JOÃO HENRIQUE SOUZA PIRES APOIO DE ENTIDADES ÀS COMUNIDADES QUILOMBOLAS: ANÁLISE SOBRE O CIRCUITO QUILOMBOLA DE TURISMO COMUNITÁRIO DO VALE DO RIBEIRA (SP) MARÍLIA 2021 JOÃO HENRIQUE SOUZA PIRES APOIO DE ENTIDADES ÀS COMUNIDADES QUILOMBOLAS: ANÁLISE SOBRE O CIRCUITO QUILOMBOLA DE TURISMO COMUNITÁRIO DO VALE DO RIBEIRA (SP) Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Educação da Faculdade de Filosofia e Ciências, da Universidade Estadual Paulista – UNESP – Campus de Marília, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Educação. Linha de Pesquisa: Políticas Educacionais, Gestão de Sistemas e Organizações, Trabalho e Movimentos Sociais. Orientador: Prof. Dr. Henrique Tahan Novaes MARÍLIA 2021 JOÃO HENRIQUE SOUZA PIRES APOIO DE ENTIDADES ÀS COMUNIDADES QUILOMBOLAS: ANÁLISE SOBRE O CIRCUITO QUILOMBOLA DE TURISMO COMUNITÁRIO DO VALE DO RIBEIRA (SP) Tese de Doutorado apresentada para obtenção do título Doutora em Educação da Faculdade de Filosofia e Ciências, da Universidade Estadual Paulista – UNESP – Câmpus de Marília, na área de concentração Políticas Educacionais, Gestão de Sistemas e Organizações, Trabalho e Movimentos Sociais. BANCA EXAMINADORA Orientador: Prof. Dr. Henrique Tahan Novaes Faculdade de Filosofia e Ciências – UNESP/Marília 2º Examinador: Prof. Dr. Julio Cesar Torres Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas – UNESP/São José do Rio Preto 3º Examinador: Profª. Dra. Neusa Maria Dal Ri Faculdade de Filosofia e Ciências – UNESP/Marília 4º Examinador: Prof. Dr. Davis Gruber Sansolo Universidade Estadual Paulista – UNESP/Campus do Litoral Paulista 5º Examinador: Profª. Dra. Fabiana de Cassia Rodrigues Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP/Campinas Marília, 29 de março de 2021 AGRADECIMENTOS Inspirado em Edson Gomes quando canta “[...] ando sobre a terra, e vivo sob sol, e as, e as minhas raízes, eu balanço, eu balanço, eu balanço [...]”! Primeiramente eu quero agradecer a todos e a todas que de uma forma ou de outra sempre contribuíram e continuam a contribuir com a minha caminhada. Axé pra nós! Mas para além e de forma muito especial agradeço: à minha mãe (in memória) que mesmo não tendo a possibilidade de chegar ao fim do ensino fundamental, nunca poupou energia para me ensinar a ler e a escrever as primeiras palavras e a importância dos estudos. PRESENTE, PRESENTE, PRESENTE. meu pai que mesmo sendo um caboclo chucho sempre foi verdadeiro e respeitoso. Poucos que vieram da onde eu vim tiveram esse privilégio. aos meus irmãos (Jesus e Flaviana) que com muita perseverança abriram os caminhos do ensino superior à família. E aos meus sobrinhos Maria Fernanda, José Eduardo e Ana Luiza por me ajudarem a acreditar que o amanhã sempre há de nascer. a Thaís, companheira de todas as horas que me suporta e me faz bem. ao querido professor Henrique, pela orientação, parceria, compreensão e confiança. Gracias por tudo! a todos os membros do Grupo de Pesquisa Organizações e Democracia que sempre me proporcionaram importantes leituras, profundas reflexões e calientes debates. a professora Neusa pelas contribuições durante nossa trajetória pela pós-graduação desde o mestrado. a professora Fabiana (Fabi) e ao professor Davis por aceitarem prontamente a participar de nossa banca de qualificação e novamente da banca de defesa ao professor Júlio por também aceitar prontamente a participar de nossa banca de defesa aos trabalhadores da seção técnica de pós-graduação que sempre fizeram o melhor para nos ajudar com todos os perrengues, e a todos os trabalhadores (limpeza, jardinagem, biblioteca, docência, administrativo ...) que contribuem para que a Unesp seja o que ela é, vocês são fundamentais. aos camaradinhas do Grupo de Capoeira Os Angoleiros do Sertão por nos fazer compreender a importância de que corpo e espírito fazem parte de um mesmo movimento real. às camaradas Mel e Claudia por ouvir os nossos gritos e atender as nossas preces, Valeu! à luta do Movimento Negro, das Comunidades Remanescentes de Quilombolas, do Movimento do Trabalhadores Sem Terra, das comunidades tradicionais e de todas trabalhadoras e todos trabalhadores que nunca deixaram de acreditar no melhor para esse país. Resistência e existência! Ao CNPq pelo financiamento desta pesquisa. "Eu só peço a Deus" “Deixa eu te falar, vim te confessar Acho que eu também sou poeta e não aprendi a amar Cruzes que eu já carreguei, cada um com a sua é a lei Ontem mesmo eu perguntei: "Por que que eu nunca parei? Hein? " Quer saber o que me move? Quer saber o que me prende? São correntes sanguíneas, não contas correntes Não conta com a gente pra assinar seu jornal Vocês descobriram o Brasil, né? Conta outra Cabral É um país cordial, carnaval, tudo igual Preconceito racial mais profundo que o Pré-Sal Tira os pobres do centro, faz um cartão postal É o governo trampando, Photoshop social Bandeirantes, Anhanguera, Raposo, Castelo São heróis ou algoz? Vai ver o que eles fizeram Botar o nome desses caras nas estradas é cruel É o mesmo que Rodovia Hitler em Israel [...] É o Brasil da mistura, miscigenação Quem não tem sangue de preto na veia deve ter na mão Eu só peço a Deus!” (Eu só peço a Deus, de Renan Inquérito) RESUMO A pesquisa teve como objetivo analisar a relação estabelecida entre Entidades de Apoio (EA) que realizam trabalhos ligados à capacitação, formação, assessoria, assistência técnica e extensão com o propósito de organização do turismo e às Comunidades Remanescentes de Quilombos do Vale do Ribeira (CRQVR). Compreende-se que a relação entre as comunidades quilombolas que suportam o Circuito Quilombola de Turismo Comunitário do Vale do Ribeira (CQTVR) e algumas entidades que desenvolvem suas ações pautadas por princípios de horizontalidade, de dialogo e de problematização representam um foco de crítica e resistência à lógica mercantil que é bastante característico do desenvolvimento do turismo convencional, bem como da apropriação e da organização do turismo, articulando resistência e sobrevivência para conformar uma proposta diferenciada e contra-hegemônica. Os procedimentos adotados foram a pesquisa bibliográfica, documental e empírica com leitura, análise e interpretação de textos relacionados aos temas abordados neste trabalho e a realização de entrevistas e de observações. Conclui-se que as ações de algumas entidades que realizam um trabalho de formação crítica que suportam o turismo no CQTVR representam um foco de resistência à lógica mercantil inerente ao desenvolvimento do turismo e apresentam formas específicas de atividade formativa, bem como da apropriação e organização do turismo comunitário enquanto “alternativa produtiva”. Considerando as assimetrias entre comunidades autóctones e agentes externos, produz um progressivo processo de reavaliação de recursos e uma nova configuração que altera as relações de poder e o grau de autonomia das CRQVR. Palavras-chave: Entidades de Apoio; Formação Crítica; Comunidades Quilombolas; Vale do Ribeira; Turismo Comunitário. RESUMEN La investigación tuvo como objetivo analizar la relación que se establece entre las Entidades de Apoyo (EA) que realizan labores relacionadas con la capacitación, formación, asesoramiento, asistencia técnica y extensión con el fin de organizar el turismo y las Comunidades de Quilombo Restantes de Vale do Ribeira (CRQVR). Se entiende que la relación entre las comunidades quilombolas que apoyan el Circuito Turístico Comunitario Quilombola Vale do Ribeira (CQTVR) y algunas entidades que desarrollan sus acciones guiadas por los principios de horizontalidad, diálogo y problematización representan un foco de crítica y resistencia a la lógica comercial. que es muy característico del desarrollo del turismo convencional, así como de la apropiación y organización del turismo, articulando resistencia y supervivencia para conformar una propuesta diferenciada y contrahegemónica . Los procedimientos adoptados fueron la investigación bibliográfica, documental y empírica con lectura, análisis e interpretación de textos relacionados con los temas tratados en este trabajo y la realización de entrevistas y observaciones. Se concluye que las acciones de algunas entidades que realizan una labor crítica de formación que apoyan al turismo en la CQTVR representan un foco de resistencia a la lógica comercial inherente al desarrollo del turismo y presentan formas específicas de actividad formativa, así como la apropiación y organización del turismo comunitario como “alternativa productiva”. Considerando las asimetrías entre comunidades indígenas y agentes externos, se produce un proceso progresivo de revalorización de recursos y una nueva configuración que altera las relaciones de poder y el grado de autonomía de la CRQVR.. Palabras clave: Entidades de Apoyo; Formación Crítica; Comunidades Quilombolas; Valle de la Ribeira; Turismo Comunitario. ABSTRACT The research aimed to analyze the relationship established between Support Entities (EA) which carries out works related to qualification, training, advice, technical assistance and extension aiming tourism organization and the Remaining Quilombo Communities of Vale do Ribeira (CRQVR ). It is comprehended that the relationship between quilombola communities that support the Vale do Ribeira Quilombola Community Tourism Circuit (CQTVR) and some entities that develop their actions based on the principles of horizontality, dialogue and problematization represent a focus of criticism and resistance to the commercial logic that is very characteristic of the development of conventional tourism, as well as the appropriation and organization of tourism, articulating resistance and certain to conform a differentiated and counter-hegemonic proposal. The research procedures adopted were bibliographic, documentary and empirical research with reading, analysis and interpretation of texts related to the themes covered in this work and the conduct of interviews and observations. It is concluded that the actions of some entities that carries out a critical training work that support tourism in CQTVR represent a center of resistance to the commercial logic inherent to the development of tourism and present specific forms of training activity, as well as the appropriation and organization of the community tourism as a “productive alternative”. Considering the asymmetries between indigenous communities and external agents, it produces a progressive process of revaluation of resources and a new configuration that alters the power relations and the degree of autonomy of the CRQVR. Keywords: Support Entities; Critical Training; Quilombola Communities; Vale do Ribeira; Community Tourism. LISTA DE IMAGENS Imagem 1 – Mapa de Unidades de Conservação que compõem o Mosaico Jacupiranga ........ 77 Imagem 2 – Mapa de Unidades de Conservação que compõem o continuum ecológico de Paranapiacaba ......................................................................................................................... 115 Imagem 3 – Capa do Livreto que apresenta o Circuito Quilombola ...................................... 124 Imagem 4 – Localização Quilombos que compõem o Circuito ............................................. 127 Imagem 5 – Atrativos Quilombo Ivaporunduva ..................................................................... 128 Imagem 6 – Atrativos Quilombo São Pedro ........................................................................... 129 Imagem 7 – Atrativos Quilombo André Lopes ...................................................................... 130 Imagem 8 – Atrativos Quilombo Sapatu ................................................................................ 131 Imagem 9 – Atrativos Quilombos Pedro Cubas e Pedro Cubas de Cima .............................. 132 Imagem 10 – Atrativos Quilombo Mandira ........................................................................... 133 Imagem 11 – Banner Circuito Quilombola Paulista .............................................................. 148 LISTA DE FOTOS Foto 1 - Abertura da 11ª Feira de Troca de Sementes e Mudas Tradicionais .......................... 79 Foto 2 – Capela de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos ....................................... 120 Foto 3 - Banner na recepção da sede da EAACONE e do MOAB ........................................ 155 Foto 4 – Entrada para a Cachoeira do Meu Deus e Vale das Ostras – Quilombo Sapatu ...... 162 Foto 5 – Cachoeira do Meu Deus – Quilombo Sapatu ........................................................... 162 LISTA DE QUADROS Quadro 1 – Número de comunidades reconhecidas pela FCP .................................................. 50 Quadro 2 – Situação das comunidades quilombolas do Estado de São Paulo com relação ao processo de reconhecimento e titulação de suas terras até 2007 .............................................. 69 Quadro 3 - Situação Jurídica dos quilombos de São Paulo ...................................................... 71 Quadro 4 – Unidades de Conservação que compõem o Mosaico do Jacupiranga (SP) ........... 76 Quadro 5 – Unidades de Conservação criadas na década de 1980 no Vale do Ribeira em São Paulo ....................................................................................................................................... 107 Quadro 6 – Caracterização sumária dos três períodos que marcam o processo evolutivo da extensão rural no Brasil .......................................................................................................... 139 LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS ABCAR – Associação Brasileira de Crédito e Assistência Rural ADCT – Ato das Disposições Constitucionais Transitórias ADI – Ação Direita de Inconstitucionalidade AIA – Associação Internacional Americana ANC – Assembleia Nacional Constituinte ANPTUR – Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Turismo ARQMO – Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Município de Oriximiná ATER - Assistência Técnica e Extensão Rural BIRD – Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento BNCC - Banco Nacional de Crédito Corporativo CBA – Companhia Brasileira de Alumínio CBAR - Comissão Brasileiro-Americana de Educação das Populações Rurais CEDI - Centro Ecumênico de Documentação e Informação CETESP – Companhia Ambiental do Estado de São Paulo CF – Constituição Federal CNA – Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil CNI – Confederação Nacional da Indústria COMTUR - Conselho Municipal de Turismo CPT – Comissão Pastoral da Terra CQTVR – Circuito Quilombola de Turismo do Vale do Ribeira CRB – Confederação Rural Brasileira CRO - Crédito Rural Orientado CRQ – Comunidades Remanescentes de Quilombos CRQVR – Comunidades Remanescentes de Quilombos do Vale do Ribeira CRS - Crédito Rural Supervisionado DEM – Partido Democrata DF – Distrito Federal EA – Entidades de Apoio EAACONE – Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras do Vale do Ribeira ECO-92 – Conferência Mundial para o Meio Ambiente e Desenvolvimento EIA – Estudo de Impacto Ambiental EMBRATER - Empresa Brasileira de Assistência Técnica e Extensão Rural EMBRATUR – Instituto Brasileiro do Turismo ETA – Escritório Técnico Brasil – Estados Unidos EUA – Estados Unidos da América FCP – Fundação Cultural Palmares FEA - Faculdade de Engenharia de Alimentos FGV – Fundação Getúlio Vargas FHC – Fernando Henrique Cardoso FNMA - Fundo Nacional de Meio Ambiente GTTEA - Grupo de Trabalho Turismo e Educação Ambiental IBAMA – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis IBC - Instituto Brasileiro de Café IBD - Instituto Biodinâmico IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia IDESC - Instituto para o Desenvolvimento Sustentável e Cidadania do Vale do Ribeira IMB – Instituto Marca Brasil INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional ISA – Instituto Socioambiental ITCP – Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares ITESP – Instituto de Terras do Estado de São Paulo MAB – Movimentos dos Atingidos por Barragens MDA – Ministério do Desenvolvimento Agrário MEC – Ministério de Educação e Cultura MICT – Ministério da Indústria, Comércio e Turismo MNU – Movimento Negro Unificado MOAB – Movimento dos Ameaçados por Barragem no Vale do Ribeira MPF – Ministério Público Federal MRN – Mineração Rio do Norte MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra MTUR – Ministério do Turismo Nepa - Núcleo de Estudos e Pesquisas em Alimentação OCDE – Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico ONG – Organizações não governamental OMT – Organização Mundial do Turismo ORNA – Ocupações Rurais não-agrícola OSCIP - Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público PA – Pará PCH – Pequena Central Hidrelétrica PCQ – Programa Comunidades Quilombolas PE – Pernambuco PFL – Partido da Frente Liberal PNATER – Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural PNMT – Programa Nacional de Municipalização do Turismo PNATER - Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural PNT – Política Nacional de Turismo PNTRAF – Programa Nacional de Turismo Rural na Agricultura Familiar PRONATER – Programa Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural na Agricultura Familiar e na Reforma Agrária PRONAF – Programa Nacional de Agricultura Familiar PT – Partido dos Trabalhadores Rede TRAF – Rede de Turismo Rural na Agricultura Familiar RIMA – Relatório de Impacto Ambiental RTC - Relatório Técnico Científico SEBRAE – Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas SSR – Serviço Social Rural STF – Supremo Tribunal Federal UC – Unidade de Conservação UFPR – Universidade Federal do Paraná UNESCO - Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas UNIOESTE – Universidade Estadual do Oeste do Paraná Sumário INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 18 1 A REORGANIZAÇÃO DA LUTA DAS POPULAÇÕES NEGRAS E OS REMANESCENTES DE QUILOMBOS ................................................................................. 27 1.1 Entre razões e emoções, a fúria negra ressuscita outra vez ................................................ 27 1.2 Notas sobre o afro-centrismo e o quilombismo .................................................................. 31 1.3 O Movimento Negro Unificado (MNU) na luta pelo regime democrático ........................ 32 1.4 Os remanescentes das Comunidades de Quilombolas ........................................................ 37 1.5 Nossos direitos só a luta faz valer: organização, resistência e luta pela posse de suas terras .............................................................................................................................................. 44 2 AS COMUNIDADES REMANESCENTES DE QUILOMBOS DO VALE DO RIBEIRA .................................................................................................................................................. 52 2.1 Um breve histórico dos ciclos e ocupação do Vale do Ribeira .......................................... 52 2.2 As Comunidades Remanescentes de Quilombos do Vale do Ribeira (CRQVR) ............... 58 2.3 A saga de um povo ............................................................................................................. 60 2.3.1 Movimento dos Ameaçados por Barragens no Vale do Ribeira (MOAB) ...................... 62 2.3.2 Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras do Vale do Ribeira (EAACONE) ............................................................................................................................ 66 2.4 Caminhos e percalços na luta pelo território quilombola no Vale ..................................... 68 3 TURISMO: HISTÓRIA, CONTRADIÇÕES E ALTERNATIVAS ..................................... 81 3.1 Apontamentos iniciais sobre o turismo .............................................................................. 81 3.2 O turismo no Brasil: dos anos 1990 ao século XXI ........................................................... 90 3.2.1 Roteiros do Brasil – Relaxa e goza .................................................................................. 95 3.2.2 Uma Viagem rumo ao empreendedorismo e a suposta inclusão ................................... 100 3.2.3 O Turismo no Vale do Ribeira ...................................................................................... 107 3.2.3.1 A caminhada e a correria para a construção do Circuito Quilombola de Turismo Comunitário do Vale do Ribeira (CQTVR) ........................................................................... 118 4 ENTIDADES DE APOIO, CRQVR E TURISMO COMUNITÁRIO................................ 137 4.1 O modelo convencional de Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER) .................... 137 4.1.1 Uma mirada sobre o papel do ITESP ............................................................................ 146 4.2 Mediações da resistência de um povo – MOAB/EAACONE .......................................... 151 4.3 Contribuições do Grupo de Trabalho Turismo e Educação Ambiental (GTTEA) ........... 159 4.4 As contribuições do Instituto Socioambiental (ISA) ........................................................ 165 CONCLUSÃO ........................................................................................................................ 174 Referências ............................................................................................................................. 180 18 INTRODUÇÃO Segundo a Lei de Diretrizes de Base (LDB) nº 9.394 de 1996, em seu artigo 1º, “a educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais”. A partir dessa compreensão ampla que a própria LDB dá aos processos formativos que abrangem a educação, observa-se, com base em nossa trajetória atuando junto às populações do campo 1 , que, muitas vezes, os processos de formação e de capacitação, principalmente técnico, são realizados por uma variedade de entidades. Desde a reforma do Estado realizada durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), e nos governos Lula-Dilma (2003-2015), os serviços de assistência técnica e extensão no meio rural, até então mais restritos a empresas estatais de Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER), além de passarem a contar com uma diversidade maior de entidades ofertando serviços de capacitação e de formação no meio rural, também tiveram um aumento da variedade de propostas e de opções. Importante destacar que ao longo de nossa pesquisa bibliográfica, mas, principalmente, da pesquisa empírica, constatamos que a atuação da ATER convencional junto às Comunidades Remanescentes de Quilombos do Vale do Ribeira (CRQVR) era bastante frágil e que outras entidades apresentavam papel de maior relevância nos territórios. Nesse contexto, para dar conta da diversidade de organizações que vão surgindo durante o contexto, conveniou-se utilizar a definição de Entidades de Apoio (EA) ou simplesmente entidades. Há no Brasil uma série de entidades que fornecem apoio e assessoria tanto no meio rural quanto no meio urbano. Elas são estruturadas ou organizadas por Organizações Não Governamentais (ONGs), universidades, movimentos sociais, centrais sindicais, fóruns nacionais e estaduais, instituições religiosas, partidos políticos, entre outros. Diante dessa realidade, a presente pesquisa teve como propósito analisar criticamente a relação entre as CRQVR e as diferentes EA que trabalham com serviços de assistência 1 Após concluir o curso de Bacharelado em Hotelaria pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE) em 2008, começamos a atuar com projetos de extensão em comunidades rurais em 2009 pelo Projeto Rede Solidária Agroecológica coordenado pela UNIOESTE. De 2010 a 2013, atuamos em projetos de educação do campo. Entre 2011 e 2014, atuamos no projeto Economia Solidária no Turismo coordenado pela ITCP da UFPR. Entre 2014 e 2017, atuamos no curso pós-médio de Técnico em Agroecologia e, a partir de 2017, temos atuado no curso de ensino técnico em agropecuária integrado ao ensino médio, ambos coordenados pelo professor Henrique Tahan Novaes, da Unesp. 19 técnica, extensão, formação e capacitação vinculados a organização e ao desenvolvimento de um turismo não mercantilizado nos territórios remanescentes de quilombos localizados na porção paulista da região do Vale do Ribeira. A partir da eleição presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva em 2002, o turismo foi realçado como uma atividade com potencial para inclusão social e como alternativa sócio produtiva para uma variedade de segmentos sociais, incluindo as Comunidades Remanescentes de Quilombos (CRQ). Por influência disso, atividades ligadas à cultura, ao lazer, à recreação, à preservação ambiental passaram a ser incentivadas por diferentes EA que realizam ações na região do Vale do Ribeira. Contudo, considera-se que o turismo convencional se estrutura historicamente e se desenvolve intrinsecamente por meio da mercantilização e do consumo do tempo e do espaço. Em contraponto, as CRQVR se conformaram em torno da propriedade comunal, da auto- organização do território, da luta e da resistência contra projetos capitalistas que historicamente ameaçam sua existência e seu modo de vida. Essa situação que envolve as CRQ e o incentivo e fomento do Estado e de EA para a capacitação e formação de roteiros e atividade turística em seus territórios motivou a formulação do seguinte problema de pesquisa: a relação entre remanescentes de quilombos e as EA que desenvolvem trabalhos de capacitação, formação, assessoria, assistência técnica e extensão contribui para criação de um turismo não mercantilizado? O objetivo geral desta pesquisa é verificar se as ações e as relações entre as EA e as CRQVR contribuíram para a formulação de um turismo não mercantilizado a partir do Circuito Quilombola de Turismo de Base Comunitária do Vale do Ribeira (CQTVR). Dessa forma, justifica-se a realização da pesquisa como meio de contribuir com a compreensão sobre a auto-organização das CRQVR, sobre a teoria crítica do turismo e sobre as ações e os procedimentos teóricos metodológicos das diferentes EA no território. Destaca-se também que, como as CRQ se constituíram em um processo de resistência contra projetos capitalistas e de luta para manter seu modo de vida e a propriedade coletiva do território, sua relação com algumas EA sensíveis a sua causa apresenta tendências importantes para o desenvolvimento de uma atividade turística que não seja puramente exploratória e mercantilizada. Compreende-se que as formas de produção e reprodução da vida no caso das CRQVR, em vez de serem consideradas arcaicas, sinalizam a possibilidade de vida e a utilização adequada da natureza. Isso não significa que devem estacionar no tempo, mas podem ser aprimoradas sem destituir suas características principais. 20 Para tanto, descrevemos e analisamos as relações estabelecidas em torno do CQTVR, composto por seis comunidades de Eldorado, a saber, André Lopes, Ivaporunduva, Pedro Cubas, Pedro Cubas de Cima, São Pedro e Sapatu, e uma de Cananéia denominada Mandira. O Circuito foi constituído formalmente entre 2009 e 2013 por meio de um projeto coordenado pelo Instituto Socioambiental (ISA) 2 . Apesar de ter sido estruturado de forma mais elaborada entre 2009 e 2013, observa-se que as atividades turísticas junto às CRQVR estão inseridas em um processo histórico mais amplo, que envolve a participação de outras entidades que contribuíram e algumas que ainda contribuem com os processos de formação, capacitação, assessoria, assistência técnica e extensão junto às comunidades. A partir desse universo mais amplo e histórico que abrange uma variedade de entidades que, em algum momento, envolveram-se direta ou indiretamente com serviços de formação, capacitação e assistência junto às comunidades, delimitou-se, para fins de análise deste trabalho, além do ISA, que coordenou o processo, o Instituto de Terras do Estado de São Paulo (ITESP), o Grupo de Trabalho Turismo e Educação Ambiental (GTTEA) ligado ao projeto Programa Comunidades Quilombolas (PCQ) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), a Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras do Vale do Ribeira (EAACONE) e o Movimento dos Ameaçados por Barragem no Vale do Ribeira (MOAB). A escolha dessas entidades não se deu de forma aleatória ou por um mero acaso, mas pelo grau de importância que suas ações assumem tanto no processo de auto-organização do território, quanto para a formação de uma proposta de turismo diferenciada e não mercantilizada. Para tanto, como objetivos específicos procuramos: a) Analisar a construção e o funcionamento do CQTVR; b) Analisar os procedimentos teóricos metodológicos das Entidades de Apoio (EA) que desenvolvem ações de assistência técnica, extensão, formação e capacitação junto ao CQTVR; 2 O projeto contou com o apoio do extinto Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), da Secretaria da Agricultura Familiar, da Equipe de Articulação e Assessoria das Comunidades Negras do Vale do Ribeira (Eaacone), das associações das comunidades quilombolas, das Prefeituras Municipais de Iporanga, Eldorado e Cananéia, do Ministério do Turismo (MTUR), do Ministério de Meio Ambiente (MMA), da Secretaria de Promoção de Políticas de Igualdade Racial (SPPIR), da Fundação Palmares, da Secretaria Estadual do Meio Ambiente (Projeto Ecoturismo Mata Atlântica), da Secretária de Esporte e Turismo e do Instituto de Terras do Estado de São Paulo (ITESP). 21 c) Verificar as conquistas, os problemas, as contradições e os desafios presentes na formatação do CQTVR; d) Verificar os desafios do CQTVR para a construção do turismo não mercantilizado; Tendo que investigar uma problemática que envolve diferentes temas e atores que se inter-relacionam num determinado tempo e espaço, bem como desenvolver uma escrita que articule os diferentes temas, fizemos pesquisa bibliográfica, pesquisa documental e pesquisa empírica. Por meio da pesquisa bibliográfica, consultamos, selecionamos e analisamos bancos de teses, dissertações, artigos e livros para entender como se deu o processo histórico de mobilização e luta que culminou no direito de propriedade das CRQ. Apesar de esse trajeto de exposição não apresentar novidade empírica e conceitual, a decisão se deu por entendermos que, para realizar a análise da relação entre EA e as CRQVR na proposição de um turismo diferenciado em seus territórios, fez-se necessário compreender os condicionantes de sua existência. Destaca-se a grande dificuldade de encontrar pesquisas sistematizadas sobre a história dos quilombos em um recorte temporal longo, que compreende o período entre pós-abolição no ano de 1888 e a década de 1970. Não se pode afirmar que não existam trabalhos sobre a perpetuação e a situação dos quilombos após a abolição, contudo, com exceção do trabalho de Ramos (1982), apresentado no I Congresso do Negro Brasileiro, em 1950, não foram localizados outros trabalhos que tratassem da situação dos quilombos no período supracitado. Destaca-se que os estudos marxistas concentraram-se na abordagem da inserção do negro e mestiço na sociedade de classes, produzindo um vácuo nos estudos sobre quilombos e quilombolas. Fato é que o próprio termo quilombo passou a ser utilizado como categoria de análise por antropólogos e cientistas sociais a partir da década de 1980 (ARRUTI, 1997). Nesse sentido, a análise sobre a questão racial e a integração do negro na sociedade de classes, bem como a organização e atuação do Movimento Negro Unificado (MNU), foram de fundamental importância para compreendermos o levantar das CRQ. Com referência nas análises realizadas por Fernandes (1978; 2017), Leite (2000), Guimarães (2001a; 2001b), Moura (2014a) e Santos (2015), pode-se estabelecer uma linha de compreensão que demonstra que o direito de propriedade conquistado pelas CRQ, em 1988, faz parte de um processo mais amplo de organização da luta da população negra contra o racismo e pelo direito ao território, no nosso caso. 22 Em uma totalidade mais ampla e de escala nacional, foi através da organização da luta contra o racismo em torno do MNU e outros movimentos negros locais e regionais, da denúncia do mito da democracia racial e da formulação das concepções do afrocentrismo e do quilombismo contrariando e revertendo a visão hegemônica sobre o negro no Brasil, que o direito de propriedade das CRQ foi assegurado como Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT). Sobre as CRQ em si, os estudos apresentados por Baiocchi (2006), Carril (1995), Arruti (1996), Andrade (1997), Steil (1998), Carvalho (2006), Rezende da Silva (2008) e Pinto (2014), foram fundamentais para compreendermos que, em escala nacional, mesmo tendo o direito de propriedade adquirido, foi necessária muita luta e resistência contra projetos capitalistas que ameaçavam os seus territórios e suas territorialidades, e obviamente seu modo de vida. O caso das CRQ que compõem o CQTVR, que faz parte de nosso objeto de pesquisa, não foge a esse dado. Constatou-se que, desde antes da aprovação do Artigo 68 dos ADCT, eles já se encontravam em situação de conflito e de luta pela manutenção de seus territórios, primeiro contra os projetos capitalistas de construção de barragens ao longo do rio Ribeira de Iguape, e, depois, pela regularização e titularização de seus territórios enquanto remanescentes de quilombos. A partir dessa análise, constatou-se que a ação de EA ligadas a setores progressistas da Igreja Católica, intelectuais tradicionais no sentido gramsciano, foram de fundamental importância na mediação e formação da consciência que alavancou a organização da luta contra o projeto de construção da barragem de Tijuco Alto e, posteriormente, pela titularidade dos territórios (PINTO, 2014). Tal projeto, além de alagar uma grande parcela dos territórios remanescentes de quilombos, ainda causaria um grande impacto cultural e ambiental. A análise histórica das CRQVR foi fundamental para entendermos como se deu o processo de luta e resistência no território e pelo território, bem como a conscientização pelo autorreconhecimento da identidade de remanescentes de quilombolas, pela defesa de suas terras comunais e pela auto-organização de seus territórios. A respeito das EA, as pesquisas de Fonseca (1985), Caporal (1991), Rodrigues (1997), Novaes (2012), Oliveira (2013) e Pires (2016), foram relevantes para estabelecermos uma compreensão sistematizada da história e das disputas em torno dos trabalhos de extensão, assessoria, capacitação, assistência técnica e formação particularmente para o meio rural. Constatamos que, após a redemocratização, principalmente após a virada do milênio, dentro do processo de reforma do Estado, houve um aumento em quantidade e em diversidade de entidades que passaram a executar serviços de extensão, assessoria, capacitação, assistência 23 técnica e formação para as populações rurais. Entre essas organizações e instituições, destacam-se Empresas públicas e privadas de Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER), Organizações Não Governamentais (ONG’s), Instituições de Ensino Superior (IES), Associações, Fundações etc. Mesmo tendo consciência das particularidades e dos interesses diversos que cada uma dessas entidades possui, após um longo tempo de reflexão, no qual buscamos entender esses agentes enquanto intelectuais que têm o objetivo ensinar e transferir conhecimento codificado, tomamos a posição de reuni-las num bloco que denominamos de EA. Destaca-se que entendemos a função dos trabalhos desenvolvidos pelas EA até pela sua especificidade e tipo de relação estabelecida como de intelectuais, ou seja, aqueles que realizaram a mediação entre as comunidades e as outras forças sociais inseridas no contexto. Nos apoiando em Gramsci (2001), compreendemos que o trabalho intelectual desenvolvido pelas EA é de suma importância, pois são elas que muitas vezes colocam as comunidades em contato “com a administração estatal ou local (advogados, tabeliões etc.) e por essa mesma função, possui grande função político e social, já que a mediação profissional dificilmente se separa da política” (GRAMSCI, 2001, p. 23). Dentre a diversidade de entidades que se insere no processo histórico e estabelece algum tipo de relação com as CRQVR, selecionamos, por grau de importância, para esta pesquisa: a) o ITESP, por ser a entidade pública responsável pelo serviço convencional de ATER às comunidades; b) o MOAB e a EAACONE, entidades criadas pelos próprios quilombolas e atuantes até os dias atuais; c) o GTTEA/PCQ/UNICAMP, pelo seu protagonismo no trabalho com turismo junto as CRQ; d) e o ISA, por ter coordenado os trabalhos que formou o CQTVR e pela importância de suas ações junto às comunidades até os dias atuais. Entre essas, como já dissemos, o MOAB, a EAACONE, o GTTEA/PCQ/UNICAMP e o ISA tiveram maior destaque. No que se refere à análise do turismo mercantilizado e do potencial do turismo não mercantilizado, dialogamos com Canclini (1983), Krippendorf (2001), Castelli (2001), Dias (2003), Ouriques (2005) e Siqueira (2005). Eles foram fundamentais para delinearmos e descrevermos a consolidação e a expansão da atividade como prática social e econômica na sociedade capitalista moderna. Compreendido como uma prática social, econômica e um vetor 24 produtor de espaço, empenhamos uma análise crítica primeiro em escala mundial, depois nacional, até chegarmos no caso específico do CQTVR. Nem todos adotam o marxismo como perspectiva teórica, mas foram fundamentais para a descrição e a análise deste eixo de pesquisa. A pesquisa bibliográfica foi de profunda importância para compreensão das CRQVR, das EA e do turismo e seus impactos sociais, econômicos e espaciais, fornecendo aporte necessário para o desenvolvimento e análise do estudo e dos dados empíricos. Para além dos autores já citados, vários outros, de forma direta ou indireta, contribuíram para compreensão mais ampla sobre as contradições que envolvem o turismo, a luta das CRQVR no território e pelo território, o histórico e as ações e os interesses do Estado capitalista. Na pesquisa documental utilizamos: a Agenda Socioambiental de Comunidades do Vale do Ribeira (2008); o Planejamento Territorial Participativo: Relato de Experiências em Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira – SP (2012), o Inventário Cultural de Quilombos do Vale do Ribeira (2013); o livreto Turismo de Base Comunitária: Circuito Quilombola (2013). Devido a questões mais amplas relacionadas ao tempo, espaço e recursos, a pesquisa empírica foi realizada em três momentos distintos: a primeira em agosto de 2018, com duração de 6 dias; a segunda em novembro de 2018, com duração de 8 dias; a terceira em agosto de 2019, com duração de 6 dias 3 . Foram adotados como procedimentos principais: a) entrevista semiestruturada: com representantes/lideranças das CRQVR e com representantes de EA presentes no município de Eldorado e que atuam nos territórios remanescentes de quilombolas de sua área de abrangência; b) observação direcionada aos remanescentes de quilombolas “como um processo pelo qual mantém-se a presença do observador numa situação social, com a finalidade de realizar uma investigação científica” (MINAYO, 2008, p. 273). O primeiro trabalho de campo (in loco) foi realizado no período em que os remanescentes de quilombos organizaram a 11ª Feira de troca de Sementes das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira, em agosto de 2018. Sendo uma atividade que reúne a grande maioria das CRQVR, a escolha desse período teve como principal objetivo mapear a situação dos remanescentes de quilombos em relação ao turismo e as EA presentes no território. Essa primeira imersão empírica foi de profunda importância para termos um conhecimento real (mesmo que parcial) e mais apurado da complexidade que é se deslocar no Vale do Ribeira, 3 Importante destacar que haveria um quarto momento em 2020, contudo, devido à pandemia do Coronavírus (COVID-19), não foi possível realizar esse quarto momento. 25 da grande quantidade de CRQ que existem na região e do quão dificultoso seria visitá-los, pois, além de distante do centro urbano e dos precários serviços de locomoção, ao visitar o quilombo Pedro Cubas e Pedro Cubas de Cima, tivemos a percepção de como seus territórios estão localizados em lugares de difícil acesso, ainda nos dias atuais. A segunda vez que voltamos a campo, em novembro de 2018, foi com a finalidade de realizar as entrevistas com as EA presentes no município de Eldorado. Com foco nas questões relacionadas ao turismo, mas sem perder de vista a totalidade das relações estabelecidas no território, foram realizadas entrevistas com representantes da Diretoria de Turismo do município de Eldorado, da EAACONE, do ISA, do ITESP e da Fundação Florestal. Na terceira vez que realizamos atividade in loco, em agosto de 2019, para além de reestabelecer contato direto com as principais EA que se relacionam com os remanescentes de quilombos, tivemos como objetivo fazer uma incursão pelos territórios remanescentes de quilombos com o motivo principal de apreender como eles vêm desenvolvendo o turismo em seus territórios. Em decorrência do tempo e dos recursos para deslocamento, conseguimos visitar quatro comunidades (Ivaporunduva, Sapatu, Pedro Cubas e Pedro Cubas de Cima) das sete que compõem originalmente o CQTVR. Para a análise das mediações entre as EA e as relações estabelecidas com o CQTVR, ou seja, das conquistas e dos problemas para a formação de um turismo não mercantilizado e contra-hegemônico, o caminho que se mostrou mais apropriado e utilizado foi o do Materialismo Histórico-Dialético. O materialismo dialético é a base filosófica do marxismo e como tal realiza a tentativa de buscar explicações coerentes, lógicas e racionais para os fenômenos da natureza, da sociedade e do pensamento. [...] O materialismo histórico é a ciência filosófica do marxismo que estuda as leis sociológicas que caracterizam a vida da sociedade, de sua evolução histórica e da prática social dos homens, no desenvolvimento da humanidade. O materialismo histórico significou uma mudança fundamental na interpretação dos fenômenos sociais que, até o nascimento do marxismo, se apoiava em concepções idealista da sociedade humana (TRIVIÑOS, 1987, p. 51). Frigotto (1991, p. 78) aponta que, para realizar análise materialista, histórica e dialética, “a investigação deve considerar a concretude, a totalidade e a dinâmica dos fenômenos sociais, que não são definidos à priori, mas construídos historicamente”. Diante disso, seguimos o princípio de que tudo se relaciona numa perspectiva de totalidade histórica formada por relações dialéticas em constante movimento. Este trabalho está organizado em quatro capítulos. No primeiro capítulo, apresentamos uma breve análise da organização do movimento negro unificado (MNU), da concepção do afrocentrismo e do quilombismo, estabelecendo uma releitura positiva sobre a história das 26 populações negras na sociedade brasileira, o contexto de luta que possibilitou a aprovação do Artigo 68 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) e da luta dos remanescentes de quilombolas para fazer valer o direito de propriedade das terras que ocupavam. No segundo capítulo, adentramos à realidade do Vale do Ribeira em sua porção paulista, e os contextos de luta das CRQ na região, bem como das EA que atuaram diretamente com as comunidades na organização e na luta contra projetos capitalistas que avançavam sobre seus territórios, e da formação da consciência para o autorreconhecimento enquanto remanescentes de quilombolas. No terceiro capítulo, o objetivo foi analisar criticamente o desenvolvimento histórico do turismo enquanto uma atividade que nasce, cresce e se desenvolve a partir das transformações e avanços da sociedade capitalista. Para tanto, partimos de uma análise histórica sobre o turismo em escala global, chegando à realidade brasileira, ao Vale do Ribeira e a conformações desenvolvidas pelas CRQVR. No quarto e último capítulo, apresentamos os procedimentos teóricos metodológicos, bem como as ações das EA que consideramos mais importantes na relação com as CRQVR no sentido de estabelecer uma relação dialógica e de trocas de saberes, em que foi possível articular resistência e sobrevivência para a conformação instrumental, não sem contradições, de um turismo não mercantilizado e contra hegemônico. 27 1 A REORGANIZAÇÃO DA LUTA DAS POPULAÇÕES NEGRAS E OS REMANESCENTES DE QUILOMBOS 1.1 Entre razões e emoções, a fúria negra ressuscita outra vez Tendo como objetivo entender o processo de organização das Comunidades Remanescentes de Quilombolas (CRQ) e suas lutas para conseguir o direito à propriedade de suas terras, houve muita dificuldade de encontrar referências sobre a história dos quilombos no período entre 1888 e a década de 1970. Não se pode afirmar que não existam trabalhos sobre a perpetuação e a situação dos quilombos após a abolição, contudo, com exceção do trabalho de Ramos (1982) para o I Congresso do Negro Brasileiro em 1950, não conseguimos encontrar outros trabalhos que tratam da situação dos quilombos no período em questão. Diante desse limite, tomou-se como procedimento para tentar chegar aos remanescentes de quilombos contemporâneos, a organização das lutas das populações negras no período que antecede as mobilizações pela redemocratização e pelo fim do regime de exceção implantado desde 1964 pelos militares. Nesse sentido, chegou-se ao Movimento Negro Unificado (MNU), fundado em 1978. Considerou-se que o MNU foi a organização de luta das populações negras mais relevante no processo que marca o fim da ditadura, a Assembleia Nacional Constituinte e a luta das populações negras no contexto da redemocratização na década de 1980. Integrando diversas representações políticas e étnico-raciais da cultura afro-brasileira, possivelmente o MNU foi a organização mais avançada na luta do povo negro na época. Nesse sentido, compreende-se que a atuação e as ideias que surgiram em torno dele foram fundamentais na luta da população negra e, consequentemente, dos remanescentes de quilombolas. Fernandes (1978), além de apontar que a questão do negro e do mulato foi assunto inexplorado, ou mal explorado pelos cientistas sociais brasileiros no período, considera que as populações negras foram o contingente populacional que teve o pior ponto de partida para integração ao regime social que se formou após a abolição. Com a abolição da escravatura, uma das preocupações das classes dirigentes era o que fazer com os negros e como não permitir que a população brasileira se tornasse, em sua maioria, negra. Nesse período, destaca-se, particularmente, as teorias racistas do médico Nina Rodrigues (1862-1906), que preconizava um verdadeiro apartheid no Brasil (HAAG, 2005). 28 Inspirado pela eugenia e por um darwinismo social, Nina Rodrigues, em seu livro “As raças humanas e a responsabilidade penal do Brasil”, de 1894, defende que as raças têm diferenças ontológicas e sugere a criação de dois códigos penais diversos, um para a população branca e outro para os negros (HAAG, 2005). Nina Rodrigues entendia que o país era o que era por causa da miscigenação. Diante disso, nada mais natural do que tentar frear esse processo, separando física e legalmente brancos e negros. Sua teoria inspirou ideias da melhoria da raça de tal forma que vários médicos defenderam certos hábitos e censuraram outros. Por outro lado, Silvio Romero (1851-1914), autor de “Histórias da literatura brasileira”, de 1888, defende que a mestiçagem é algo inevitável. Diante disso, entende que “a solução estaria num processo de branqueamento ao longo das gerações, já que não havia mais nada a fazer” (HAAG, 2005, p. 40). Retomando as teorias de Silvio Romero, Oliveira Vianna (1883-1951) aceita as hierarquias raciais e a eugenia científica do século XIX, acreditando que a queda da fertilidade dos africanos, e a vinda de imigrantes para o Brasil, contribuiriam para branquear, aranizar a nação (HAAG, 2005, p. 40). Para os estudiosos da época, o atraso do Brasil decorria de uma escandalosa mistura de raças, e a miscigenação era tomada como uma imprescindível característica da nossa formação, em uma concepção subjetiva de formação nacional, na qual o que importava era o encontro sexual entre segmentos da população de diferentes raças (HAAG, 2005). Vai ser Gilberto Freyre que invertendo o discurso hegemônico da época, a miscigenação e a mestiçagem que era a desgraça nacional, passa a ser visto como positivo, como valor social e não como uma decorrência mecânica indesejável, defende uma harmonia social que vai ser música aos ouvidos do governo de Vargas (HAAG, 2005, p. 41). Inspirada nos estudos de Freyre, a Unesco, no final da década de 1940 e início da década de 1950, elegeu o Brasil como laboratório para o seu projeto de pesquisa sobre as relações inter-raciais, envolvendo diversos pesquisadores importantes. As pesquisas coordenadas pela Unesco comprovaram que não existia harmonia racial alguma, e o assunto raça era um tópico polemico, um tabu 4 . Contudo, a ideologia de uma harmonia, de uma democracia racial no Brasil como um forte mito, continuou a ser utilizada pelos discursos hegemônicos, tanto que também a 4 Estiveram envolvidos no projeto Unesco Florestan Fernandes, Roger Bastide, Luiz de Aguiar Costa Pinto, Oracy Nogueira, Thales de Azevedo, Charles Wagley, René Ribeiro, Marvin Harris, entre outros. O projeto Unesco produziu um amplo inventário sobre o preconceito e a discriminação racial no Brasil que evidenciou uma forte correlação entre cor ou raça e status socioeconômico. 29 ditadura militar instaurada, em 1964, inspirada nas teorias de Freyre, também explorou as mitologias sobre a confraternização racial no Brasil. Sob a égide da ditadura militar instaurada em 1964, a política externa brasileira se aproximou da África Negra, explorando a ideologia da “democracia racial” e as origens africanas da cultura brasileira. Essa política abriu um campo fértil e contraditório para a atuação da militância negra. Ao mesmo tempo em que, por um lado, a política dos militares incentivava manifestações culturais afro-brasileiras, por outro, reprimia, quando não exterminava, o ativismo negro que denunciava como mito a ideia de uma “democracia racial” no Brasil (GUIMARÃES, 2001b). Diante desse cenário de incentivo e repressão, a militância negra e antirracista que denunciava e combatia o discurso governamental, antes mesmo de se integrar em torno do MNU, deu-se de forma mais desimpedida no campo da cultura do que propriamente no campo da política (GUIMARÃES, 2001b). [...] o patrocínio à ‘cultura afro-brasileira’ gerou, e não apenas na Bahia, mas também no Rio de Janeiro, uma espécie de renascimento cultural que em muito beneficiou a jovem militância negra em formação. Lélia Gonzalez, por exemplo, cita como fato marcante na formação do MNU a Semana Afro-Brasileira de 1974, patrocinada pelo Centro de Estudos Afro-Asiáticos (Ceea) e pela Sociedade de Cultura Negra da Bahia (Secneb), com uma exposição de arte e cultura negra. Nesse mesmo ano são fundados a Sociedade de Intercâmbio Brasil-África (Siba) e o Instituto de Pesquisa das Culturas Negras (IPCN), no Rio de Janeiro, e a Confederação Baiana dos Cultos Afro-Brasileiros (que se junta à Federação do Culto Afro-Brasileiro, criada em 1946) e o bloco afro Ilê Ayê, em Salvador. Em 1976 é criado nessa cidade o Núcleo Cultural Afro-Brasileiro, e no Rio de Janeiro surgem o Centro de Pesquisas das Culturas Negras e a Escola de Samba Quilombo. Ainda em 1976, em Salvador, duas medidas de governo nos dão a medida exata do que mudava no pacto racial-democrático firmado na era Vargas: primeiro, um decreto do governador da Bahia põe fim à exigência de licença policial para funcionamento de terreiros de candomblé; segundo, a assinatura de um convênio entre a Fundação Pró-Memória, do governo federal, o Centro de Estudos Afro- Orientais da UFBA e a Secneb permite a implantação do primeiro currículo multicultural, na escola do Axé Apô Afonjá, ligada ao terreiro de mesmo nome (GUIMARÃES, 2001b, p. 157). Aproveitando-se das brechas possíveis dentro do regime de exceção, várias entidades negras nas principais cidades do Brasil, por meio das manifestações culturais, buscaram driblar a censura e construir um discurso de afirmação étnica do negro, alternativo ao marketing governamental do sincretismo e do mestiço (GUIMARÃES, 2001b). Compondo uma totalidade mais ampla, ligada à própria crise do capital que eclodiu nos países centrais já no início da década de 1970, e que começou a ser sentida com maior intensidade no Brasil no final da década, com os claros sinais do esgotamento do modelo econômico conduzido pelos militares, as problemáticas sociais e políticas não tardaram a se intensificar. As greves do ABC, em 1979, a reorganização da luta pela reforma agrária, e pelo 30 direito à terra, são exemplos das “novas” mobilizações de lutas que voltam a emergir em meio a repressão e a censura. As diferentes bandeiras se aglutinaram em torno da luta pelo regime democrático e pelo fim da ditadura. Vários seguimentos da sociedade civil ocuparam as ruas em todo o país, demonstrando insatisfação com o regime militar; questões historicamente reprimidas começaram novamente a aflorar com mais intensidade. Segundo Nunes (1989), Benevides (1994) e Schiochet (2012), no final da década de 1970, vários segmentos da sociedade se organizaram em torno de diferentes entidades como sindicatos e movimentos sociais pedindo o fim da ditadura militar e a redemocratização do país. Schiochet (2012) aponta que as contradições e os conflitos que ocorreram em torno das Diretas Já! instigaram a organização de diferentes movimentos sociais, tais como: o movimento do custo de vida, o movimento por moradia, o movimento de luta contra o desemprego, o movimento pelo transporte coletivo, o movimento pela saúde, entre outros. No campo da educação, Dal Ri e Vieitez (2013) apontam que a luta foi conduzida e articulada principalmente pelo Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública (FNDEP), que propunha a Gestão Democrática como princípio basilar para a organização da escola pública. Em meio a essa conjuntura e a esse fervoroso pulsar das mobilizações sociais, e reorganização dos diversos segmentos de classe, também as lutas contra as desigualdades raciais ganharam novo fôlego e organicidade através da consolidação do MNU, em 1978. Acompanhando o acúmulo das experiências históricas da luta do negro no Brasil e no mundo, em 1978, em um evento nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo, ainda sob o regime militar, a militância negra decidiu por constituir o Movimento Negro Unificado (MNU), um marco na organização da luta contra a discriminação racial no país. Integrando diferentes grupos étnico-raciais de todo o país, “[…] o MNU não foi um raio em céu azul, nem surgiu fazendo tábula rasa ao passado”. Sua formação e trajetória se estabeleceu em continuidade ao acúmulo histórico das ações dos movimentos negros dos anos 1930 e 1960 (GUIMARÃES, 2001b, p. 156). O movimento negro ressurgiu, em 1978, como o fez em 1944, em sintonia com o movimento pela redemocratização do país. Em sua agenda política estavam três alvos principais: (a) a denúncia do racismo, da discriminação racial e do preconceito de que eram vítimas os negros brasileiros; (b) a denúncia do mito da democracia racial, como ideologia que impedia a ação anti-racista; (c) a busca de construção de uma identidade racial positiva: através do afro-centrismo e do quilombismo, que procuram resgatar a herança africana no Brasil (invenção de uma cultura negra) (GUIMARÃES, 2001b, p. 157). 31 Guimarães (2001a) afirma que a presença de lideranças históricas, como a de Abdias do Nascimento, foi preponderante para o resgate histórico das lutas dos negros no país e pela formação ideológica de duas influências que permearam o Movimento na década de 1980: o afro-centrismo e o quilombismo. 1.2 Notas sobre o afro-centrismo e o quilombismo Personalidade histórica na luta contra o racismo, com trânsito internacional, fundador do Teatro Experimental do Negro (TEN), ligado ao trabalhismo de Brizola e crítico fervoroso da “democracia racial”, Abdias do Nascimento defendeu que a ideia de uma “democracia racial” no Brasil, mais que uma falácia, ajudava a impedir ações antirracistas mais contundentes (GUIMARÃES, 2001a). Considerado um dos principais intelectuais orgânicos do MNU, mas não o único, Abdias do Nascimento, por meio da problemática da “integração do negro à sociedade de classes” (FERNANDES, 1965), resgatou a herança africana no Brasil e propôs a concepção do afro-centrismo e do quilombismo (GUIMARÃES, 2001b, p. 157). (...) o afro-centrismo que foi, nos anos 70, uma doutrina muito influente nos meios negros anglo-saxônicos (e não apenas norte-americanos), alimentado principalmente por intelectuais africanos da Nigéria e Gana, radicados nos Estados Unidos. Vem do afro-centrismo o projeto de filiar os negros brasileiros a uma “nação” negra transnacional, de cuja matriz teria evoluído a civilização ocidental, cujas raízes mais profundas se encontram no antigo Império egípcio e na presença africana na América pré-colombiana. Trata-se, evidentemente, de um movimento, ao mesmo tempo, de invenção de tradições e reivindicação de um processo civilizatório negro (GUIMARÃES, 2001a, p. 133). A elaboração da categoria afro-centrismo buscou dar um entendimento ampliado de negro, como descendente de africanos, e não somente como pessoas de cor ou com fenótipos negros. A partir disso, propôs um caráter universalista à luta contra a discriminação racial, configurando-se no caso brasileiro, de uma luta da maioria explorada por uma minoria, e não de uma minoria oprimida pela maioria, como no caso dos Estados Unidos (GUIMARÃES, 2001a). Por meio da concepção ampliada de negro, bem como do entendimento de raça não só pela pureza biológica, mas em termos de história e cultura, a luta das populações negras nos anos de 1980, além de recusar e combater aspectos culturais vistos como anacrônicos e bárbaros, enfatizou o caráter libertário da cultura afro-brasileira (GUIMARÃES, 2001a). Aliando radicalismo cultural e político, a ideologia do afro-centrismo foi articulada ao pensamento marxista, “[…] principalmente através de sua vertente mais ligada ao 32 nacionalismo brasileiro dos anos 60, fundamentando que a emancipação do negro brasileiro significava a emancipação de todo o povo brasileiro da exploração capitalista” (GUIMARÃES, 2001a, p. 133). A concepção do afro-centrismo articulada a uma compreensão étnico-racial expandida e ao marxismo resgatou o debate da luta de classes à luz do que foi o regime escravagista, com destaque à luta dos quilombolas contra os proprietários, dando origem ao quilombismo (GUIMARÃES, 2001a). Utilizando-se dos aspectos de segregação residencial, exclusão do mercado formal de trabalho e do terrorismo policial, propôs, através do afro-centrismo e do quilombismo, uma analogia entre a luta do negro brasileiro e a luta contra o apartheid na África do Sul (GUIMARÃES, 2001a). Aproximando por analogia o racismo brasileiro ao sul-africano, “[…] o negro foi definido como trabalhador por excelência, o mais brasileiro, a parcela mais explorada da sociedade brasileira, a maioria oprimida por uma minoria racista, em grande parte estrangeira” (GUIMARÃES 2001a, p. 134). Adotando uma compreensão identitária de luta e denúncia do preconceito racial ao longo da história, o quilombismo fortaleceu aspectos da crítica anticapitalista e do anti- imperialismo, bem como da luta da maioria oprimida contra a exclusão e o terror operado pelas forças de segurança do próprio Estado brasileiro. Nesse sentido, compreende-se que o afro-centrismo e o quilombismo contribuíram para a formação de uma ideologia positiva sobre a história das culturas de raízes africanas no Brasil, e possibilitaram uma conscientização que buscou unificar a luta das populações negras e o antirracismo. Retomando contradições históricas sobre a “integração do negro à sociedade de classes”, o MNU, além de se colocar na luta antirracista e por direitos às populações negras, também participou ativamente do processo de lutas e mobilizações que marcaram o fim do regime de exceção na década de 1980. 1.3 O Movimento Negro Unificado (MNU) na luta pelo regime democrático Embora não haja um consenso a respeito da designação movimento social, existe uma concordância de que sua acepção é utilizada para “denominar organizações estruturadas com a finalidade de criar formas de associação entre pessoas e entidades que tenham interesses em 33 comum, para defesa ou promoção de certos objetivos perante a sociedade” (DALR RI, 2010; DAL RI, 2017, p. 168). Uma definição simplificada seria a de que movimentos sociais são formas de ação coletiva com algum grau de organização. E para Gohn (2011, p. 333), “Uma das premissas básicas a respeito dos movimentos sociais é que: são fontes de inovação e matrizes geradoras de saberes” (DAL RI, 2017, p. 168). Enquanto movimento social gerador de saberes, o MNU e a militância negra nas lutas antirracistas se desenvolveram e avançaram em meio às contradições que envolviam as possibilidades afirmativas de participação do negro na sociedade de classes, nas políticas de Estado e na apropriação institucional da cultura afro-brasileira. No pleito eleitoral de 1982, algumas militâncias negras tiveram, seja por meio de sua incorporação nas entidades governamentais e estatais, seja pela criação de núcleos nos principais partidos políticos que passaram a absorver demandas e reivindicações levantadas pelo MNU, a oportunidade de partilhar o poder: Em 1982, por exemplo, a prefeitura de Salvador incorpora ao patrimônio histórico estadual o terreiro da Casa Branca, primeiro terreiro de candomblé da Bahia; em 1983 a Secretaria de Educação do Estado da Bahia regulamenta a inclusão da disciplina "Introdução aos Estudos Africanos" nos currículos escolares das escolas públicas de primeiro e segundo graus; em 1984 o governo de São Paulo cria o Conselho de Participação e de Desenvolvimento da Comunidade Negra. Em São Paulo e no Rio de Janeiro era a oposição de esquerda ao regime militar que chegava ao poder e atendia reivindicações de seus aliados negros, na Bahia tratava-se de um movimento de ampliação dos direitos culturais do povo negro, que desde os anos 1960 passara a ser utilizado e promovido seja para fins da política exterior do Brasil em relação à África, seja para fins de expansão da indústria do turismo no estado (GUIMARÃES, 2001b, p. 158). A atuação de representantes do MNU no embate político durante o processo de redemocratização do país e durante a Assembleia Nacional Constituinte (ANC) colocou a luta contra o racismo e por reconhecimento dos direitos das populações negras em patamares nunca alcançados. Historicamente relegado a uma servidão invisível e, quando não, devido à rebeldia de segmentos negros radicais, criminalizados e reprimidos pelas forças de repressão do Estado, o MNU, nesse contexto, conseguiu avançar e colocar-se de forma ativa e organizada na luta pela redemocratização do país e na elaboração da nova Constituição Federal. Apesar do pouco material que retrata de forma sistemática e crítica a atuação do MNU no jogo político do período, que pode ser consequência da histórica invisibilidade que a literatura convencional relega às populações negras, trabalha-se com a hipótese de que, sem a 34 sua participação organizada e consciente, direitos historicamente negados não teriam sido alcançados 5 . Havendo a possibilidade histórica da participação e da interlocução entre as entidades da sociedade civil e as instituições formais de governo que, talvez, só uma ANC permita, Santos (2015) mostrou que o MNU encaminhou 7 documentos para a ANC tratando da questão do racismo e dos direitos das populações negras. Com base nesses documentos, Santos (2015) observou que, naquele contexto, em particular na formulação de sugestões, os limites de raça extrapolavam o sentido estrito e incorporavam outras variáveis sobre a condição de vida das populações negras, pobres e periféricas. Parlamentares como Benedita da Silva (PT-RJ), Carlos Alberto Caó (PDT-RJ), Edimilson Valentin (PT-RJ), Paulo Paim (PT-RS) e Florestan Fernandes (PT-SP), participantes da ANC, e sensíveis ao problema do racismo e das populações negras, foram fundamentais no embate contra as alas conservadoras e contribuíram para que as demandas do MNU não fossem relegadas ao segundo plano (SOUZA, 2013; SANTOS, 2015). Em meio a esse cenário de intensa complexidade, com mobilizações dos diferentes segmentos sociais e de classe, a Constituição Federal, promulgada em 1988, apresentou um processo novo na legalidade da participação da população negra no Estatuto brasileiro. Sob a pressão da luta do MNU e das forças progressistas, o Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), pela primeira vez, após 100 anos da aprovação da Lei Áurea, reconhece às Comunidades Remanescentes de Quilombolas (CRQ), que estivessem ocupando suas terras, o direito definitivo de propriedade. Além do Artigo 68, também o inciso IV do Artigo 3º, o inciso VIII do Artigo 4º, o inciso XLII do Artigo 5º, e o inciso XXX do Artigo 7º, conforme reprodução abaixo, apresentaram cláusulas importantes para o combate e a criminalização do racismo: Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação; Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: VIII – repúdio ao terrorismo e ao racismo; Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: XLII – a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei; 5 Destaca-se, particularmente, o direito de propriedade das comunidades remanescentes de quilombolas e o reconhecimento e proteção das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras. 35 Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: XXX – proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil. (SANTOS, 2015, p. 19-20). Suponha-se que, num país conservador e autocrático como o Brasil, que historicamente perseguiu, reprimiu e criminalizou os negros e suas manifestações, conquistas, mesmo que no plano jurídico-constitucional, não seriam possíveis sem a ação direta dos diferentes representantes do MNU. No plano da preservação do patrimônio cultural e da história afro-brasileira, destacam- se, também, os parágrafos 1º e 2º do Artigo 215, o parágrafo 5º do Artigo 216, e o parágrafo 1º do Artigo 242, que preconizam: Art. 215 O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. § 1º – O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afrobrasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional. § 2º – A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação para os diferentes segmentos étnicos nacionais. Art. 216 Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: § 5º – Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos. Art. 242 - O princípio do art. 206, IV, não se aplica às instituições educacionais oficiais criadas por lei estadual ou municipal e existentes na data da promulgação desta Constituição, que não sejam total ou preponderantemente mantidas com recursos públicos. § 1º – O ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro (SANTOS, 2015, p. 19-20). Considera-se que os direitos conquistados na Carta Magna de 1988 representaram um avanço de organização e consciência do MNU, no sentido em que reafirmam e unificam a cultura afro-brasileira positivamente, revertendo aspectos estereotipados e racistas que subjugaram as populações negras ao longo da história. Com o quilombismo e o afro-centrismo, o discurso negativo sobre o negro foi criticado, combatido, transformado e reinscrito por meio de uma compreensão ampla e histórica, que resgatou a presença do negro na luta contra o escravismo, contra o racismo e contra as desigualdades a que foram historicamente submetidos. Dessa forma, considera-se a hipótese de que os direitos conquistados pelas populações negras na Constituição Federal (CF) de 1988 são frutos da luta organizada e do avanço da 36 consciência do MNU, bem como das diferentes entidades políticas e sociais sensíveis à problemática racial no Brasil. Contudo, entende-se que, apesar dos direitos conquistados com a CF, os caminhos para que esses sejam normatizados dependem do grau de consciência, força, mobilização e ação que as entidades políticas e os movimentos sociais demonstrarem no horizonte do período democrático que se abriu nos anos 1990. Com ampla dedicação aos estudos sobre a formação da sociedade brasileira, e sobre a questão do negro na sociedade de classes, Fernandes (2017), apesar de considerar importantes os direitos conquistados, apontou limites para o fato de estes acarretarem mudanças pontuais, e não estruturais. Fernandes (2017) defendeu que, tendo a ANC aberto espaço para a criminalização do racismo, era preciso avançar mais; considerava necessário construir uma proposta que aglutinasse os negros e os de baixo num amplo movimento radical de rebeldia coletiva. O autor, que também foi deputado federal constituinte pelo PT (Partido dos Trabalhadores), eleito pelo estado de São Paulo, entendia que a questão do racismo contra as populações negras era um problema social e racial simultâneo, além da pior herança do regime escravagista, que indicava a persistência de uma sociedade hipócrita e autocrática. Defendeu que os Negros, assim como os Índios, deveriam ter um estatuto próprio na Constituição. Diante disso, redigiu a proposta de uma emenda constitucional “Título VIII, Da ordem social, Capítulo IX, Dos negros”, justificando que “se quisermos possuir uma República democrática temos de atribuir ao negro, como indivíduo e coletividade, um estatuto democrático” (FERNANDES, 2017, p. 156). Contudo, seu próprio partido, o Partido dos Trabalhadores (PT), “[…] não o entendeu ou não o entendeu por inteiro ou não concordou por divergir”, terminando a proposta por naufragar (MOURA, 2014a, p. 5). Com a reabertura democrática institucionalizada, e a eleição de Fernando Collor de Melo, que assumiu a presidência em 1990, constata-se que o caminho para combater o racismo, construir políticas afirmativas, realizar o reconhecimento e a titularidade dos territórios quilombolas ainda teria que ser pavimentado. Guimarães (2001b) apontou que, com a institucionalização da nova ordem jurídica que passou a vigorar a partir de 1988, bem como com a reforma do Estado que foi realizada no governo Fernando Henrique Cardos (FHC), a militância negra, que antes se congregava em torno do MNU, dos partidos políticos, sindicatos e algumas entidades estatais, passaram a atuar mais livremente no denominado terceiro setor, como no caso dos remanesces de 37 quilombolas do Vale do Ribeira em torno da Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras do Vale do Ribeira (EAACONE), como veremos nas seções 2 e 4. Ressalta-se que tal situação não significou que o MNU deixou de existir, ou que a militância negra perdeu espaço nos partidos políticos e entidades estatais; ao contrário, a partir de 1995, amplia-se o recrutamento de negros pelos órgãos federais e a proliferação de militantes do movimento negro em entidades independentes da sociedade civil (GUIMARÃES, 2001b). Entretanto, apesar de algumas reivindicações serem rapidamente absorvidas por parte do Estado brasileiro, em particular aquelas que cabiam dentro da matriz de nacionalidade “cujo teor é o sincretismo das três raças fundadoras” (GUIMARÃES, 2001a, p. 135), [...] a partir da compreensão muito peculiar da multirracialidade e do multiculturalismo como síntese (à maneira freyreana), e não como convivência entre iguais (à maneira norte-americana), que os brasileiros passaram a aceitar algumas teses do movimento negro, tais como o respeito às tradições e às expressões culturais de origem africana e à estética negra. O fato é que também o estado brasileiro foi ágil em responder nesse diapasão, através da criação de fundações culturais (a Fundação Palmares, por exemplo), criação de conselhos estaduais da comunidade negra, incorporação de símbolos negros (como a transformação de Zumbi em herói nacional e o reconhecimento oficial do 20 de novembro como o Dia do Negro); desenvolvimento de legislação mais apropriada de combate ao racismo (a Constituição de 1988 e as leis 7.716 e 9.459, que regulamentam o crime de racismo); modificação do currículo escolar, em alguns municípios onde a pressão e a presença negra são mais fortes, para permitir a multiculturalidade (GUIMARÃES, 2001a, p 159). Demandas e reivindicações que dizem respeito a políticas afirmativas e inovadoras de combate às desigualdades raciais, de renda e de acesso ao serviço público de qualidade, por exemplo, enfrentaram resistência por parte das classes dirigentes e por segmentos conservadores da sociedade civil (GUIMARÃES, 2001a). A respeito do direito à propriedade das comunidades remanescentes de quilombolas, foram necessários mais 15 anos de lutas e mobilizações até que, em 2003, o governo federal publicasse o Decreto nº 4887/03, que, finalmente, estabeleceu os procedimentos técnicos legais para demarcação e titulação do território. 1.4 Os remanescentes das Comunidades de Quilombolas O Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) outorgou “aos remanescentes das Comunidades de Quilombolas que estejam ocupando suas terras, reconhecimento e propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes títulos respectivos” (BRASIL, 2016, p. 160). 38 Destaca-se que o Artigo 68 teria sido incorporado ao ADCT no apagar das luzes. Isso se deu pela mobilização e luta do Movimento Negro, mas, também, devido à falta de conhecimento dos constituintes acerca do número, situação e localização das CRQ no país (ARRUTI, 2006; REZENDE DA SILVA, 2008). Embora esse dispositivo legal representasse um grande avanço, uma conquista para o Movimento Negro do país, e para as CRQ em particular, vários empecilhos foram colocados para atrasar, quando não barrar, o caminho para a regularização da lei. Diante disso, ao analisar o andamento dos processos de titulação, observa-se que esse pouco avanço se dá conforme a sensibilidade dos governos em exercício e do grau de mobilização e forças que as CRQ e movimentos sociais têm para fazer com que o direito conquistado seja formalizado. Além da histórica oposição dos grandes latifundiários e representantes do grande capital, outras questões, como os diferentes domínios legais sobre a localidade das CRQ, sendo que algumas são terras devolutas dos diversos estados da federação, outras estão em domínio de empresas particulares e estatais, e outras tantas estão sob o domínio de Unidades de Conservação (UCs), também demonstram a complexidade do processo (REZENDE DA SILVA, 2008). Votado e aprovado como parte dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias e não como uma obrigação permanente do Estado, infere-se que a visão que predominou nesse processo foi a de transitoriedade da situação, que vê o país em processo de embranquecimento. “Diversas tentativas de regulamentação da lei, feitas em 1995, 1997, 1998 e 1999 indicam a premência que tem a aplicação do artigo 68 do ADCT, mas até o momento, todas elas esbarraram [...] no sujeito do direito e nos procedimentos de titulação, responsabilidades e competências” (LEITE, 2000 apud REZENDE DA SILVA, 2008, p. 69). Vale dizer que, com a aprovação do Artigo 68 como ADCT em 1988, outorgando o direito de propriedade aos remanescentes de quilombos, além de marcar o nascimento de um novo sujeito político, resgatou um núcleo organizativo historicamente ocultado: o quilombo. Fruto de um legado histórico de criminalização, quando não de invisibilidade, apesar do avanço, tanto o Artigo 68, quanto a própria questão racial e a situação do negro, não tiveram as discussões e os aprofundamentos necessários para atacar no cerne a pior herança do regime escravagista brasileiro, como destacou Fernandes (2017). Frente a esse cenário, além de contar com os interesses contrários dos latifundiários, os poucos estudos mais profundos e sistematizados sobre as organizações quilombolas no pós-abolição, e a própria questão racial, geraram a problemática conceitual sobre quem eram e são os remanescentes de quilombos. 39 No campo dos estudos raciais, Arruti (1997, p. 13) aponta que, entre a década de 1970 e a década de 1980, ocorreu uma mudança na abordagem sobre a “[…] identidade negra assumida pelo grupo ou atribuída pelo pesquisador, entre populações eminentemente camponesas”. Num primeiro momento, os estudos sobre “[…] comunidades rurais que apresentavam a particularidade de serem negras, eram tratadas como exemplos institucionalmente isolados [...] sem perspectiva comum aparente”. Já a partir da década de 1980, ocorre uma inversão da questão, e uma série de estudos interligados operando o conceito de etnicidade, que trabalham com “comunidades negras que tinham a particularidade de serem camponesas” (ARRUTI, 1997, p. 13). Com o Artigo 68 na do ADCT na CF de 1988, as demandas “[…] originadas na luta política levaram a uma aliança forçada com perspectivas até então apartadas, impondo aos estudos etnográficos sobre comunidades rurais negras a literatura histórica sobre quilombos e vice-versa” (ARRUTI, 1997, p. 13). Abrindo um campo novo para estudos, poucas bibliotecas utilizavam o termo quilombos como chave de entrada em seus fichários, demonstrando a estranheza e a dificuldade para se repensar e reclassificar os antigos estudos sobre comunidades rurais negras em termos de CRQ (ARRUTI, 1997). Os antigos quilombos, pequenos ou grandes, estáveis ou de vida precária, que foram a unidade básica de resistência do escravo e símbolo da luta contra o regime servil que se formou em qualquer região em que existia a escravidão (MOURA, 1981, p. 87), foram resgatados após 100 anos de ocultamento como chave para o entendimento das comunidades negras rurais. Compreende-se que, durante o regime escravocrata, os quilombos e a luta dos quilombolas representaram a contradição produtiva essencial na estrutura do regime servil que só perdeu sua centralidade com a aprovação da Lei Áurea e abolição da escravidão das populações negras em 1888. Com a abolição do regime escravocrata em 1888, e a Proclamação da República no ano seguinte, os antigos quilombos, quando não atacados ou criminalizados, foram sendo extintos da literatura como se tivessem simplesmente desaparecido com a aprovação da Lei Áurea. Considerando que as classes dirigentes tinham um claro empenho em resolver o dilema de embranquecer a população, entende-se que essa displicência com a história e as 40 experiências do que foram os quilombolas no regime escravocrata, e sua perpetuação ou não no pós-abolição, não se deu por mero acaso. Sob a problemática de como embranquecer o país, o racismo contra as populações negras e suas manifestações não deixou de existir com a abolição; ao contrário, manifestações da cultura negra, como a capoeira 6 e as religiões de origem afro-brasileira, por exemplo, só deixaram o Código Penal mais de 40 anos após a abolição. Resistindo a um histórico de invisibilidade, quando não, do estereótipo de bárbaro, a história dos quilombolas é resgatada e ressignificada na década de 1970 por meio do quilombismo e do afro-centrismo, concepções formuladas por intelectuais negros de grande influência ideológica na atuação do MNU. A construção de uma identidade racial positiva por meio do afro-centrismo e do quilombismo, resgatando e ressignificando a herança africana no Brasil (invenção de uma cultura negra), como apontou Guimarães (2001b), influenciaram a consciência e a atuação do MNU e de seus representantes na luta pela aprovação do Artigo 68, pela criminalização do racismo, e por garantia de direitos às populações negras. Depois do ano de 1988, no entanto, acontecimentos externos aos debates propriamente acadêmicos irão interferir na produção antropológica voltada para os chamados ‘estudos raciais’, no sentido de incentivá-la e de alterá-la. Nesse ano, o ‘Artigo 68’ das disposições transitórias criou a possibilidade de se reconhecer às ‘comunidades remanescentes de quilombos’ o direito sobre as terras que ocupam e, apesar de ainda não se ter lhe dado uma definição jurídica e institucional, seus efeitos sociais se fizeram sentir quase que imediatamente, pela mobilização de ONG’s, aparelhos de Estado, profissionais de justiça e setores da área acadêmica, entre outros, nem sempre, todavia, em perfeito acordo, mesmo quando imbuídos de uma perspectiva política comum. (ARRUTI, 1997, p. 13). Utilizado para resolver a difícil relação de continuidade e descontinuidade com o passado histórico em que a descendência não parece ser um laço suficiente, o termo remanescente foi empregado no Artigo 68 em semelhança à situação utilizada para descrever as comunidades indígenas do Nordeste ao longo da década de 1930/40 (ARRUTI, 1997). Porém, apesar da semelhança, Arruti (1997, p. 22) aponta que: Se entre os indigenistas o termo serviu para relativizar, na prática (ainda que por caminhos tortuosos, que acabavam por reafirmar a crença no modelo), o exótico, o isolamento, a continuidade de uma carga cultural homogênea e autônoma, no caso das comunidades negras rurais, ou melhor, para a representação que se passa a fazer delas, seu emprego pode significar justamente a afirmação ou produção dessas ideias. Principalmente porque, a partir da década de 70, quando a renovação 6 Criminalizada pelo Código Penal da República dos Estados Unidos do Brasil de 1890 (promulgado pelo Decreto nº 847, em 1890), em seu artigo 402, inserido no capítulo XII, intitulado Dos vadios e Capoeiras, foi descriminalizada em 1936 pelo presidente Getúlio Vargas. Em 2008, a capoeira foi tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), e em 2014, a Unesco (Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura) declarou a roda de capoeira como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade. 41 historiográfica se voltou para os Movimentos populares e para a ‘história dos de baixo’ e da sua ‘resistência, a retomada do tema dos quilombos transformou-os em símbolos da recusa absoluta à ordem escravocrata, oligárquica e, em alguns casos, do próprio capitalismo. Ao serem identificadas como ‘remanescentes’, aquelas comunidades em lugar de representarem os que estão presos às relações arcaicas de produção e reprodução social, aos misticismos e aos atavismos próprios do mundo rural, ou ainda os que, na sua ignorância, são incapazes de uma militância efetiva pela causa negra, elas passam a ser reconhecidas como símbolo de uma identidade, de uma cultura e, sobretudo, de um modelo de luta e militância negra, dando ao termo uma positividade que no caso indígena é apenas consentida. Nesse sentido, Arruti (1997, p. 19) revela que, nos “remanescentes de quilombos”, a presença de “novos” sujeitos e de novas figuras jurídicas correspondeu a novas unidades de ação social, através de uma “[…] maximização da alteridade que por um lado subverte a indistinção e por outro intensifica a comparabilidade”. Compreendeu-se que as CRQ não são necessariamente uma reprodução original dos quilombos do passado, visto que as terras ocupadas quase 100 anos após abolição provêm de origem diversa. A utilização do termo “remanescente” abriu a possibilidade para que esses grupos ocupassem um novo lugar no campo político, social e cultural (ARRUTI, 1997, p. 23). Dessa forma, o termo não deve ser compreendido como sobras de antigos quilombos presos por fatos passados e prontos para serem identificados, mas “através da seleção e recriação de elementos da memória, de traços culturais que sirvam como os “sinais externos” reconhecidos pelos mediadores e o órgão que tem a autoridade de nomeação” (ARRUTI, 1997, p. 23). As diferenças que podiam até então distingui-los da população local na forma de estigmas passam a ganhar positividade, e o próprio termo ‘negro’ ou “preto”, muitas vezes recusados até pouco tempo antes da adoção da identidade de remanescentes, passam a ser adotados. As fronteiras entre quem é e quem não é da comunidade, quase sempre muito porosas, passam a ganhar rigidez e novos critérios de distinção, genealogias e parentescos horizontais passam a ser recuperados como formas de comprovação da inclusão ou não de indivíduos na coletividade. Ao mesmo tempo, a maior visibilidade do grupo lhe dá uma nova posição em face do jogo político municipal e, por vezes, estadual. Enfim, a adoção da identidade de remanescentes por uma determinada coletividade, ainda que possa fazer referência a uma realidade comprovável, é, com muito mais força, a produção dessa própria realidade (ARRUTI, 1997, p. 23). Sem precedentes anteriores, com o marco do Artigo 68, os denominados remanescentes de quilombolas surgem como “novos atores políticos” que, além de precisar de mais especificidades sobre quem de fato são, abrem discussões para criar processos jurídicos e os mecanismos necessários para que os preceitos constitucionais pudessem ser cumpridos (ARRUTI, 1997). 42 No plano institucional, foi a Fundação Cultural Palmares (FCP), órgão do governo federal cuja criação foi autorizada pela Lei nº 7.668/88, e materializada pelo Decreto nº 418/92, que ficou encarregada de promover a cultura negra e praticar as medidas para efetivação do Artigo 68 (SUNDFELD, 2002). Apesar da rápida resposta do governo em relação à competência para implementar as medidas necessárias para o Artigo 68, no plano prático, a ação não se manifestou com a mesma intensidade, além das dificuldades conceituais e jurídicas, a lentidão do processo burocrático não ajudou no processo. Frente a essas complicações conceituais e jurídicas, o Ministério Público Federal (MPF), que já enfrentava demandas de CRQ que reivindicavam o reconhecimento de seus territórios, solicitou à Associação Brasileira de Antropologia (ABA) um estudo mais aprofundado sobre o tema. A ABA, atendendo ao pedido do MPF, constituiu um Grupo de Trabalho e realizou estudos sobre Comunidades Negras Rurais. A partir dos estudos realizados, a ABA apresentou, em 1994, um entendimento de que os remanescentes de quilombos são “[…] toda comunidade negra rural que agrupe descendentes de escravos vivendo da cultura de subsistência e onde as manifestações culturais têm forte vínculo com o passado” (SUNDFELD, 2002, p. 67). Segundo Leite (2000) e Rezende da Silva (2008), tal definição buscou uma compreensão dinâmica de cultura e crítica às concepções que viam os quilombolas como populações homogêneas, estáticas e isoladas. Assim, mais que uma herança que ultrapassou o tempo, “[…] os remanescentes de quilombos deveriam ser pensados em suas diferentes formas como experiências historicamente situadas na formação social do país, que na luta por sua existência desenvolveram identidades próprias” (REZENDE DA SILVA, 2008, p. 80). Mesmo com a definição da ABA, e apesar das tentativas em 1995, 1997, 1998 e 1999, como afirma Leite (2000), a aplicabilidade da diretriz constitucional, além da oposição dos diferentes interessados que eram contrários aos direitos dos quilombolas, esbarrava em outras problemáticas relacionadas ao sujeito de direito, aos procedimentos de titulação, na responsabilidade e competências (REZENDE DA SILVA, 2008). Frente às indefinições e demora nos processos por parte do governo federal, alguns estados, como Pará e São Paulo, buscando solucionar as demandas dos remanescentes de quilombolas que entravam na justiça solicitando o reconhecimento de seus territórios, 43 iniciaram procedimentos para referendar o Artigo 68 do ADTC, e conferir-lhes o direito à propriedade (ANDRADE, 1997, p. 35). O caso das Comunidades de Boa Vista, Água Fria e Pacoval, no Pará, que nos anos de 1995 e 1996 conquistaram junto à representação regional do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) no estado do Pará o título de propriedade coletiva inalienável, representou um marco para o reconhecimento e a titulação de áreas quilombolas em terras devolutas da União (ANDRADE, 1997). Sob essa influência, o estado do Pará, antecipando-se ao próprio governo federal, alguns anos depois, em 1999, instituiu o Decreto Estadual nº 3.572, no qual estabeleceu providências e competências para Reconhecimento e Legitimação de Terras dos Remanescentes das Comunidades Quilombolas. O estado de São Paulo, já enfrentando demandas dos quilombolas, particularmente do Vale do Ribeira, região com maior número de quilombos no estado, por meio do Decreto nº 40.723/96, criou um Grupo de Trabalho com o objetivo de fazer proposições visando à plena aplicabilidade dos dispositivos constitucionais do Artigo 68 (ANDRADE, 1997). O Grupo de Trabalho instituído pelo Decreto 40.723/96 foi integrado por representantes da Secretaria de Justiça e Defesa da Cidadania, Instituto de Terras do Estado de São Paulo “José Gomes da Silva”, Secretaria de Meio Ambiente, Procuradoria Geral do Estado, Secretaria de Governo e Gestão Estratégias, Secretaria de Cultura, Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat), Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra do Estado de São Paulo, Subcomissão do Negro, da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil - Secção São Paulo e Fórum Estadual de Entidades Negras (ANDRADE, 1997, p. 17). Além do Pará e de São Paulo, outros estados, como a Bahia, o Maranhão, o Mato Grosso do Sul, o Piauí e o Rio de Janeiro, com o decorrer dos anos, também tomaram providências para estabelecer as competências para os processos de reconhecimento e de titulação dos territórios remanescentes de quilombos. Apesar do aparente avanço em relação ao âmbito federal por partes desses estados que se empenharam em estudos e na construção de instrumentos para a titulação de terras para as CRQ, a lentidão no âmbito federal dificultava avanços mais significativos no processo. Comprobatório dessa lentidão no âmbito federal, pode ser evidenciado no fato de que os procedimentos de concessão e regularização das terras remanescentes de quilombos só foram definidos em 2003, a partir do Decreto nº 4887, ou seja, 15 anos após a aprovação do Artigo 68 do ADCT. Nessa mesma lógica de morosidade, somente em 2009, o INCRA, organismo federal responsável pelo processo de titulação, publicou a Instrução Normativa 57, com os 44 procedimentos do processo administrativo para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação, desintrusão 7 , titulação e registro das terras ocupadas por CRQ. 1.5 Nossos direitos só a luta faz valer: organização, resistência e luta pela posse de suas terras Em sua maioria ocupando áreas de difícil acesso e ricas em recursos minerais e vegetais, as antigas comunidades negras rurais espalhadas por quase todo o território nacional já enfrentavam, em algum nível, conflitos e ameaças sobre as terras que viviam antes de serem reconhecidas como remanescentes de quilombos. É nesse histórico de conflito e luta que questões ligadas à cultura e à origem comum passam a ser tematizadas e objeto de reflexão em diversas comunidades. Nessa conjuntura, a assunção da identidade de remanescentes passa a ser reconhecida como instrumento de luta privilegiada para resistência em suas terras e manutenção de seu modo de vida (ARRUTI, 1997). Vários são os casos de violência e insegurança em que as antigas comunidades negras rurais viviam quando da aprovação do Artigo 68. Contudo, mesmo após a garantia de propriedade sobre as terras que ocupavam, o pouco avanço no processo de titulação se deu mais pela pressão dos quilombolas do que pela vontade do governo. Diante disso, a presente subseção teve como objetivo apresentar um pouco das lutas que algumas comunidades negras rurais vinham empreendendo desde antes da aprovação do Artigo 68, bem como a composição e a organização das CRQ para fazer valer o direito adquirido. Como casos emblemáticos e mais conhecidos da situação de conflitos e lutas que as antigas comunidades negras rurais enfrentavam, desde antes de 1988, estão os casos das comunidades de Oriximiná no Pará (PA), dos Kalunga em Goiás (GO), das comunidades do Rio das Rãs na Bahia (BA), e das comunidades do Vale da Ribeira em São Paulo (SP). Situado à margem do rio Trombetas no norte do Pará, o caso das comunidades de Oriximiná é importante não só por ser o primeiro caso de titulação de comunidade quilombola no Brasil, mas, também, pelo título coletivo da propriedade de suas terras, e pela importância dessa experiência nos demais casos em todos os estados brasileiros. 7 Ato ou efeito de retirar de um imóvel quem dele se apossou ilegalmente ou sem autorização do proprietário. Frequentemente, o termo se refere à retirada de ocupantes ilegais de áreas reconhecidas e regularizadas como sendo terras indígenas, reservas ambientais, territórios quilombolas ou de outros povos e populações tradicionais. 45 Como de praxe em terras ocupadas pelas CRQ, a situação em Oriximiná não era exceção. Segundo dados da Comissão Pró-Índio de São Paulo (2015), na década de 1970, a região foi afetada pela instalação da empresa Mineração Rio do Norte (MRN), e também pela criação da Reserva Biológica do Trombetas. Isso dificultou o acesso dos moradores aos principais castanhais da região. No mesmo documento, a Comissão (2015) aponta, também, que a edificação de uma vila executada pela Eletronorte para a implantação da Hidroelétrica de Cachoeira Porteira no Rio Trombetas, o aumento do número de fazendas e de ocupações de pequenos posseiros atraídos pela especulação, na década de 1980, agravaram a situação. Agudizando o cenário de conflitos e ameaças durante toda a década, em 1989, as comunidades negras, tomando conhecimento do Artigo 68 e consciência da necessidade de fazer valer o direito adquirido, organizaram-se em torno da Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Município de Oriximiná (ARQMO). Importante ferramenta de luta na história das comunidades da região, por meio da organização e ação empreendida pela ARQMO, a Comunidade Boa Vista, reivindicando-se como remanescente de quilombos, conquistou, junto ao INCRA no estado do Pará, em 1993, o primeiro título de propriedade sob as diretrizes do Artigo 68. Valorosa não só porque incidiu na primeira titulação de proprie