UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA JÚLIO DE MESQUITA FILHO DEPARTAMENTO DE COMUNICAÇÃO FACULDADE DE ARQUITETURA, ARTES E COMUNICAÇÃO MESTRADO PROFISSIONAL EM MÍDIA E TECNOLOGIA FRANCINE MICHELI COSTA DE CASTILHO A INFLUÊNCIA DO HUMOR NA OPINIÃO PÚBLICA EM MÍDIAS SOCIAIS: Uma análise dos memes compartilhados no Impeachment de 2016 Bauru 2019 2 FRANCINE MICHELI COSTA DE CASTILHO A INFLUÊNCIA DO HUMOR NA OPINIÃO PÚBLICA EM MÍDIAS SOCIAIS: Uma análise dos memes compartilhados no Impeachment de 2016 Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação, da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, para obtenção do título de Mestre em Mídia e Tecnologia sob a orientação da Profa. Associada Maria Cristina Gobbi. Bauru 2019 3 Castilho, Francine Micheli Costa de. A influência do humor na formação da opinião pública em mídias sociais : uma análise dos memes compartilhados no impeachment de 2016 / Francine Micheli Costa de Castilho, 2019 51 f. : il. Orientadora: Maria Cristina Gobbi Dissertação (Mestrado)– Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação, Bauru, 2019 1. Memes. 2. Cultura digital. 3. Política. 4. Mídia e tecnologia. I. Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação. II. Título. 4 5 DEDICATÓRIA 6 Dedico este trabalho a todos os que tiveram a oportunidade de exercer sua paciência comigo durante os dois anos de mestrado. Família, namorado, amigos e companheiros de trabalho. CASTILHO, F. M. C de. A influência do humor na formação da opinião pública em mídias sociais: Uma análise dos memes compartilhados no impeachment de 2016. 2018, 53f. Trabalho de Conclusão (Mestrado Mídia e Tecnologia) - FAAC - UNESP, sob a orientação da profa. Associada Maria Cristina Gobbi. Bauru, 2019. RESUMO Diante das transformações constantes dos processos comunicacionais, o presente estudo tem a proposta de mergulhar na dinâmica dos memes, focalizando, especialmente, nas peças compartilhadas durante o processo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, em 2016. Para tanto, foram criadas análises sobre o fenômeno da manipulação da opinião pública desde os primórdios da imprensa, de maneira que as dinâmicas próprias da Internet 2.0 sejam mais amplamente compreendidas. Levantamos a seguinte questão: seriam os memes mais do que representações imagéticas criadas para o mero divertimento ou eles podem ser categorizados como uma importante ferramenta da liberdade de expressão, portanto, apta a ser aplicada como influência direta na opinião pública? O humor também ganha foco especial e o fazer rir transforma-se em pano de fundo essencial para a crítica social e política. Palavras-chave: memes, cultura digital, política, mídia e tecnologia, humor. 7 ABSTRACT Faced with the constant transformations of communication processes, the present study is aimed to dive into the dynamics of memes, focusing especially on the pieces shared during the impeachment process of former president Dilma Rousseff, in 2016. For that, analyzes were created on the phenomenon of manipulation of public opinion since the beginning of the press institution, so that the dynamics of Internet 2.0 are more widely understood. We raised a few questions: would memes be more than imagistic representations created for mere amusement or could they be categorized as an important tool of freedom of expression, therefore apt to be applied as a direct influence on public opinion? Humor also gains special focus and making laughing becomes an essential backdrop for social and political criticism. Keywords: memes, digital culture, politics, media and technology, humor. 8 LISTA DE ILUSTRAÇÕES Fig. 1 Meme Big Brother Brasília ............................................................................................ 37 Fig. 2 Meme Apenas Observando ........................................................................................... 38 Fig. 3 Meme Eu Voto Sim ....................................................................................................... 41 Fig. 4 Meme Michel Temer Poeta ............................................................................................ 42 Fig. 5 Meme Tchau, Querida ................................................................................................... 43 Fig. 6 Capa Revista Veja Tchau Querida ................................................................................ 43 9 SUMÁRIO CAPÍTULO 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 10 CAPÍTULO 2 O QUE DIRIA WALTER LIPPMANN SOBRE MEMES COMO FERRAMENTA DE FORMAÇÃO DA OPINIÃO PÚBLICA ........................................................................... 13 2.1 Jornalismo, memes e a opinião pública ........................................................................... 14 2.2 Apropriação e poder de compartilhamento ...................................................................... 21 CAPÍTULO 3 HUMOR COMO FERRAMENTA QUE NOS LIGA AO OUTRO ................................ 24 3.1 Do que você está rindo? .................................................................................................... 26 3.2 Humor como protesto: o alívio cômico de uma sociedade desesperada .................................................................................................................................................. 29 CAPÍTULO 4 UMA ANÁLISE SOBRE MÍDIA COMPARTILHÁVEL ................................................ 34 4.1 Um olhar crítico sobre memes mais compartilhados durante o impeachment .................................................................................................................................................. 36 4.2 Entendendo os memes e sua influência durante o impeachment............................................................................................................................ 40 IMAGENS ANEXAS ............................................................................................................ 45 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 47 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................ 49 10 CAPÍTULO 1 INTRODUÇÃO Diante das inúmeras transformações vividas pelos processos comunicacionais, o trabalho traz a tona o poder de influência que os memes possuem dentro das mídias sociais. Inerentes à web 2.0, detentores de um humor peculiar e influentes dentro de uma comunidade específica deste ambiente, os memes se apresentam como uma nova manifestação imagética que merece a atenção dos estudiosos da comunicação. Para tanto, propomos um diálogo baseado em autores-chave responsáveis pela sistematização comunicacional no século XX como Walter Lippmann, Louis Althusser, José Marques de Mello, Marshall McLuhan e Henry Jenkins. Caminhando para a contemporaneidade, fundamentamos alguns fenômenos advindos da internet em Carlos Scolari e Jonah Berger. Permeando a cronologia do pensamento filosófico, apresentamos também conceitos líquidos de Zygmunt Baumann que colaboram para a contextualização da problemática da comunicação fluida. A proposta do presente trabalho não é estabelecer se o meme é ou não uma representação legítima sob a luz do jornalismo, mas sim, apresentar embasamento para auxiliar na compreensão deste fenômeno, utilizando como centro de pesquisa os memes produzidos e compartilhados durante o processo de Impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff. Os memes e a difusão de um humor específico dentro da Web 2.0 foram os elementos centralizadores desta pesquisa, já que, em pouco mais de uma década, passaram a representar o pensamento crítico da comunidade online. O desenvolvimento das mídias sociais e a consequente concretização de uma cultura digital inédita passaram a representar uma nova e instigante forma de influenciar a opinião pública. No Brasil temos 120 milhões de pessoas conectadas à internet, o que significa ser o quarto país do mundo com maior número de usuários, de acordo com o relatório de 11 Economia Digital divulgado em 2017 pela Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento - UNCTAD). Já uma pesquisa aplicada pela consultoria e-Marketer detectou que, até o final de 2017, o Brasil é o país da América Latina com maior número de usuários de mídias sociais, chegando a 107 milhões de pessoas conectadas. O Brasil se posiciona como o quarto maior em uso de redes sociais do mundo atrás de China, Índia e EUA. O estudo também mostrou que o Facebook é a mídia social mais popular no território nacional com 101,1 milhões de usuários brasileiros. Dentro deste cenário, fica claro o poder que a comunicação, através das mídias sociais, desempenha no dia-a-dia do usuário brasileiro, sendo que suas opiniões e posicionamentos são diariamente formatados pela influência direta do conteúdo que circula neste ambiente. Os memes participam deste fluxo com uma linguagem própria que passeia entre o humor e a crítica sócio-política, tornando-se uma ferramenta de influência da opinião pública bastante peculiar e com ciclo de vida diferente de tudo o que já foi analisado pelos teóricos do assunto. Por outro lado, se levarmos em consideração a teoria de Berger (2014) a respeito da moeda social e ao sentimento de pertencimento, o cenário político é uma fonte inesgotável de conteúdo altamente compartilhável. E nisso, inclua notícias, piadas, paródias e, claro, memes. Você deve se lembrar do dia 17 de abril de 2016, uma data histórica e emblemática para o país. A então presidente Dilma Rousseff passou por um processo de impeachment, colocando em cena em um remake contemporâneo de 1992, quando o mesmo ocorreu com o presidente Fernando Collor de Melo. 24 anos depois, o processo de substituição de um presidente eleito democraticamente pelo seu vice foi vivenciado de uma nova forma: além dos já conhecidos protestos e manifestações nas ruas, as redes sociais tiveram um papel fundamental na formação da opinião pública. Algo impensável à época em que Collor e sua então esposa Rosane subiam elegantemente as escadas do Planalto enquanto enchiam os noticiários de pautas bombásticas. Diferentemente de 1992, as notícias sobre o impeachment de 2016 produzidas pelos veículos de imprensa chegavam ao público na mesma velocidade em que o cidadão comum ganhava voz para disseminar seu ponto de vista. Muitas vezes, notícias e opinião se confundiam sob os olhos dos mais desavisados, que acabavam compartilhando dados falsos 12 ou, no mínimo, tendenciosos de forma escancarada sem nenhuma preocupação com a idoneidade das fontes. Entra em cena o humor típico do brasileiro na internet, que também moldou a opinião pública com a produção de memes em ritmo frenético. Os memes passaram a espalhar as informações jornalísticas travestidas de piadas sem controle algum, arrancando riso e bate- bocas infindáveis na internet. Podemos chegar à conclusão de que, graças às motivações da disseminação de conteúdo na internet citados por Jonah Berger (2014), os memes brasileiros fizeram um recorte sarcástico e autodepreciativo sobre a própria situação preocupante em que o país estava inserido, enquanto os indivíduos da comunidade da web 2.0 mostravam suas opiniões e saiam em busca de afirmação dentre grupos políticos e sociais. A afirmação, no caso, veio em forma de incontáveis joinhas. A presente pesquisa, portanto, foi estruturada de modo a compreender sistematicamente o conceito de opinião pública, as motivações para o compartilhamento de informações, o humor em seus aspectos sociais e, finalmente, a participação dos memes políticos durante o período em torno do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff. Para isso, o primeiro capítulo traz uma apresentação contextual envolvendo processos comunicacionais da nova ecologia dos meios. No segundo, uma reflexão sobre conceitos da opinião pública com um diálogo entre os pensamentos dos principais autores do tema. No terceiro capítulo, aprofundamos a atenção sobre o humor e o fazer rir, de modo que isso servisse de base para o capítulo quatro, que é uma análise dos memes mais compartilhados durante o impasse político brasileiro. A intenção deste trabalho é levantar um questionamento sobre as novas ferramentas de influência na opinião pública no meio digital e também colaborar para a literatura da área de comunicação e novas mídias, a fim de estabelecer um diálogo e uma provocação a respeito dos relacionamentos interpessoais mediados pela tecnologia. Convido-o a refletir sobre os tópicos levantados e a promover uma discussão mais ampla sobre o futuro da comunicação e da nossa relação com a política. Afinal, nós, profissionais e consumidores, estamos sujeitos diariamente às suas influências e transformações. 13 CAPÍTULO 2 O QUE DIRIA WALTER LIPPMANN SOBRE MEMES COMO FERRAMENTA DE FORMAÇÃO DA OPINIÃO PÚBLICA O que ele diria? Provavelmente, que a sociedade contemporânea está cada vez mais conectada e que as barreiras geográficas já não interferem nos processos comunicacionais já não é mais novidade para ninguém. O indivíduo, além de construir suas próprias mensagens, também cria novos ícones e significados, transformando como a dinâmica da comunicação interfere no dia-a-dia e na formação de cada universo particular. Dentro desse cenário em constante mutação, um pacote de ferramentas midiáticas sociais vem estabelecendo seu espaço e ganha força na hora de construir a opinião pública, tarefa reservada aos jornalistas e seus textos informativos até a chegada da web 2.0. Enquanto poucas décadas atrás a opinião pública era formada através da deliberação dos grandes grupos de mídia e seus vieses direcionados pelos interesses corporativos, atualmente, a democratização da informação possibilita que cada cidadão seja um formador de opinião. E isso se dá a partir da criação e popularização do uso das mídias sociais e suas ferramentas de distribuição de conteúdo. Dentre essas ferramentas, uma ganha destaque no cotidiano da comunicação P2P (person to person), especialmente em meios sociais: os memes, uma manifestação ainda pouco abordada nos meios acadêmicos, mas que vem apresentando grande força no comportamento social dentro da web 2.0. O termo “meme” surgiu a partir dos estudos do zoólogo Richard Dawkins que, em 1976, citou a palavra pela primeira vez em seu livro “O Gene Egoísta”. Neste contexto biológico, o meme compreendia o fator responsável pela transmissão das informações 14 culturais entre os seres humanos e o definia como fator responsável pela imitação, reprodução e adaptação de dados e informações, o que moldaria o presente e o passado de uma determinada cultura. Já Susan Blackmore (2007) utiliza a máxima de que ser humano é imitar ações dinamizadas no ambiente de vivência e que o processo evolutivo depende da reprodução de comportamentos ao mesmo tempo em que os mesmos são adaptados e selecionados naturalmente. Ambas as teorias entram em uma convergência interessante, trazendo uma nova perspectiva sobre as interações sociais. Como resultado disso, neste primeiro capítulo, buscamos alinhar e aprofundar a relação entre este processo biológico definido por Dawkins e Blackmore aos processos comunicacionais de formação da opinião pública. Dentro da cultura digital, o meme passa a ser uma manifestação com alto poder de engajamento revestido por humor, sarcasmo e espírito colaborativo, através do qual cada pessoa, em seu determinado contexto, pode alterar e transmitir uma nova informação a partir de um meme de origem. Carlos Scolari, em conversa informal com o pesquisador e autor Denis Porto Renó1, definiu os memes como “o produto midiatizado que fala o que os meios não tiveram coragem de falar”. Porém, essa ideia não reduz a total potencialidade da manifestação memética. Os memes, em diversos casos, servem para interferir ou reconstruir a opinião pública a partir do humor, o que, efetivamente, faz o conteúdo ganhar circulação meteórica pelos meios sociais contemporâneos. E efêmeros que são dentro de uma modernidade líquida (Baumann, 2000), surgem, crescem e desaparecem em um período extremamente curto que pode ser meses, semanas, dias ou até mesmo horas. 2.1 Jornalismo, memes e a opinião pública De fato, conteúdos com humor podem ser considerados jornalísticos quando trazem informações de relevância, ou seja, quando o humor é utilizado para levar algum tipo de conhecimento aplicável no cotidiano do receptor. O humor, exclusivamente proposto para causar riso e desligado da realidade sociopolítica e cultural de determinado período histórico, fica mais intimamente ligado à função de entretenimento. ¹ A ideia foi apresentada por Carlos Scolari durante jantar na residência de um dos autores, em Bogotá, no ano de 2012. 15 No entanto, segundo José Marques de Melo (1997), o jornalismo que traz humor e se utiliza de imagens para transmitir determinado posicionamento político-social é definido como Jornalismo Caricato, posicionado no gênero de Jornalismo Opinativo, segundo o autor. Trazido a tona sob comparação com esta manifestação jornalística citada por Melo, o meme de cunho político se torna, portanto, um fator novo e de caráter evolutivo do Jornalismo Caricato, já que traz o humor como núcleo atômico de sua estrutura e, mesmo que não traga notícia alguma em seu formato tradicional, ainda assim é capaz de influenciar e modificar a opinião pública, construindo pontos de vistas críticos e analíticos. O uso da imagem como instrumento de opinião atende, muitas vezes, ao imperativo de influenciar um público maior que aquele dedicado à leitura atenta dos gêneros opinativos convencionais: editorial, artigo, crônica, etc. Muitas vezes, o leitor interessado em saber rapidamente o que acontece e que se limita a uma vista d’olhos pelo jornal, escapa a uma adesão, a um posicionamento quanto às opiniões explícitas do veículo. É claro que neste contato, por mais breve que seja, com o veículo, o leitor, naturalmente, incorpora uma certa ótica do real. Mas isso fica limitado a um nível inconsciente. Já no caso da imagem, que produz um impacto imediato, seja pela evidência, seja pelo eventual humorismo, nota-se uma participação consciente na participação do cotidiano. (MARQUES DE MELO, 1997, p. 120 e 121) Assim, observando a nova ecologia dos meios, o meme ganha espaço entre uma comunidade nativa e adaptada ao digital que absorve e reconhece referências e que é capaz de interpretar o humor como objeto de construção da opinião pública. Vemos, então, surgir uma nova e intrigante configuração do processo de compartilhamento de informações, onde não há um veículo centralizador, portanto, um grupo de comunicação com interesses financeiros, nem responsabilização formal pela divulgação, tampouco assinatura do responsável pela sua assinatura. O meme, como processo comunicacional exclusivo da Web 2.0 caminha ao lado do jornalismo tradicional em total anonimato, como uma forma de expressão ultrajante aos antigos e conservadores modelos de comunicação. E para compreender o que significa esta nova realidade, é preciso voltar ao início do século XX, quando a comunicação de massa passou a ter importância na formação da opinião pública. O Jornalismo, como tal o conhecemos, é conhecido como a atuação do profissional que informa a sociedade sobre suas realidades, ou destaca uma realidade frente a acontecimentos. Neste rol, temos acontecimentos nas esferas política, social, econômica, cultural, entre outras que influenciam diretamente a vida do cidadão. 16 Walter Lippmann (2010) mergulhou profundamente sob o papel do jornalismo na opinião pública, destacando a sua importância como suporte na construção de uma sociedade justa e conhecedora de si. Para o autor, o jornal, ao chegar ao seu leitor, é o produto final de uma série de procedimentos de opção para os quais não existem normas, mas certamente convenções (ou olhares) jornalísticas. Entretanto, ao pensarmos no jornalismo um tema é fundamental para entender a profissão e isso está diretamente relacionado ao modo de fazer. Para tanto, o alemão Michael Kunczik (2002) define o jornalista como alguém que está envolvido com a formulação de conteúdo informativo para processos comunicacionais massivos, seja na reunião, na avaliação, na apuração, no processo ou na divulgação de notícias, comentários. Trata-se de uma profissão que tem sua expertise apoiado em um olhar específico, capaz de representar realidades. Neste sentido, e levando em consideração as ideias de Lippmann e Kunczik, podemos considerar que as abordagens jornalísticas são a essência da profissão frente a outras atividades. O próprio Kunczik (2002, p.15) aponta a definição simplista de que “o jornalismo é tratado como uma profissão de comunicação”. Para ele, esse olhar jornalístico é o que diferencia seu papel dos outros profissionais que adotam a comunicação como canal de profusão de seus conteúdos. No entanto, no meio destas ligações entre realidade, jornalismo, jornalista e público, há uma série de variantes que interferem diretamente na maneira como as notícias são recebidas e interpretadas. Em uma outra vertente de pensamento, os meios de comunicação surgem como representantes fiéis dos Aparelhos Ideológicos do Estado (Althusser, 1969), fortalecendo os interesses de dominação de pensamento da massa em favor da produção em torno do capital. Althusser, por sua vez, considera que o Estado funciona como uma superestrutura que atua diretamente na infraestrutura para estimular a reprodução das relações de trabalho e de forças econômicas que extraem da classe trabalhadora o tempo, o pensamento e o poder de decisão para, assim, ter uma reprodução contínua dos seus meios de produção. A opinião pública, seria, portanto, uma espécie de frente de trabalho onde atua os interesses das classes dominantes. É unicamente no seio dos próprios processos de produção e de circulação que esta reprodução é realizada pelo mecanismo destes processos, onde é ‘acabada’ a formação dos trabalhadores, onde são distribuídos os lugares a ocupar, etc. no mecanismo interno destes processos que vem exercer-se o 17 efeito de diferentes ideologias (primeiro que tudo o da ideologia jurídico- moral). (ALTHUSSER, 1969, p. 115 e 116) Althusser ainda reforça que os aparelhos ideológicos do estado não executam a ideologia em si e que a ideologia da classe dominante não se torna dominante de um dia para o outro, ou de forma inexplicável. Segundo o teórico, esta instauração ideológica é alvo de uma constante luta de classes que se dá, primeiro, contra as antigas classes dominantes e, depois, contra a classe explorada. A opinião pública, contudo, torna-se ferramenta a ser passada de mão em mão, dependendo da classe detentora do poder em determinado recorte histórico. Ainda citando Lippmann, citado por Maxwell Mc Combs em A Teoria da Agenda (2004), os meios de comunicação de massa se tornam janelas que moldam nossos mapas cognitivos. Ou seja, as notícias como são trazidas a público são, não somente capazes de moldar, inclinar ou sugestionar nossa opinião, mas também criam um pseudoambiente. Esta seria uma camada de realidade artificial modelada e imperfeita criada em nossa mente que se coloca entre a realidade e nossa interpretação da mesma. Assim, a opinião pública e o comportamento social fruto dessa inclinação de pensamento seriam uma resposta de grupos de indivíduos a este pseudoambiente. Dentro deste contexto, a Teoria da Agenda torna-se essencial para compreendermos os fenômenos de comportamento em onda que presenciamos desde o domínio dos veículos tradicionais offline até os veículos e plataformas de conteúdo online. Ainda segundo a Teoria da Agenda, há uma seleção sistemática de notícias a serem apresentadas, bem como os vieses nas quais elas são encaixadas pelos noticiários. E esta seleção se utiliza de fatores diversos que vão desde o tamanho da matéria, tipo de destaque na capa, formato de apresentação até termos escolhidos a dedo para o título, entre outros. As “artimanhas” antes de levar um fato a público através de uma notícia oficial seguem o pressuposto de que o veículo deve seguir os interesses corporativos, financeiros e políticos por detrás de sua existência. Através de pesquisas empíricas realizadas na segunda metade do século XX, Mc Combs define que a Teoria da Agenda é um dos fatores responsáveis pelo posicionamento social dos indivíduos, que estão à mercê do que e como recebem as notícias vindas dos meios tradicionais de comunicação de massa. Na maior parte, esta influência de agendamento é subproduto inesperado da necessidade dos noticiários diários de focar a atenção em somente alguns tópicos. O agendamento dirige nossa atenção às etapas formativas da opinião 18 pública quando então os temas emergem e logo conquistam a atenção do público, uma situação que confronta os jornalistas com uma forte responsabilidade ética para selecionar cuidadosamente os temas em suas agendas. (MC COMBS, 2004, p. 42) O autor cita também outras variáveis que influenciam este comportamento social: o conceito da Percepção Seletiva, que se contrapõe, curiosamente de maneira complementar, à Teoria da Agenda. A percepção seletiva nada mais significa do que a peneira mental ativada em cada indivíduo no momento em que ele consome notícias relativas à sua realidade social, política, econômica, cultural entre outras. Neste caso, a influência da Teoria da Agenda é minimizada pelo poder de seletividade já pré-existente no indivíduo, que irá absorver o conteúdo consumido de acordo com suas preconcepções. No campo da opinião pública política, isso se torna bastante claro, especialmente quando analisamos posts pessoais sobre o tema em mídias sociais como Facebook e Twitter. Por exemplo, quando o indivíduo já é inclinado para determinada filosofia de um partido x, qualquer notícia de caráter positivo sobre partido Y será minimizada em seu processo cognitiva de forma a manter intacta a sua opinião pré-formatada. Enquanto isso, o mesmo indivíduo tende a deslegitimar a maioria das informações que, através de dados reais, refutam as ideias do partido de sua preferência. O conceito de percepção seletiva localiza a influência central dentro do indivíduo e estratifica o conteúdo da mídia de acordo com sua compatibilidade com as atitudes e opiniões individuais existentes. Desta perspectiva, parte-se do princípio de que os indivíduos minimizam sua exposição à informação congruente. Durante uma eleição, espera-se dos eleitores que prestem mais atenção aos temas enfatizados por seus partidos políticos preferenciais. (MC COMBS, 2004, p. 24) José Marques de Melo, em Opinião no Jornalismo Brasileiro (1985), faz uma interessante e condensada definição do que é o jornalismo daquela época, afirmando que ele se fazia, exclusivamente, a partir da relação oportuna entre grupos empresariais de comunicação e a massa. Dentro deste circuito por onde fluem as informações, Melo reafirma que o interesse dos grandes grupos jornalísticos funcionam como norte da difusão de específicas notícias, gerando, muitas vezes, um atrito entre o que é noticiado e o que os grupos receptores gostariam de receber como notícia. Um ponto de tensão é, então, criado sobre a expectativa e a realidade. 19 Caminhando nesta direção, temos, após a popularização da internet, o conceito de Gatewatching (Bruns, 2005) legitimando o poder da audiência na confecção de uma nova forma de cobertura jornalística, superando o Gatekeeping em uma reviravolta dos processos comunicacionais. Esta última expressão contempla de modo complementar a ideia da Agenda, ou seja, o funil corporativo responsável pela seleção daquilo que chegaria até a opinião pública. Se, por um lado, à época, o jornalismo era definido pelas relações entre instituições corporativas e a coletividade, hoje, com todas as transformações em sua estrutura, pode-se dizer que o jornalismo está à beira do abismo final? É possível considerar que existe o jornalismo de cidadão para cidadão sem mediação de uma corporação com interesses escusos quando consideramos, em seu mesmo pensamento que cada processo jornalístico tem suas peculiaridades e sofre variações de acordo com sua época? Seremos todos nós, com acesso à internet e às redes sociais, jornalistas em potencial apenas esperando uma oportunidade de criar, repassar ou endossar conteúdos dos mais diversos? São perguntas que os profissionais e estudiosos da comunicação devem se fazer constantemente, já que a espinha dorsal da difusão de informações está cada vez menos centralizada e cada vez mais pulverizada entre nano-formadores de opinião inseridos nas comunidades online. Paradoxalmente, Marques de Melo (1985) é capaz de responder a essas indagações de hoje com outro questionamento feito em uma época em que não se sonhava a interatividade além do espaço dedicado à carta do leitor nos veículos impressos. Enquanto não emergem soluções tecnológicas e políticas que viabilizem essa participação do público nas experiências jornalísticas, resta ao cidadão recorrer à carta como recurso para expressar seus pontos de vista, suas reivindicações, suas emoções. Trata-se de um recurso possível, mas nem sempre viável. Pois depende dos mecanismos inerentes à instituição jornalística para lograr difusão. (MARQUES DE MELO, 1985, p. 128) Este recurso de livre expressão não só foi viável como não precisou estar vinculado a nenhum tipo de instituição. Pelo menos não jornalística. Avançando para os dias de hoje em que a produção de conteúdo jornalístico e não-jornalístico é altamente difusa e descentralizada, surgem dúvidas primárias que nos fazem repensar a influência da Teoria da Agenda e o conceito da Percepção Seletiva: como é formada a opinião pública dentro das plataformas sociais? Como age o indivíduo que sofre um bombardeio de informações diante da necessidade virtual de posicionamento? As opiniões hoje têm mais ou menos embasamento do que na era pré-internet? A era da pós-verdade está 20 criando também outros múltiplos pseudoambientes, de acordo com o pensamento de Lippmann? Diante da nova ecologia dos meios e observando o fluxo das informações dentro das mídias sociais, percebemos um grande esforço dos indivíduos para se alinharem a determinados grupos de pensamento, sejam eles políticos, sociais ou econômicos. A própria presença em uma mídia social já impulsiona o usuário a demonstrar suas afeições, rejeições e posicionamento, pois é exatamente este tipo de conteúdo que ele consome dentro destas plataformas em boa parte do tempo online. Existe uma espécie de “mão invisível” que leva a maioria dos usuários de mídias sociais a expressarem seus posicionamentos, ainda que eles não tenham embasamento teórico nem que haja especialização necessária no tema abordado. Assim, as mídias sociais são palco de um fenômeno curioso jamais visto na história: cria-se um ambiente em que a voz comum é confundida com a voz especializada, colocadas em um mesmo patamar de difusão, estabelecendo uma verdadeira confusão de informações propícias para a propagação de notícias falsas, boatos e mentiras disseminadas a uma impressionante velocidade. Neste ambiente, elevam-se as vozes não especializadas que, apesar de, muitas vezes, não terem o conhecimento para defender, abordar ou combater certa opinião, acabam tendo grande visibilidade por conta de suas habilidades com os processos de distribuição de conteúdo online. Esta habilidade é, justamente, o que vem tirando o sono das grandes corporações jornalísticas que, muitas vezes, se posicionam de forma desengonçada e imprópria no ambiente da Web 2.0 por falta de conhecimento de seus novos e exclusivos processos de difusão e também pela ausência de adaptabilidade aos novos tempos. Dentro deste contexto, os memes - criados e compartilhados por indivíduos que se adaptaram perfeitamente à era digital, quando não nativos - passam a representar ferramentas importantes presentes na construção da opinião pública. Eles caminham juntos de forma comensalista à interferência do jornalismo, agindo efetivamente sobre o público de redes sociais digitais de forma simultânea e paralela. O meme é um formato de expressão nativo da Web 2.0 e que fica em poder do cidadão comum que, geralmente, tem uma presença virtual marcada pela criatividade, pelo humor, pela análise dos fatos e mesmo pela intensidade da circulação ou poder de influência. Entretanto, podemos considerar que os memes são atores de uma nova forma de comunicação contemporânea, especificamente no campo da manipulação e disseminação de informações através da internet. 21 Retornando ao estudo primordial da opinião pública, de acordo com José Marques de Melo (1985), apesar de todas as pesquisas acadêmicas dirigidas no último século, “ainda é difícil estabelecer uma precisão conceitual para este tipo de comunicação coletiva”, ou seja, o jornalismo institucionalizado. Isso ocorre, justamente, porque as dinâmicas práticas do mercado de comunicação caminham a passos vertiginosos enquanto a pesquisa de embasamento teórico constrói um caminho lento. Ou seja, enquanto os teóricos da comunicação tentam compreender, assimilar por análise científica e estabelecer vínculos históricos de algum fenômeno comunicacional, este mesmo se torna defasado, cedendo lugar para outra dinâmica, outra plataforma, outra maneira de estabelecer conexões informativas. Diante disso, definir o que é jornalismo nos coloca a pensar sobre quais os pilares que sustentam a transmissão de informações capazes de moldar a opinião pública. Melo também defende a ideia de que o jornalismo tem em si a funcionalidade do entretenimento, além de informar, auxiliar no processo interpretativo da realidade e moldar opiniões. Como fonte de diversão, o jornalismo acaba se encontrando com outros aspectos do processo comunicacional, remetendo aos antigos trovadores que informavam os reis com os últimos acontecimentos através do canto, dança, de um instrumento, da representação teatral. Neste sentido, é impossível desmembrar a atividade jornalística das representações bem-humoradas com características de entretenimento. Dando um passo à frente para os dias de hoje, não é isso que fazem os memes, as esquetes de grupos de humor que ganham espaço na opinião pública através do Youtube, os perfis satíricos no Twitter, as páginas de crítica política com apelo do humor non-sense no Facebook? Sim, estamos vivendo uma época onde o fazer jornalístico opinativo fugiu das mãos dos grandes grupos empresariais de comunicação e, num momento de hiper democratização, ficou a cargo também do cidadão comum. E devemos este feito ao surgimento da Web 2.0, que deu voz ativa e interatividade a qualquer cidadão com um dispositivo com acesso à internet. Como bem colocou Roberto Elísio dos Santos e Regina Rossetti (Humor e Riso na Cultura Midiática, 2012), o humor tem um quê de mítico, podendo até ser associado às teorias freudianas. Em sua obra, os autores destacam uma fala emblemática do psicanalista em um artigo apresentado no X Congresso Psicanalítico Internacional: Como o chiste e o cômico, o humor tem algo de liberador a seu respeito, mas possui também qualquer coisa de grandeza e elevação que faltam às outras maneiras de obter prazer da atividade intelectual. Essa grandeza reside claramente no triunfo do narcisismo, na afirmação vitoriosa da invulnerabilidade do ego. O ego se recusa a ser afligido pelas provocações 22 da realidade, a permitir que seja compelido a sofrer. Insiste em que não pode ser afetado pelos traumas do mundo externo; demonstra, na verdade, que esses traumas não passam de ocasiões para obter prazer. Esse último aspecto constitui um elemento inteiramente essencial do humor. [...] O humor não é resignado, mas rebelde. Significa não apenas o triunfo do ego, mas também o do princípio do prazer, que pode aqui afirmar-se contra a crueldade das circunstâncias reais. (FREUD, Sigmund apud. SANTOS, Roberto Elísio e ROSSETTI, Regina, p. 29) Tendo esta fala freudiana como base da compreensão a respeito do humor, temos uma sugestão do porquê de essa ser a ferramenta mais utilizada na produção dos memes políticos e suas variáveis. 2.2 Apropriação e o poder do compartilhamento Segundo Jonah Berger (2014), o impulso humano de compartilhar uma informação pode ter seis motivações determinantes: por moeda social (o que quero que as pessoas pensem sobre mim quando compartilho isso); gatilhos (identificação imediata com o conteúdo); emoção (quero que o outro sinta o que eu estou sentindo – paixão, ódio, sensibilidade, inconformidade, etc); público (desejo de tornar público algo privado); valor prático (desejo de auxiliar outras pessoas com soluções práticas que me impactaram positivamente); história (necessidade de repassar narrativas relevantes a um certo grupo de pessoas). Dentro deste contexto, analisamos que os memes podem estar relacionados a mais de uma destas motivações citadas por Berger. No entanto, a moeda social ainda continua sendo a maior das motivações. Quando alguém compartilha um meme e passa certa informação à frente, há uma mensagem subliminar que diz: quero que vejam como sou antenado, como meu humor é refinado, como esta figura representa o que penso, como me orgulho das minhas convicções e como elas me representam diante do círculo social onde estou inserido. Com isso, o indivíduo se beneficia da sensação de pertencimento a um determinado grupo o qual ele acredita ter relevância e importância diante de contextos específicos. Outro grande ponto abordado por Berger é o combate ao senso comum de que informação de ampla relevância é a mais propensa a ser compartilhada. Na análise do autor, uma pauta que possui um público enorme pode ser menos compartilhada quando comparada a pautas de interesse de pequenas minorias. O autor dá o exemplo de um público de um esporte 23 impopular, como o pólo aquático, por exemplo, que pode gerar menos engajamento percentualmente do que uma grande massa de receptores sobre futebol. No entanto, há a suposição que afirma que ter um público mais amplo não significa, necessariamente, que notícias sobre o tema serão espalhadas de forma massiva. A questão do ímpeto do compartilhamento acontece de maneira surpreendente à proporção: “embora conteúdo de ampla relevância possa ser mais compartilhado, o fato é que conteúdo de relevância óbvia para uma plateia restrita poder ser mais viral”. Isso porque, segundo o autor, em âmbito individual, as pessoas recebem informações teoricamente classificadas como “impopulares” e se lembram de alguém de seu círculo social. Por associação imediata e ligação afetiva, o receptor se sente muito mais impelido em compartilhar tal informação com a pessoa a quem o assunto se liga, dando sua contribuição à disseminação em cadeia da informação. Isso atinge diretamente o potencial que os memes representam. Se, por um lado, as informações formais (de característica jornalística) têm a possibilidade de viralizar no grande público, os memes já nascem com este propósito. No entanto, pretendem atingir um público restrito e seleto, que irá compreender as referências do material e interpretar da forma correta, o bastante para que o indivíduo seja impelido a repassar o meme para seus contatos. A cadeia, então, é formada por pessoas que compreendem a piada / associação graças à uma bagagem cultural semelhante neste sentido. Por isso, a comunidade consumidora de memes é bastante simpática. Seus membros se reconhecem entre si pelo simples fato de terem a mesma percepção bem- humorada sobre determinados temas. Cria-se uma empatia instantânea entre estes indivíduos, fortalecendo cada vez mais o cenário onde os memes atuam. Consequentemente, a opinião deste grupo seleto é influenciada de maneira direta, rápida e de maneira quase simbiótica. Dentro destes grupos, observamos algo muito fiel ao que Blackmore e Dawkins abordaram em suas observações a respeito da memética como formadora de um ambiente social. Berger cita o exemplo de dois restaurantes, um vazio e outro cheio. As pessoas são mais influenciadas a acreditar que o restaurante cheio é melhor do que o vazio. Esta afirmação vem do fato do pressuposto de que se outras pessoas estão lotando o estabelecimento e comendo ali, ele é bom. De forma contrária, se ninguém está sentado comendo no segundo restaurante, a vontade de ter uma experiência ali se reduz a quase zero. De alguma maneira, os indivíduos buscam a legitimação das informações através do que os outros pensam ou agem sobre elas. 24 As pessoas com frequência imitam aqueles ao seu redor. Vestem-se no mesmo estilo que os amigos, escolhem as entradas preferidas de outros clientes do restaurante e reutilizam mais as toalhas do hotel quando pensam que os outros estão fazendo o mesmo. Os programas de TV usam gravações de risadas por esse motivo: as pessoas ficam mais inclinadas a rir quando ouvem outras rindo”. (BERGER, 2014, p. 136 e 137). De alguma maneira, os indivíduos buscam a legitimação das informações através do que os outros pensam ou agem sobre elas. E a medição desse termômetro varia entre retuítes, compartilhamentos e muitos, muitos joinhas. Dentre estas primeiras análises, é possível, portanto, determinar que os memes ultrapassam as barreiras do mero entretenimento digital e penetram na esfera capaz de atuar diretamente na formação da opinião pública. Observando sua vida útil - nascendo, vivendo, se reproduzindo e morrendo dentro da Web 2.0 - torna-se curiosa a observação do humor, muitas vezes considerado leviano, tomando o lugar de protagonismo em uma comunidade com tanto potencial de influência social. Sendo assim, os memes abrem um novo e inexplorado campo para compreendermos como os indivíduos e a coletividade formam seus posicionamentos e certezas de forma tão complexa e, muitas vezes, até mesmo inconsciente. CAPÍTULO 3 O HUMOR COMO FERRAMENTA QUE NOS LIGA AO OUTRO No programa do Bolinha (¹), havia uma dançarina que nunca sorria. O programa, que ficou no ar por mais de 30 anos na TV Bandeirantes, era um sucesso nas tardes de sábado e, Zulu, a bolete polêmica, era parte disso por levantar no o mistério do “por que ela não ri?”. Durante anos, o programa alegre com atrações musicais popularescas ganhava ares discrepantes com a dançarina que nunca esboçou sequer um sorriso para as câmeras. Em 2018, após 24 anos da extinção do Programa do Bolinha, Zulu revelou em outro programa da TV Record (²), após muitas chamadas para atrair a audiência, que sofria de paralisia cerebral. Por isso, não conseguia sorrir. Trazendo esse, que é um dos casos mais icônicos do entretenimento televisivo brasileiro à luz das pesquisas científicas em torno do riso e do humor, compreendemos que o riso é inerente ao ser humano, salvo condições extremas como a da dançarina. O riso é uma das primeiras expressões do ser humano e estudos sólidos ao redor do mundo têm garantido 25 que o ato de rir pouco tem a ver com a graça em si, mas sim com o desejo de se conectar com outras pessoas[FM1]. Na tentativa de mergulhar a fundo nas motivações do riso e do humor, bases fundamentais para o estudo do efeito dos memes na sociedade atual, chega-se à edição especial da revista americana Time, de setembro de 2018. Com todo conteúdo voltado à compreensão da risada e seus desdobramentos psicológicos, físicos e sociais, a revista nos deu uma luz quanto à necessidade de rir. O jornalista e escritor Kostya Kennedy abre a edição com uma reportagem que investiga os fatores de motivação do riso e, embasado nos estudos do neurocientista comportamental e professor da Universidade de Maryland, Robert R. Provine, descortina a comunicação por trás do rir. Em tradução livre, o autor do artigo diz que não é comum as pessoas rirem quando estão sozinhas, salvo quando estão lendo ou assistindo alguma coisa. Você não ri sozinho porque isso é um comportamento social e, acima de tudo, a risada é uma maneira de se comunicar. __________________________________ ² Apelido do apresentador de televisão Edson Cabariti Cury, cujo programa foi ar de 1973 a 1994 na TV Bandeirantes. Bolinha faleceu em 1º de julho de 1998. ³ Entrevista concedida ao programa Domingo Show em 22/7/2018. Provine, que é referência mundial no estudo do riso, é ainda mais enfático: “Quando você ri, você está mandando uma mensagem”. Portanto, compreende-se que a piada em si, ou o motivo pelo qual são arrancadas risadas de alguém, passa a ocupar o segundo plano na compreensão do humor. A atenção deve estar focada no significado dessa expressão que movimenta 15 músculos faciais e, comprovadamente, ajuda na manutenção da boa saúde por suas propriedades terapêuticas. De acordo com os estudos do neurocirurgião, as pessoas são 30 vezes mais propensas a rirem quando há alguém por perto. O verdadeiro estímulo, portanto, é a presença do outro e o desejo de se conectar com ele. Isso explica o porquê de algumas piadas fazerem sucesso com algumas pessoas e com outras simplesmente ganharem um sorriso de canto de boca em demonstração de tédio. O que ocorre é que o humor tem diferentes significados para cada indivíduo e isso se dá pelo seu contexto histórico, perfil psicológico e até mesmo pela geografia. Já segundo pesquisas realizadas pelo professor associado de Marketing e Psicologia na Universidade do Colorado em Boulder, Peter McGraw (2014), os americanos são mais propensos a rir de piadas em que se mostre superioridade em algum dos personagens 26 da narrativa. Já os europeus, segundo o pesquisador, estão mais inclinados a achar graça de piadas cuja mensagem transmita ironia, desconforto psicológico ou nervoso / ansiedade. Seria a propensão do brasileiro rir de sua própria desgraça, no mais puro estilo “quanto pior melhor”? Estaria o conceito da “síndrome de vira-latas” fazendo sua demonstração prática e atualizada? Recortando o cenário do humor brasileiro dentro da Web 2.0 com bastante apreço pela cultura trash, intimamente ligada à produção, consumo e compartilhamento de memes, consideramos a hipóteses de que o brasileiro desenvolveu um humor peculiar e autodepreciativo. A visão humorística sobre a realidade política se mostra, no ambiente da web 2.0 e de acordo com o recorte que este trabalho faz em torno do processo de impeachment de 2016, autodepreciativa e cínica. No entanto, há um contraponto elucidado pela jornalista americana Alexandra Sifferlin a respeito deste processo autodestrutivo do humor. Na reportagem “Seria a pessoa mais engraçada desta sala também a mais triste”? a autora, entrevistando McGraw, tenta encontrar respostas para os altos níveis de depressão encontrados em profissionais do humor. Sobre isso, Mc Graw diz: Nossas pesquisas têm mostrado que a tentativa de fazer o outro rir faz com que as pessoas pareçam mais problemáticas do que elas realmente são [...] O humor joga com tabus, fala sobre coisas que podem ser julgadas como erradas. Para fazer alguém rir sobre estas coisas, você precisa agir como um ‘bobalhão’. (MC GRAW, 2008, p.54). Já para a outra psicóloga entrevistada na mesma matéria, Deborah Serani, da Universidade de Adelphi, a dificuldade de receber e absorver críticas negativas faz com que os comediantes se auto critiquem, numa tentativa de concordar com seu algoz imaginário para evitar a decepção e a angústia pela opinião alheia. “Isso porque as criações de quem faz humor é estreitamente ligada à sua essência pessoal. Em sua identidade, não há como separar a figura pessoal do comediante”. A discussão elucida alguns pontos obscuros sobre a complexa relação entre humor e autoflagelo, porém a ligação entre o fazer rir e a depressão ainda mostra que há muito a ser estudado. Ainda mais quando, nos Estados Unidos há mais de 16 milhões de pessoas diagnosticadas com depressão. Mudando o foco para o Brasil, a situação é tão alarmante quanto a dos EUA. Por aqui, mais de 11 milhões de brasileiros são considerados depressivos pela OMS, apontando a doença em 5,8% da população. É o maior índice de depressão na América Latina. 27 3.1 Do que você está rindo? Para compreender a base do humor na internet, recorramos aos motivos pelos quais as pessoas, em suas diversidades de pensamento e contextos sociais, mostram os dentes em gargalhadas ora escandalosas, ora mais contidas. Fundando a base do pensamento de Kennedy, Bergson (2001) trata o humor à luz da causa e não do objeto em si, ou a piada. Para compreender o riso, é preciso colocá-lo em seu meio social que é a sociedade; é preciso, sobretudo, determinar sua função útil, que é uma função social. Essa será – convém dizer desde já – a ideia de todas as nossas investigações. O riso deve corresponder a certas exigências da vida em comum. O riso deve ter uma significação social. (BERGSON, 2011, p. 6). Dessa maneira, o autor nos levanta a hipótese de que, quaisquer que sejam as formas de se fazer rir, quaisquer que sejam os formatos, intenções, estruturas de piadas ou ainda modos de serem compartilhadas as mesmas, nenhum destes quesitos seria suficiente para determinar aquilo que funciona e aquilo que não funciona no humor. A isso, soma-se a contextualização pessoal e intransferível do receptor, responsável por ambientar a mensagem em seu consciente e ligar os pontos de informações aleatórias que acabam gerando graça. Portanto, chegamos à conclusão de que o grande segredo do humor está no receptor da mensagem, não no remetente e tampouco na mensagem em si. Bergson, neste contexto, afirma que o riso não pode ser compreendido dentro da alçada estética – universo ao qual ele não pertence. A comicidade, para ele, mora no momento exato em que a pessoa e a sociedade, livres do senso de conservação, começam a se tratar mutualmente como elementos espetacularizados. Ao rir de algo ou alguém, retira-se qualquer senso emocional para dar lugar exclusivamente à inteligência pura. Quando tratamos de humor, o caminho antropológico permanece basicamente o mesmo, formando, junto com o riso, uma relação simbiótica indissociável. Santos e Rossetti (2012, p. 35) também concordam na ideia de que só existe humor quando há contexto social. “O humor precisa ter atitudes humanas que tenham ligação com uma sociedade, com uma cultura”. Ao nos distanciarmos da causa e nos aproximar da consequência do riso, chegamos ao consenso de que o humor e o fazer rir é característica ao ser humano. 28 Na verdade, no tocante às artes audiovisuais, podemos considerar o humorista como um voyer dotado de um fino sense of humor e de um sense of nonsense. Um tanto cínico, não se deixando levar pela catarse da arte clássica, o humorista prima por uma queda pelo distanciamento brechtiano que lhe permite ver o outro sob novos ângulos. (SANTOS; ROSSETTI, 2012 p.12) Podemos compreender, dessa maneira, por um ângulo mais aberto, que quem faz rir observando as características mundanas de uma sociedade ou de um outro indivíduo, nada mais é do que um cronista do seu tempo, cujas ferramentas estão vulneráveis ao que a evolução tecnológica se preza a entregar. Neste contexto, há também que se referenciar a questão que diferencia a discussão cotidiana da discussão política (SCHEUFELE, 2000), o que nos abre diversas possibilidades de interpretação da graça e do riso. Para o autor, as duas são práticas bastante distintas, porém complementares e imprescindíveis para a construção de um verdadeiro ambiente democrático dentro de um país. Enquanto a conversa cotidiana estabelece laços peculiares entre atores da sociedade que trocam ideias e experiências sobre a rotina de vida, trabalho e relacionamentos, a discussão política agrega aos interlocutores uma legítima preocupação em encontrar soluções, mesmo na discordância de seus pontos de vista. Imaginar o cenário das mídias sociais de hoje nos dá a ideia do que realmente ocorre por lá, uma preocupação legítima, porém, em grande parte translúcida no tocante ao “fazer por onde”. Em outras palavras, vivenciamos a política no ambiente digital de maneira observatória, camuflados sob avatares e protegidos do embate dialético presencial, mesmo que, por vezes, esta prática culmine em ações na realidade física. Os protestos políticos e manifestações da ordem democrática da livre expressão organizados através destes meios são alguns exemplos válidos. Voltando ao cenário web e à luz teórica de Scheufele, podemos observar um fenômeno contraditório e curioso permeando a participação política dentro da internet 2.0. Neste ambiente, vemos a promoção da discussão política espontânea por agentes que, fora do cenário digital apenas se preocupariam com a discussão cotidiana. Pelo bem ou pelo mal, houve uma espécie de alastramento do desejo de participação política, mesmo que este se restrinja apenas e tão somente aos caracteres eletrônicos publicados no Twitter ou no Facebook. A participação política, neste caso, seria legítima ou apenas uma fachada para o comportamento de manada impulsionado pela necessidade de fazer parte de uma horda do ser 29 humano, tema já destrinchado em Psicologia das Massas e Análise do Eu no início do século XX (FREUD, 1921)? Fazendo uma pausa no entendimento comportamental e seguindo o caminho para a compreensão crítica deste fenômeno contemporâneo, esbarramos também no conceito de Prosumerism (TOFFLER, 1980), que destitui as barreiras que separavam o produtor do consumidor, trazendo características de atuação na própria economia. O termo Prosumerism, cunhado em 1980 pelo futurista Alvin Toffler quebra um paradigma de até então que estipulava a existência de um produtor de informação e um consumidor dessa informação, teoria preconizada por Marshall Mc Luhan em 1972. Jornais, revistas, canais de televisão e estações de rádio, por exemplo, se situavam em um patamar diferente de onde se encontravam os consumidores das notícias produzidas por tais meios. No entanto, de acordo com o texto do livro A Terceira Onda, o autor afirmava que a distância entre o produtor de conteúdo e o consumidor teria a oportunidade de ser encurtada até ser fundida. Tudo graças à tecnologia que caminhou, a partir de então, a passos largos em direção à conectividade de pessoas e à diminuição das barreiras geográficas e de conhecimento. Temos hoje, mais uma vez e de acordo com o previsto por Mc Luhan e Toffler, uma produção de conteúdo diária, massiva e incontrolável que independe da regulamentação da mídia e que dilui, cada vez mais os papeis exclusivos do produtor e do consumidor de mídia. Quer dizer, o conteúdo dissipa-se de maneira horizontalizada nas mãos do cidadão comum, desde que ele compreenda as características da sua mensagem, do seu canal e do modo de distribuição do conteúdo. Quem produz o conteúdo político e humorístico, por exemplo, – que faz rir, refletir ou que simplesmente quer atingir a corrente adversária de modo a caçoar de seus pontos fracos – é também quem consome. Na rede mundial de computadores desaparece, portanto, o núcleo centralizador da informação e a Terceira Onda se concretiza sobre o compartilhamento de conteúdo. De forma complementar, fazemos aqui um contraponto ao que José Marques de Melo explorava em seus estudos. O jornalismo, portanto, deixa de ser a única e a mais massiva forma de trabalhar com a opinião pública, entremeando a sociedade com suas diversas modulações: charges, colunas, opiniões, reportagens com objetivos claros (ou não) de persuasão. O jornalista não é o único personagem detentor da capacidade de influência massiva, cedendo espaço também para o homem e a mulher comuns que possuem acesso à 30 internet e a mínima competência para expressar seus posicionamentos técnico e socialmente de maneira clara e compreensível. Sobremaneira, a opinião pública é hoje deveras influenciada pelo fazer rir, cuja fonte não é um veículo, um grupo de comunicação, quiçá um grupo de teatro que estuda a linguagem do humor há décadas: a mensagem, a recepção e a destinação da graça – especialmente aqui, debruçada sobre a política, - fecha-se no ciclo entre cidadãos comuns e meio, que são as redes sociais intermediadas por soluções tecnológicas. E esses conteúdos independem da vontade ou da liberação de interesses corporativos, assim como fogem absolutamente da sua capacidade de controle. 3.2 Humor como protesto: o alívio cômico de uma sociedade desesperada Em seu ensaio sobre a significação da comicidade, Henri Bergson (2001) exemplifica o fazer rir com dois rostos semelhantes que, observados individualmente não causam riso, porém, quando colocados lado a lado causam graça justamente pela semelhança inesperada. Para o autor, achamos graça em situações que vão contra a natureza humana ou que, pelo menos, representam uma quebra de expectativas em narrativas previsíveis. Que o leitor analise sua impressão diante de dois rostos que se assemelham demais: pensará em dois exemplares tirados de um mesmo molde, ou em duas impressões do mesmo cunho, ou em duas reproduções do mesmo clichê; enfim, num procedimento de fabricação industrial. Essa inflexão da vida na direção da mecânica é a verdadeira causa do riso. (BERGSON, 2001, p.25) Há também, ainda em Bergson, a ideia de que tudo o que parece antinatural é passível de ser engraçado. Um ator usando uma máscara, por exemplo, pode servir como comparação a um canteiro de flores artificiais, como alguém vestido como se estivesse fantasiado, um transeunte que tropeça na rua e quebra a característica narrativa de sua caminhada, uma mulher sem classe alguma em uma festa tentando se adequar ao ambiente refinado com roupas, trejeitos e vocabulários que não lhes são espontâneos, ou ainda algum político exercitando sua hipocrisia em uma votação pública sobre um processo de impeachment. As máscaras sociais estão por todo lado e, compreender que elas despertam o riso desde as mais remotas apresentações do teatro grego, nos ajuda a contextualizar o porquê de a anedota política parecer tão engraçada aos olhos do cidadão comum, mesmo que este cidadão 31 também se utilize de uma máscara cômica que esconde, porventura, olhos marejados pelo desamparo. Assim, entendemos que o ato de achar graça apenas vem de um contexto onde quem ri possui conhecimento da sua própria realidade ou que, ao menos, associa mentalmente as informações trazidas na mensagem. Para fazer rir, é imprescindível que os pontos possam ser ligados pelo receptor da mensagem e promova, desta forma, a interpretação desejada. Por exemplo, só rimos de um político que faz um discurso na televisão quando sabemos – ou ao menos desconfiamos - as falácias ali presentes. Isso quando não há gestos inesperados na ação como tiques nervosos ou alterações bruscas na entonação da voz, considerados motivações físicas. No entanto, quando o ato de discursar parece, plasticamente perfeito, podemos achar graça sobre suas entrelinhas, analisando a subjetividade das palavras proferidas e contextualizando suas intenções de caráter duvidoso. Com os memes é, basicamente, a mesma situação: eles só são absorvidos da maneira para a qual foram criados para ser se as referências contidas sejam plenamente reconhecidas. A imagem, assim como o texto ou vídeo, ou fala ou gesto, precisam encontrar amparo nas informações previamente sedimentadas na bagagem cultural do interlocutor. Do contrário, parecerá algo sem sentido e desprovido de qualquer graça – a pior das hipóteses para quem deseja arrancar o riso com alguma anedota, piada, ou chiste. A atitude do humor esbarra propositalmente naquilo que está ou é estratificado e normatizado, vai de encontro ao que está estabelecido e que se baseia nas expectativas, brinca e ri das continuidades previsíveis e dos personagens calcificados pelo cotidiano. Sua ação tende a desestabilizar aquilo que se diz normal, ou que se pensa ser ‘natural’. Na verdade, nada pode ser tratado assim e o humor é a principal ferramenta a contestar ou demonstrar o fluxo instável da vida e da sociedade desmascarando-a da carga simbólica da rotina. (SANTOS e ROSSETTI, 2012, p. 286) Sem a intenção de aprofundarmos a pesquisa no pântano da psicologia, porém com a necessidade de trazer o estudo à sua luz, temos de levar em consideração dois fatores bem familiares para compreendermos a atitude do riso. São elas o comportamento individual e o comportamento em massa. Em sua análise sobre a obra Psicologia das Massas e Análise do Eu, Goldenberg (2017) explica o senso-comum na psicologia de que ambos os comportamentos são distintos, podendo ser até opostos e incoerentes no mesmo indivíduo quando ele se encontra sozinho e ou em bando. 32 No entanto, o diferencial nas ideias freudianas é que as “forças do desejo” que movem o indivíduo no fluxo do grupo são recalcadas ou controladas enquanto ele está sozinho. Ou seja, todo comportamento individual dentro de um bando é nutrido não por algo externo ao indivíduo – que poderia ser considerado como influência – mas sim motivações inerentes e pré-existentes no mesmo. O autor cita o exemplo das torcidas de futebol. Neste caso, um pacato trabalhador e pai de família que nunca demonstrou agressividade, pode se tornar um líder que, aos berros e palavras violentas, incita os semelhantes em direção ao grupo de torcedores adversário. O torcedor, na ocasião, não deixa de ser o pacato pai de família, porém a força que o grupo exerce sobre ele estimula a libertação de comportamentos suprimidos durante o desempenho de seus outros papeis sociais. Com base neste pensamento, a agressividade existe dentro do seu Eu, porém, enterrada sob camadas de expectativas, culpas, bom-senso, ou diversas determinações sociais e familiares. O achar graça em piadas de cunho sexista, poderá, portanto, fazer submergir pensamentos da mesma ordem até então sucumbidos pela preocupação em parecer como tal diante de uma sociedade que condena este tipo de comportamento. No momento em que este indivíduo compartilha uma piada sexista da qual riu, ele está buscando despertar a mesma reação de riso em pessoas que lhes são “iguais”, com a mesma probabilidade de ter despertado algum pensamento de ordem misógina. Neste caso, alguns memes contra a imagem da ex-Presidente Dilma Rousseff flertaram muito mais com o sexismo do que com a política em si, como veremos no capítulo seguinte deste trabalho. Quando trazemos essa observação para o campo do humor, é fácil compreender porque um indivíduo não faria uma piada sobre mulher durante um jantar com alguma mulher, mas seria um efetivo compartilhador de memes antifeministas em sua rede social. Neste caso, a ausência de possibilidade de enfrentamento direto ou instantâneo estimula o comportamento parecido ao de um indivíduo que, no anonimato, sente-se empoderado a disseminar seus mais obscuros pontos de vista. A sensação de anonimato é um poderoso estimulante para o compartilhamento de um tipo de humor que diminui ou critica de forma agressiva alguma figura conhecida. Em um grupo específico de Whatsapp por exemplo, pode também existir a validação de um grupo com pensamento semelhante ao do indivíduo em questão, portanto, ele sente-se confortável em disseminar determinado conteúdo pois tem a certeza de que irá provocar riso em outros indivíduos pertencentes a esta rede social. 33 O provocar riso é uma ferramenta que nos liga ao outro, mesmo que seja por poucos segundos onde a empatia momentânea passa a seguinte mensagem ao receptor e ao destinatário da piada: “ele fala a minha língua, estou em casa, ele é alguém como eu, portanto, não apresenta risco ou ameaça”. Não seria, então, assertivo afirmar que muitos que compartilham piadas de cunho político na internet – rechaçando uma posição X e atacando posição Y –pensariam duas vezes antes de fazer tais comparações em consideração aos seus interlocutores em um ambiente de convívio real? A princípio, parece que sim. E o ato de compartilhar ideias e posicionamentos políticos dialoga muito com a motivação pelas quais pessoas compartilham produtos, promoções ou ainda dicas práticas para o dia-a-dia, de acordo com Jonah Berger. As coisas que os outros nos falam, mandam por e-mail ou mensagem têm impacto significativo sobre o que pensamos, lemos, compramos ou fazemos. Visitamos os websites que nossos vizinhos recomendam, lemos livros que nossos parentes elogiam e votamos em candidatos que nossos amigos apoiam. O boca-a-boca é o fator primário por trás de 20% a 50% de todas as decisões de compra. (BERGER, 2014, p.10) Em um breve comparativo, se gastamos nosso dinheiro apoiados em uma experiência de outrem, se passamos a apoiar um político porque pessoas que nos são simpáticas também apoiam, se abraçamos causas que um círculo de convivência social abraçou, por que não iríamos rir das piadas das quais a nossa bolha cibernética está tirando sarro? O compartilhamento de informações, de acordo com Berger, tem suas motivações plantadas no desejo de fazer parte de algo maior, o que dialoga perfeitamente com o pensamento freudiano que cunha a necessidade gregária de todo ser humano. No fim das contas, queremos alguém pra rir junto com a gente e ter, nas entrelinhas da subjetividade deste ato, a certeza de que temos respaldo social e de que não, nós não estamos sozinhos. 34 CAPÍTULO 4 UMA ANÁLISE SOBRE MÍDIA COMPARTILHÁVEL Se, do início do século XX até sua década final, o poder de influência de um veículo de comunicação era mensurado pela sua distribuição, hoje, a situação se apresenta pouco ligada ao contato direto e muito mais ao seu potencial de ser multiplicada entre as várias camadas sociais. Um jornal tradicional da década de 1970, por exemplo, poderia ter seu poder de influência na opinião pública através dos números de assinantes ou de vendas, o que representava, de modo categórico, a quantidade de cidadãos quase exata que estavam consumindo o seu conteúdo. Dessa forma, os grandes conglomerados de comunicação sabiam 35 quantas pessoas estavam aptas a inclinar seus posicionamentos a respeito de questões políticas e sociais de acordo com a agenda do veículo. Hoje, passando pelo nascimento da internet e seu desenvolvimento semântico e tecnológico podemos afirmar que a influência de um portal de notícias, a título de exemplo, pode ser medida por ferramentas precisas. Estas mesmas ferramentas, no entanto, não mensuram apenas a quantidade de pessoas que entraram no endereço eletrônico em questão, mas quantas chegaram através de links externos, de outras plataformas digitais, de redes sociais, de motores de busca (Google), entre outras. A moeda que mais vale entre os produtores de conteúdo online – não só apenas os grupos de mídia e veículos de comunicação – deixa de ser a distribuição direta e passa a ser a indireta. Ou seja, o potencial de compartilhamento de uma notícia passa a ser tão ou mais relevante quanto a própria notícia. A mídia compartilhável é focada na lógica social e nas práticas culturais que possibilitaram e popularizaram essas novas plataformas. Esta lógica explica o ‘por que’ compartilhar se tornou uma prática tão comum, não apenas o ‘como’. (JENKINS, FORD e GREEN, 2013, p.20) Para Jenkins, as novas mídias e ferramentas democratizaram a comunicação entre os cidadãos comuns, enquanto que as mídias passaram a perder o controle dos cidadãos em uma relação inversamente proporcional. Sobe o poder comunicacional do povo, cai a concentração da informação entre as empresas de comunicação. E, justamente, por estar diante deste novo cenário de mudança de foco da distribuição do conteúdo para a sua circulação, é que o cenário da produção de informação passa por mudanças drásticas, tanto na articulação das forças de trabalho quanto na entrega da mensagem aos seus receptores. Não há um único meio de distribuir uma notícia ou ponto de vista. As possibilidades são incontáveis. O termo “Cultura Participatória” foi designado por Jenkins (1992) para descrever as interações culturais e sociais de comunidades de fãs, como uma forma de diferenciar, primariamente, as atividades de cidadãos “apaixonados” ou, em termos mais adequados aos dias de hoje, engajados, de outras formas de espectadores. Este recorte na interação entre produtor de conteúdo e público foi extremamente importante para compreendermos a atuação de grupos específicos dentro de uma sociedade, cujos integrantes compartilham visões e interesses em comum no momento de consumir informações. 36 Como o conceito tem mostrado, ele [cultura participatória] refere-se ao rol de diferentes grupos implantando produção e distribuição de mídia para servir aos seus interesses coletivos, assim como vários pesquisadores têm feito considerações que ligam o comportamento de fã ao discurso de participação na mídia e através dela. (JENKINS et. al, 2013, p. 19) Sendo assim, percebemos que os interesses de pequenos e grandes grupos vão moldando e modificando a si mesmos, como organismos vivos que procurassem meios para se sobrepor uns aos outros através da legitimação de seus comportamentos, pontos de vista e opiniões. Para compreendermos o papel dos memes na internet como a conhecemos atualmente, é fundamental resgatar seu desenvolvimento historicamente. Hoje, rotulada por muitos especialistas como Web 3.0 (PALFREY E GASSER, 2011), a internet pode ser entendida como uma rede semântica onde a publicidade online e o consumo de conteúdo acontece de forma inteligente e intuitiva, baseados em comportamentos e pesquisas prévias do usuário. Nossa época atual é considerada também o auge da customização do consumo online, adequado às preferências e qualidade dos relacionamentos de indivíduos dentro da internet. Os memes, por sua vez, ultrapassaram a web 2.0 e chegam a esta (hoje nem tão) nova internet como uma forma de organização sistêmica e compactação de posicionamentos políticos, em uma mistura de papel social com humor. Esta mistura, antes da época da conectividade, era exclusividade de uma imprensa tradicional e controlada por poderosos conglomerados de comunicação (Mc COMBS, 2014) A opinião pública, portanto, passa a permear diferentes grupos sociais que se ajustam a uma série de interesses coletivos, alimentados pelas percepções individuais que são influenciadas, por sua vez, pelo meio em que se encontram. Ao observar este ciclo, chegamos ao clássico questionamento: quem veio primeiro, o ovo ou a galinha? 4.1 Um olhar crítico sobre memes mais compartilhados durante o Impeachment Dentro do contexto digital, é chamado de meme o fenômeno imagético inserido no ambiente de produção e transmissão cultural através da internet. Na concepção de Knobel e Lankshear (2013), os memes de internet aparecem como manifestação de um conceito batizado de “politainment” (Berrocal, Campos Dominguez e Redondo, 2014). 37 Politainment se refere à junção das palavras “política” com “entretenimento”, uma tentativa de contextualizar o fenômeno contemporâneo que se utiliza dos aspectos ligados ao lazer para difundir ideias, premissas, posições e interesses políticos, que até então, encontravam dificuldades de serem comunicados para um público leigo e avesso às formalidades e pomposidade já bem conhecidas deste universo. Face a esta dificuldade de levar mensagens de cunho político à massa, o politainment coloca uma ponte sobre o abismo entre cidadão comum e a discussão política baseada em fatos e argumentação lógica. E um bom exemplo que ilustra o potencial de abrangência do politainment no Brasil é o perfil Dilma Bolada, criado pelo publicitário carioca Jeferson Monteiro em 2011. O perfil, presente no Facebook (https://www.facebook.com/DilmaBolada/) e Twitter (@diImabr), foi criado espontaneamente como uma paródia da ex-presidente Dilma Rousseff. De um modo bem-humorado, o perfil tecia comentários sobre a rotina no Palácio da Alvorada, situações e entraves políticos de sua época em primeira pessoa, como se fosse a própria presidente comentado. Muitas vezes, o perfil tecia comentários sobre outros assuntos populares com um linguajar muito distante do que seria usado por um perfil oficial de uma figura política, chegando a publicar posicionamentos a respeito das novelas, reality show e outras pautas do entretenimento. Montagem produzida com foto de Dilma Rousseff no centro com outras figuras políticas expressivas em alusão ao reality show Big Brother Brasil. Fonte: http://www.museudememes.com.br/sermons/dilma-bolada/ A mistura entre assuntos políticos reais, linguagem cômica e a quebra de paradigma fez com que o perfil Dilma Bolada conquistasse mais de 1,7 milhões de curtidas no 38 Facebook e 940 mil seguidores no Twitter, números observados em novembro 2016 segundo o website Museu de Memes, referência em pesquisa acadêmica no assunto em território nacional. O encontro entre Rousseff e Monteiro em 2016 foi um grande marco estratégico que impactou diretamente sobre a opinião pública dos usuários das mídias sociais. A partir deste ano, o perfil Dilma Bolada passou a apoiar oficialmente e politicamente a então presidente, fato que ganhou grande importância no desenrolar do processo de impeachment. O humor do perfil já então popular entre os usuários da rede se tornou ferramenta de influência direta e o primeiro case de politainment aplicado na comunidade web. Em 2015 e após uma breve pausa nas atividades da Dilma Bolada (cujos perfis foram suspensos em 23 de julho de 2014), Monteiro se envolveu em uma polêmica quando a então marqueteira do Partido dos Trabalhadores (PT), em sua delação premiada, confessou ter pago R$200 mil ao publicitário para que o perfil Dilma Bolada voltasse ao ar.) Meme produzido com a intersecção de foto de André Dusek com a frase “apenas observando”, popular na linguagem de usuários da internet. https://www.facebook.com/DilmaBolada/ (³) Memes podem ser compreendidos também como artefatos culturais atingindo novas e desafiadoras funções dentro da sociedade contemporânea, não representando mais objetos culturais isolados. Pelo contrário, eles sustentam linhas de pensamentos históricos que são organizadas e detalhadas através do compartilhamento sistêmico de informações. 39 Por outro lado, políticos do mundo inteiro estão tirando proveito dos memes como um tipo de comunicação visual-verbal que podem se espalhar rapidamente na rede online e ajudar a disseminar seus pontos de vista. Um meme político mistura artisticamente cultura popular e política em uma moda incisiva e divertida. (GAMBARATO E KOMESU, 2018, p. 2) ______________________________________ (³) Disponível em https://g1.globo.com/politica/operacao-lava-jato/noticia/publicitario-recebeu-r- 200-mil-para-reativar-dilma-bolada-diz-monica-moura.ghtml - acessado em 12/11 de 2018. Acessado em 12/11/2018. Com efeito, memes podem ser considerados como argumentos visuais que facilitam a compreensão e absorção de pontos de vista políticos, facilitando o caminho da influência através de uma mensagem de fácil deglutição e, contudo, mascarada com características de anedota. Por isso, os memes são (e se passam por) manifestações efêmeras, cujo compartilhamento se dá sem aparente característica maléfica ou ofensiva na esfera da moeda social com o seguinte pensamento comum: “quero demonstrar meu posicionamento a um grupo da qual desejo fazer parte e, com ele, conseguir aprovação social” (BERGER, 2014). O tom jocoso dá ao meme político uma característica superficial de brincadeira que não deve ser levada a sério – de acordo com o entendimento de quem repassa a mensagem sem considerável pensamento crítico, fazendo com que, muitas vezes, o posicionamento se aglutine com uma reação preconceituosa e, neste caso específico com a ex- presidente Dilma Rousseff, alguns memes que flertaram com a misoginia. Diante deste cenário, o humor se compõe como ferramenta útil no poder de influência e a prova disso é o seu potencial de viralização. Por viralização, termo também emprestado da Biologia (assim como o meme – DAWKINS, 1976), entende-se o ato de disseminação espontâneo de um determinado conteúdo. Não devemos, no entanto, confundir os conceitos de meme com viral, uma vez que o meme é uma peça produzida para se tornar viral ou que, de forma espontânea, conquista altos índice de compartilhamento ou engajamento (ou ainda, viralidade). De acordo com Ribeiro, viralizar algum conteúdo não deve ser reduzido à observação de seu alcance – que por ora pode surpreender por níveis acima da média de compartilhamento, leitura ou visualização. A viralização seria, portanto, uma das propriedades dos conteúdos produzidos por, para e nas mídias digitais. “Nesse sentido, a ideia 40 de viralização passou a permear todo o processo comunicativo. Desde a otimização do site [...] à seleção de conteúdo, estilo e packaging de distribuição” (RIBEIRO. 2018, p.19). Portanto, todo meme é um viral, mas nem todo viral é um meme. Já segundo Knobel e Lankshear, a mídia viral se espalha sem modificações, passados de pessoa para pessoa tendendo a morrer em pouco tempo desde o seu “nascimento”. Já o meme passa por alterações criativas dos indivíduos e tendem a ser replicadas constantemente. Os memes se tornaram parte da cultura brasileira, atingindo também a mídia de massa e extrapolando os limites da web. Ou seja, memes se tornam algo maior do que a sua própria definição acadêmica propunha. Um exemplo disso, é a utilização dos memes de internet em comerciais vinculados na televisão (de canais fechados ou abertos). Netflix e Brastemp[FM2], para citar as maiores marcas, se utilizaram deste recurso para aproximar o público nativo digital dos meios de comunicação tradicional. Assim como a charge (MARQUES DE MELO, 1991), por apontar os defeitos, falhas e pontos negativos no outro – entende-se o não semelhante ao receptor da mensagem – o meme político causa riso e o desejo de passa-lo a diante. Novamente, a necessidade de demonstrar a participação em determinados grupos sociais cujos indivíduos são ligados por pontos de vistas ou interesses mútuos, impulsiona o receptor do meme a compartilhá-lo em suas redes sociais digitais. Aqui também, demonstra-se a relação de superioridade de pensamento e desejo de impô-lo ao outro como se fosse desenhada uma hierarquia imaginária válida apenas por quem compactua do riso provocado pela tal piada. Senso de humor indica liderança. Quando sorrimos, é um sinal de confiança, pois o medo e a paranoia são assinalados por caras fechadas, não sorrisos. Os subordinados, os associados, os fregueses e os clientes gostam de trabalhar com alguém que tenha senso de humor. (HELITZER e SHATZ, 2014, p. 4) Diante disso, levantamos alguns questionamentos: o sucesso de certos memes deve-se ao contexto histórico social ou à banalização da política? Ou seriam estes os dois ingredientes principais para impulsionar o engajamento de um meme? De certo modo, parece que a última alternativa se faz a mais plausível. 4.2 Entendendo os memes e sua influência durante o Impeachment 41 A primeira definição acadêmica de meme de internet foi proposta por Davinson (2009, p. 122) em “The Language of Internet Memes”. Segundo o autor, um meme de internet é uma peça de cultura, tipicamente uma brincadeira, que ganha influência através da transmissão online. Embora o objetivo desta pesquisa tenha sido ordenar os memes por categorias nem criar novas classificações, é importante retomar os conceitos de fidelidade, fecundidade e longevidade definidos por Dawkins (1976). Para Dawkins, um meme só pode ser considerado como tal se apresenta as três características citadas acima. Por definição do autor, fidelidade significa que, apesar de um meme ser constantemente repassado e alterado ao contexto de cada usuário, ele ainda mantém determinadas características presentes em sua versão original. E isso pode ser um texto, uma imagem, ou qualquer outro elemento presente no meme. Já fecundidade, representa o poder de compartilhamento de um meme, ou o quanto ele tem de capacidade de se espalhar pela web. E, para aumentar sua “vida útil” na internet, é preciso que a fecundidade do meme seja constantemente mantida alta. Como? Ressignificando seus elementos o máximo possível, como foi o caso do meme “Eu voto sim!”. A frase, aplicada às situações mais absurdas representadas pela imagem única do meme, deu ao mesmo uma graça que não se perdeu tão rápido. O uso da expressão “Eu voto sim” – em alusão à maioria do Congresso que escolheu depor a então presidente – gerou um dos memes mais compartilhados do período do Impeachment (fonte: Twitter) 42 O terceiro item citado por Dawkins, longevidade, vem justamente desta capacidade de “não causar enjôo”. Ou seja, o meme de sucesso também tem durabilidade no ambiente em que circula, não sendo apenas um sucesso de oportunidade relâmpago. Dentro destes três pilares definidos por Dawkins, temos a colaboração de Knobel e Lankshear (2007) que se aprofundam, especialmente, no quesito de fecundidade. Os autores consideraram três padrões que contribuem diretamente para o alto índice de fecundidade de um meme. O primeiro deles é o humor, característica que une diferentes ferramentas para construir um significado convergente com a sua participação em determinados grupos sociais. O segundo fator de fecundidade é a intertextualidade, ou seja, a capacidade que o meme tem de unir dois elementos que, dissociados, têm um sentido e associados, ganham uma linguagem de humor. E o terceiro fator é a justaposição, estratégia que reposiciona um elemento em outro contexto não de modo a parecer real, mas, justamente para ressaltar a atmosfera do “absurdo”. O humor non-sense é muito bem aproveitado nesta característica. Por outro lado, existe a classificação de memes proposta por Dynel (2016), que os caracteriza em três tipos de piadas sendo eles: verbais, visuais e verbais-visuais. Como verbais, temos o exemplo do perfil satírico @temerpoeta – criado em abril de 2016, que publica poesias com versos cômicos sobre exploração, machismo e pensamentos retrógrados em referência à postura conservadora do presidente em exercício Michel Temer logo após o mesmo ter lançado o livro de poesias “Anônima Intimidade”. Em 12/11/2018, o perfil no Twitter contava com 34 mil seguidores. Neste caso, a intertextualidade mencionada por Knobel e Lankshear também pode ser considerada. 43 Fonte: http://www.twitter.com/temerpoeta Um outro exemplo da utilização da justaposição (KNOBEL e LANKSHEAR, 2014) é o meme Tchau, Querida! A frase, retirada de um grampo telefônico cuja divulgação foi autorizada pelo juiz Sérgio Moro, foi o final de um diálogo entre a então presidente Dilma Rousseff com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Ao se despedir, Lula diz a Dilma “Tchau, Querida”. O tom irônico foi aplicado à frase que, retirada de seu contexto original, passou a representar o desejo dos cidadãos favoráveis ao impeachment de se despedir de Rousseff. A frase passou a servir de sustentação a memes que resgataram outras situações de despedida, como a icônica cena do desenho animado Pica-Pau, nas cataratas no Niágara. Neste caso, encontramos referências do meme com e sem alusão direta à frase. 44 Fonte: https://tenor.com/view/bbye-byehoney-politics-gif-12751667 A influência no meio digital do “Tchau, querida” foi tamanha, que também impactou a mídia tradicional, como a Revista VEJA. O meme ganhou espaço na capa da edição de 11 de maio de 2016, fazendo alusão ao Impeachment de Dilma Rousseff e da posterior queda de Eduardo Cunha, então presidente da Câmara dos Deputados. Capa de 11 de maio de 2016 da Revista Veja 45 Diante destas três amostras que representam o potencial dos memes dentro do cenário político, podemos chegar à conclusão de que eles são ferramentas efetivas na transmissão de mensagens políticas. O público, por sua vez, se mostra cada vez mais receptivo a este tipo de arte digital, utilizando os memes como mensageiros de suas próprias convicções e posicionamentos históricos, sociais e políticos. Imagens são mediações entre homem e mundo. O homem “existe”, isto é, o mundo não lhe é acessível imediatamente. Imagens têm o propósito de representar o mundo. Mas, ao fazê-lo, entrepõem-se entre o mundo e o homem. Seu propósito é serem mapas do mundo, mas passam a ser biombos. O homem, ao invés de se servir das imagens em função do mundo, passa a viver em função de imagens. Não mais decifra as cenas das imagens como significados do mundo, mas o próprio mundo vai sendo vivenciado como conjunto de cenas. (FLUSSER, 2[FM3][FM4]002, p.9) E finalizamos esta pesquisa com este pensamento do filósofo da fotografia Vilém Flusser, que condensou toda a relação do ser humano com a imagem. Sendo um meme ou não, a representação imagética ainda é uma das mais importantes formas de conexão com o outro e, principalmente, a ferramenta que nos possibilita enxergar e compartilhar nossa própria relação conosco e com o mundo. 46 Imagens anexas Interesses demonstrados através das buscas no Google pelas palavras “Tchau querida”, “eu voto sim” e “Michel Temer Poeta” durante o ano de 2016. Nas métricas aplicadas pelo Google Trends, 0 significa nenhuma procura e 100 significa altíssimo nível de procura. Pesquisas do termo “Tchau querida” teve o maior pico de busca no Brasil de 17/04 a 23/04 de 2016 Pesquisas do termo “Eu voto sim” teve o maior pico de busca no Brasil na semana de 17/04 a 23/04 de 2016 47 Pesquisas do termo “Michel Temer Poeta” teve o maior pico de busca no Brasil na semana de 15/05 a 21/05 de 2016 CONSIDERAÇÕES FINAIS Durante o tempo dedicado à referente pesquisa, muitos caminhos foram desbravados ao mesmo tempo em que as ligações entre referências e informações eram construídas. De maneira geral, o trabalho é finalizado com a intenção de participar mais profundamente com os estudos brasileiros de comunicação voltados à ecologia digital, demonstrando como e quanto é fundamental voltarmos a atenção para a influência líquida que permeia as redes sociais e suas ferramentas. Seja analisando as motivações humanas para o riso, seja criando pontes entre o ato de compartilhar informações e a política à luz de tratados de psicologia, tive a grata surpresa de estabelecer conexões que não imaginava existirem. O processo de aprendizagem foi intenso e colaborou profundamente para uma visão ampliada dos sistemas comunicacionais que se fazem cada vez mais presentes em nossa vida através dos instrumentos digitais. Os memes, mais especificamente, deixaram de transitar por entre a margem da comunicação real e passam a ser vistos, de uma vez por todas, como instrumentos efetivos de influência, manipulação, transmissão de ideologias e, sobretudo, como modo de afirmação pessoal diante de comunidades distintas. Ora como peças de humor non-sense, ora como munição de campanhas ideológicas, o meme político abraça o seu papel definitivo no ecossistema da internet: hoje, ele já pode ser considerado um fenômeno real de comunicação que desempenha funções de 48 influência tão poderosas como as desempenhadas pelos meios jornalísticos. E que seja estabelecida, permanentemente, a percepção de que um não é inimigo de outro e sim aparelhos dinâmicos complementares. Tanto o jornalismo em sua importante história no desenvolvimento social e político quanto a produção, reprodução e compartilhamento de piadas imagéticas de fundo ideológico, desenvolvem uma participação incontestável no processo democrático brasileiro. Porém, pela sua recente história e caráter disruptivo, os memes ainda enfrentam certa resistência na sociedade e no meio acadêmico para serem considerados parte do processo de informação da sociedade. E, nesta pesquisa, tentamos estreitar este abismo que afasta o meme do seu real papel no dia-a-dia das redes sociais. Diante dos últimos gráficos apresentados, por exemplo, demonstramos o quanto um meme sobre o período político do Impeachment elevou o interesse da população pelos assuntos aos quais eles se propõem a fazer rir. Comprovadamente, os picos de buscas em torno de termos como “não vai ter golpe” ou “eu voto sim” demonstram que mais e mais pessoas desejam saber mais sobre as razões que rondam os acontecimentos políticos, mesmo que a principal motivação para isso parta de uma piada aparentemente ingênua. Por outro lado, compreendemos um pouco mais a respeito dos impulsos pessoais que nos levam a querer compartilhar informações que nos fazem rir: nossa necessidade desesperada para encontrar compreensão e ligações interpessoais de empatia nos motivam a fazer com que outros também compartilhem do nosso deboche sobre alvos em comum. Dividir uma gargalhada, portanto, com um conhecido ou ainda um completo desconhecido, é uma das maneiras mais efetivas de criar laços sociais, nos dando o alento da aceitação de um grupo do qual desejamos fazer parte. Tudo para termos a certeza de que não estamos sozinhos e que nossa visão de vida também é compartilhada pelos nossos semelhantes. Na outra ponta do raciocínio que guiou este trabalho, está a surpreendente ligação da comunicação com a biologia, comprovada pelo resgate histórico do termo “meme”, cujo pai, o biólogo Richard Dawkins, jamais pensaria em emprestar à ciência comunicacional em meados dos anos de 1970. Todas essas ligações fizeram desta pesquisa uma jornada que se voltou para dentro, promovendo uma verdadeira epifania de autoconhecimento dentro de minha atuação em jornalismo digital. E, para dar o último ponto nesta costura de conceitos e ideias, gostaria de deixar uma provocação: o rir é capaz de nos fazer melhores cidadãos atuantes na nossa sociedade? 49 Por mais pessoal e relativa que possa ser a resposta, ainda há espaço para uma sugestão positiva. E que os caminhos da ciência da comunicação continuem sendo construídos simultaneamente aos passos que damos em direção ao desconhecido. A satisfação e a verdadeira graça residem justamente neste processo de descoberta. E que possamos rir mais sob a luz da compreensão do nosso próprio riso. Seja na internet, ou fora dela. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado. 3 ed. Lisboa: Editorial Presença / Martins Fontes, 1980. BAUMANN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 1999. BERGER, Jonah. Contágio. São Paulo: Leya, 2014. BERGSON, Henri. O Riso. São Paulo; Martins Fontes, 2004. BERGSON, Henri. O riso: ensaio dobre a significação da comicidade. 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