UNESP - UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS CÂMPUS DE MARÍLIA Vinícius Pereira de Figueiredo ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS E SUA AÇÃO CONTRA O CRIME ORGANIZADO TRANSNACIONAL: UM ESTUDO DE CASO SOBRE A ASCENSÃO E PRESENÇA DO PCC NA AMÉRICA DO SUL. MARÍLIA- SP 2021 VINÍCIUS PEREIRA DE FIGUEIREDO ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS E SUA AÇÃO CONTRA O CRIME ORGANIZADO TRANSNACIONAL: UM ESTUDO DE CASO SOBRE A ASCENSÃO E PRESENÇA DO PCC NA AMÉRICA DO SUL. Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Conselho de Curso de Relações Internacionais da Faculdade de Filosofia e Ciências, da Universidade Estadual Paulista – UNESP – Campus de Marília, para a obtenção do título de Bacharel em Relações Internacionais. Orientador: Prof. Dr. Luís Antônio Francisco de Souza. Marília 2021 F475o Figueiredo, Vinicius Pereira de Organizações internacionais e sua ação contra o crime organizado transnacional: um estudo de caso sobre a ascensão e presença do PCC na América do Sul. / Vinicius Pereira de Figueiredo. -- Marília, 2021 62 p. Trabalho de conclusão de curso (Bacharelado - Relações Internacionais) Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Filosofia e Ciências, Marília Orientador: Luís Antônio Francisco de Souza 1. Primeiro Comando da Capital (PCC). 2. Crime Organizado. 3. Crime Organizado Transnacional. 4. Organizações Internacionais. 5. Segurança Pública. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca da Faculdade de Filosofia e Ciências, Marília. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. VINICIUS PEREIRA DE FIGUEIREDO ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS E SUA AÇÃO CONTRA O CRIME ORGANIZADO TRANSNACIONAL: UM ESTUDO DE CASO SOBRE A ASCENSÃO E PRESENÇA DO PCC NA AMÉRICA DO SUL. Trabalho de Conclusão de Curso para obtenção do título de Bacharel em Relações Internacionais, da Faculdade de Filosofia e Ciências, da Universidade Estadual Paulista – UNESP – Campus de Marília, na área de concentração de Relações Internacionais BANCA EXAMINADORA ________________________________________________________ Orientador: Prof. Dr. Luís Antônio Francisco de Souza Universidade Estadual “Júlio de Mesquita Filho” Faculdade de Filosofia e Ciências, Campus de Marília ________________________________________________________ Prof; Dr. José Geraldo Alberto Bertoncini Poker Universidade Estadual “Júlio de Mesquita Filho” Faculdade de Filosofia e Ciências, Campus de Marília ________________________________________________________ Mndo. Eduardo Armando Medina Dyna Universidade Estadual “Júlio de Mesquita Filho” Faculdade de Filosofia e Ciências, Campus de Marília Marília, 07 de maio de 2021. Dedico este trabalho a minha avó Luzia, que me acolheu e acreditou nos meus estudos. AGRADECIMENTOS Agradeço especialmente a minha Avó Luzia que sempre me incentivou a estudar e buscar uma vida melhor, foi minha amiga e parceira nos momentos mais difíceis, além de me ensinar tudo que sei. Assim como agradeço aos meus pais, meu Avô Nelson e minha querida irmã que hoje não estão mais conosco. Sou grato ao apoio da minha família, a minha Tia Maria que me abrigou no começo da graduação, assim como suas filhas, a minha Tia Luciana, meu Tio Osvaldino e meus primos que sempre estiveram comigo. Sou especialmente grato pela minha sobrinha Heloísa, que mesmo ainda tão nova me proporcionou enorme alegria em tempos tão difíceis. Agradeço e lembro também da minha Avó Tereza que nos deixou recentemente, sempre presente em minha vida, descansa agora em nossas memórias. Serei eternamente grato a minha companheira, Emiliana, presente em grande parte da escrita deste trabalho, me motivando e apoiando incondicionalmente para que ele fosse realizado. Em minha trajetória pela universidade até a conclusão da monografia tive a oportunidade de conhecer pessoas incríveis que não cabem nessa breve passagem. Agradeço aos meus amigos e companheiros de universidade, Gabriel, Lavínia, Victor, Caíque, Luciana, Vinícius, Eduardo, Lucas, Jéssica, Marcelo entre outros que passaram por mim e fizeram parte da minha chegada até aqui, assim como meu amigo de escola Gustavo que sempre apoiou meus projetos, mesmo distante. Durante meu aprendizado na universidade devo muito a todos do grupo PET de Relações Internacionais que contribuíram para minha formação como pessoa. Agradeço aos veteranos Theo, Luís Felipe, Alexandre, Frederico, meu colega desde 2017, Daniel, e ao professor tutor José Geraldo Poker que nos recebeu dentro do grupo. Ademais, sou grato a todos os outros que passaram pelo grupo e de alguma forma contribuíram para seu sucesso. Por fim, mas com certeza não menos importante. Agradeço ao meu orientador Luis Antônio, que apoiou o meu projeto e abraçou minha pesquisa com exímia atenção e sem ele nada disso seria possível. “Aquele moleque sobrevive como manda o dia a dia/ Tá na correria, como vive a maioria/ Preto desde nascença, escuro de sol/ Eu tô pra ver ali igual no futebol/ Sair um dia das ruas é a meta final/ Viver decente, sem ter na mente o mal/ Tem o instinto que a liberdade deu/ Tem a malícia que cada esquina deu...” “Mágico de Oz” – Racionais MC’s RESUMO O Primeiro Comando da Capital (PCC) é parte do imaginário coletivo dos brasileiros, crescendo dentro de mitos e um histórico de confrontos contra o sistema, no entanto, no mundo real buscou sua organização e consolidação como uma força dentro do Estado e perante seus rivais. Diante disso, o presente trabalho tem como objetivo inicial mostrar como o Primeiro Comando da Capital (PCC) se desenvolveu como organização a ponto de se tornar um caso de crime organizado transnacional, causando impacto geopolítico na América do Sul. Assim, será feito um apanhado histórico de como o grupo se estabeleceu no cenário nacional do crime organizado, dando enfoque nas suas principais ações (as rebeliões simultâneas de 2001 e 2006) até se tornar um dos principais grupos no tráfico internacional de entorpecentes da América do Sul, organizando as rotas do tráfico de cocaína e maconha do continente. A proposta do texto é de analisar o impacto do grupo na região, assim será colocado também como as Organizações Internacionais, junto aos governos envolvidos têm respondido a essas ações. Para isso foram selecionados documentos e ações realizadas pela Organização das Nações Unidas, mais especificamente pela convenção de Palermo. Assim como serão utilizados livros dentro da discussão da segurança pública e do direito internacional para embasar os conceitos usados (Jozino, 2017; MANSO e DIAS, 2018; MINGARDI, 1998; GOMES, 2008) além de periódicos e artigos jornalísticos pertinentes à discussão. Palavras-chave: PCC; Crime Organizado; América do Sul; Organizações Internacionais; Securitização. ABSTRACT The Primeiro Comando da Capital (PCC) is part of the collective imagination of Brazilians, growing within myths and a history of confrontations against the system, however, in the real world it sought its organization and consolidation as a force within the state and before its rivals. In light of this, the present work has as its initial objective to show how the Primeiro Comando da Capital (PCC) developed as an organization to the point of becoming a case of transnational organized crime, causing geopolitical impact in South America. A historical overview of how the group established itself in the national scenario of organized crime will be made, focusing on its main actions (the simultaneous rebellions of 2001 and 2006) until it became one of the main groups in the international traffic of narcotics in South America, organizing the trafficking routes of cocaine and marijuana in the continent. The purpose of the text is to analyze the impact of the group in the region, so it will also be placed how the International Organizations, together with the involved governments have responded to these actions. For this purpose, documents and actions carried out by the United Nations, more specifically the Palermo Convention, were selected. Just as books will be used within the discussion of public security and international law to support the concepts used (Jozino, 2017; MANSO and DIAS, 2018; MINGARDI, 1998; GOMES, 2008) in addition to periodicals and journalistic articles relevant to the discussion. Key Words: PCC; Organized Crime; South America; International Organizations, Securitization. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 9 2 FORMAÇÃO E CONSOLIDAÇÃO DO PRIMEIRO COMANDO DA CAPITAL (PCC). ...................................................................................................................................... 13 2.1 A fundação. .......................................................................................................................................................... 13 2.2 Consolidação e reconhecimento. ............................................................................................................. 21 3 O CRIME ORGANIZADO NO BRASIL .................................................................... 24 4 CRIME ORGANIZADO TRANSNACIONAL. .......................................................... 29 4.1 Uma definição geral ........................................................................................................................................ 29 4.2 O tráfico internacional .................................................................................................................................. 31 5 O PCC COMO CRIME ORGANIZADO TRANSNACIONAL ................................ 34 6 A DOUTRINA DA SECURITIZAÇÃO COMO ALTERNATIVA PARA O COT . 38 6.1 Uma breve definição ....................................................................................................................................... 38 6.2 Colômbia e a tríplice fronteira sul ......................................................................................................... 40 6.3 Possibilidade de securitização do PCC ................................................................................................ 44 7 A IMPORTÂNCIA DAS ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS NA COOPERAÇÃO REGIONAL .............................................................................................. 47 8 CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................... 56 BIBLIOGRAFIA.................................................................................................................... 61 9 1 INTRODUÇÃO O Primeiro Comando da Capital (PCC) é um velho conhecido do brasileiro, muito popular na mídia sensacionalista de “investigação policial” e também visível nos muros de praticamente todo o estado de São Paulo. Geralmente colocado como um grupo extremamente violento e cruel, ou simplesmente como um grupo de marginais, no entanto, dentro desse trabalho vamos além da imagem construída no senso comum, busca-se apresentar que o grupo não é tão raso quanto colocado pela mídia, muito pelo contrário, sendo as ações que chegam até o público, apenas resultados de uma complexa organização. O que permitiu que o grupo chegasse a ter seu reconhecimento em nível internacional, tornando-se parte da seleta lista de grupos que compõem um dos aspectos estudados neste trabalho, o de crime organizado transnacional (COT). O fenômeno do COT é também relativamente recente e como é de se imaginar - pelo nome do termo - possui relação com o conceito de crime organizado tradicional, esse antes protagonizado nos cinemas pelas máfias italianas com tiroteios, romances e traições e embora empolgante, hoje não é mais tão fiel. O crime hoje está atrelado às renovações e transformações da globalização, colocando as inovações da comunicação, do transporte e da integração global como crucial para organização, manutenção e expansão dos grupos. Sobre a globalização, colocado em Carvalho e Silva (2011) apud Passeti (2003): O contexto contemporâneo, caracterizado pela globalização, principalmente no âmbito econômico, tem provocado transformações na estrutura do Estado e redefinição de seu papel enquanto organização política. Diferentemente da redução do papel do Estado no âmbito econômico e social, no que se refere à segurança pública, tem ocorrido uma ampliação dos instrumentos de controle sobre a sociedade. Por isso, “[...] não tardou para que no final do século 20, na sociedade de controle, com o neoliberalismo, aparecesse uma terceira versão para os perigosos a serem confinados [...]” (CARVALHO e SILVA, 2001, p. 60 apud PASSETTI, 2003, p. 134) Assim, com a intenção de inicialmente demonstrar como se organizou o grupo, será feita uma retomada histórica do mesmo, tendo como base Jozino (2017), jornalista que acompanhou de perto o grupo desde sua fundação. Jozino traz relatos dos momentos históricos do PCC através de depoimentos das esposas dos membros, narrando momentos cruciais da fundação e consolidação do grupo como uma força oposta ao sistema carcerário brasileiro. Ademais usa-se de Dias e Nunes (2018) que trabalha também a história do grupo, a partir da coleta de entrevistas com membros e chefes da segurança pública, a obra ainda narra a odisseia do Primeiro Comando da Capital (PCC) na tentativa de assumir o protagonismo do tráfico de entorpecentes na América do Sul, seus conflitos com facções rivais recentes como o Comando Vermelho (CV) e a Família do Norte (FDN). Além de denunciar os principais entraves e 10 problemas da segurança pública no Brasil, trabalhando as suas principais forças ainda atuantes e as estruturas construídas ao longo da história da segurança pública nacional, considerando que: No Brasil, o processo de democratização do Estado, após duas décadas de ditadura militar, pouco modificou o Estado penalizador, fundado na institucionalização da criminalização. No aspecto teórico, constitucional, tem-se um Estado democrático. Porém, no campo prático, ainda se vive em um Estado autoritário, principalmente nas questões relacionadas à segurança pública (CARVALHO e SILVA, 2011, p. 61) Como enunciado, o trabalho tem como intenção, não só tratar o PCC, mas também o conceituá-lo como um caso de crime organizado transnacional, para servir como base para discussão da efetividade do principal documento que rege o tema, a convenção de Palermo, produzido pela principal autoridade que vela os Direitos Humanos Universais e questões de segurança internacional, a Organização das Nações Unidas (ONU). Referência para os tratados regionais e para o direito interno brasileiro. Entende-se que para uma maior compreensão acerca do tema, que ainda é recente e carece de bibliografia original, seria importante a discussão sobre quais possíveis tipificações tradicionais que se relacionam com o tema e podem interferir na sua definição. Para isso, a necessidade de conceituar as definições de crime organizado, para depois crime organizado transnacional. Aqui foi feito o uso diversos artigos que debruçam sobre o tema os temas, assim como os livros sobre o tema no Brasil de Mingardi (1998) e o sobre a convenção de Palermo e seus aspectos por Gomes (2008). Identificou-se que a atuação transnacional das entidades de crime organizado é recente e pouco discutida, ao mesmo tempo é de suma importância sua discussão para a manutenção da segurança pública nacional e da segurança regional da América do Sul. Considerando que “As intervenções estatais, em relação à segurança pública no Brasil, tornaram-se mais sistemáticas nesta primeira década do século XXI, quando se configurou a gestão de planos e programas pautados em novas formas de abordar a questão” (CARVALHO e SILVA, 2011, p .66). É evidente que existam alguns grupos que se destacam como grupos de crime organizado transnacional (COT) nos mais diversos ramos que o termo possa abranger (tráfico de pessoas, mercadorias, armas e etc.), mas acredita-se que dentro do contexto brasileiro nenhum caso tenha mais destaque do que o do Primeiro Comando da Capital (PCC). Embora em seu surgimento seus fundadores não tivessem a dimensão que o grupo poderia ter, ou a ambição, inicialmente um grupo voltado para a proteção e luta contra o sistema carcerário, com forte inspiração no Comando Vermelho. Por muito tempo limitado ao uso de celulares para sua comunicação e uma organização tradicional visada para o fornecimento de drogas em âmbito 11 doméstico, viu no mundo globalizado o valor de sua mercadoria e usou das oportunidades para se colocar dentro das redes do tráfico internacional de entorpecentes. Apesar de recente a discussão sobre como prevenir e combater o crime organizado transnacional, os governos e principalmente as organizações internacionais têm desempenhado esforços substanciais sobre o tema, sendo os principais produtores de legislação e de ações de combate. Em linhas, gerais o crime organizado transnacional carece de discussão e bibliografia, e tem hoje no Brasil um dos principais grupos dentro dessa categoria, tornando-se um assunto de segurança pública, com relação direta com a organização política do país. Seu estudo é além de uma análise sobre o que é e o que se pode fazer, mas também uma forma de documentação da negligência e das falhas nas democracias sul-americanas. A importância da discussão sobre o tema, seja das suas características, métodos ou a identificação dos seus agentes principais também engloba a necessidade de se estudar os conflitos da América do Sul, região historicamente marcada por conflitos internos, desde os processos de independência contra o colonialismo europeu, registram-se poucos - comparado aos outros continentes - conflitos interestatais, no entanto, registrou diversos levantes históricos que supostamente ameaçavam a região. Destaca-se, os grupos populares comunistas almejados pela política de segurança dos EUA, o Exército de Libertação Nacional (ELN), na Colômbia, o Sendero Luminoso, que culminou no Partido Comunista do Peru (PCP) e a já extinta Ação Libertadora Nacional (ALN), no Brasil, entre diversos movimentos que tinham assumidamente a intenção de subversão do sistema capitalista. É importante reconhecer que esses grupos pertencem a um contexto político específico e eram movimentados pelas suas ideologias específicas, não, cabendo a esse trabalho sua discussão. Assim como essas organizações não devem ser confundidas com outros grupos históricos que foram considerados ameaças à região da América do Sul, como os cartéis de entorpecentes de Cali e Medellín, importantes catalisadores para o aumento da influência dos E.U.A na securitização da América do Sul. O presente texto pretende então compreender então como o Primeiro Comando da Capital (PCC) se tornou um caso de crime organizado transnacional (COT), usando assim como alavanca para discutir a legislação sobre o tema, através da convenção de palermo, como as falhas da segurança pública que permitiram a situação atual. Além de contemplar a expansão da atuação do PCC na América do Sul; Analisar as ações das organizações internacionais, em especial a Organização das Nações Unidas (ONU)8, além da Organização dos Estados 12 Americanos (OEA), a União de Nações Sul-Americanas (UNASUL) e o seu sucessor o Foro Progresso da América do Sul (PROSUL) em relação ao crime organizado; Estudar como se dão as articulações das Organizações Internacionais que atuam na região em relação às políticas de “guerra” às drogas e a situação da segurança pública nacional a fim de buscar possíveis caminhos para amenização da situação. Além dos objetivos já listados pretende-se que o trabalho possa contribuir, de alguma forma, para a discussão de segurança pública no Brasil, discussão essa que se torna cada vez mais urgente com a conjuntura política instaurada a partir das eleições de 2018, que proporcionou um considerável avanço de forças repressivas pelas vias democráticas com o aumento de número de policiais militares no legislativo1. Como a eleição de um presidente voltado para o militarismo, assim como um aumento na morte de inocentes2. [...] o processo de estruturação da política de segurança pública exige rupturas, mudanças de paradigmas, sistematização de ações pontuais combinadas a programas consistentes e duradouros fincados, sobretudo, na valorização do ser humano sob todos os aspectos, levando em considerações contextos sociais de cada cidadão. Os avanços na consolidação de uma política de segurança pública do Estado no Brasil, pautada em princípios democráticos, de solidariedade e dignidade do ser humano indicam que os desafios a serem superados tornam indispensável o exercício da cidadania com fulcro nos direitos de igualdade e na justiça social. (CARVALHO, E SILVA, 2011, p. 66) Buscou-se ao final dessa pesquisa contemplar possíveis abordagens assim como apontar os principais entraves ao problema que se enquadre na nossa proposta, ou seja, do Primeiro Comando da Capital (PCC) como um caso de crime organizado transnacional (COT). Destaco, a teoria da securitização, sem a intenção de me aprofundar diretamente na mesma, mas de usar como base seus exemplos de casos na região estudada, a América do Sul para evidenciar suas contradições e dificuldades como uma política palpável para a América Latina, também buscou-se trazer para a discussão as possibilidades oferecidas pela cooperação entre estados, tanto via Organizações Internacionais, como via acordos bilaterais e multilaterais, assim como feito na abordagem a securitização seus principais entraves, trabalhando os contextos específicos da região e do Brasil. 1 GELAPE, Lucas, MORENO, Ana Carolina, CAESAR, Gabriela. Número de policiais e militares no Legislativo é quatro vezes maior do que o de 2014. G1, 08 de out. De 2018. Disponível em: . Acesso em:22 de set. de 2020. 2 ARCOVERDE, Léo. Mortes cometidas pela polícia entre janeiro e abril de 2020 crescem 31% em SP. G1, 01 de jun. de 2020 Disponível em: . Acesso em: 22 de set de 2020 https://g1.globo.com/politica/eleicoes/2018/eleicao-em-numeros/noticia/2018/10/08/numero-de-policiais-e-militares-no-legislativo-e-quatro-vezes-maior-do-que-o-de-2014.ghtml https://g1.globo.com/politica/eleicoes/2018/eleicao-em-numeros/noticia/2018/10/08/numero-de-policiais-e-militares-no-legislativo-e-quatro-vezes-maior-do-que-o-de-2014.ghtml https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/06/01/mortes-cometidas-pela-policia-entre-janeiro-e-abril-de-2020-crescem-31percent-em-sp.ghtml https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/06/01/mortes-cometidas-pela-policia-entre-janeiro-e-abril-de-2020-crescem-31percent-em-sp.ghtml 13 2 FORMAÇÃO E CONSOLIDAÇÃO DO PRIMEIRO COMANDO DA CAPITAL (PCC). 2.1 A fundação. Se pensarmos no desenvolvimento do crime organizado no mundo, a imagem mais comum que se tem, é a ele como um fator externo, ou marginal do sistema, de modo que para realizar atividades ilícitas busca uma forma de se ocultar da lei. O mais comum de pensarmos são os exemplos hollywoodianos, das máfias de imigrantes italianos com esquemas mirabolantes de burlar a lei, contrabandear bebidas e financiar cassinos. No entanto, o caso brasileiro é estritamente particular, pois o mesmo surge de dentro das penitenciárias. Inicialmente, com o contato de presos políticos e presos comuns, até se desenvolver em uma complexa teia de contatos e siglas (facções). Deste modo, o que difere o nosso crime organizado do comum uma vez que não surge de forma marginal ao sistema, mas a grosso modo, de dentro dele. Aqueles que estão no crime organizado brasileiro, não têm medo de serem presos, pois é na cadeia que eles tiveram contato com o crime organizado, e é no crime organizado - como será explicado nos próximos parágrafos - que veem uma forma de terem alguma proteção contra a violência do sistema prisional. Não se trata de uma minoria buscando ascensão dentro de um lugar estranho (como ítalo-americanos imigrantes nos EUA), mas sim de uma minoria sofrendo com a violência de um sistema – no caso, o prisional brasileiro – e tentando garantir a sua sobrevivência. Há a discussão na literatura sobre quando seria o surgimento do crime organizado no Brasil, onde uns acusam que seria com o lendário esquadrão de lampião no cangaço, ou com a difusão do jogo do bicho3 (CAMPOS, Lidiany Mendes; SANTOS, Nivaldo dos, 2004), no entanto, embora se tratasse de um grupo de pessoas voltada com o mesmo objetivo entende-se que o crime organizado no brasil apenas se consolidou de fato tempos depois, pois a definição de um grupo como organizado exigirá do grupo outras atribuições, que serão mostradas no desenvolver desse texto. A versão mais aceita e difundida, embora também não absoluta, remete ao Instituto Penal Cândido Mendes (IPCM) em Ilha Grande, Rio de Janeiro, presídio conhecido como o 3 Por si só, não teria sentido colocá-lo como uma forma do crime organizado, uma vez que seriam infrações separadas que caracterizariam seus agentes. No entanto, hoje é uma das formas de lavagem de dinheiro do crime organizado, mesmo sendo ilegal. 14 “lugar onde o filho chora e a mãe não vê” fazendo referência ao abandono frequente dos parentes com os presos do local (DA COSTA, 2004). O presídio foi bastante ativo durante a ditadura militar e acredita-se que tenha sido de lá a origem de uma das primeiras facções organizadas do país, organização criada pelo contato dos presos políticos com os criminosos comuns. No entanto, nem sempre foi assim, segundo Da Costa, 2004 apenas a partir do decreto do Ato Institucional nº 5 (o AI 5) que o presídio começaria a levantar atenção, o presídio de segurança que até então mantinha em reclusão 51 pessoas, expande esse número para 109. Importante ressaltar que embora o AI-5 fosse amplamente uma forma de perseguição política, muitos dos presos não necessariamente possuíam essas características, mesmo enquadrados como tal, um exemplo disso é o de Castor de Andrade, polêmico na mídia brasileiro, um notório bicheiro do Rio de Janeiro. Até esse momento, os presos políticos eram mantidos afastados da massa carcerária. O ponto de mudança da dinâmica do presídio, que permitiu a narrativa perpetuada na mídia da suposta amizade entre os revolucionários e os presos se dá por conta do Decreto-Lei nº 898 de 1969, que modifica artigos da Lei de Segurança Nacional (LSN) enquadrando qualquer pessoa que cometesse os crimes de assalto, sequestro e roubo receberia pena sem distinção de motivação política. Deste modo os presos do “fundão” (Galeria B) não eram mais separados, permitindo então a convivência de presos comuns e políticos, sendo daí a formação da Falange Vermelha, colocado como um dos grupos fundadores do crime organizado no Brasil, o grupo serviu de base para a formação, do hoje, conhecido Comando Vermelho (Da Costa, 2004, p. 4-6). Segundo, Da Costa os presos políticos buscaram tentar melhorar a condição do presídio, criando um fundo coletivo e um colegiado além de uma farmácia e uma biblioteca, desde já com bandeiras de libertação e justiça. Aqui cabe a ressalva de que apesar de ser uma melhoria coletiva, ela também tinha como intenção fortalecer os presos colocados como políticos. Pode-se afirmar que o contato de fato ocorreu, no entanto, nem mesmo os comandantes da Falange Vermelha no período tiveram contato direto com os presos políticos, sendo então o contato mais casual. Ainda segundo Da Costa (2004) o contato que houve não teria dado necessariamente informações táticas, mas sim conselho que embasaram a luta por direitos humanos nos presídios brasileiros, aqui ainda afirma que as ações mais complexas do grupo, como assaltos à banco, não necessariamente derivam desse contato, uma vez a grande cobertura da mídia, com explicações minuciosas sobre as ações poderiam dar mais informações úteis que essa possível relação. Evidentemente que não se pode colocar a fundação do crime organizado como uma casualidade no inesperado encontro em Ilha Grande, deve-se pensar que o sistema 15 prisional está atrelado a estrutura da segurança pública nacional, essa que tradicionalmente se baseia em preceitos da imagem de um estado forte que seja capaz de se defender de inimigos internos. Ao mesmo tempo, é inegável o contato e troca de informações dos presos políticos para a capacidade tática da falange vermelha. Uma prova disso é a criação no pós segunda guerra (1949) da Escola Superior de Guerra após visita em 1948 do general Salvador César Obino, ao National War College, Estados Unidos, tutelado pelo Estado Maior das Forças Armadas, a escola servirá como base para a formação de membros importantes dos governos da ditadura militar, como Juarez Távora, ministro de Viação e Obras Públicas do governo Castelo Branco; Aurélio de Lira Tavares, membro da Junta Militar que governou o Brasil em 1969; e Osvaldo Cordeiro de Farias, ex-governador do estado do Rio Grande do Sul, atuando também como Ministro do Interior também no governo Castelo Branco. Como posto em, Coimbra (2000) apud a Arquidiocese de São Paulo (1985) [...] opondo desta vez a União Soviética e os aliados ocidentais (...). Terminada a guerra, toda essa geração de oficiais, em fluxo maciço, passou a freqüentar cursos militares americanos (...). Quando começam a retornar ao Brasil já estavam profundamente influenciados por uma nova concepção a respeito de como entender a Defesa Nacional. Nas escolas americanas tinham aprendido que não se tratava mais de fortalecer o Poder Nacional contra eventuais ataques externos, e sim contra um "inimigo interno", que procurava solapar as instituições (Arquidiocese de São Paulo, 1985a, p. 53-54 citado em Coimbra, 2008, p. 8-9). Como supracitado, a escola superior de guerra era jurisdição das forças armadas, assim sendo deveria ser dirigida por oficiais das três forças armadas, de forma alternada. No entanto, após o golpe de 1964 apenas comandantes do exército assumiram a escola, demonstrando o poder desse braço no desenvolvimento das políticas de segurança do país, sendo o rodízio retomado, apenas em 1978. Seguindo da nova política da ditadura militar, o ponto de partida da Doutrina de Segurança Nacional foi uma revisão do conceito de defesa nacional, anteriormente se justificando como proteção de fronteiras contra eventuais ataques externos, ao final dos anos 50, transforma-se em uma nova doutrina: caracterizada pela luta contra um inimigo específico, os inimigos internos responsáveis por agitação, evidente que a política se adequa a polarização da guerra fria, assim como se alinhava ao imperialismo yankee na busca de exterminar ameaças comunistas em seu continente. (COIMBRA, 2000). Ainda sobre a DSN, entende-se que essa era tratada por uma relação entre segurança e bem-estar social, onde se era colocado - desproporcionalmente - que se a segurança estava ameaçada fazia sentido o abrir mão do bem-estar social, ou seja a privação da liberdade e de direitos humanos, evidente que https://pt.wikipedia.org/wiki/National_War_College https://pt.wikipedia.org/wiki/Estados_Unidos 16 os efeitos dessas políticas foram desastrosos, culminando em prisões arbitrárias e a criação do DOI - CODI responsável por episódios vergonhoso da história do país. Para entendermos melhor o sistema prisional brasileiro, crime organizado e como foram tratadas essas questões, podemos analisar a sua história. Aqui temos como ponto chave a doutrina de segurança nacional, como já colocado, essa fazia parte de um contexto do mundo polarizado e de aproximação com o bloco capitalista da guerra fria. Assim, se justificava a luta pelo inimigo interno, um inimigo como nocivo à nação e imposição de restrições a liberdades individuais sendo a sua legislação a expressão concreta - além das consequências - dessa doutrina. Transformada em preceito constitucional pela Emenda n° 1169, modifica o direito público brasileiro, neutralizando os poderes que seriam encarregados ao legislativo, dando autonomia ao executivo para controlar as instâncias políticas e jurídicas. Sendo a primeira lei de segurança nacional instaurada em 1967 defendendo que os antagonismos agora seriam combatidos como crimes contra a segurança do país. (COIMBRA, 2000). O decreto-lei nº 314 de 1967 se debruçar em diversos artigos voltados para evitar a influência soviética, com artigos vagos que abriam grande margem para interpretação, como pode ser visto nos artigos 5º, 6º e 7º presentes ao capítulo II (dos crimes e das penas) do decreto-lei: Art. 5º Tentar, com ou sem auxílio estrangeiro, submeter o território nacional, ou parte dêle, ao domínio ou soberania de outro país, ou suprimir ou pôr em perigo a independência do Brasil: Pena - reclusão, de 5 a 20 anos. Art. 6º Entrar em entendimento ou negociação com govêrno estrangeiro ou seus agentes, a fim de provocar guerra ou atos de hostilidade contra o Brasil: Pena - reclusão, de 5 a 15 anos. Art. 7º Praticar atos de hostilidade contra potência estrangeira, capazes de provocar, por parte desta, guerra ou represálias contra o Brasil; Pena - reclusão, de 3 a 10 anos. (Brasil, Decreto-lei Nº 314 de 13 de março de 1967) Em linhas gerais, infere-se que o período da ditadura militar serviu como base para emparelhar aspectos da segurança nacional, que embora tenha sido feita a constituição de 1988 a mudança lenta e gradual deixou muitas sequelas. Na década de 90, muitos aspectos de todo esse "entulho" autoritário têm sido criticados e até mesmo superados, com relação aos aparatos de repressão, aos organismos de informação, à legislação repressiva e à justiça militar. Entretanto, alguns permanecem sendo utilizados, sob novas maquiagens, porém utilizando as mesmas estratégias. (Coimbra, 2000, p. 16.) A herança da doutrina ainda é viva dentro das formas de repressão do estado, a retórica do inimigo interno, do inimigo comum foi transferida, o que fora os comunistas do século passado servem a nova lógica para as populações marginalizadas e estereotipadas em um perfil 17 considerado ofensivo e contraventor pelo governo, grupos que ao ameaçarem a ordem nacional devem ser eliminados, ou hoje, aprisionados. Outra herança evidente da ditadura militar, são as polícias militares, não só na sua forma violenta de ação, mas também na impunidade que seus crimes possuem. Aqui se relaciona com a justiça militar, onde as instâncias de julgamento possuem relação direta com a instância que cometeu o crime. Ademais, a militarização da polícia construiu uma imagem de que o combate ao crime necessariamente demanda um deslocamento militarizado e violento. Apesar das tentativas de avanços nesse quesito, como o projeto de Lei de Hélio Bicudo em 1995, e com recomendações de órgãos internacionais (COIMBRA, 2000) pouco mudou desde então e mesmo com os avanços da constituição de 1988, a escolha de manter as policias militares estaduais como um braço do exército foi uma forma de manter o controle dos militares ainda depois da redemocratização. Como coloca Da Costa, 2000 em menção a Folha de S. Paulo, 2000, A5: A deterioração das PM’s foi o maior legado da ‘política de segurança’ da ditadura, que lhes alterou os critérios de seleção, formação e a finalidade, para fazê-las ‘forças auxiliares das Forças Armadas’ na repressão política e social. Nada foi feito desde o fim do regime militar, para reparar o legado. Por fim, conclui-se que as leis de segurança nacional foram determinantes para o surgimento do crime organizado no Brasil, de modo que seu caráter altamente repressivo e persecutório, proporcionou o encarceramento em massa e a indignação da população carcerária. Embasada na militarização urbana da polícia e de combate aos inimigos da segurança, a polícia se desenvolve atrelada ao modus operandi da ditadura militar, chegando até um ápice da violência da massa carcerária que decide reagir ao descaso, característica verificada na formação dos principais grupos organizados, em destaque a Falange Vermelha (futuramente Comando Vermelho) e Primeiro Comando da Capital (PCC), pioneiros na luta contra a repressão. Infere-se que a origem do crime organizado se dá pela tese de fundação através das cadeias brasileiras e a negligência das autoridades com o sistema prisional, com o grupo de presos políticos Falange Vermelha, conhecido por usar o lema popularizado pelo PCC, Paz Justiça e Liberdade. O grupo, formado por influência de presos revolucionários da ditadura militar, difundiu suas ideias de justiça para presos comuns em Ilha Grande, dando base para o que se tornaria a primeira facção do crime organizado brasileiro, o Comando Vermelho (CV). O contato entre os revolucionários e os outros presos foi unificado pela mesma realidade que enfrentam, constantes maus tratos e descaso com os direitos humanos básicos, rotina nas cadeias brasileiras. 18 No Rio de Janeiro, os criminosos começaram a se organizar em função do potencial de lucros oferecido pelo mercado ilegal de drogas. Em 1979, a Falange Vermelha (que daria origem ao Comando Vermelho) já havia inovado ao se organizar dentro do Presídio de Ilha Grande em defesa do direito dos presos, sob o lema “Paz, Justiça e Liberdade”, anos depois copiado pelo PCC. (DIAS E MANSO, 2018, p. 82) Entende-se que a hipótese do crime organizado como consequência direta da má gestão e negligência do sistema prisional é a que mais se sustenta diante a documentação histórica e os reflexos atuais, como será mostrado ao longo do trabalho, convém então nos atrelarmos com essa hipótese, para que possamos entender o caso do PCC. As cadeias brasileiras carregam um histórico de violência em sua estrutura, onde podemos destacar o período militar, que causou grande impacto na segurança pública, mesmo após seu término. Além das políticas diretamente relacionadas ao sistema carcerário, forjou-se a mentalidade violenta e repressiva da polícia militar que se manifesta até os dias de hoje. Embora em 1985, com a redemocratização houvesse uma certa esperança no que perdura as políticas sociais, pouco se viu em relação a população carcerária. Por largo tempo persistiram: prisões para averiguações sem ordem judicial; assombrosa atividade clandestina das organizações paramilitares; elevada impunidade nas graves violações de direitos humanos, mesmo naquelas de responsabilidade direta do estado, tal como torturas como métodos usuais de investigação nas delegacias e distritos policiais; arbítrio na aplicação das normas regimentais, nisso incluído o uso de celas fortes como instrumento de contenção e repressão da massa carcerária e maus-tratos impingidos cotidianamente aos presos. (ADORNO E SALLA, 2007, p. 18) É possível identificar que há então desde antes um histórico de agressões e desrespeito de direitos fundamentais para com a população carcerária, que fora aprofundada com a eminente superlotação somada das políticas de encarceramento do século XX, atitude que iria resultar em rebeliões e massacres. Desde meados do século passado, as políticas penitenciárias seguem as mesmas diretrizes, pouco se renovando: são concebidas como respostas às emergências provocadas pelo crescimento dos crimes, por rebeliões e fugas, pelas duras condições do encarceramento, pela instabilidade das instituições prisionais sempre a reboque de mudanças inesperadas em suas direções, o que gera inquietações na massa carcerária, fonte frequente de levantes e motins. (ADORNO E SALLA, 2007, p. 18) Os primeiros sinais de mudança, ainda que de forma lenta, foram com os governos de Leonel Brizola e Franco Montoro, com uma “maior transparência na administração dos presídios, ao controle da corrupção e da arbitrariedade de agentes públicos na aplicação dos regulamentos e regimentos” (ADORNO E SALLA, 2007, p.19). A construção do sistema de opressão das penitenciárias irá se relacionar diretamente com os presos do PCC, que sentiram na pele a força do sistema. Quando se fala sobre a 19 formação do PCC, temos de voltar para a Casa de Custódia de Taubaté em 1993, a data não é por acaso, os anos 90 se consolidam como um período de encarceramento em massa, com a criação de unidades especiais e ainda os Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), que dá margem para punições mais severas aos presos. Além da superlotação o período fica marcado pelas ações de tortura e maus-tratos (ADORNO E SALLA, 2007). Embora os casos de violência chegarem já serem denunciados pelas famílias dos presos, não havia praticamente nenhuma visibilidade nesse período, a situação só viria à tona com o massacre do Carandiru (1992), evento que mudaria completamente o rumo do crime organizado no Brasil e do sistema prisional brasileiro. O massacre no maior presídio da América Latina teve péssima repercussão internacional. Mas, em São Paulo, imediatamente após os primeiros informes, os telefones das principais emissoras de rádio não paravam de tocar. Muita gente queria saudar as atitudes dos PMs. Alguns lamentavam que o número de mortos não fosse maior. Outros defendiam até a implosão do presídio com os detentos restantes dentro das celas. (JOZINO, 2017, p. 18) O massacre do Carandiru serviu como uma grande oportunidade para a mídia, que para além de entender as reivindicações dos rebelados e da truculência policial se escondeu na opinião púbica contra a morte de 111 presos indefesos, onde 89 ainda aguardavam julgamento. Embora para a maioria tenha sido visto como um caso isolado, dentro das cadeias, o ato brutal seria o estopim para uma necessidade de organização, o que desembocará na fundação do Primeiro Comando da Capital. Para além das causalidades históricos da formação do PCC, podemos afirmar alguns pontos que indicariam motivos para a consolidação do grupo, o colocando além de um mero fenômeno passageiro, segundo Adorno e Salla: É certo que violência física e autoproteção constituem dimensões importantes como recurso de opressão das lideranças sobre a massa de presos destituídos de poder próprio ou capacidade de se contrapor à organização. todavia, esses elementos não operam per si. Combinam-se com um terceiro, a forte resignação dos presos em aceitar essa forma tosca e primitiva de dominação pessoal. (ADORNO E SALLA, 2007, p.17). Destaca-se que o aceite dessa forma provinha pelo próprio prestígio que os criminosos continham dentro do mundo do crime, criando uma retórica de lealdade, primeiramente observado no caso da Falange Vermelha – futuro comando vermelho - (ADORNO E SALLA, 2007) embasado pelos ideais revolucionários o discurso foi apropriado e reforçado pelos PCC com a ideia de que todos os presos eram irmãos, de que o “crime fortalece o crime”, um sentimento de união e pertencimento importante para aqueles perdidos e abandonados do sistema. Pode-se colocar que com os paulistas a lealdade fora até mais acentuada, com seu rápido crescimento nas cadeias do Estado de São Paulo, cria dentro da massa carcerária um 20 sentimento de pertencimento, com formas de ação, conduta e simbolismos. A criação é descrita em uma carta de um dos fundadores, José Márcio Felício, vulgo Geleião, ao veículo de mídia UOL. Na mesma, ele discorre com detalhes as motivações e condições da formação do grupo, descrita por um acerto de contas entre duas galerias da casa de custódia de Taubaté, durante um campeonato de futebol no presídio. Segundo Geleião: Assim que entraram no pátio, ficamos em posição e começou a matança com os companheiros na ativa. Com um soco estourei a cabeça do Garcia. Os demais colocaram linhas no pescoço do Severo e o enforcaram no meio do pátio. Assim aconteciam as primeiras mortes em Taubaté. Tudo está registrado na delegacia e no processo, no qual recebemos a condenação a 32 anos de prisão. (COSTA E ADORNO, 2019) 4. Geleião relata, que depois das execuções chamou todos os membros na quadra e declarou ali a fundação do Primeiro Comando da Capital. Após a violenta criação oficial do grupo, os irmãos se prontificaram em reforçar o sentimento de união entre aqueles que aceitaram ser parte do PCC. Para isso, o simbolismo era fundamental responsabilidade passada para “... Mizael quem redigiu e escreveu a caneta o estatuto com 16 artigos do partido crime. Ele também idealizou o emblema da facção, influenciado pelos livros de filosofia oriental e meditação emprestados por Débora.” (JOZINO, 2017, p.24) O contato de Mizael com a filosofia oriental, se deu por conta de Débora que acolheu o preso em um momento em que se encontrava perto de perder a sanidade, abandonado pelos seus parentes e atormentado pelas torturas (JOZINO, 2017). Além do símbolo oriental, o grupo também era identificável pelos números 15.3.3, sequência numérica que logo estamparia os pátios das prisões paulistas, cada um dos números faz referência a posição das letras da sigla no alfabeto. Colocada sua formação em 1993, tem sua expansão dentro do sistema carcerário já em 1994, com o discurso de mudança no sistema carcerário, o grupo se espalhou como fogo. Os membros realizavam batismos de novos membros por todo interior paulista, situação que foi reforçada pelas diversas transferências que as administrações dos presídios faziam, cada vez que um membro autorizado a batizar irmãos ia para uma cadeia nova, o poder do PCC crescia. (JOZINO, 2017), no entanto, por muito tempo é negada a presença do grupo. Percebia- se que havia uma mudança estrutural dentro da organização das rebeliões, no entanto as 4 COSTA, Flávio e ADORNO, Luís. Como eu fundei o PCC. UOL, São Paulo, 8 de novembro de 2019. Disponível em: . Acesso em: 20 de jun. de 2020 21 autoridades ainda não admitiam a existência no grupo, essas só foram manifestar-se após os eventos de 2001, quando o grupo já tinha uma estrutura consolidada. Os eventos de 2001 podem ser considerados um marco no crime organizado brasileiro, na ocasião, 29 presídios em 19 cidades diferentes realizaram rebeliões encabeçadas pelo PCC, um dos indicativos de que as rebeliões estavam ligadas a organização é que não se reivindicava apenas os direitos já tanto pedidos pelos presos, mas agora se manifestava em forma de protesto contra a transferência de alguns líderes do grupo. Além de se amotinarem no Carandiru, tanto na Detenção como na Penitenciária do Estado, os presos se rebelaram nas penitenciárias de Presidente Venceslau; Campinas; Avaré I e II; Sorocaba; Hortolândia I e III; Mirandópolis; Iperó; Itaí; Iaras; Itapetininga; Assis; Presidente Bernardes; Pirajuí; Centro de Detenção Provisória (CDP) do Belém; São Vicente; Tremembé I; Guarulhos II; Araraquara; Itirapina; e Ribeirão Preto. (JOZINO, 2017, p.61) 2.2 Consolidação e reconhecimento. A megarrebelião fez com que o governo fosse obrigado a admitir a existência do grupo, assim como colocou ele na mídia (DIAS, 2009). O evento ganhou proporções internacionais, sendo mencionado em diversos veículos internacionais como Le Monde (França), El País (Espanha), BBC (Inglaterra), Correio da Manhã (Portugal), La Stampa (Itália), além dos mundialmente conhecidos The New York Times e o Washington Post. Ainda em 2001, o PCC voltaria a mídia, ao realizar o sequestro da filha de Ismael Pedrosa, diretor da casa de detenção de Taubaté (Piranhão) e da ex-diretor do Carandiru, o evento teve um desfecho bem menos trágico do que poderia ter sido, com a polícia descobrindo o plano do grupo e frustrando-o. Ismael Pedrosa, conhecido pela crueldade entre os presos, ainda não foi esquecido, sendo executado em 2005. Outro marco na história do PCC que cabe a nosso objetivo, foram os eventos de maio de 2006. Se em 2001 o poder do grupo impressionou a mídia, anos depois ficaria provado que o grupo apenas se consolidou, na ocasião mais recente foram mobilizadas setenta e quatro (74) unidades prisionais simultaneamente, em conjunto com ataques a forças de segurança. Indica-se que as motivações são várias, divergências somadas com o tempo, rompimentos de acordos com agentes da lei, mas que teve seu estopim com a ameaça de transferência de presos (ADORNO E SALLA, 2007). A evolução das rebeliões serve como uma forma de avaliarmos o crescimento e consolidação do grupo, no entanto é importante nos atentarmos também a organização interna, ou seja, as lideranças que permitiram essa organização. 22 O grupo teve sua fundação com amigos próximos e respeitados no crime, os mais famosos, Sombra, Geleião e Marcola (ou Playboy), todos presos são peças fundamentais para a formação do alto escalão do grupo. Sombra era tido como um dos mais queridos da organização, prestigiado como ladrão de bancos, considerado inteligente, foi o principal agente na coordenação das rebeliões de 2001, acredita-se que sua influência era tanta que causaria certa perturbação entre os outros líderes, o que ocasionaria na sua morte, ainda em 2001, até hoje pouco esclarecida. A suspeita que a ordem do assassinato havia partido de Geleião e que o advogado dele repassou para a cadeia foi aceita. Com a morte de Sombra, surgiram boatos e informações desencontradas, que influenciaram na morte de Mizael, um dos fundadores, morto com o título de traidor. Geleião assumiu certo protagonismo com a remodelação da organização, no entanto, ela estava rachada e teria novamente uma mudança estrutural em 2002 (JOZINO, 2017), quando Ana Olivatto, mulher de Marcola foi assassinada, hipóteses diversas surgiram: A polícia civil trabalhava com três hipóteses: uma delas era a de que Ana tinha sido assassinada a mando da própria Natália [esposa de Cesinha]. Ana teria descoberto que a amiga tinha um amante policial e (hipótese ainda mais improvável), viajando a Presidente Bernardes, pretendia delatar Natália a Cesinha. (JOZINO, 2017, p.170-1) Essa hipótese foi negada e logo descartada pelo DEIC (Departamento Estadual de Investigações Criminais). A outra versão da polícia sugeria que Geleião tivesse sido o mandante do crime. Pois, ao convencer sua mulher Marília a entregar o carro-bomba que realizaria o atentado ao prédio da Bovespa, Ana teria contrariado os planos do Partido do Crime. (JOZINO, 2017, p. 171) A versão mais aceita foi a segunda, pois havia indícios de que Ana estaria conversando com a polícia. A terceira hipótese da Policia Civil e do Deic dizia que Ana fora executada a mando de seu próprio ex-marido. Playboy estaria irritado com a ex-mulher porque ela estaria se engraçando com Cesinha, que, ainda segundo a polícia, também teve a morte decretada a partir de então. (JOZINO, 2017, p. 171) A terceira hipótese também logo foi descartada. As investigações levavam a acreditar que Geleião possuía envolvimento crucial na morte e seria também a versão que Marcola assumiria para sua retaliação. Com o grupo rachado membros ligados a Playboy (Marcola) em assassinaram uma amiga de Natália, esposa de Cesinha (Lenita), sua irmã de criação (Carolina) e seu irmão (Ceará), a escolha dos alvos foram de acordo com a descoberta de que Ceará, cunhado de Cesinha seria quem havia efetuado os disparos. Condenado dentro do grupo, trai o PCC pra proteger a esposa, delatando para a polícia os mais diversos projetos do grupo e assim 23 dividiu de forma incisiva o comando, Marcola ainda traz a público uma condenação por estupro de Geleião, até então desconhecida pelo público, crime repudiado veementemente pelos presos, afunda mais ainda a reputação do ex-companheiro. Geleião segue preso, isolado do poder do PCC. O Comando agora era organizado por Marcola, apesar da estrutura vertical do grupo, ele agora tinha uma liderança clara (JOZINO, 2017). Em linhas gerais, entende-se que a consolidação do PCC parte da retórica de proteção aos presos, mas com o tempo se desenvolve como um braço contra a repressão policial na periferia, sendo um fator até de identidade para aqueles moradores. É importante destacar que inicialmente, o que se via era uma necessidade, e deste modo, o grupo se sustentava através de um financiamento próprio - recolhendo uma espécie de mensalidade dos irmãos, assaltos a banco, jogos do bicho e roubos de carga, de modo que foi gradualmente se especializando no tráfico de entorpecentes. A taxa cobrada não era entendida como uma extorsão, era colocada como parte do discurso que o “crime fortalece o crime”, os irmãos estavam no PCC por vontade própria, e a mensalidade paga garantia a eles respeito, auxílio jurídico e segurança nas cadeias (JOZINO, 2017). Parte do dinheiro o PCC usava como uma espécie de fundo de solidariedade. Eram comprados mantimentos para as famílias carentes de detentos, ou eram adquiridos alimentos, remédios e cobertores para os próprios presos. [...] A organização também depositava, nas contas bancárias de alguns de seus próprios advogados, o dinheiro proveniente de ações criminosas. Pois, para contribuir com o caixa do Partido do Crime, os irmãos em liberdade realizavam assaltos cinematográficos a bancos, caixas-fortes, empresas transportadoras de valores, joalherias e condomínios de luxo. (JOZINO, 2017, p. 43). Um dos assaltos mais notórios foi o assalto ao banco Banespa, em 1999, que levou dos cofres do banco 39 mi. Afora os valores exorbitantes, os assaltos a banco preencheram o imaginário paulista, sempre bem noticiados, com fugas espetaculares e muita violência. A caminhada para o tráfico de entorpecentes, acompanha – será melhor tratado no próximo tópico - a tendência do mundo globalizado, cada vez mais o consumo de drogas era normalizado, e facilitado ao mesmo passo que a tecnologia aumentava a segurança das agências bancárias. 24 3 O CRIME ORGANIZADO NO BRASIL A definição de crime organizado transnacional (COT) é intrínseca à discussão de crime organizado5 (CO), deste modo, para entrarmos na primeira definição destaco a necessidade de entendermos um pouco do que é o crime organizado, para isso é importante que nos atentemos a jurisdição que há no Brasil. Inicialmente, devemos pontuar o que difere o crime comum do organizado, o que coloca uma atividade criminal como organizada é essencialmente seu caráter de repetição, ou seja, o fato de não ocorrer de forma isolada. O crime é organizado quando suas atividades criminosas são planejadas com um fim lucrativo, podendo ser organizado de diferentes formas, como será demonstrado mais à frente.6 E Segundo CEPIK e Borba (2011) o crime organizado deve ser entendido como parte do sistema e não um fator exógeno pois: A relação das organizações criminosas com o mundo lícito, portanto, não seria de tipo predatória e sim parasitária, ou seja, o crime organizado não atua no sentido de dominar ou destruir a estrutura social, mas sim de aproveitar-se dela. A existência do parasita está condicionada à sobrevivência do hospedeiro (CEPIK e BORBA, 2011, p.386). Assim, é importante que se faça uma retomada de como se manifesta o crime organizado no Brasil, para ser considerado como tal. Seu primeiro registro pode ser colocado como pelo popular jogo do bicho, embora uma contravenção é um dos primeiros fatos que se têm de uma organização ilegal que visa o lucro no Brasil, assim como o tráfico (no entanto, esse teve sua organização mais tardia), assim como o jogo do bicho. O crime organizado se manifesta em mercados mais rentáveis, como pelo tráfico e pela lavagem de. Segundo Gomes (2008) devemos fazer uma separação entre os crimes como o tráfico e roubo com crimes como o de lavagem de dinheiro, entende-se que ela possui dois níveis, o primeiro “Em um nível a o recurso à violência, intimidação, ameaça, violência difusa e estrutural; temos uma vítima específica e por isso nos referimos a uma criminalidade com sangue (visível).” (GOMES, 2008, p. 16) enquanto, em outro nível “temos a criminalidade do colarinho branco (white collar 5 Durante este trabalho entende-se a amplitude de atividades ilegais contempladas pelo conceito de crime organizado, trazendo assim uma definição geral que também embasa o a atividade específica abordada o tráfico de drogas. 6Neste parágrafo, atentou-se mais a definição da literatura, sendo o seu histórico, sua tipificação no campo jurídico brasileiro é abordada quando tratarei as organizações internacionais. 25 crime) que é a criminalidade sem vítima, sem sangue, mas pela qual todos pagam, com grande alcance e dano social, sempre com o objetivo da vantagem financeira (material direta ou indireta” (GOMES, 2008, p. 16). Entende-se que há uma tendência a se preocupar mais com os crimes de colarinho branco, pelo menos em discurso, uma vez que esse é colocado como aqueles pelo qual todos supostamente pagariam e mesmo que consideramos a principal fonte de lucro do nosso objeto de estudo - PCC -, o tráfico de drogas, esse permeia os dois níveis - por si, pelos crime dito com sangue que o tange e com a lavagem do dinheiro que geral - ainda é notável a considerável diferença nas abordagens de combate a ele, abordaremos melhor isso quando falarmos sobre medidas de combate ao crime organizado, mas destaco os esforços épicos policiais para os crimes com uma vítima específica em descaso com os crimes de colarinho branco, como lavagem de dinheiro, no qual o país é líder mundial7. Ainda sobre, segundo Cepik e Borba (2011), o papel desempenhado pelo crime organizado estaria no campo dos crimes economicamente motivados, embora reconheçam que existam atos nos crimes de danos diretos, a justificativa da conceituação se dá pelo fato de que crimes que causam danos direto, como os contra o patrimônio geram muito mais atenção e consequentemente mobilização da força estatal, no entanto, isso não significa que não haja casos de crimes de danos direitos em organizações criminosas, muito pelo contrário, dentro da história do PCC são observáveis inúmeros momentos em que esse tipo de crime serviu como financiador ou catalisador para a força do grupo, garantindo a manutenção de sua estrutura organizacional. Uma organização envolvida no comércio ilegal de armas ou no narcotráfico pode operar por décadas. Como veremos, a permanência e a regularidade são elementos básicos de uma organização criminosa e, para lográ-los, é fundamental evitar a investigação e a perseguição dos Estados. (CEPIK e BORBA, 2011, p. 377) Colocado os níveis que pode se manifestar o crime organizado, devemos buscar então a sua conceituação, para tal, destaco que um fator que se pode colocar como inerente a sua definição, a corrupção. Segundo Mingardi (1998), a corrupção é um crime que exige aval da sociedade, pois “a ética da corrupção se baseia, portanto, não só na vontade do corruptor, como 7 CUNHA, Lucas. Brasil é líder mundial em lavagem de dinheiro. Veja, 2019. Disponível em: . Acesso em 5, dez, 2020. 26 na crença do corrupto de que está praticando um ato moralmente aceitável” (Mingardi, 1998, p. 78). Deste modo, crimes como o jogo do bicho, vista grossa em acidentes do trânsito e lenocínio (facilitação da prostituição) são moralmente mais aceitos, enquanto, crimes como roubo e sequestro não passam por esse aval (Mingardi, 1998). O tráfico, o principal crime do nosso objeto, é moralmente condenado pela sociedade, no entanto tanto ele quanto a corrupção possuem ligação direta com a negligência do estado e fazem com que a rentabilidade compense e tenha esse aceite social, assim a corrupção é inerente ao tráfico, assim como ao crime organizado. A corrupção está institucionalizada na polícia e o tráfico um dos seus principais clientes, que supre os baixos salários e o sucateamento da força policial. A socialização se dá tanto de forma voluntária quanto compulsória, o indivíduo que ingressa na organização policial pode seguir o exemplo dos companheiros e deixar- se corromper, ou estar sempre à margem. Em outras palavras, são usadas as duas principais técnicas de persuasão conhecidas, a cenoura e o chicote.” (Mingardi, 1998, p. 76). A corrupção é um fator essencial para definirmos crime organizado, pois garante sua existência. No entanto, podemos destacar para sua definição as formas como esse se organiza, segundo Mingardi (1998), temos um modelo tradicional “[...]Grupo de pessoas voltadas para atividades ilícitas e clandestinas que possui uma hierarquia própria e capaz de planejamento empresarial, que compreende a divisão do trabalho e o planejamento de lucros.” (Mingardi, 1998, p. 82) Outras características seriam, o uso da violência, fonte de renda em negócios ilícitos protegidos por setores do Estado, relação de clientela e a “lei do silêncio” (Mingardi, 1998, p. 82-3). Diferente do modelo colocado como tradicional temos uma variação do crime organizado, manifestado pelo modelo empresarial, esse é mais vago de ser definido, mas possui elementos importantes para a discussão, ainda em Mingardi (1998), é colocado que sua característica mais marcante é transpor para o crime métodos empresariais ao mesmo tempo que deixam de lado qualquer resquício de conceitos como honra, lealdade, obrigação e etc. A grosso modo, o modelo empresarial está mais focado em se moldar ao lucro do que a sua organização, membros ou estrutura. Ainda segundo Mingardi (2007) pode-se dizer que [...] não é a modalidade do crime que identifica a existência de crime organizado. O que o define são algumas características que o tornam diferente do crime comum. Essas características, para a maioria dos autores, são cinco: 1. Hierarquia. 2. Previsão de lucros. 3. Divisão do trabalho. 4. Planejamento empresarial. 5. Simbiose com o Estado. (Mingardi, 20017, p.56) 27 Mingardi ainda destaca que desses cinco elementos, os quatro primeiros podem ser facilmente identificados na atividade empresarial moderna, sendo apenas adaptadas às organizações criminosas. Infere-se que assim como nas empresas a hierarquia é essencial para a divisão do trabalho, assim como uma previsão de lucros (o mercado de drogas é um mercado de produtos como os outros), a maior diferença estaria na fluidez das organizações criminosas, dá a necessidade de maior adaptabilidade. A previsão de lucros, embora seja um conceito abrangente, pode ser identificada dentro do PCC, no entanto, não possui uma documentação sólida, mas sabe-se que a participação no mercado, material, financiamento demande um planejamento organizado como o empresarial. O consumo de drogas teve aumento em 20208 e embora o governo brasileiro tenha comemorado a apreensão de toneladas de droga esse número, não chega a 40% do recorde já registrado, como bem registrado por Mariana Schreiber, jornalista da BBC9, mais um sintoma de que a suposta guerra às drogas é uma política fracassada que não tem intenção alguma de gerar combate efetivo ao tráfico. Outra característica importante, é a relação do crime organizado com o estado, a quinta colocada por Mingardi é segundo o mesmo, a mais importante, pois é notada em todas as organizações, “um desmanche de carros roubados só consegue operar se tiver respaldo da fiscalização ou da polícia” assim como “um ponto de tráfico, que atende sua clientela anos a fio no mesmo local, tem necessidade constante de algum tipo de proteção”. (MINGARDI, 2007, p. 57). Em suma, pode-se concluir que: O crime organizado tem fatores que são fundamentais, independente do seu local de atuação, assim em casos como de grupos ligados a roubos, sequestros, tráfico, ou mesmo jogo do bicho. Destacam-se, um número plural de pessoas, uma relação hierárquica entre elas, ao menos uma atividade ilícita e organização material voltada para o lucro e claro, relação direta - aval - do Estado. Assim, o PCC, que embora tenha sido negado por muito tempo como um caso de crime organizado no Brasil, tendo seu reconhecimento apenas com a visibilidade conquistada - pela violência - na mídia sensacionalista brasileira. Sendo hoje inegável sua relação com esses fatores, ademais, como 8 UNODC. Relatório Mundial sobre Drogas 2020: consumo global de drogas aumenta, enquanto COVID-19 impacta mercados, aponta relatório. 25 de junho de 2020. Disponível em: . Acesso em: 19 de set de 2020. 9 SCHREIBER, Mariana. Por que a apreensão de drogas é recorde em 2020 — e o que isso significa. BBC News Brasil, Brasília, 22 de dez de 2020. Disponível em: . Acesso em: 20 de set 2020. 28 pretende mostrar esse trabalho, hoje ele logra o status de uma organização transnacional, uma das mais complexas. Hoje o PCC se tornou uma referência no tráfico de drogas e de armas, capaz de mobilizar força material e capital para financiar guerras contra o Estado e contra facções rivais nacionais e fronteiriças. Além das características que compõem o crime organizado, podemos identificar segundo Mingardi (2007) que ele se manifesta em diferentes modalidades: a tradicional, a empresarial, e a endógena, sendo - respectivamente - a tradicional marcado por uma relação de “apadrinhamento” entre os membros, que geralmente possuem algum laço, seja condicional (como a prisão) ou étnico; a empresarial - como o nome sugere - usam princípios empresariais, de administração e geralmente se especializam em determinados tipos de crime, comumente crimes indiretos, contra o governo (white collar) e por fim, temos as organizações criminosas endógenas, no sentido de que são formadas de dentro das instituições, geralmente caracterizadas por crimes de fraudes, atuando em empresas e dentro de instituições estatais (Mingardi, 2007). É evidente que se pode pensar precipitadamente que o PCC se enquadre na modalidade tradicional, o que não é mentira, dado os laços fraternos da sua fundação e a condição de seus fundadores, presos. No entanto, não é absurdo dizer que o mesmo apresenta características da modalidade empresarial, pois, como já supracitado, sua existência e atuação exige organização a nível empresarial. 29 4 CRIME ORGANIZADO TRANSNACIONAL.10 4.1 Uma definição geral Como apresentado, o caráter transnacional que o grupo atingiu será nosso objeto de estudo, classificando-o como um caso de crime organizado transnacional (COT), assim devemos ter em mente o que é esse conceito para o presente trabalho. O termo é bastante amplo e abre margem para variadas definições, usarei como base uma definição da literatura sobre o crime organizado transnacional e uma definição técnica, da convenção de Palermo, o uso da definição da convenção não se dá por acaso, a convenção de Palermo pode-se dizer que é o principal documento sobre o COT, trata-se do principal instrumento – em âmbito internacional – de combate a esse tipo de crime, sendo a primeira legislação discutida por diferentes países, através da Organização das Nações Unidas, deste modo irá nortear a nossa discussão. Ao tratar o crime organizado transnacional, destaco a definição de crime organizado da própria convenção, presente em seu artigo 2º, alínea a que coloca como grupo criminoso organizado qualquer grupo estruturado de três ou mais pessoas, que já exista há algum tempo e atuando com a intenção de cometer uma ou mais infrações graves (previstas na convenção), com a intenção de obter direta ou indiretamente, um benefício econômico ou outro benefício material (CONVENÇÃO DE PALERMO, 1998). Deste modo, seguindo a convenção temos a definição de Gomes (2008): I. Associação ilícita de 3 (três) ou mais pessoas; II. Atuação de forma concertada (combinada); III. Preexistente; IV. Cometimento de infrações sérias ou graves (pena máxima de privação de liberdade maior ou igual a quatro anos) ou de infrações controladas especificamente na Convenção (corrupção, lavagem de dinheiro, obstrução da justiça, participação em grupo criminoso organizado); V. Objetivo de vantagem financeira ou material; VI. Potencial ofensivo da organização criminosa; VII. Transnacionalidade. (GOMES, 2008, p. 20) A vasta discussão dentro da literatura sobre a tipificação do que é o crime organizado e por consequente de crime organizado transnacional, é um dos fatores que dificulta o combate e prevenção das organizações criminosas, de modo que cria diversas definições, no entanto, é possível afirmar que ambos conceitos acompanham as transformações sociais e tecnológicas 10 Assim como colocado sobre o conceito de crime organizado a discussão geral de COT serve como embasamento para conceituar a atividade específica analisada, o tráfico de drogas. 30 que incrementam os fluxos internacionais (Cepik e Borba, 2011). Como os mesmos elucidam, sobre a globalização: A questão mais evidente a esse respeito é a dilatação espacial dos mercados, afastando geograficamente o produtor da matéria-prima do consumidor final. Como subproduto, esperam-se mais intermediários na cadeia de valor, bem como mais trânsito fronteiriço (mais países envolvidos no percurso). (Cepik e Borba, 2011, p. 381) Dessa forma, estabeleceremos aqui características comuns a organizações consideradas organizadas, uma vez que nossa intenção é afirmar que - para além da tipificação jurídica - o Primeiro Comando da Capital é um caso de COT. defino, como já citado, as características do crime organizado como: um número plural de pessoas, uma relação hierárquica entre elas, ao menos uma atividade ilícita e organização material voltada para o lucro e claro, relação direta - aval - do Estado, e ao definirmos como transnacional, esse ganha a personalidade de transnacionalidade definida por Gomes (2008) e indicada na convenção. Entende-se a transnacionalidade a capacidade de envolver outros estados nas suas atividades ilícitas. Entende-se que todos os elementos destacados se enquadram com nosso caso, o PCC enquanto a convenção define algumas características para se identificar o crime organizado por aspectos abrangentes como o fato de existir um grupo focado em uma atividade ilegal, uma organização hierárquica de vínculos e cargos, potencial de expansão entre fronteiras entre outros. Destarte, a Convenção contemplou com protocolos a prevenção, repressão e punição do tráfico de pessoas, em especial mulheres e crianças, o combate ao tráfico de migrantes por via terrestre, marítima e aérea e a fabricação e o tráfico ilícito de armas de fogo, suas peças e componentes e munições, além do tráfico de drogas. Assim, usarei então das atividades que se repetem nas conceituações, entende-se como crime organizado no caso do Primeiro Comando da Capital (PCC) todas as características são evidentes: a hierarquia, embora fluída é visível dentro do PCC, a previsão de lucros se manifesta pelo comércio de drogas e armas assim como o controle de territórios, a divisão do trabalho é fator chave na organização do grupo, o planejamento empresarial garante controle de lucros, gastos e investimentos e a simbiose com o Estado no nosso caso, trata da corrupção na polícia civil, militar e carcerária. Assim como são facilmente notáveis as características de organização no grupo, pode-se através da convenção de Palermo evidenciar seu caráter recente, de transnacional. Isso se confirmaria por ser verificada sua presença ativa na Bolívia e – principalmente – Paraguai, além de sua forte 31 relação com o tráfico de drogas para a Europa e para o Continente Africano, onde há também relatos de sua participação ativa11. Assim como a conceituação de crime organizado transnacional está intrinsicamente ligada a crime organizado outro aspecto se relaciona entre esses termos, a definição do que pode ser considerado crime. Embora haja um esforço grande para a tipificação dos termos, isso muitas vezes passa despercebido em relação a realidade, um exemplo disso dentro do crime organizado é o tratamento das milicas. Diferente das facções, as milícias, que poderiam se enquadrar como crime organizado, vagamente recebem o mesmo tratamento, mesmo sendo um dos principais agentes nas periferias de cidades grandes, como o Rio de Janeiro que possui aproximadamente 60% da cidade controlada por esses grupos12. O mesmo pode ser observado com os crimes transacionais, embora haja um amplo campo de discussão sobre a tipificação desses, isso não se repete quando os infratores não obedecem ao perfil “esperado” do criminoso, aqui poderiam se enquadrar crimes como os cometidos por empresas como sonegação, exploração de mão de obra estrangeira a até crimes cometidos por outros estados, como golpes e de guerra. Assim, entende-se que apesar da importância da tipificação e conceituação dos termos, também é necessária a discussão sobre como a justiça faz vista grossa quando as infrações envolvem agentes ou parceiros dos estados. 4.2 O tráfico internacional A inserção do PCC no tráfico internacional, pode ser colocada como recente, mesmo com o grupo ainda sendo jovem, se considerarmos que há um caminho já aberto para que o grupo pudesse assumir de fato as rotas. No caso, esse caminho havia sido percorrido pelo CV, facção mais antiga do país, em especial pelo seu famoso líder, Fernandinho Beira-Mar. É então de suma importância para este trabalho que entendamos como o PCC teve acesso aos mercados internacionais. Antes de tudo temos que entender como se dá o tráfico nacional, esse pode ser 11 GONÇALVES, Eduardo. Os detalhes da operação de prisão na África do barão da cocaína do PCC. VEJA, 20 de abr 2020. Disponível em: . Acesso em: 25 de abr de 2020. 12 REBELLO, Aiuri. Milícias já dominam um quarto dos bairros do Rio de Janeiro, com quase 60% do território da cidade. El País, 19 de out 2020. Disponível em: < https://brasil.elpais.com/brasil/2020-10-19/milicias-ja- dominam-um-quarto-dos-bairros-do-rio-de-janeiro-com-quase-60-do-territorio-da-cidade.html. Acesso em: 25 de abr de 2020. https://brasil.elpais.com/brasil/2020-10-19/milicias-ja-dominam-um-quarto-dos-bairros-do-rio-de-janeiro-com-quase-60-do-territorio-da-cidade.html https://brasil.elpais.com/brasil/2020-10-19/milicias-ja-dominam-um-quarto-dos-bairros-do-rio-de-janeiro-com-quase-60-do-territorio-da-cidade.html 32 colocado com duas estruturas principais, próxima de uma lógica empresarial, são essas estruturas a de atacado e varejo (DIAS E MANSO, 2018). Até o começo dos anos 90, o que se tinha era essencialmente os traficantes brasileiros trabalhando pelo varejo, através das bocas de fumo, uma estrutura bem mais violenta, que exige trabalho na rua, enquanto os organizadores do atacado cuidam do capital e da distribuição. A tarefa dos atacadistas sempre exigiu sangue-frio e jogo de cintura para desenrolar os obstáculos que apareciam no caminho, desde quando a droga deixa os confins de uma fazenda no Paraguai, no caso da maconha, ou na cordilheira dos Andes, no caso da cocaína. É preciso dispor de capital para investir na mercadoria, articulação política para o suborno de autoridades que fiscalizam as rotas, contato com pilotos e planejamento para evitar prejuízos – um conjunto de requisitos que os tornava a classe mais preparada e endinheirada no negócio das drogas. Já os varejistas, alvos fáceis, fixos e descartáveis, precisam lutar pela venda nas ruas, disputando espaço a bala com os rivais e a polícia. (DIAS E MANSO, 2018, p. 27). Como supracitado, pelo seu caráter mais antigo, o CV sempre esteve à frente das primeiras organizações do tráfico, até então através das redes varejistas, um quadro que começaria a mudar apenas recentemente - anos 1990 – de acordo com uma maior dominância da estrutura do tráfico pelos varejistas (DIAS E MANSO, 2018), onde “o primeiro empresário do varejo da droga capaz de aproveitar o potencial dessa rede foi Fernandinho Beira-Mar, associado ao Comando Vermelho do Rio de Janeiro” (DIAS E MANSO, 2018, p, 27). Aproveitando os contatos quentes no crime, Beira-Mar decidiu se aventurar nas fronteiras do Brasil. Sua trajetória acabou pavimentando o caminho para os jovens que viviam se matando nos mercados varejistas. Bastaria um pouco de esforço e bons contatos para que eles pudessem assumir o atacado, uma etapa muito mais rentável e menos arriscada do negócio de drogas. Era o começo da revolução no crime, quando os “linhas de frente”, integrantes da base da pirâmide criminal, passariam a aproveitar as oportunidades para escalar degraus até chegar às cabeças, acessando os canais atacadistas e o mercado de armas do mundo globalizado. (MANSO E DIAS, 2018, p.82) Beira-Mar percebeu que havia uma relevância estratégica com as fronteiras brasileiras, uma vantagem geopolítica para o comercio ilegal de drogas. Assim, no fim dos anos 90 Fernandinho vai ao Paraguai e a Colômbia ampliar sua rede de contatos para se colocar como atacadista, garantido pelas suas ligações no Rio de Janeiro e São Paulo (na época o PCC e CV ainda eram aliados), a cena só mudaria com sua prisão nos anos 2000, onde abriria uma porta para o PCC se aproximar dos centros produtores (DIAS E MANSO, 2018). O acesso de Beira- mar a rede internacional de tráfico, foi garantida pelo seu recebimento quando foragido na fronteira Coronel Sapucaia-Capitán Bado, fronteira brasileira com o Paraguai, lá fora protegido por João Morel, conhecido como Rei da Maconha, Morel organizava o tráfico através de sua família. 33 Havia décadas, a família controlava o contrabando na região e abastecia de maconha e cocaína o mercado brasileiro, especialmente os morros fluminenses. No relatório da CPI do Narcotráfico de 2000, a família Morel foi apontada como a maior distribuidora de maconha na fronteira de Mato Grosso do Sul com o Paraguai. João Morel era, portanto, um típico “narcotraficante” da fronteira (DIAS E MANSO, 2018, p. 84) Apesar de uma boa relação com a família, o que se viu nos anos seguintes, seria um marco para o crime organizado brasileiro e para a geopolítica local, até hoje em uma história não explicada, indica-se que Beira-mar foi mandante da morte de dois filhos de João Morel em 2001, o que desencadearia uma onda de violência na fronteira, até então inédito. Naquele contexto de corrupção policial no Paraguai, com níveis altíssimos de organização e violência, o conflito começou a ganhar um novo desenho. De um lado, um grupo de criminosos vinculados aos narcotraficantes tradicionais da fronteira; de outro, o grupo coordenado e liderado por criminosos provenientes da região Sudeste do Brasil, especialmente do Rio de Janeiro e de São Paulo (DIAS E MANSO, 2018, p. 86). Os conflitos com a família Morel, o encarceramento e isolamento de Beira-Mar fizeram com que o CV não conseguisse manter seus territórios, criando uma disputa por quem assumiria esses postos, no entanto, ao ser transferido para a prisão de Presidente Bernardes no estado de São Paulo, teria contatos com presos do PCC, que souberam aproveitar a oportunidade de negócio. (DIAS E MANSO, 2018). O grupo se preparava para dar um novo passo na sua organização, já estabelecido de forma praticamente hegemônica no seu estado de fundação, agora iria se propor como intermediário para garantir estabilidade no tráfico internacional. A abordagem do grupo, sempre se mostrou bem diplomática no sentido de que o conflito não é a primeira opção, assim o grupo conseguia novos contatos e fortalecer a sua rede parceiros. O PCC tornou-se o grande mediador de conflitos num ambiente antes povoado por pequenos grupos regidos pela lei do mais forte. A pacificação, dessa maneira, agradou ao crime e às autoridades porque reduziu rebeliões e homicídios – apesar da superpopulação carcerária e da falta de vagas no sistema –, ao mesmo tempo que contribuiu para a expansão do faturamento dos criminosos ligados a essa rede (DIAS E MANSO, 2018, p. 91) O grupo sempre considerou uma abordagem amena uma vez que o grupo precisava de aliados, dada a periculosidade das atividades e o que se justificava também em um inimigo comum. Fazia-se mais sentido unirem-se contra a polícia do que gastarem recursos com uma guerra interna. Isso é rompido com seu crescimento na fronteira, sua personalidade expansionista, que sempre foi vista com desconfiança pelas facções de outros estados, vai ser determinante para que um conflito entre as mesmas chegue a um estopim, sendo o esse a suas imposições em regiões fronteiriças, como as que culminarem nas rebeliões e assassinatos no Norte do país, em conflito com a facção local, Família do Norte (FDN). 34 5 O PCC COMO CRIME ORGANIZADO TRANSNACIONAL Entende-se que o PCC ao longo tempo se consolidou dentro do Brasil como uma das principais facções do crime organizado e embora ainda dividisse espaço em algumas regiões como com o Comando Vermelho (CV) no Rio de Janeiro e Nordeste e Família do Norte (FDN) na região Norte, em grande parte do Sudeste, Centro-Oeste e do Sul se tornou a principal referência para o tráfico, base do financiamento das ações do grupo. Ter em seu território a parte Sul significaria um passo importante para a expansão do crime organizado, uma vez que agora tinha acesso as rotas da tríplice fronteira e mais importante para o tráfico, a fronteira com o Paraguai no Estado do Mato Grosso13. O Primeiro Comando da Capital e o Comando Vermelho, que surgiram no Brasil - um no Rio de Janeiro e outro em São Paulo - datam de 1990 e 1970, respectivamente. São grupos que trouxeram terror à Tríplice Fronteira, que causaram mortes e instabilidade na região devido ao controle de território, rotas de tráfico e vingança. (tradução própria, CUERVO, 2018, p. 52) Embora a tríplice fronteira seja uma região de grande fluxo para o crime organizado, a rota mais desejada é a de Pedro Juan Caballero, a rota da cocaína. É lá [Pedro Juan Caballero] onde "realizam suas atividades com total normalidade e liquidam quem está à sua frente", acrescentou. Essas facções controlam os milhares de toneladas de maconha enviadas ao Brasil, Argentina e Chile, além de ser o corredor de cocaína que chega da Colômbia, Bolívia e Peru, que vai para o Brasil e de lá para a Europa (Pérez, 2017). Nas palavras do mesmo autor "Pedro Juan Caballero, a cidade paraguaia que se tornou a capital das drogas da América do Sul" (tradução própria, CUERVO, 2018, p. 53) A geopolítica da América do Sul é o que faz dessa rota um caso único, temos como produtor da cocaína a Bolívia, que, no entanto, não tem acesso ao mar para vender para o mercado externo, deste modo cabe ao PCC realizar a segurança do transporte da carga até os portos brasileiros (em especial os de Santos e Paranaguá), no entanto o caminho é feito pelo Paraguai por fatores geográficos e pelo alto fluxo da fronteira brasileira. O que faz a rota de Pedro Juan Caballero para o tráfico mais atraente que a tríplice fronteira, são justamente os fatores geopolíticos, uma vez que na tríplice fronteira o transporte tinha de ser feito ou por aviões de pequeno porte ou através do fluxo de pessoas, que embora seja alto, não corresponde a demanda do tráfico. Nota-se que as rotas da cocaína no Brasil tiveram expansão nos anos 13 Embora possa se identificar uma maior influência do PCC nessas fronteiras, não é possível colocar que o grupo tenha hegemonia total, sendo comum conflitos por território com o CV ou com facções paraguaias. 35 1980 visando o mercado externo através do Porto de Santos, criando uma alta nos mercados nacionais de drogas, principalmente São Paulo e Rio de Janeiro (DIAS E MANSO, 2018). A criação de um abastecimento interno nacional pode ser colocada como inevitável, se consideramos que os maiores mercados regionais estão aqui. No entanto, a escalada do PCC para dominar a fronteira em Pedro Juan Caballero (Paraguai), muitas vezes é colocada como cinematográfica, mas na realidade é consequência da rígida organização burocrática e eficácia do grupo. A expansão para o Paraguai significaria além de um controle do mercado, uma forma de diminuir os intermediários e o aumentar seus lucros, e embora estando em evidência mais recentemente, já era verificada a presença do grupo na fronteira desde 2008, fato atestado com a prisão de Corcel, tesoureiro do grupo que carregava um relatório consigo. No documento produzido pelo tesoureiro do PCC em 2008 está claro que já existiam integrantes da facção com acesso a vários personagens que atuavam na Bolívia e no Paraguai. A novidade dessa visita era a tentativa estratégica de estabelecer um canal direto da organização PCC com os fornecedores dos países vizinhos (DIAS E MANSO, 2018, p. 42) Pode-se dizer que a expansão se torna mais concreta em 2010, com a divulgação do salve do fortalecimento, nele é deixado claro que a intenção do grupo é a de “conscientizar todos para a conquista da paz, justiça e liberdade”, parte da estratégia de batismo de novos irmãos, o salve ainda pede que os irmãos tenham cautela nas suas ações, que priorizem poupar suas vidas, foquem nos ideais do grupo e não em tornarem-se “donos da fronteira”. O salve, busca lembrar que com o racha agora alguns irmãos conviveriam com os inimigos “pois todos estão em território hostil”, reforçando o compromisso dos batizados com a facção. (DIAS e MANSO, 2018). Embora houvesse já a presença de agentes do grupo, e possivelmente contatos para eles entrarem no mercado da fronteira, ainda dependiam de intermediários, traficantes regionais que possuíam o know-how. Pode-se colocar que seu avanço de fato tem início com o batismo de Antônio Carlos Caballero, vulgo Capilo que serviu como um “embaixador” do PCC até ser expulso em 2011 por problemas na relação com o grupo. “Entre 2008 e o início de 2011, Capilo foi um dos principais fornecedores de maconha, cocaína e armas – especialmente fuzis – para o PCC” (DIAS E MANSO, 2018, p. 43) mesmo oficialmente um irmão, duraria pouco tempo sua trajetória no grupo, o mesmo entendia que o momento era de colocar alguém mais próximo dos líderes do grupo, uma vez que a relação com o paraguaio se mostrava ambígua, sem compromisso com a ideologia do grupo. Assim, o PCC decide enviar representantes escolhidos pela alta cúpula o escolhido para tomar a frente dos negócios da fronteira fora Ilson Rodrigues, vulgo Teia, ao que consta tinha ordens para uma expansão, para tomar controle de 36 fato da fronteira que era até então controlada por Jorge Raffat Touman, no entanto, a trajetória de Teia na fronteira foi breve, no dia seguinte ao de receber autorização da alta cúpula para ir ao Paraguai , Teia e outros irmão se reuniram em uma chácara em Itatiba para os preparativos finais quando foram surpreendidos pela ROTA (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar) que invadiram a chácara atirando, morreram três irmãos e outros cinco foram presos, entre os mortos estava Teia (DIAS E MANSO, 2018). A operação, além de adiar os planos de expansão do grupo, conseguiu acesso a informações sigilosas do grupo e a prisão de um dos filhos da Sintonia Geral Final, uma das principais sintonias do PCC. Embora, o grupo tenha sentido a operação, uma das principais características do crime organizado é a sua rápida adaptação, diferente da polícia, a sua burocracia é muito mais flexível. Ainda no mesmo ano então, o PCC anuncia o novo projeto disciplinar, e realizava mudança no estatuto intocado desde 1997, a intenção das mudanças era a de dissolver o comando da organização, além do novo projeto disciplinar no mesmo ano foram registrados diversos ataques a policiais paulistas, que responderam a violência No dia 26 de julho de 2012, o soldado da Rota Anderson de Sales foi baleado com três tiros de fuzil no Jaçanã, bairro de classe média baixa da cidade. Dois dias depois, em apenas quatro horas, seis pessoas morreram na vizinhança por assassinos de moto com toucas ninja. As primeiras três pessoas morreram acerca de duzentos metros de onde o PM havia sido baleado, enquanto jogava baralho num lava-rápido. Outras três foram mortas pelos mesmos motoqueiros pouco depois. (DIAS E MANSO, 2018, p. 54) Embora 2012 tenha marcado um período de violência entre o PCC e a polícia, com operações como a que executou Teia causando impactos consideráveis nas facções, o crime organizado não para sua fácil adaptação antagonizada com as lentas respostas do estado permitiu que o projeto de expansão não parasse. Três anos depois, em 2012, Fabiano Alves de Sousa (vulgo Paca), membro da Sintonia Geral Fina assume a operação, em 2015 ganha ajuda de Wellington Xavier dos Santos (vulgo Capuava) e em 2017 de Rogério Jeremias de Simone (vulgo Gegê do Mangue), Capuava fora preso em 2018 e os outros dois membros citados foram mortos a caminho pra Bolívia para tratar de assuntos do grupo. A mudança de comandos e membros, demonstra que a operação não pararia, assim como a presença de irmãos na fronteira. Essa, até então controlada por Jorge Raffat Touman, conhecido como o rei da fronteira, era um comerciante brasileiro-paraguaio, com grande influência na região, conhecido na cidade por crimes variados, com ligações políticas e com as elites da cidade brasileira e paraguaia, ele viria a se tornar peça chave nos processos de mediação da fronteira. A intensificação de membros do PCC na região, começaria a criar desconfiança em Raffat, começando uma onda 37 de crimes brutais na região. Pode-se colocar esse período como se ambos os lados, um com o Primeiro Comando da Capital (PCC), composto de irmãos brasileiros e paraguaios e o outro com Jorge Raffat, o rei da fronteira sempre com segurança reforçada, incluindo seguranças armados e carros blindados, se preparasse para uma guerra que estava para eclodir. Com a crescente tensão, o desfecho fora a violência. Em 15 de junho de 2016, Rafaat é assassinado em uma emboscada, onde embora andasse com uma caminhonete blindada (ciente da sua condição de alvo) foi surpreendido com o armamento pesado, rajadas de ponto 50. Embora não tenha sido confirmada, há indícios de que além da violenta morte de Raffat, exatamente um ano depois do evento, o PCC teria violado o túmulo de Raffat, sequestrando seu caixão e ateando fogo em seu corpo como uma forma de mostrar que o grupo ainda estava vivo na fronteira, a hipótese surgiu com a prisão de Lucas Pereira Theodoro em uma operação da Polícia Federal (PF) em Ponta Porã, Lucas teria imagens gravadas da invasão ao cemitério. Jonathas Carlos Gonzales, conhecido como Zóio, e Luiz Henrique da Silva, o Batata, também identificados participantes do crime. A investigação do crime nunca chegou a uma conclusão definitiva, no entanto, indicava Elton Leonel Rumminch da Silva (vulgo Galã) como autor do crime, junto com Jarvis Chimenes Pavão, traficante que na época cumpria pena no Paraguai, acredita-se que Pavão teria fornecido a parte financeira da operação, enquanto Galã teria sido o mandante. No entanto, os tiros foram disparados por Sergio Lima dos Santos, apontado como membro do CV - que na época ainda não tinha rompido seu vínculo com o PCC – e ex-soldado do exército brasileiro. Apesar de incerto o desfecho da fronteira, uma coisa era certa, o evento desencadearia uma onda de violência, seria o início de um conflito maior (MANSO E DIAS, 2018). 38 6 A DOUTRINA DA SECURITIZAÇÃO COMO ALTERNATIVA PARA O COT 6.1 Uma breve definição Ao tratarmos um tema que seja considerado uma ameaça à segurança pública, como muitas vezes colocado nesse trabalho é importante que façamos uma reflexão sobre o que é a segurança de um país, tema priorizado dentro dos estudos de relações internacionais, para os teóricos mais tradicionais muitas vezes podem definir que a garantia de segurança de estado esteja na ausência de ameaças, fomentando um ambiente seguro, eliminando possíveis inimigos segundo Motta e Pimentel (2013). Ainda argumentam em apud a Bigo (2008), que uma visão de aniquilação tende a gerar um ciclo vicioso onde o máximo de segurança provoca sempre o máximo de insegurança e não o mínimo de insegurança, como as abordagens tradicionais reivindicam14 Coloca-se então que a segurança não necessariamente está na ausência da ameaça, mas sim que um ambiente livre da ameaça seja um ambiente de insegurança. Entende- se que essa perspectiva tida como tradicional seja simples para explicar como a segurança pode ser definida, uma vez que assumem parâmetros mais objetivos, ignorando aspectos subjetivos que possam haver na estrutura. Assim, novas ondas surgiram dentro das Relações Internacionais, a saber, o construtivismo e o pós-estruturalismo, teorias que se aproximavam de aspectos mais amplos da sociedade, assim expandindo os estudos de segurança para campos como o social, econômico, político entre outras facetas. Nesse sentido, uma teoria que ganha força dentro do mainstream é a teoria da securitização, notoriamente divulgado com o livro: Security: A New Framework for Analysis (1998) por Barry Buzan e Ole Wæver, Jaap De Wilde conhecidos como os principais representantes da Escola de Copenhague (EC). Em suma, a definição inicial de securitização colocada pela escola de Copenhague coloca o ato de securitizar como aplicar medidas extraordinárias justificadas pela emergência de um problema a uma ameaça específica, que pelas vias comuns da política não poderia ser solucionada. Ou seja, segundo MOTTA e PIMENTEL (2013) apud Buzan (1998), p. 5: Dessa forma, tal questão extrapola o nível da politização galgando um nível superior a ela, ou seja, o denominado campo da securitização, em que a violação de algumas instituições ou preceitos são justificáveis, como a violação da soberania, medidas que em outras circunstâncias não seriam aceitáveis (BUZAN et al., 1998) 14 BIGO, Didier. Pierre Bourdieu and International Relations: Power of Practice and Practice of Power. International Political Sociology.V.5, n.3, p.225-258. 2011 39 Aqui, segundo os mesmos (Motta e Pimentel) não é crucial se a ameaça identificada é de fato real, sendo para os teóricos da escola de Copenhague, o fator crucial a “apresentação discursiva” da questão como ameaça através de um porta-voz com poder para incentivar um processo de securitização, sendo a apresentação discursiva de forma literal a capacidade de um agente de convencer pelo discurso que há a existência de uma ameaça que exige medidas urgentes. Ademais, um mérito que se pode atribuir à escola de Copenhague é a defesa de uma abordagem multissetorial, considerando que os problemas de segurança envolvem além dos atores e fatores políticos, a saber: cinco setores: (i) militar; (ii) político; (iii) econômico; (iv) societal; e (v) ambiental, com isso a abordagem da escola se torna mais eclética e se difere das conceituações tradicionais, entendendo que a segurança é parte de um processo dinâmico. Em suma, a teoria pretende de certo modo ampliar o que a de tradicional na elaboração de segurança quando almeja introduzir aspectos extras além do político-militar, no entanto, seu maior problema está na sua motivação, onde pouco importa a necessidade intervenção desde que essa se justifique em um inimigo. De modo que, transparece a manutenção da tradição militar propagada pelo ocidente, de um inimigo comum, mas de uma forma modernizada. Quando se coloca que um problema pode causar um grave impacto, como no nosso caso (PCC), não só em âmbito interno, mas também externo, ou seja, internacional é comum pensarmos que as estratégias de combate devam ser as de enfrentamento, sendo a mais popular delas para assuntos internacionais a possibilidade de securitização do problema. A securitização, no entanto, é uma tentativa de focalizar na resolução de um conflito, o que pode gerar mais políticas de excesso e menos soluções de fato, na raiz do problema. Dissecando a ideia da securitização como uma extrapolação dos meios políticos, vemos em Villa (2014) apud Buzan e de Wilde (1998) vemos a definição de segurança como: Segurança é o movimento que leva a política para além das regras estabelecidas no jogo e enquadra o problema ou como um tipo especial de política ou como estando acima da política. A securitização pode ser vista como uma versão mais extrema de politização [alguma coisa para ser securitizada precisa ser] [...] apresentada como uma ameaça existencial, que necessita de medidas de emergência e justifica ações fora d