mostra de arte em várias oportunidades diferentes, pois seu nome aparece na lista de visitantes pelo menos sete vezes. Em depoimento para o jornal Diário Carioca, em 1952, a pintora descreve uma das vezes em que Mário foi a sua exposição: Num sábado chegaram dois rapazes numa chuvarada. Começaram a rir a tôda e um dêles então não parava. Eu fiquei furiosa e pedi satisfação. Quanto mais eu zangava, mais o tal não se continha. Afinal, meio que sossegou e ao sair apresentou-se: “Sou o poeta Mário Sobral”. Dias depois muito sério se despede e me oferece um sonêto parnasiano sôbre o Homem Amarelo. (MALFATTI apud BRITO, 1974, p. 63) 4 No entanto, não foram todos os intelectuais da época que se interessaram pela mostra, como foi o caso de Monteiro Lobato, cuja crítica “A propósito da Exposição Malfatti”, publicada pelo O Estado de S. Paulo, provocou polêmicas, fazendo com que a pintora se consagrasse, mas, ao mesmo tempo, interferindo negativamente em sua arte expressionista. Dos jovens que mais tarde fariam a “Semana da Arte Moderna”, Anita recebeu defesas exaltadas, como as de Oswald de Andrade, no Jornal do Comércio, e de Menotti del Picchia, em suas crônicas no Correio Paulistano. Apesar de Mário não ter escrito nenhum artigo na época, anos mais tarde ele reconheceria a importância da pintora em sua transformação de artista: Não posso falar pelos meus companheiros de então, mas eu, pessoalmente, devo a revelação do nôvo e a convicção da revolta a ela e à força dos seus quadros. [...] E nós cerramos fileira em tôrno da artista. [...] Se alguns poucos escritores ponderáveis, Menotti Del Picchia, o Sr. Oswald de Andrade, que iam se tornar os propulsores eficazes do movimento modernista, já nos conhecíamos então, êles podem testemunhar se o primeiro espírito de luta, a primeira consciência coletiva, a primeira necessidade de arregimentação foi despertada ou não pelo que se passava na cidade, com a exposição de Anita Malfatti. Foi ela, foram os seus quadros, que nos deram uma primeira consciência de revolta e de coletividade em luta pela modernização das artes brasileiras. Pelo menos a mim. (ANDRADE apud BRITO, 1974, p. 71) 4 O quadro “O homem amarelo” foi adquirido por Mário na Semana de 22. 18 É a partir deste primeiro contato com o expressionismo que Mário vai estudar a língua alemã, comprar livros das vanguardas europeias e estender seu círculo de amizades com intelectuais da terra de Goethe que viviam em São Paulo. Em 1920, surge Mário de Andrade cronista: sua primeira colaboração foi na revista carioca Miscellanea, na página “Ecclesiástica”. Esses pequenos textos, não assinados, abordavam diversos assuntos relacionados à vida católica da cidade, misturando notícia e crônica, em um estilo bem-humorado e coloquial; no entanto, é somente na Illustração Brazileira que aparecem as suas primeiras crônicas assinadas como “Mário de Andrade”, na página “De São Paulo”. As crônicas “De São Paulo”, escritas no período de novembro de 1920 a março de 1921, tinham como objetivo inicial promover a cidade de São Paulo e o modernismo. Analisando as crônicas desta série, vê-se que Mário está vivendo um período de transição, pois ao mesmo tempo em que apresenta em seus textos alguns traços inovadores, como frases soltas, telegráficas, finalizadas por reticências, linguagem arrojada e irreverente, ainda está preso às tradicionais inversões, aliterações, enumerações, palavras raras e períodos longos dos parnasianos: Eu sei de coisas lindas, singulares, que Paulicéia mostra só a mim, que dela sou o amoroso incorrigível e lhe admiro o temperamento hermafrodita... Procurarei desvendar-lhe aspectos, gestos, para que a observem e entendam. Talvez não muito consiga. Ponho-me a pensar que a minha terra é como as estrelas de Olavo... difícil de entender... (ANDRADE, 2004, p.73) E ainda: Nestas cartas para a Ilustração Brasileira dois são os meus propósitos. Procurarei realizá-los pouco a pouco, se para tanto o engenho me sobrar. A todo este larguíssimo Brasil, que a revista sem dúvida abraçará, ao mesmo tempo que tenciono mostrar o movimento artístico e literário da gente paulista, é intuito meu explicar a enigmática cidade que a todos os que não a observarem amorosamente ou lhe queiram bem guarda-se num mutismo de desdém ou se entreabre num gesto de agressão. (IDEM, p. 81) 5 Não é o escritor analítico e irônico de Pauliceia: idealiza o bandeirante, mostra um deslumbramento em relação às novas conquistas do século XX e não enfoca os 5 Nesta crônica, Mário intitula seu texto como “carta”, mas em sua colaboração seguinte (De São Paulo- III), assume-se como cronista: “Não sou crítico nem filósofo: sou cronista”; “Embora uma retirada de andaimes, seja o mesmo num casinhoto de pobres, dê assunto mais que suficiente para uma crônica... E querem ver como dá?” 19 problemas sociais, mas, ao longo dos meses de produção, aguça a crítica, defende uma consciência nacional nas artes e problematiza questões culturais. “De São Paulo” é para o cronista principiante um campo de experiências: nesta série, inicia alguns dos pensamentos que desenvolverá em Pauliceia Desvairada6, como a questão do alaúde, o tema da cidade de São Paulo e a utilização da linguagem arrojada e tipicamente brasileira. Importante ressaltar que, apesar da ligação temática e imagética entre os textos, é somente nos poemas de Pauliceia que Mário mostrará uma análise mais profunda da sociedade, mostrando, com isso, as transformações de seu pensamento e seu progresso como escritor modernista. Na década de 1920, Mário procura tanto se aprofundar na atividade de modernista combativo, vinculando-se a órgãos renovadores da cultura, como se profissionalizar como jornalista/cronista na grande imprensa. Devido à grande quantidade de textos publicados, à divulgação feita de seus poemas por Oswald de Andrade no artigo O Meu Poeta Futurista e a sua participação na “Semana de Arte Moderna”, o nome de Mário de Andrade tornou-se conhecido nos meios intelectuais. Não havia jornais e revistas especializados em que Mário não colaborasse. Escreve para o Jornal do Commercio, A Gazeta, Os Debates, Klaxon, Revista do Brasil, na América Brasileira, Estética, A Revista, Letras Novas, entre outros. Como cronista, publica na Revista do Brasil, em sua coluna “Chronica de arte”, e em Os debates, sendo que seus textos são, predominantemente, reflexões e análises de questões literárias, artísticas, políticas e folclóricas, exceto “Itanhaen” e “Alphonsus de Guimaraens”, crônicas que exploram os acontecimentos. Entre 1923 e 1924, surgem n’América Brasileira, as “Crônicas de Malazarte”, que originarão os “Contos de Belazarte”. Caracterizadas por serem textos longos, nos quais aparece o trio “Malazarte, Belazarte e eu/o cronista”, as “Crônicas de Malazarte” representam para Mário uma prática, no espaço da crônica, para a experimentação, sendo que aí também podem ser enquadradas a carta e o conto (“Contos de Belazarte”). O narrador Belazarte se emociona com as personagens da periferia paulistana e, com isso, leva a crônica para o campo da ficção. Linguagem falada, ironia, lirismo e crítica severa fazem parte dessas “Crônicas de Malazarte”: Mário se libertou dos rebuscamentos e inversões da série “De São 6 Os poemas de Pauliceia Desvairada começaram a ser escritos em dezembro de 1920, concomitantemente com a série “De São Paulo”. 20 Paulo”, mas ainda faltavam a brevidade e a síntese, traços típicos dos textos jornalísticos. Nos anos de 1925, 1926 e meados de 1927, não surgem muitas oportunidades para escrever como cronista, somente como crítico de arte. Entre 11 de dezembro de 1925 e 12 de janeiro de 1926, colabora em A noite, no “Mês modernista”, com duas crônicas intituladas “O Monólogo dum elefante do Circo Sarrasani” e “Cartaz”, além de escrever poemas e publicar uma parte do romance Amar, verbo intransitivo. Ambos os textos, que revelam um cronista já maduro, com uma prosa repleta de ironia e sarcasmo, características que, a partir de então, serão marcantes do escritor, partem da temática do modernismo e apresentam as posições e convicções de Mário. Em “O Monólogo dum elefante do Circo Sarrasani”, Mário mostra o papel do artista no modernismo, um ser excepcional; já em “Cartaz”, defende o nacionalismo e suas crenças em relação à nova corrente literária. Em 1926, escreve para um dos jornais mais importantes do país, A Manhã, e seus textos hesitam entre ser crônica e artigo. Descontente com a linha editorial do periódico, devido às poucas oportunidades oferecidas para escrever profissionalmente, entra, em agosto de 1927, para o Diário Nacional, onde será cronista, crítico de arte e de literatura; porém, é somente em 1928, quando realiza uma viagem etnográfica ao Nordeste, que inicia sua primeira produção regular como cronista na seção “O Turista Aprendiz”. O Diário Nacional é lançado significativamente no dia 14 de julho de 1927. O periódico defende a liberdade e a democracia, empenha-se na campanha do Partido Democrático, apoia a Revolução de 1930 e, depois da entrada de Vargas no poder, opõe-se ao novo governo, apoiando a Revolução Constitucionalista de 1932, sendo fechado após a derrota paulista no mesmo ano. Nunca possuiu boas condições financeiras, tendo que circular em tamanho pequeno e em edições noturnas; no entanto, abordou, no campo da Literatura, do Teatro, das Artes plásticas e da Música, todos os acontecimentos importantes e tinha como colaboradores Manuel Bandeira, Lasar Segall e Prudente de Morais, neto. Este é o período mais relevante de Mário de Andrade cronista: com sua “pena” de escritor maduro, chega a publicar 3 crônicas por semana em sua coluna “Táxi”, abordando com ironia e humor os acontecimentos mais comentados do dia ou da semana. Mistura o cotidiano com a literatura, o real com o ficcional, mostrando o seu 21 papel de artista engajado e preocupado em defender e incutir no povo brasileiro uma consciência nacional. O percurso do cronista no Diário Nacional será abordado mais adiante. Poucas foram as crônicas publicadas por Mário após o fechamento do Diário Nacional, pois o escritor estava preocupado em organizar e publicar seus estudos folclóricos e etnográficos, além de estar ocupado com outros trabalhos, como a orientação dos jovens escritores, na Revista Acadêmica, e a direção do Departamento de Cultura da Municipalidade, dedicando-se à Revista do Arquivo Municipal e aos eventos do departamento. Sendo assim, uma ou outra crônica surge esporadicamente em meio às críticas literárias, musicais e artísticas no periódico Diário de S. Paulo, no período de 1933 a 1935, no Diário de Notícias, do Rio de Janeiro, a partir de 1939, cidade onde mora temporariamente após pedir demissão do Departamento de Cultura, e n’O Estado de São Paulo, também a partir desse mesmo ano. Em 1942, Mário de Andrade já era um cronista consagrado e planejava lançar uma coleção de suas crônicas pela Livraria Editora Martins, de São Paulo. Sua obra Os Filhos da Candinha foi publicada em 1943; porém, em uma carta ao amigo Manuel Bandeira, escrita em 24 de maio de 1934, o escritor já demonstrava sua vontade de realizar tal projeto: [...] O que imaginei, e me parece mais feliz, será reunir em livro um certo número de crônicas de vário assunto, dentre as melhores que publiquei por aí tudo, principalmente no Diário Nacional. E descobri um nome adorável pro livro: Os Filhos da Candinha. Não sei se você conhece, de-certo conhece, essa expressão, que quer dizer, a voz do povo, o que andam falando, os diz- ques. (MORAES, 2000, p. 179) Intitulando o livro de Os filhos da Candinha, Mário demonstra o seu conceito sobre o gênero crônica: transformação de um fato real em uma versão recriada, devido à palavra “Candinha”, que pode significar discurso de invenção que se ampara na realidade. Com isso, o escritor de Macunaíma se desvincula do compromisso de revelar objetividade, característica do jornalismo. Ademais, a expressão “Candinha” refere-se àquelas mulheres que comentam tudo o que acontece em suas cidades, as “fofoqueiras”, indicando, assim, outra característica das crônicas mariodeandradeanas: textos que podem abordar qualquer tipo de assunto. Na “Advertência” que inicia sua obra (p. 27), escrita em 1942, Mário designa a crônica como sendo leviana (“As crônicas ajuntadas neste livro foram escolhidas de 22 preferência entre as mais levianas que publiquei”) e gratuita (“jamais lhe dei maior interesse que o momento breve em que, com ela, brincava de escrever”). Expõe, ainda, a importância que a crônica teve em sua vida de intelectual brasileiro: “Nunca fiz dela uma arma de vida, e quando o fiz, freqüentemente agi mal ou errado. No meio da minha literatura, sempre tão intencional, a crônica era um sueto, a válvula verdadeira por onde eu me desfatigava de mim”. No ato de escrita de suas crônicas, o escritor de Macunaíma poderia não ter grandes ambições em relação a seus textos; no entanto, essas crônicas só apresentam características de descompromisso e gratuidade a um leitor desatento, que não percebe a abrangente crítica feita na maioria das crônicas e a literariedade existentes nelas. Além disso, aceitando este pronunciamento, descarta-se um dos traços mais significativos do escritor: seu engajamento social, político e literário. O escritor mistura nesses textos a realidade, a elaboração artística e a consciência crítica. Refere-se ao momento político vivido e o desaprova, como nas crônicas “A Sra. Stevens” e “Guaxinim do Banhado”; critica a sociedade patriarcal brasileira, em “Tempo de Dantes” e “Foi Sonho”; aborda a prosa ficcional, fazendo uma intertextualidade com a personagem do conto Belazarte, em “Ensaio de bibliothèque rose” e “O diabo”. Mário incorpora, também, dados autobiográficos, que estão dispersos nas histórias das Candinhas: seu pai “tipógrafo” aparece nas crônicas “Voto secreto” e “Na sombra do erro”; sua mãe, em “Sociologia do botão”; a cachorrinha de estimação em “Educai vossos pais”; relatos de sua viagem ao Nordeste, em “Bom Jardim”, “Romances de aventura” e “Ferreira Itajubá”, entre outros elementos. Esta característica memorialista se transforma, em alguns momentos, em algo coletivo, ou seja, “o ‘eu’ torna-se espelho de seu público” (MORAES, 2008, p. 183), devido a situações particulares que podem ser remetidas à nossa vida. Vale ressaltar que o escritor não escreveu nenhum retrato autobiográfico, pois não acreditava na reconstrução do passado, sendo assim, as informações sobre a sua vida são retiradas, principalmente, das suas cartas, como afirma o crítico Marcos Antônio de Moraes (2008, p. 182): Mário de Andrade não deixou autobiografia, mas contou-se fartamente em suas cartas; em outros escritos ficcionais também transfigurou a sua própria experiência, esfumaçando compromissos indissolúveis com a realidade. 23 Negando-se a deixar um retrato autobiográfico canônico, colocou em xeque a própria possibilidade de se reconstituir o passado, tema importante, aliás, dos atuais estudos sobre o gênero testemunhal. Nos manuscritos do escritor, encontrados no arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros, da Universidade de São Paulo, há duas folhas de papel jornal, nas quais Mário mostra que construiu ligações entre as crônicas: “Última crônica = Esquina”; “O dom da voz – deve ser a primeira crônica a falar viagem pelo Amazonas”; “‘Uma quarta-feira’ Rei Momo, deve vir depois de outra crônica com a mesma expressão”; “Bom pra iniciar a expressão ‘uma quarta-feira’ é Culto das estátuas [Romances de aventuras/Fábulas]”; “Sociologia do botão vem depois de Brasil-Argentina”; “Anjos do Senhor tem que vir depois da Pesca do dourado”; “Xará, Xarapim, Xera só pode vir depois do Terno Itinerário por se referir a Coração Perdido”. Com isso, o escritor mostra o trabalho artístico realizado na produção do livro, além das outras modificações feitas, como a correção gramatical e a diminuição do tamanho das crônicas, justificadas por Mário na “Advertência” que inicia sua obra: “No ato de passar a limpo, estas crônicas foram bastante encurtadas e corrigidas. Não pude ficar impassível diante de encompridamentos de exigência jornalística, bem como desta aspiração amarga ao milhor” (p. 10). Isto quer dizer que havia exigências do jornal em relação ao número de linhas a serem escritas, para que o espaço dedicado à coluna fosse completamente preenchido. Esta exigência não existia na elaboração do livro, o que deu ao autor a liberdade de aparar os excessos dos textos jornalísticos e melhorá-los. Em carta a seu amigo Manuel Bandeira, em 1942, o escritor afirma: Na minha opinião é o livro mais ‘bem escrito’ que já fiz. Falo como estilo normal, estilo que permite seguimento, seqüência – pois o estilo poético heróico do Macunaíma tinha que ser o que é mas pra esse livro, e o de Belazarte é estilo falado e não, escrito. (MORAES, 2000, p. 661) Esse trabalho artístico realizado por Mário de Andrade poderia ter retirado da crônica uma de suas características principais, ou seja, a de ser feita “ao correr da pena”, sem a pretensão de durar, uma vez que: é filha do jornal e da era da máquina, onde tudo acaba tão depressa. Ela não foi feita originariamente para o livro, mas para essa publicação efêmera que se compra num dia e no dia seguinte é usada para embrulhar um par de 24 sapatos ou forrar o chão da cozinha. Por se abrigar neste veículo transitório, o seu intuito não é o dos escritores que pensam em “ficar”, isto é, permanecer na lembrança e na admiração da posteridade; e a sua perspectiva não é a dos que escrevem do alto da montanha, mas do simples rés-do-chão. (CANDIDO, 1992, p. 14) Como, porém, as modificações feitas pelo escritor brasileiro se restringiram a pequenas correções e à mudança na ordem da apresentação dos textos, pode-se verificar que ela continua a ser “despretensiosa, insinuante e reveladora” e, ao mesmo tempo, adquire, quando passa do jornal ao livro, uma durabilidade inesperada. Inicialmente, o projeto da obra previa dois volumes: “crônicas propriamente crônicas” e “crônicas-críticas”, respectivamente. O primeiro volume apresentaria 29 crônicas, sendo que 17 seriam retiradas do Diário Nacional. Já o índice do segundo volume receberia 31 textos sobre artes plásticas, estética, crítica literária e língua poética, e 17 deles seriam extraídas do mesmo periódico7. Porém, dos textos do segundo volume, somente “Ferreira Itajubá” foi inserido na obra definitiva, que apresentou apenas as “crônicas propriamente crônicas”. Das 43 crônicas que compõem Os Filhos da Candinha, 32 delas foram retiradas do Diário Nacional, sendo 27 da coluna “Táxi”. As demais crônicas do livro foram retiradas de contribuições esparsas em revistas e jornais: “Conversa à beira do cais” foi retirado de Letras, periódico baiano; “Foi sonho” e “Voto secreto”, da Revista Acadêmica de estudantes do Rio de Janeiro; “Morto e deposto”, da revista carioca Movimento Brasileiro; “Brasil-Argentina”, do jornal O Estado de São Paulo. Para Mário, a “crônica-crítica” se difere da “crônica-crônica” por apresentar uma preocupação maior em desenvolver com objetividade e lógica um determinado assunto, deixando em segundo plano o tratamento literário do discurso. Isso não significa que a “crônica-crítica” seja um artigo, os dois tipos de textos são distintos, uma vez que na crônica, o escritor não utiliza somente uma linguagem teórica e técnica, usa, também, suas impressões e a linguagem poética. Na “crônica-crítica”, o escritor transforma a matéria muitas vezes difícil do artigo em um “papo com o leitor”, mantendo o assunto acessível a todos. A crônica, como se sabe, é gênero híbrido, “pára no meio do caminho entre a literatura e o jornalismo” (IDEM). Os textos de Os Filhos da Candinha informam, 7 Para consultar as crônicas que figurariam no primeiro e no segundo volume, retiradas do Diário Nacional, ver: LOPEZ, Telê Porto Ancona (org). Táxi e crônicas no Diário Nacional. Belo Horizonte: Itatiaia, 2005. p. 42. 25 divertem, emocionam. São textos “desfatigados” e livres, elementos constitutivos das crônicas de um escritor que atingiu a maturidade intelectual. Vimos que Mário iniciou sua carreira de cronista dividido entre a religião e a literatura, entre traços parnasianos e modernos, com a vontade de publicar seus escritos e ser reconhecido. Na década de 20, não recusou convites para escrever em periódicos e revistas; lutou pelo modernismo, defendendo a “cura de Peri”, ou seja, a reformulação do conceito nacionalista dos românticos; inventou pseudônimos para mostrar à intelectualidade e ao povo de então que muitos artistas estavam aderindo ao estilo modernista; e vivenciou seu momento mais importante como cronista no Diário Nacional. Já na década de 30 e o pouco que viveu na de 40, Mário, célebre e consciente de seu papel de escritor engajado, dedicou-se à preservação da memória e da história de seu país, compilando e publicando seus estudos etnográficos e folclóricos, fez crítica, foi mentor dos jovens escritores, fez um balanço sobre o modernismo brasileiro e a Semana de 22, e buscou democratizar a cultura, tanto em seu trabalho de escritor, como em seus projetos no Departamento de Cultura e no Ministério da Educação, com o SPHAN (Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). Soube reunir uma vida de intensa criação literária com o estudo da música, da literatura, das artes plásticas e do folclore, era um apaixonado pelas coisas brasileiras. Em todas as épocas, defendeu uma posição nacional: o que vemos é a formação de um artista que, mesmo apresentando bases parnasianas, sempre teve em seu espírito a necessidade de criticar o “burguês-níquel” e lutar por uma cultura e uma língua brasileira. 1.1: O Diário Nacional: uma luta pelo nacionalismo a partir da França É em 1928 que Mário de Andrade inicia sua carreira de cronista regular no Diário Nacional: além de representar o momento mais importante de sua carreira jornalística, a direção do periódico respeita suas ideias e propostas de “língua nacional”, conservando a sua ortografia e sintaxe, e alguns de seus amigos − que conheciam e apoiavam a luta modernista, como Sérgio Milliet − também trabalhavam no periódico. Desde Losango Cáqui, de 1922, percebe-se na obra mariodeandradeana a incorporação da “fala brasileira”. Para o autor, a língua é “dinâmica e nacionalmente 26 autônoma, não determinada pela gramática, mas construindo e determinando a gramática”. (LOPEZ, 2005, p. 23) Em 1924, declara em uma carta enviada a Manuel Bandeira sua nova percepção sobre a questão da pontuação: considera a vírgula um preconceito gramatical; portanto, utiliza-a somente quando a omissão possa prejudicar a compreensão textual ou quando servir de descanso rítmico ou expressivo.8 Em vários de seus textos, defendeu uma língua brasileira e uma reforma ortográfica. Nas crônicas do Diário afirma: O Brasil hoje é outra coisa que Portugal. E essa outra coisa possui necessariamente uma fala que exprime as outras coisas de que ele é feito. É a fala brasileira. Não a minha, que não passa duma tentativa individual – própria da minha aventura. Na fala brasileira escreveram Euclides, Machado de Assis, João Ribeiro, etc. E eu. (ANDRADE, 2005, p. 92) E ainda: O caos ortográfico em que estamos agora e em que sempre tomei parte com uma volúpia digna de mim, é irritante, enquisilante, insuportável e tem que parar. Só uma lei mesmo, exigindo unidade de grafia escolar e oficial, nos levará a uma fixação ortográfica, porque o individualismo entre nós é incomensurável. A lei, pelo sim, pelo não, nos levará insensivelmente à unidade. (ANDRADE, 2005, p. 139) Suas primeiras crônicas no Diário Nacional surgem no ano de 1927 em sua coluna de “Arte”, e são denominadas “artiguetes”. É uma série de crônicas intituladas “A arte em São Paulo”, que abordam, com humor, os valores da cidade paulista: O Diário Nacional inicia hoje uma série vasta de artiguetes encomendados a seu crítico de arte. Essa série tem por fim evidenciar a situação da arte em São Paulo, focalizando os costumes e os vícios que a ela se relacionam. Serão estudadas todas as manifestações artísticas e passados em revista não só os críticos nacionais e estrangeiros que aqui vivem, como os professores, os burgueses, os meios proletários e governamentais, em sua função artística. Espera assim o Diário Nacional fazer uma exposição nítida e imparcial de todos os vícios e cacoetes que impedem a manifestação eficiente das artes, em nosso ambiente social. (apud LOPEZ, 2005, p. 33) 8 “Examina a pontuação que adotei atualmente. O mínimo de vírgulas possível. A vírgula, a maior parte das vezes, sabes, é preconceito gramático. Uso dela só quando a ausência prejudica a clareza do discurso, ou como descanso rítmico expressivo. Também abandonei a pontuação em certos lugares onde as frases se amontoam polifônicas”. (citado por LOPEZ, 2005, p. 24) 27 Em 1928, Mário resolve ir ao Nordeste, para dar continuidade a suas viagens etnográficas. Da primeira viagem, realizada em 1927, cujo destino foi o Amazonas, resultou a crônica “A ciranda”, relato de uma dança assistida pelo escritor no Solimões, agradando ao jornal. Dessa forma, quando realiza sua segunda viagem etnográfica, vai como correspondente quase diário, enviando crônicas entre dezembro de 1928 a março de 1929 para a sua coluna “O turista aprendiz”, narrando os acontecimentos, os casos escutados e as aventuras de sua viagem, sempre com uma visão do Nordeste como um lugar digno e não somente festivo e pitoresco. Após a coluna “O Turista Aprendiz”, surge “Táxi”9, que reflete um dos momentos mais prolíficos do cronista, pois é o período em que mais publica textos do gênero crônica. O título selecionado para esta coluna é de extrema relevância, pois o táxi é um automóvel que pega qualquer passageiro e o leva a qualquer parte; por conseguinte, o nome da coluna significa tanto o veículo de ideias do escritor, como o pensamento modernista em relação ao discurso jornalístico; ou seja, texto que deve ser produzido para a massa, pode desenvolver qualquer assunto e deve se adequar a ele. “Táxi” é coluna semanal e se mantém de 1929 a 1930, sendo encerrada quando o jornal abre espaço na coluna para outros escritores como Manuel Bandeira e Luís da Câmara. Esta coluna se caracteriza pela quantidade e qualidade de textos de Mário, que mostra sua poeticidade, sentimentos, impressões e sensações com a síntese típica dos textos jornalísticos. Interessante ressaltar que Mário não intitula seus textos como crônicas, apesar de afirmar que está fazendo literatura. Define-os como colaboração ou “artiguetes”, indicando a mistura do artigo e da crônica em seus escritos. É somente em 1931, em “Agora é não desanimar!”, de 16 de agosto, que o escritor assume pela primeira vez que está fazendo crônicas: Os leitores devem estar lembrados que no último domingo dei conta dum livro raro de Davatz sobre as colonizações teuto-suíças, tentadas pelo senador Vergueiro em meados do século passado, nas suas fazendas de café. O interesse, apenas de cronista, pelas anedotas que tinha a relatar, me fizeram esquecer que sem ressalva alguma da minha parte, o relato iria ferir o sentimento daqueles que guardam com justiça a memória do velho paulista. Isso aliás está me recordando o caso de Sobrinho de Salomé, que por demais 9O título “Táxi” era pronunciado à francesa. 28 pândego não se presta a ser contado agora. Ficará pra uma das crônicas futuras. (p. 329)10 Dedica-se, também, à coluna “Folclore da Constituição”, na qual divulga o material colhido graças ao contato com o povo, na época da Revolução Constitucionalista de 1932, assumindo o papel do cronista medieval, que relata com fidelidade e referencialidade os fatos históricos. Em seus textos, demonstra o cotidiano, as histórias e o discurso dos participantes da luta; reúne dísticos, quadrinhas, cartas, reportagens publicadas em outros periódicos e os publica com um título ao mesmo tempo cômico e irônico. Nos textos do primeiro semestre de 1932, publicados antes de “Folclore”, Mário denuncia os acontecimentos anteriores à Revolução, expondo sua insatisfação com o governo estabelecido. Neste período, seu discurso é o da reação, suas palavras são irônicas, violentas, repreensivas e cruéis, ao contrário do que ocorreu em sua última coluna, iniciada em julho, quebrando a linearidade de sua escrita de então. Em “Folclore da Constituição”, Mário demonstra sua confusão interna, pois critica tanto o governo como a oposição, e mostra, também, sua convicção de que São Paulo tinha sido vítima de injustiças. Para Telê Porto Ancona Lopez (2005, p. 46), “a conduta de Mário e sua repercussão na coluna do jornal pode ser entendida como a tentativa de conciliar sentimentos, posições ideológicas e pressões sociais em conflito”. O escritor de Macunaíma assina suas crônicas da coluna “A arte em São Paulo” como “M. de A.”, as demais crônicas com o nome “MÁRIO DE ANDRADE”, sempre impresso em maiúsculas, exceto alguns textos, como “Agora é não desanimar!” (M.A.), “O sobrinho de Salomé” (“pela cópia, MÁRIO DE ANDRADE”) e a crônica “Correio Militar”, da série “Folclore da Constituição” (“pela cópia, M.A.”). Apenas em 1930, com a crônica “Zeppelin”, seus textos firmam-se em lugar fixo: página 3, canto superior direito, coluna larga. Como dito anteriormente, não se faziam referências ao gênero crônica, considerando os textos como “colaboração”; contudo, a distinção era feita graficamente: o texto literário, como a crônica, é apresentado em Excelsior com grifo, corpo nove; já os textos puramente jornalísticos e os artigos são apresentados como a maior parte das matérias do jornal, em Excelsior, 10 Contudo, a definição não passa a ser rígida, Mário mistura ou utiliza concomitantemente as diversas acepções: artiguete, artigo, crônica e colaboração. 29 corpo nove, redondo. Porém, esta tipografia não é rígida, havendo algumas modificações ao longo das produções de Mário de Andrade. Devido à intensa produção nesse periódico e a relevância desses textos para Mário, uma vez que escolheu 32 crônicas do Diário Nacional para figurar em suas histórias da Candinha, a especialista Telê Porto Ancona Lopez reuniu a série “A arte em São Paulo”, de 1927, “Táxi”, de 1929-1930, crônicas várias, de 1931-1932, a série “Folclore da Constituição”, de 1932, e as publicou em livro, intitulando-o Táxi e crônicas no Diário Nacional. Para ela, As crônicas de Mário de Andrade no Diário Nacional constituem um importante veículo de suas idéias, além de mostrarem no despoliciamento do trabalho jornalístico a humanidade do escritor. [...] A escolha do título Táxi e crônicas no Diário Nacional decorre da valorização do melhor momento na produção do período e do aproveitamento de um cabeçalho, que, como vimos, é bastante significativo (LOPEZ, 2005, p. 15) Os textos de Táxi e crônicas no Diário Nacional, livro analisado nesta pesquisa, caracterizam-se pela forte presença de críticas sociais, políticas, culturais e históricas, além de tematizarem situações pessoais, cotidianas e alguns acontecimentos ocorridos no Rio de Janeiro e em São Paulo, como a Revolução de 1930 e seus desdobramentos. Mário aborda, ao seu jeito, ou seja, com ironia e sarcasmo, as discussões que estavam em voga, como a publicação de um livro, a estreia de um recital ou um concurso de beleza, e defende suas convicções de língua brasileira e seu conceito de arte. Em outras crônicas, relata tanto um passeio de ônibus pela cidade, como um encontro com algum conhecido ou, até mesmo, com uma assombração. O escritor mistura jornalismo e literatura, mostra os acontecimentos a partir de seu ponto de vista e seus sentimentos. Vê-se, portanto, que a crônica de Mário de Andrade nem sempre trata de um fato noticiado pelos jornais, embora sempre surja de um fato real seja ele um acontecimento de âmbito social, de qualquer alcance, seja de âmbito individual, como, por exemplo, a descoberta que um cronista faz, em um dia determinado, que o cair da chuva lhe restitui emoções ou lembranças de situações antigas, passadas (LOPEZ, 1992, p. 167) Crônica-crítica, crônica-artigo, crônica-conto, crônica-carta, crônica-medieval, crônica-crônica: muitas são as facetas de Mário de Andrade cronista, que em todos os seus momentos defendeu uma literatura, uma arquitetura, uma arte e uma língua 30 nacional, e utilizava a sua posição de escritor para criar e democratizar esta cultura brasileira11. No entanto, em seus textos nacionalistas, encontram-se inúmeros elementos estrangeiros, principalmente franceses. Das 173 crônicas que compõem Táxi e crônicas no Diário Nacional, 98 delas apresentam marcas francesas que se manifestam por meio do uso da língua, alusões a lugares da França, principalmente Paris, e alusões a personagens históricos, músicos, pintores, escritores e literatos. Em relação aos literatos, objeto de estudo deste trabalho, Mário citou desde os românticos Musset, Chauteaubriand, e Victor Hugo, como os poetas Rimbaud, Verlaine, Baudelaire, Apollinaire e Valéry, não deixando de passar pelos clássicos Molière e Racine; no entanto, as alusões mais recorrentes são aos autores André Gide, Cocteau, Julien Benda, Paul Morand, Proust e Blaise Cendrars. Como a alusão aos escritores franceses é maior do que poderíamos supor, em um primeiro momento, foi feita a seleção dos mais aludidos pelo escritor modernista, sendo eles: Proust (6 crônicas), Julien Benda (4 crônicas) e Blaise Cendrars (4 crônicas). Importante ressaltar que Cocteau também é bastante aludido por Mário; contudo, o artista não fará parte do corpus desta dissertação, pois ele se dedicou mais às outras artes, como a dramaturgia e o cinema. Com isso, as crônicas “A linguagem” – I, “A linguagem” – III, “Centenário do Romantismo”, “Epistolografia”, “Oscarina”, “Circo de Cavalinhos”, “Intelectual” – I, “Mesquinhez”, “Peneirando”, “Tristão de Athayde”, “De-a-pé” – III, “Blaise Cendrars”, “Marinetti” e “Intelectual” – II serão analisadas, com o intuito de mostrar como um intelectual que participou da Semana de Arte Moderna, negando uma literatura brasileira como sendo cópia da francesa, incluiu dados estrangeiros em seus textos. 1.2: Presença da cultura francesa no Brasil Sabe-se que foi no século XIX que as ideias francesas chegaram ao Brasil. Porém, indaga-se sobre os motivos pelos quais a França foi selecionada como país a ser seguido culturalmente. Para o crítico Pierre Rivas (1989, p. 109-118), os escritores brasileiros viveram um processo de “desfiliação” de Portugal e “refiliação” cultural, sendo que a França foi escolhida por não possuir um vínculo direto com a colonização – 11 Sabe-se que Mário escreveu para várias revistas especializadas, mas o Diário Nacional, por exemplo, é um periódico destinado às massas. 31 embora tenham tentado dividir as terras brasileiras com os conquistadores – possuindo, assim, o mito do “bom francês”. Em Portugal, a entrada de novas visões ocorreu no século XVII, mas somente no século XVIII, os estudantes portugueses, conscientes do atraso e não podendo “isolar-se do ambiente europeu nem prescindir inteiramente das inovações técnicas, científicas e artísticas surgidas no estrangeiro” (PASSOS, 2000, p.20), começaram a receber bolsas para viajar para a França ou para outros países da Europa, onde as ideias francesas já estavam disseminadas, com exceção da Inglaterra que resistiu à expansão desta cultura. Sendo assim, brasileiros ricos que iam a Portugal ou à França estudar, assim como a própria elite portuguesa que veio ao Brasil acompanhando a família real ou ocupando cargos na época colonial, e os franceses que desembarcaram após a queda napoleônica trouxeram as novas concepções ao país. Além disso, os franceses sempre tiveram uma vasta presença nos domínios brasileiros, como por exemplo, a vinda de artistas e profissionais, com a criação de um instituto técnico e artístico, no período da vinda da Família Real ao país; a vinda da missão artística francesa em 1816, que resultou na instalação de uma colônia francesa na Tijuca, composta por pintores, escritores e, principalmente, pela família Taunay. Antonio Candido, em seu Pré-romantismo franco-brasileiro (1975), elenca os artistas franceses que se instalaram no Brasil no período de 1820-1830, mostrando suas contribuições para a nossa literatura. Vários foram os escritores nessa época que colaboraram para a efetivação de temas consagrados no Romantismo, como o indianismo (Eugène de Monglave, Édouard Corbière, Gavet e Boucher) e a Independência (Teodoro Taunay). No entanto, foi Ferdinand Denis o intermediário principal entre a França e o Brasil. O escritor d’Os Maxacalis propôs um projeto de literatura nacional, no qual aconselhava os brasileiros a rejeitarem as propostas incompatíveis com as características e os costumes do país, como a flora, a fauna, o clima e as tradições. Nota-se que o escritor indica o que os modernistas fariam um século depois. Contudo, a admiração e a reverência em relação à França impedem a expansão do nacionalismo, sendo que a literatura brasileira, em sua grande maioria, tornou-se uma cópia da literatura francesa: “Hoje [1836] o Brasil é filho da civilização francesa” (MAGALHÃES, 1836, p.149). Para Candido (1975, p. 285-286), tais escritores compuseram um autêntico pré- romantismo franco-brasileiro e “[forneceram] sugestões para a exploração literária dos 32 temas locais, que dignificavam por uma espécie de chancela européia, sempre necessária às nossas iniciativas intelectuais e artísticas”. Ademais, trouxeram “as tonalidades renovadoras de Ossian, de Chateaubriand, do exotismo literário, da melancolia, da valorização da América [...]”. A contribuição desses artistas foi de grande importância, pois, além de ajudarem os artistas brasileiros a enxergarem o mundo que estava ao seu redor, difundiram um tipo de sensibilidade que contribuiu para o advento do Romantismo. O domínio francês não se restringiu aos campos da literatura; houve, também, uma vasta difusão no campo filosófico, político, nas ciências físicas e nas práticas sociais. Profissões ligadas à moda, às diversões, aos costumes e à linguagem se multiplicaram, inúmeros livros franceses vieram para as bibliotecas e “livrarias brasileiras”, e o aprendizado do idioma francês tornou-se essencial. A relação entre a França e o Brasil continuou no século XX: em seu Destinos Mistos (1998), Heloísa Pontes descreve a vinda de uma missão francesa ao Brasil, composta por Émile Coornaert, Jean Gagé, Fernand Braudel, Paul Arbousse-Bastide, Claude Lévi-Strauss, Roger Bastide, George Gurvitch, Charles Morazé, Jean Maugüé, Gilles G. Granger, René Courtin, Paul Hugon, entre outros. Tais intelectuais se integraram à Universidade de São Paulo na década de 1930 e contribuíram não apenas para “o modelo e a concepção da universidade, como conferiram maior legitimidade e força às reivindicações dos educadores”. (LIMONGI, 1989, p. 129) Este fato reflete o intercâmbio cultural entre o Brasil e a França ainda no século XX. Outro exemplo foi a criação do Liceu Franco-Brasileiro, em 1921, fundado a fim de dar a São Paulo um colégio modelo, e colaborar para a expansão da cultura francesa, mantendo aqui um núcleo de “civilização latina”. A contribuição dos franceses, principalmente de Claude Lévi-Strauss, Jean Maugüé e Roger Bastide, foi decisiva na formação intelectual de alguns escritores e críticos como Antonio Candido, Gilda de Mello e Souza, Décio de Almeida Prado, Ruy Coelho e Lourival Gomes. Eles também tentaram mudar o sistema de produção intelectual, universitário e acadêmico: Não mais a repetição mecânica de um texto, vazio e inatual, cujas fontes eram cuidadosamente escamoteadas da classe, mas a exposição de um assunto preciso, apoiado numa bibliografia moderna, fornecida com lealdade ao aluno. Ao contrário da tradição romântica de ensino, baseada na improvisação do brilho fácil, que ainda imperava na Faculdade de Direito, 33 por exemplo, o professor consultava disciplinadamente as suas anotações, aumentando com isso a confiança dos alunos na seriedade do ensino. (PONTES, 1998, p. 93) Vale ressaltar que a relação entre o Brasil e a França não era unilateral. No século XIX, com a derrota francesa pelos prussianos, a diminuição da exploração do continente africano e com a expansão dos Estados Unidos, a França se interessou pelo Brasil, a fim de aumentar seu domínio político e econômico. Instaurando-se o caráter nacional na literatura brasileira, houve progressivamente uma diminuição da presença francesa no Brasil. Isso não significa, porém, que o Modernismo seja uma manifestação nova, pois também ocorreu uma imitação aos europeus como forma de reagir à situação da época: Imitamos, não tem dúvida. Porém não ficamos na imitação. A distância que hoje estamos da Europa é estirão tão grande que nem se vê mais Europa. Quase. Temos mais que fazer. Estamos fazendo isto: tentando. Tentando dar caráter nacional pras nossas artes. Nacional e não regionalista. (ANDRADE, apud PINHEIRO, 2004, p. 25) Em 1936, Mário de Andrade afirma que “não há propriamente diminuição de influência francesa, e sim engrandecimento do Brasil”. Em seu artigo Decadência da influência francesa no Brasil (1993, p. 3), o escritor analisa duas barreiras que a França não conseguirá mais vencer: o próprio espírito nacional brasileiro e a universalização do Brasil e da sua cultura. Mário alega ainda que o país já possui uma cultura própria, centros de pesquisas e culturas brasileiras, que são independentes da presença estrangeira, apesar de incipientes. O povo brasileiro também adquiriu uma cultura popular brasileira e, com isso, os artistas tiveram de se moldar às exigências nacionais. Além disso, os brasileiros tiveram necessidade de conhecer outras culturas, outras línguas, outros intelectuais que não fossem os franceses. Por essa razão, o escritor de Paulicéia Desvairada conclui: Assim, minha opinião é que não há propriamente decadência de influência francesa. Os brasileiros continuam a ler enormemente os livros franceses, a admirar e amar a França no que ela tem de admirável e amável. Apenas, pelo seu próprio engrandecimento, e pelas circunstâncias atuais do mundo, o brasileiro não pode mais se empobrecer num exclusivo amor... (IDEM, p. 5) 34 Apesar disso, há, em Táxi e crônicas no Diário Nacional, inúmeras referências à terra de Molière, com a qual o escritor possuiu uma relação estrita12: Em A Escrava que não é Isaura, afirma ter sido educado em um colégio francês. Estudou, aos 11 anos, no Ginásio Nossa Senhora do Carmo, onde teve professores franceses e belgas. Ainda que nunca tenha ido à França, o autor apresenta em sua formação bases francesas, adquiridas pela educação escolar e pela tradição francesa da literatura brasileira, comum aos escritores da época. Várias são as referências à França ao longo de suas obras. Podemos citar seu primeiro livro de poemas Há uma gota de sangue em cada poema, as obras Amar, verbo intransitivo (romance) e A Escrava que não é Isaura (ensaio), alguns ensaios, artigos, comentários e críticas em periódicos modernistas como: “O homenzinho que não pensou”, “Luzes e Refrações- parte III e IV”, “Livros & Revistas: Le miracle de vivre- Charles Baudouin”, “Carta aberta a Alberto de Oliveira”, entre outros trabalhos, onde o autor faz referências a autores e a livros franceses. Alguns estudos demonstram a relação de Mário de Andrade com a França: as dissertações de Maria Helena Grembecki, Mário de Andrade e L’ Esprit Nouveau, de Nites Therezinha Feres, Leituras em francês de Mário de Andrade (publicadas pelo Instituto de estudos brasileiros, em 1969) e de Valter César Pinheiro, A França em contos de Mário de Andrade, a tese de Lilian Escorel de Carvalho, A revista francesa L’Esprit Nouveau na formação das ideias estéticas e da poética de Mário de Andrade, os trabalhos de Telê Porto Ancona Lopes, A estréia poética de Mário de Andrade e Macounaïma et Mário de Andrade, e o ensaio de Roger Bastide, Macunaíma visto por um francês, entre outras pesquisas. Porém, poucos são os trabalhos que abordam a presença francesa nas crônicas de Mário de Andrade. Sendo assim, o presente trabalho visa verificar de que maneira se constitui tal relação em alguns de seus textos publicados no Diário Nacional e verificar o motivo pelo qual a presença francesa é tão grande em suas crônicas, contradizendo os movimentos estéticos da época. 12 Betella (2011) informa em seu artigo “Abrindo uma Matriochka no arquivo: lições de método de Mário de Andrade”, que o escritor brasileiro possuía em sua biblioteca, várias edições de obras francesas relacionadas à música, como a Encyclopédie de la Musique et Dictionnaire du Conservatoire e vários exemplares da obra de Prunières, como Nouvelle histoire de la musique, La vie illustre et libertine de Jean-Baptiste Lully, L'opéra italien en France avant Lulli , Le ballet de cour en France avant Benserade et Lully.Essas fontes, segundo a pesquisadora, fornecem pistas para se conhecer a biblioteca de Mário de Andrade e sua dimensão. 35 As análises serão baseadas na relação entre três fatores: o fato noticiado pelos jornais, a elaboração desse dado pelo cronista e a presença do elemento francês. Passemos ao estudo das crônicas. 36 CAPÍTULO 2 Mário de Andrade e Marcel Proust Dentre as inúmeras citações francesas presentes nas crônicas de Mário de Andrade, o intertexto proustiano é a marca mais relevante e inesperada de Táxi. Em 6 de seus textos, Mário faz referências a personagens de Proust, mais especificamente a Charlus e Albertine, e alude ao estilo do escritor francês. As crônicas analisadas serão agrupadas de acordo com sua temática, e as alusões francesas examinadas em seu contexto original e em sua nova forma, adquirida a partir do momento em que Mário as utilizou e modificou para configurarem em seus textos jornalísticos, veículo de sua literatura e seus ideais. Será possível verificar, como observou Jenny, que a repetição nunca é gratuita; ao contrário, tem sempre um objetivo ideológico e crítico: repete-se “para negar, para delimitar, para fechar num outro discurso” (JENNY, 1979, p.44). Os seis textos que compõem este capítulo são: “A linguagem” – I, “A linguagem” – III, “Epistolografia”, “Circo de Cavalinhos”, “Centenário do Romantismo” e “Oscarina”, respectivamente. Passemos as análises. 2.1: As limitações da linguagem e a literatura contemporânea: um estudo das crônicas “A linguagem” – I e “A linguagem” – III Táxi: A linguagem – I (16 de abril de 1929) Vai agora luta acesa entre críticos e estetas musicais da França a respeito do problema da sensibilidade musical. Uns dizem que a música não exprime coisa nenhuma, outros respondem com a sabida lengalenga, de que ela exprime sim e coisas tão profundas que não podem ser traduzidas pelas palavras. Na verdade estes pseudo-defensores da sensibilidade musical, com idéias e argumentos novos e bem sutis não conseguem sequer derrubar as afirmativas já velhas de Hanslick. Também reconheço que dentro da vida sensível do homem tem muita coisa que as palavras não conseguem traduzir. A linguagem, sendo uma precisão exclusiva da inteligência consciente, está claro que todos os valores que conseguir adquirir são elementos que interessam a essa própria inteligência. Ora seria um engano pobre imaginar que essa multifariedade da nossa vida sensível sequer procura ser reconhecida e especificada por esse instrumento bem precário que é a consciência humana. Até muito curioso de constatar é que o léxico humano jamais pára de enriquecer. Mas de que palavras se enriquece? De palavras-objetos se referindo às invenções novas da vida prática. E só. Quando senão quando aparece também uma palavra abstração, um termo novo de filosofia, de deveras asa nova com que o espírito escapole da vida sensível. Quanto a neologismos que busquem 37 traduzir escaninhos recém-descobertos da sensibilidade isso é raríssimo, raríssimo. E dessa precariedade utilitária da linguagem provém a angústia da literatura contemporânea. Nós queremos estudar as particularidades sublimes da nossa vida sensível e pra isso nos servimos da linguagem que se prevalece exclusivamente da inteligência, o que sucede? Sucede que atingimos maior sutileza intelectual porém não maior força expressiva. Suponhamos Proust e Racine, Conrad e Camões. Será que a gente percebe mais o sr. de Charlus que Fedra, o tufão de Conrad, que a tempestade dos Lusíadas? Não tem dúvida que os dois contemporâneos alcançam maior análise. Mas não estará nisso mesmo o ilogismo deles? A linguagem constituída é sempre uma abstração e por isso não pode expressar senão a ordem geral da nossa vida sensível, aquela ordem em que a inteligência é universal e sintética. A particularização de Proust e de Conrad, por isso, pode nos dar maior número de elementos objetivos, maior número de explicações. Mas não consegue dar pra gente maior perceptibilidade da vida nem expressá-la mais intensamente. Pelo contrário. A síntese antiga pela própria brevidade intelectual dela, fazia as “lembranças” com as quais a gente compreende, chegarem tão afobadas e numerosas na consciência que a coisa descrita, sem perder nada da sua universalidade, era feita somente de dados da nossa experiência própria. Realizava na gente o fenômeno de pura atividade – o que é sempre o meio mais certo de recriar na gente a ilusão da vida sensível. Ao passo que os dois modernos citados, pela própria particularização dos elementos e causas, construída ponto a ponto, realizam o silêncio da tapeçaria. É fofo. A gente dorme sobre, em passividade fatigante. Sob esse ponto-de-vista Proust e o Conrad do “Tufão” são as dramáticas reproduções do Agnosticismo contemporâneo. (ANDRADE, 2005, p. 69-70) Táxi: A linguagem – III (28 de abril de 1929) Mais duas observações pra acabar. Outro dia notei que linguagem, como instrumento de expressão, não se contentando com valores muito vagos como “amor”, “ódio”, “tristura”, etc. enriquecia o vocabulário desses sentimentos até o ponto em que as modalidades deles eram gerais, de todos e portanto passíveis de abstrações intelectuais. Depois parava ao passo que a sensibilidade humana não parava de se desenvolver. Disso origina o drama, não sem grandeza, de muitos escritores contemporâneos, especialmente de Proust. É fora de discussão, creio, que Proust ou ainda o Conrad do “Tufão” quiseram expressar literariamente a maior totalidade atingível da vida sensível. Porque ninguém negará que toda arte é representação expressiva de estados-de-sensibilidade, imaginando com isso que reproduziam, expressavam o efeito, isto é, o próprio estado-de- sensibilidade. Ilusão pura. Continuavam dentro das causas, dentro de muitas causas porém não de todas. De fato: é possível ajuntar mais de 120 causas determinantes de tal momento atmosférico e mais duas mil sensações inteligíveis, olhando Albertina dormir. Escreveram mais comprido. Mais explicado. Porém não mais expressivamente nem mais efetivamente naquela parte em que a vida sensível escapole da inteligência e da linguagem. Há fenômenos, mais propriamente individuais que seculares consistindo na coincidência da linguagem com a sensibilidade. É o momento em que a sensibilidade dum indivíduo não o interessa além dos poderes de abstração da inteligência. Se esse momento coincide com uma linguagem suficientemente desenvolvida na sua parte expressiva da vida sensível, surge na literatura o “escritor clássico”. Outra observação me foi sugerida por A. Couto de Barros. Ele verificava semana faz, que a gente tem muito o costume de quando não entende uma coisa, explicá-la por uma palavra. E pronto: se fica satisfeito como se a explicação estivesse total. Quando de fato não houve explicação 38 nenhuma, apenas substituição dum estado interrogativo pela abstração léxica dele. E agora é fácil de reconhecer a precariedade expressiva da linguagem em relação à vida sensível. No táxi passado, querendo exprimir o estado-de- sensibilidade em que fico vendo um elefante, acabei fatalmente no ilogismo verificado por Couto de Barros e chamei a coisa de “estado cenestésico”. Não tem dúvida que as formas, as cores, as linhas, movimentos, etc., do elefante, o cheiro dele, os pensamentos, as sensações de medo, de ridículo, de feiúra, etc. provocados por ele, despertaram em mim um dinamismo físio-psíquico novo. Portanto um “estado cenestésico”. Mas que exprimem estas duas palavras? Absolutamente nada de nada. Estão certas porém são uma pura abstração científica que verifica uma realidade, mas como esta realidade não interessava, não podia ser expressa pela inteligência, a inteligência trocou-a por uma palavra e lá se foi muito lampeira sem ter expressado coisa nenhuma. Houve uma substituição apenas que pôde satisfazer talvez às exigências da minha consciência intelectual mas que não exprimiu a minha vida sensível nem pra mim, nem pros outros. (ANDRADE, 2005, p. 76-77) Mário de Andrade, além de escritor e crítico literário, nutria um grande interesse pela música brasileira: desenvolveu pesquisas reveladoras a respeito da produção nacional, contribuiu de maneira intensa para a formação de conceitos e de uma bibliografia musical, em uma época em que a ausência de artigos e estudos sobre música era gritante: Aliás, no que diz respeito à área da musicologia em particular, o crítico obteve aí papel de extremada importância ao divulgar e estruturar essa ciência segundo os moldes de uma consciência nacionalista que pudesse, enfim, sustentar as especificidades do nosso povo. Não muito conhecida como o são seus escritos literários, é mister esclarecer que a produção musical de Mário de Andrade apresenta-se de maneira distinta em, basicamente, dois momentos: ao final dos anos 20, com a publicação de obras como Ensaio da Música Brasileira e o Compendio de História da Música; e ao final dos anos 30 e início dos 40, quando da publicação de artigos para a Revista do Brasil, bem como para o rodapé "Mundo Musical" do jornal Folha da Manhã - textos estes nos quais apareceria pela primeira vez, musicalmente falando, a consciência político-social do autor, além da noção clara de uma arte engajada. (OLIVEIRA, 2007, p. 104) Era também um grande conhecedor de música erudita e estrangeira, sendo que em sua biblioteca há algumas obras relativas a este assunto, como Du beau dans la Musique: Éssai de réforme de l’Esthétique musicale, principal obra de Édouard Hanslick (1825-1904), crítico aludido em sua crônica. Desta forma, o debate ocorrido na França, em 1929, sobre a questão da sensibilidade musical, não poderia deixar de ser abordado por ele em seus textos. A crônica “A linguagem” – I é iniciada com esta discussão musical francesa. Para Mário 39 de Andrade, as afirmações dos teóricos de que a música exprime uma sensibilidade não acrescentaram novos conceitos aos já existentes. “A linguagem” – I, entretanto, não trata de música; esse elemento é introduzido no texto jornalístico para iniciar uma série de reflexões feitas pelo escritor ao descrever o seu conceito sobre a linguagem. A linguagem, para o escritor de Pauliceia Desvairada, é um ato consciente que não consegue descrever as especificidades mais profundas da “vida sensível”, somente expõe os sentimentos comuns a todos os seres humanos. Sendo assim, a literatura contemporânea, vista pelos críticos como capaz de expressar as particularidades mais íntimas das personagens, é colocada em discussão pelo escritor modernista. Para melhor exemplificar a sua posição, Mário refere-se, em “A linguagem” – I e “A linguagem” – III13, ao escritor francês Marcel Proust, um dos primeiros romancistas a romper com a tradição literária do século XIX, introduzindo, em seus escritos, a vivência subjetiva, ou seja, “[o seu] romance se passa no íntimo do narrador, as perspectivas se borram, as pessoas se fragmentam, visto que a cronologia se confunde no tempo vivido; a reminiscência transforma o passado em atualidade”. (ROSENFELD, 1985, p. 92) Mário faz uma comparação entre alguns escritores consagrados da literatura (Proust, Conrad, Racine e Camões), para demonstrar as limitações estéticas da linguagem. Para ele, as personagens Fedra, de Racine, e Sr. de Charlus, de Proust – caracterizadas por serem atormentadas psicologicamente, a primeira por ser apaixonada por seu enteado e Charlus por ter desejos masoquistas – são descritas pelo mesmo instrumento, a linguagem; consequentemente, ambas as descrições possuem suas limitações. Os escritores contemporâneos conseguem um desenvolvimento maior nas análises e explicações, pois o vocabulário, ao passar dos anos, se enriquece; no entanto, os antigos obtêm maior intensidade e “perceptibilidade da vida”, devido à sua concisão: Será que a gente percebe mais o sr. de Charlus que Fedra, o tufão de Conrad, que a tempestade dos Lusíadas? [...] A síntese antiga pela própria brevidade intelectual dela, fazia as “lembranças” com as quais a gente compreende, chegarem tão afobadas e numerosas na consciência que a coisa descrita, sem perder nada da sua universalidade, era feita somente de dados da nossa 13 Há também uma crônica intitulada “A linguagem” – II, que não será analisada, pois não apresenta marcas francesas. A supressão deste texto não prejudicará as análises, uma vez que Mário repete as ideias nelas contidas em “A linguagem” – III. 40 experiência própria. Realizava na gente o fenômeno de pura atividade – o que é sempre o meio mais certo de recriar na gente a ilusão da vida sensível. Ao passo que os dois modernos citados, pela própria particularização dos elementos e causas, construída ponto a ponto, realizam o silêncio da tapeçaria. Ainda para esclarecer suas convicções, o cronista exemplifica, por meio de uma personagem de Proust, o método dos contemporâneos: [...] é possível ajuntar mais de 120 causas determinantes de tal momento atmosférico e mais duas mil sensações inteligíveis, olhando Albertina dormir. Escreveram mais comprido. Mais explicado. Porém não mais expressivamente nem mais efetivamente naquela parte em que a vida sensível escapole da inteligência e da linguagem. Vê-se que Mário discorda de que a literatura contemporânea consiga transmitir com maior intensidade as experiências subjetivas do ser humano. Mas, dentre tantos literatos contemporâneos, por que escolheu Proust? E dentre tantas personagens proustianas, por que Albertine? Em seus livros La prisonnière e Albertine disparue (La fugitive), Proust descreve a relação entre o narrador-protagonista Marcel e sua amante Albertine. Em La prisonnière, Marcel vive com Albertine na casa de seus pais, ausentes naquele período, e com Françoise, a criada. O protagonista, desconfiado de que Albertine mantivesse relações com outras mulheres, vivencia períodos de extremo ciúme e, no intuito de evitar traições, faz de tudo para controlar e vigiar a vida de sua companheira, mantendo- a como “prisioneira” em sua casa. O livro termina com a fuga de Albertine, início da obra seguinte de Proust, Albertine disparue. Após ela deixar a casa em que morava com Marcel, o protagonista inicia uma série de reflexões sobre o amor, o ciúme, o esquecimento e o hábito, a partir das rememorações dos dias em que passara com a sua amada. O narrador busca o conhecimento, a verdade, o desvelamento do “eu”, não somente nos livros analisados, mas em todas as obras de A la recherche du temps perdu. Para tal, o narrador deve se lembrar de seu passado, para conhecer alguns sentimentos que não foram apreendidos no momento, pois o presente está envolto pelo hábito e experiências múltiplas, motivos pelos quais não conseguimos absorver o que é necessário para o entendimento de algumas vivências. E é somente pela memória 41 involuntária que conseguimos reviver um momento anterior e captar lembranças que aparentemente estavam imersas no esquecimento. A memória involuntária é trazida à tona ao acaso, quando encontramos um objeto que nos faz lembrar algo do passado, ou a partir de um cheiro ou um gosto, como vemos na famosa passagem da madeleine: Ela mandou buscar um desses bolinhos pequenos e cheios chamados madalenas e que parecem moldadas na valva estriada de uma concha de São Tiago. Em breve, maquinalmente, acabrunhado com aquele triste dia e a perspectiva de mais um dia tão sombrio como o primeiro, levei aos lábios uma colherada de chá onde deixara amolecer um pedaço da madalena. Mas no mesmo instante em que aquele gole, de envolta com as migalhas do bolo, tocou meu paladar, estremeci, atento ao que se passava de extraordinário em mim [...] E mal reconheci o gosto do pedaço de madalena molhado em chá que minha tia me dava (embora ainda não soubesse, e tivesse de deixar para muito mais tarde tal averiguação, por que motivo aquela lembrança me tornava tão feliz), eis que a velha casa cinzenta, de fachada para a rua, onde estava seu quarto, veio aplicar-se, como um cenário de teatro, ao pequeno pavilhão que dava para o jardim e que fora construído para meus pais aos fundos da mesma [...] tudo isso que toma forma e solidez, saiu, cidade e jardins, de minha taça de chá. (PROUST, 2006, p. 71-74) 14 É com esse processo que Proust estrutura toda a sua obra. A história da Recherche é também a busca de uma vocação, pois o narrador-protagonista só consegue concretizar as experiências revividas no universo artístico, lugar onde não há constrangimentos e preconceitos: “A verdadeira vida, a vida por fim esclarecida e descoberta, a única vida, pois, plenamente vivida, é a literatura.” [tradução nossa] (PROUST, 1989, p. 202) Em Albertine disparue, o narrador inicia a sua trajetória de rememorações sobre sua relação com a mulher amada a partir do momento em que Françoise anuncia a partida de Albertine, primeira frase do livro: “A Srta. Albertine foi-se embora! Como, 14 Elle envoya chercher un de ces gâteaux courts et dodus appelés Petites Madeleines qui semblent avoir été moulés dans la valve rainurée d’une coquille de Saint-Jacques. Et bientôt, machinalement, accablé par la morne journée et la perspective d’un triste lendemain, je portai à mes lèvres une cuillerée du thé où j’avais laissé s’amollir un morceau de madeleine. Mais à l’instant même où la gorgée mêlée des miettes du gâteau toucha mon palais, je trassaillis, attentif à ce qui se passait d’extraordinaire en moi. [...] Et dès que j’eus reconnu le goût du morceau de madeleine trempé dans le tilleul que me donnait ma tante (quoique je ne susse pas encore et dusse remettre à bien plus tard de découvrir pourquoi ce souvenir me rendait si heureux), aussitôt la vielle maison grise sur la rue, où était sa chambre, vint comme un décor de théâtre s’appliquer au petit pavillon donnant sur le jardin, qu’on avait construit pour mes parents sur ses derrières [...] tout cela qui prend forme et solidité, est sorti, ville et jardins, de ma tasse. (PROUST, 1954, p. 55-58) 42 em psicologia, o sofrimento vai mais longe do que a psicologia!” (PROUST, 1989, p. 9)15 Tal afirmação do narrador sobre a psicologia pode ser comparada às ideias de Mário expostas nas crônicas analisadas. A linguagem, assim como a psicologia, não consegue exprimir com eficiência todos os sentimentos humanos, pois ambas são mecanismos da inteligência, instrumento precário da nossa consciência. Proust (1971, p. 211), assim como Mário, desvalorizou em seus textos o valor da inteligência: Cada dia eu atribuo menos valor à inteligência. Cada dia eu me dou mais conta de que é somente fora dela que o escritor pode retomar algo de nossas impressões passadas, ou seja, alcançar algo dele mesmo e a única matéria da arte.16 Como já dito, para o escritor de Macunaíma, uma das características dos contemporâneos é a de relatar as atitudes e os sentimentos humanos mais detalhadamente, como exemplifica na descrição das emoções que se pode ter quando vemos a personagem proustiana Albertine dormindo: “é possível ajuntar mais de 120 causas determinantes de tal momento atmosférico e mais duas mil sensações inteligíveis, olhando Albertina dormir”. Em La prisonnière, o narrador-protagonista Marcel expõe suas impressões e sentimentos pessoais quando vê a sua amada adormecida. Algumas vezes, quando ele saía do quarto para buscar livros na biblioteca de seu pai, na volta, encontrava Albertine dormindo, devido ao cansaço dos passeios que fizera durante o dia: Estendida a fio comprido em minha cama, numa atitude de uma neutralidade que não se teria podido inventar, dava-me a impressão de uma longa haste em flor que houvessem colocado ali, e o era efetivamente: o poder de cismar, que eu só tinha na ausência dela, encontrava-o naqueles instantes a seu lado, como se dormindo ela se tivesse convertido numa planta. Assim, o seu sono realizava, em certa medida, a possibilidade do amor; quando eu ficava só, podia pensar nela, mas ela me fazia falta, eu não a possuía. Ela presente, eu lhe falava, mas estava por demais ausente de mim mesmo para poder pensar. Quando ela dormia, eu não precisava mais falar, sabia que não era mais 15 « Mademoiselle Albertine est partie! » Comme la soufrance va plus loin en psychologie que la psychologie! (PROUST, 1989, p. 03). 16 Chaque jour j’attache moins de prix à l’intelligence. Chaque jour je me rends mieux compte que ce n’est qu’en dehors d’elle que l’écrivain peut ressaisir quelque chose de nos impressions passées, c’est à dire atteindre quelque chose de lui même et la seule matière de l’art. (PROUST, 1971, p. 211) 43 olhado por ela, não tinha mais necessidade de viver na superfície de mim mesmo. (PROUST, 1989, p. 62-63) 17 Para Marcel, os momentos em que via Albertine dormir eram os mais agradáveis, pois ele tinha a sensação de possuí-la por inteiro e, consequentemente, de controlá-la, pois ela estava fechada em seu próprio corpo, resumida a ele, sem a intromissão de fatores externos: Fechando os olhos, perdendo a consciência, Albertine se despojara sucessivamente dos seus diferentes caracteres de humanidade que me haviam decepcionado desde o dia em que a conheci. Não estava animada senão da vida inconsciente dos vegetais, das árvores, vida mais diversa da minha, mais estranha, e que no entanto me pertencia mais. Seu eu não se escapava a todos os momentos, como quando conversávamos, pelas saídas do pensamento inconfessado e do olhar. (IDEM, p. 63) 18 Todo esse sentimento o fazia passar horas admirando a sua amada, o que causava sensações e pensamentos diversos: O que eu experimentava então era um amor em face de qualquer coisa tão pura, tão imaterial em sua sensibilidade, tão misteriosa, como se eu estivesse diante dessas criaturas inanimadas que são as belezas naturais. Com efeito, quando ela dormia mais profundamente, cessava de ser a planta que havia sido; seu sono, à beira do qual eu me perdia em cismas, com deliciosa volúpia, de que não me cansava nunca, de que poderia gozar indefinidamente, era pra mim toda uma paisagem. [...] E como as pessoas alugam por uma diária de cem francos um quarto no Hotel de Balbec para respirar o ar do mar, eu achava muito natural gastar mais do que isto com ela, pois tinha o seu hálito, perto do meu rosto, na sua boca, que eu entreabria contra a minha, onde pela minha língua passava a sua vida. (IDEM, p. 63- 66)19 17 Étendue de la tête aux pieds sur mon lit, dans une attitude d’un naturel qu’on n’aurait pu inventer, je lui trouvais l’air d’une longue tige en fleur qu’on aurait disposée là, et c’était ainsi en effet : le pouvoir de rêver, que je n’avais qu’en son absence, je le retrouvais à ces instants auprès d’elle, comme si, en dormant, elle était devenue une plante. Par là, son sommeil réalisait, dans une certaine mesure, la possibilité de l’amour; seul, je pouvais penser à elle, mais elle me manquait, je ne la possédais pas. Présente, je lui parlais, mais j’étais trop absent de moi-même pour pouvoir penser. Quand elle dormait, je n’avais plus à parler, je savais que je n’étais plus regardé par elle, je n’avais plus besoin de vivre à la surface de moi-même. (PROUST, 1954, p. 80) 18 En fermant les yeux, en perdant la conscience, Albertine avait dépouillé, l’un après l’autre, ses différents caractères d’humanité qui m’avaient déçu depuis le jour où j’avais fait sa connaissance. Elle n’était plus animée que de la vie inconsciente des végétaux, des arbres, vie plus différente de la mienne, plus étrange, et qui cependant m’appartenait davantage. Son moi ne s’échappait pas à tous moments, comme quand nous causions, par les issues de la pensée inavouée et du regard. (IDEM, p. 80-81) 19 Ce que j’éprouvais alors, c’était un amour devant quelque chose d’aussi pur, d’aussi immatériel dans sa sensibilité, d’aussi mystérieux que si j’avais été devant les créatures inanimées que sont les beautés de la nature. Et, en effet, dès qu’elle dormait un peu profondément, elle cessait seulement d’être la plante qu’elle avait été ; son sommeil, au bord duquel je rêvais, avec une fraîche volupté dont je ne me fusse 44 Às vezes, quando Marcel sentia que Albertine atingira o sono profundo, ele se deitava ao lado dela, na intenção de senti-la e tê-la por inteiro: Então, sentindo que ela estava em pleno sono e que eu não iria chocar-me em escolhos de consciência recobertos agora pelo preamar do sono profundo, deliberadamente galgava sem fazer ruído o leito, deitava-me a seu lado, tomava-lhe a cintura com um dos braços, pousava os meus lábios no seu rosto, no seu coração, depois em todas as partes do seu corpo a minha mão livre, que era então, como as pérolas, levantada também pela respiração de Albertine; eu mesmo me sentia, de leve, movido pelo seu movimento regular: estava embarcado no sono de Albertine. Às vezes me propiciava ele um prazer menos puro. [...] O ruído de sua r