unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP MARIO ROBERTO VENERE PROJETO AÇAÍ: UMA CONTRIBUIÇÃO À FORMAÇÃO DOS PROFESSORES INDÍGENAS NO ESTADO DE RONDÔNIA ARARAQUARA – SP 2011 unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP MARIO ROBERTO VENERE PROJETO AÇAÍ: UMA CONTRIBUIÇÃO À FORMAÇÃO DOS PROFESSORES INDÍGENAS NO ESTADO DE RONDÔNIA Alusão ao Projeto Açaí. Imagem criada pelo professor Fernando Naru Canoé, participante do Projeto Açaí. Fonte: Acervo do pesquisador. MARIO ROBERTO VENERE PROJETO AÇAÍ: UMA CONTRIBUIÇÃO À FORMAÇÃO DOS PROFESSORES INDÍGENAS NO ESTADO DE RONDÔNIA Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar da Faculdade de Ciências e Letras – UNESP/Araraquara, como requisito para obtenção do título de doutor em Educação Escolar. Linha de pesquisa: Política e Gestão Educacional Orientador: Prof. Dr. João Augusto Gentilini ARARAQUARA – SP 2011 Venere, Mario Roberto Projeto Açaí: uma contribuição à formação dos professores indígenas no Estado de Rondônia / Mario Roberto Venere. – 2011 204 f. ; 30 cm Tese (Doutorado em Educação Escolar) – Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras, Campus de Araraquara Orientador: João Augusto Gentilini l. Educação indígena. 2. Formação de professores. 3. Política educacional. I. Título. Dedicatória Aos povos indígenas de Rondônia, pela constante luta pela reivindicação de seus direitos à Educação, à Saúde e às suas terras tradicionais, e a todos que, direta ou indiretamente, militam na educação escolar indígena e acreditam em uma mudança por meio da Educação. Aos meus pais, Mario Venere (In memoriam) e Izabel Negri Venere, e aos irmãos Francisco, Maria Tereza, Marcelo, Marcos, Maria de Lourdes, Paulo César, juntamente com suas esposas, esposos, filhos e netos, bem como aos demais que contribuíram das mais diversas formas para a minha permanência na Região Amazônica e o término desta obra. Aos professores de minha graduação, Otavio Augusto Catani Fanalli, Paulo Campos (Paulão), Dr. Gullo, José Índio, Pandofelli e Haydeé Pozzi, pelas orientações e reconhecimento de nossas potencialidades. Especialmente a Francisco José Venere e Lilian Scurachio do Prado Venere e filhos Guilherme, Fábio e Karina Venere, pelos quais foi convidado a conhecer a Amazônia, especificamente os Povos Indígenas de Rondônia. Maria de Lourdes Venere, ao Rogério Wilton Pereira de Lucena, ao Rogério Lucena (Rogerinho), à Isabel Lucena (Isabelzinha) e ao André Venere, (irmã, cunhado e sobrinhos, respectivamente) com os quais convivo na cidade de Porto Velho em Rondônia. AGRADECIMENTOS Ao Professor Doutor João Augusto Gentilini, por acolher a minha ideia de analisar um projeto de formação de professores indígenas na Amazônia brasileira, aceitar o desafio de orientar um projeto com populações indígenas e, ainda, pela sua luta em transformar um professor fotógrafo em um pesquisador. Sua solidariedade, percepção e escuta sensível foram imprescindíveis para a finalização deste trabalho. Aos povos Indígenas de Rondônia (Arara, Aikanã, Amondawa, Arikapu, Cabixi, Campé, Canoé, Cão oro At, Cassupá, Cinta Larga, Gavião, Jaboti (Djeoromitxí), Karipuna, Karitiana, Kaxarari, Kuazá, Latundê, Makurap, Nambikuara, Oro At, Oro Eo, Oro Mon, Oro Nao‟, Oro Waje, Oro Waran, Oro Waran Xijein, Oro Wari , Oro Win, Puroborá, Uru Eu Wau Wau, Suruí, Sakirabiat e Tupari), os quais conheci e passei a admirar desde a minha primeira visita aos meus familiares na cidade de Porto Velho. Ao meu irmão Francisco (Chico Pescador) que, por receber visitas de várias lideranças dos povos indígenas, ouvir histórias e relatos de extermínio de membros de várias etnias daquela região e nada poder fazer, solicitou-me em 1986: “– Mano, senti-me um incompetente: aquelas pessoas estavam sendo trucidadas, exterminadas, e não pude fazer nada para conter aquele fato. Por favor, faça algo que possa contribuir com a população indígena de Rondônia.” Agradeço a todos os professores e professoras indígenas de Rondônia, pela autorização, e atenção durante a minha pesquisa, especialmente aos amigos Antenor Karitiana, Armando Jabuti, Arão Oro Waram Xijein, Eva Canoé, Josias Cebirop Gavião, Zacarias Kapiaar Gavião. Cujas participações foram importantes para fazer com que esta pesquisa acontecesse. A Organização dos Professores Indígenas de Rondônia (OPIRON) e aos representantes da CUNPIR pelo apoio recebido. Ao professor indígena Joel Oro Nao‟, que foi meu aluno na educação básica na cidade de Guajará-Mirim. Hoje, formado pelo Projeto Açaí, responde pela Coordenação Regional da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) nessa cidade. À professora Mary Gonçalves Fonseca, uma das executoras do Projeto Açaí, que, desde a realização da minha pesquisa de mestrado que resultou na dissertação Políticas públicas para populações indígenas com necessidades especiais em Rondônia: o duplo desafio da diferença, forneceu-me informações sobre o Projeto e os índios de Rondônia, além de propiciar o contato com professores indígenas. Ao Professor Zacarias Kappiar Gavião, que aceitou o desafio de ser o primeiro índio a assumir a coordenação do Projeto de Educação Escolar Indígena (PEEI) do Governo de Rondônia na Secretaria de Estado da Educação (SEDUC), ao mesmo tempo em que participava do Projeto Açaí e também era presidente da Organização dos Professores Indígenas de Rondônia (OPIRON). A coordenação do Núcleo de Educação Indigena de Rondônia (NEIRO). À Professora Doutora Carmen Velanga, que acompanha a minha trajetória acadêmica desde a minha chegada, em 1984, à cidade de Guajará-Mirim, estado de Rondônia, cujas valiosas sugestões foram incorporadas, na medida do possível, a esta versão. À Professora Doutora Marilda da Silva, pelas leituras e contribuições na construção do texto em suas versões iniciais, durante a disciplina de orientação da pesquisa e por aceitar, mais uma vez, fazer parte da banca examinadora desta tese. Ao Professor Doutor Edson do Carmo Inforsato, pelo empenho e dedicação na Coordenação do DINTER/UNESP/UNIR e que, com prontidão, aceitou participar da banca examinadora. Ao Professor Doutor Edinaldo Bezerra de Freitas, meu ex-orientador, cuja paciência e sabedoria conduziu-me ao aprendizado sobre as culturas indígenas. Aos responsáveis pela Coordenação Regional da FUNAI/CR/Porto Velho, Guajará-Mirim e Jí-Paraná, Rondônia. Às amigas Lígia, Noely, Cleyde Bezerra, Tânia, Sueli, Augusta Boaventura e demais profissionais da Educação Indígena das Coordenações Regionais da FUNAI - Rondônia, pelas valiosas contribuições nas orientações e na disponibilidade em possibilitar informações e documentos referentes ao Projeto Açaí. Ao Núcleo de Saúde e ao Conselho de Ética da Universidade Federal de Rondônia. Ao Conselho Estadual de Educação de Rondônia, ao Núcleo de Educação Escolar Indígena da SEDUC/RO, pela disponibilização de documentos. Aos servidores da Secretaria de Estado da Educação (SEDUC), Programa de Educação Indígena, Jania Maria de Paula, Ednéia Izidoro, Julcy Mari (in memorian). Aos amigos Celso Ferrarezi Jr, Dorosnil Alves Moreira, Ivete Aquino Freire, Tânia Suely Azevedo Brasileiro, Maria Cristina Victorino de França, Catarina Costa, Eloiza Della Justino, Julio Militão, Flávio Simão, Carmen Claros, Miguel Nenevê, Padre Zenildo e Jacinta Castelo Branco. Agradeço ainda à Universidade Federal de Rondônia, ao CNPq e a todas as pessoas que, de uma forma ou de outra, ajudaram-me a concluir esta tese. Ao Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” e aos profissionais da Propesq/UNIR. Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista – UNESP – Araraquara, pelas disciplinas oferecidas que foram cruciais para a minha formação. A Chefia de Departamento de Educação Física e aos colegas do Departamento de Educação Física - DEFE/Unir: Ramón Nuñhz Cárdenas, Hélio Franklin Rodrigues de Almeida, Ivete Aquino Freire, Eurly Kang Tourinho, Ricardo Farias Santos Canto, João Bernardino de Oliveira Neto, João Guilherme R. Mendonça, Leonardo Severo da Luz Neto, José Roberto de Maio Godoi, Célio José Borges, José Céli Neto, Luis Gonzaga de Oliveira Gonçalves, Juscimara Campos de Oliveira, Daniel Oliveira de Souza, Angeliete Garcez Militão, José Roberto Godoi Filho e, aos demais. Aos amigos com os quais compartilhei moradia durante este período em Araraquara, Antônio Netto Jr, Guilherme Luz Emerick, Rudy Bonfilio e Felipe de Oliveira Souza. Aos amigos do DINTER, Clarides, Célio Borges, Elisabeth Kitamura, Flavine, Francisco Estácio, George, Gisele, João Guilherme, José Carlos, Josélia, Juracy, Lucia Rejane, Carla Martins, Maria do Socorro, Marilsa, Orestes, Rosângela, Sonia Sampaio e Wany Sampaio, pela convivência, apoio e orientação recebidos durante esta longa caminhada. Aos amigos Ricardo Jacó (UnB) e Edson Farias (Ufac) pelo apoio recebido. Ao Professor Dr. Ene Glória, pela implantação do DINTER/UNESP/Unir. Aos técnicos da UNESP e da Unir/Propesq, muito obrigado pelas orientações e empenho na operacionalização do DINTER. Aos amigos do CIMI/Regional Rondônia, Frei Volmir Bavaresco, Emília Altini, Dra. Maria Beatriz (Bia), Dr. Giles e demais membros daquela organização que estiveram atentos às nossas reivindicações. Ao meu sobrinho Fábio Venere, à Carmen Claros e ao Professor Miguel Nenevê, pelas contribuições nas traduções dos resumos. Ao amigo Antônio Netto Jr e à amiga Virgínia Ávila e Ana Réscia colegas de caminhada na Unesp, pelas contribuições importantíssimas neste trabalho e também pelos momentos alegres por que passamos durante nossas marchas para o conhecimento. Aos amigos Celestino José de Souza, Sergio Piologro da Hora, Aparecido Bispo Maria, Armando Gonçalves Grilo e Armando Wanderley Picanço Diniz pela, vivência e aprendizagem. Aos amigos Fankhauser, Canevarollo e seus familiares, obrigado pelo apoio, considerações e amizade. À comunidade guajaramirense, pela nossa acolhida. Muito obrigado! RESUMO Esta tese tem como objetivo analisar o Projeto Açaí – Formação de Professores Indígenas, que se insere no Programa de Educação Indígena desenvolvido pelo Governo do Estado de Rondônia, no período de 1998 a 2004. Este Projeto nasceu de um movimento em prol de uma educação indígena diferenciada, multicultural e bilíngue na década de 1990, que teve como resposta, no estado de Rondônia, a formulação de uma política pública de educação para as comunidades indígenas. A metodologia utilizada foi a de estudo de caso com abordagem qualitativa, além da pesquisa bibliográfica, documental e das entrevistas com professores indígenas. Quanto ao referencial teórico, optou-se pelos estudos realizados sobre a temática e a educação indígena a partir dos conceitos de multiculturalismo, interculturalidade, e alteridade, que se encontram nos documentos oficiais que fundamentam o Referencial Curricular Nacional de Educação Indígena (RCNEI) e as Políticas Públicas de Educação Indígena. Em que pesem os problemas concernentes à execução da gestão do projeto, tais como a falta de condições infraestruturais, currículos inadequados, professores distantes da realidade indígena, esta formação teve, na concepção dos participantes da pesquisa, impacto positivo nas suas práticas. Os resultados da investigação apontam para a contribuição positiva que o Projeto Açaí proporcionou à formação dos professores indígenas no estado de Rondônia. Nesse sentido e, após analisados os impactos e equívocos do projeto, acredita-se em que o mesmo possa subsidiar futuros programas de formação, desde que se respeite a diversidade cultural e a realidade a que se destinam. Palavras-Chave: Educação Indígena – Formação de professores Indígenas - Política Educacional – Gestão da Educação Indígena. ABSTRACT In this thesis we aim at analyzing Acai Project - Indigenous Teachers Education, a part of the Indigenous Education program developed in the State of Rondonia, from 1998 to 2004. This project grew out of a move towards a differentiated, bilingual and multicultural Indigenous education, in the 1990s. This program was an answer to the need, in Rondonia state, of a policy for public education to indigenous communities. The methodology used was a case study with a qualitative approach, besides researching the literature in the area, documentary investigation and interviewing indigenous teachers. Our theoretical support comes from studies on education and multiculturalism as well as the National Curriculum for Indigenous Education and Public Policies for Indigenous Education. In spite of the problems concerning the implementation of the project management, such as lack of infrastructural conditions, inadequate curriculums, teachers´ alienation from the indigenous reality, this program was regarded by people involved in it, as positive concerning the practices evaluated. Our study reveals that the Asia Project brought a positive contribution to indigenous teachers in the state of Rondonia. In this sense, after analyzing the impacts of the project and some misconceptions, we believe that the project should support future Indigenous education programs, provided that they respect cultural diversity and the Indigenous reality. Keywords: Indigenous Education - Indigenous Teacher Education - Educational Policy - Management of Indigenous Education RESUMEN Esta tesis tiene como objetivo analizar el Proyecto Asaí – Formación de Profesores Indígenas, que se insiere en el Programa de Educación Indígena desarrollado por el Gobierno del Estado de Rondônia, en el período de 1998 a 2004. Este Proyecto nasce de un movimiento a favor de una educación indígena diferenciada, multicultural e bilingüe en la década de 1990, que tuvo como respuesta, en el Estado de Rondônia, la formulación de una política pública de educación para las comunidades indígenas. La metodología utilizada fue la del estudio de caso con abordaje cualitativa, más allá de la investigación bibliográfica, documental y de las entrevistas con profesores indígenas. Cuanto al referencial teórico, se opto por los estudios realizados sobre la temática y la educación indígena a partir de los conceptos de multiculturalismo, interculturalidades, y alteridades, que se encuentran en los documentos oficiales que fundamentan el Referencial Curricular Nacional de Educación Indígena (RCNEI) y las Políticas Públicas de Educación Indígena. En que pesen los problemas concernientes a la ejecución de la gestión del proyecto, tales como la falta de condiciones infraestructurales, currículos inadecuados, profesores distantes de la realidad indígena, esta formación tuvo, en la concepción de los participantes de la investigación, impacto positivo en sus prácticas. Los resultados de la investigación apuntan para la contribución positiva que el Proyecto Asaí proporcionó a la formación de los profesores indígenas en el Estado de Rondônia. En ese sentido y, después de analizados los impactos y equívocos del proyecto, se cree que el pueda subsidiar futuros programas de formación, desde que se respecte la diversidad cultural y la realidad a que se destinan. Palabras-claves: Educación Indígena – Formación de profesores Indígenas - Política Educacional – Gestión de la Educación Indígena. RIASSUNTO Questa tesi si propone di analizzare il Progetto Açaí - Formazione d‟Insegnanti Indigeni, che fa parte del programma di Educazione indigena sviluppato dal Governo dello Stato di Rondônia, nel periodo dal 1998 al 2004. Questo progetto è nato da un movimento per un‟educazione indigena differenziata, multiculturale e bilingue negli anni „90, che ha avuto come risposta, nello stato di Rondônia, la creazione di una politica d‟istruzione pubblica per le comunità indigene. La metodologia utilizzata è stata quella dello studio di caso con approccio qualitativo, oltre che la ricerca bibliografica, documentale e delle interviste con gli insegnanti indigeni. Per quanto riguarda il quadro teorico, è stata fatta l‟opzione per studi realizzati sul tema dell'istruzione indigena a partire dai concetti di multiculturalismo, interculturalità e alterità, che si trovano nei documenti ufficiali che costituiscono la base del Riferimento Curriculare Nazionale per l'Istruzione Indigena (RCNEI) e le politiche Pubbliche di Istruzione indigene. Nonostante i problemi relativi all'attuazione della gestione dei progetti, come la mancanza delle condizioni infrastrutturali, curricoli inadeguati, insegnanti lontani dalla realtà indigena, questa formazione ha avuto, un impatto positivo sulle pratiche dei partecipanti alla ricerca. I risultati della ricerca dimostrano il contributo positivo che il Progetto Açaí ha apportato alla formazione degli insegnanti indigene nello stato di Rondônia. In questo senso e, dopo aver analizzato gli impatti positivi e negativi del progetto, si ritiene che esso possa sostenere programmi futuri di formazione, a condizione che si rispetti la diversità culturale e si tenga conto della realtà alla quale vengono destinati. Parole-chiave: Istruzione Indigena - Formazione d‟insegnanti indigene - Politica dell'istruzione - Gestione dell‟istruzione indigena. LISTA DE MAPAS Mapa 01: Terras Indígenas do Estado de Rondônia. .......................................................... 61 Mapa 02: Localização das Terras Indígenas do Estado de Rondônia e entorno. ................ 62 Mapa 03: Sobreposições de terras indígenas, no Estado de Rondônia. ............................. 65 LISTA DE FOTOS Foto 1: Estampa da camiseta - recebimento dos Certificados dos Professores Indígenas do Pólo de Guajará-Mirim, RO, no ato da formatura. ............................................................... 85 Foto 2: Alunos do Projeto Açaí em Aula no Teatro do SESC/RO, assitindo a peça “O Auto da Devassa” . A mesma é uma sátira à catequização do índio Mura do Rio Madeira. ........ 94 Foto 3: Alunos em sala de aula no CENTRER ................................................................... 95 Foto 4: Aula prática realizada no Hotel Rondon Palace, Porto Velho/RO. ........................ 110 Foto 5: Parte do grupo de alunos e professores durante a realização da V Etapa, Pólo Único - Hotel Rondon, Porto Velho/RO, 2001. .................................................................. 113 LISTA DE QUADROS Quadro 1 – Etnias atendidas em Rondônia ........................................................................ 77 Quadro 2 – Municípios atendidos com a educação escolar indígena em Rondônia ........... 78 Quadro 3 – Línguas das etnias atendidas pelo Projeto Açaí – Rondônia ........................... 79 Quadro 4 – Grade curricular do ano de 2004 ..................................................................... 91 Quadro 5 – Relação de cursistas indígenas no Curso de Magistério. ............................... 116 Quadro 6 – Nível de escolarização dos sujeitos da pesquisa ........................................... 117 Quadro 7 – Distribuição das etnias participantes do estudo ............................................. 119 LISTA DE FIGURAS Figura 1 – Planos de aulas desenvolvidos durante a disciplina Prática de Ensino na VII Etapa do Projeto Açaí, ministrada no Rondon Palace Hotel, em Porto Velho, no período de 25/11 a 14/12/2002 ........................................................................................................... 129 Figura 2 – Calendário escolar elaborado durante a X Etapa do Projeto Açaí ................... 130 Figura 3 – Calendário escolar para o povo Oro Nao‟ durante a X Etapa do Projeto Açaí . 131 Figura 4 – Calendário tradicional Ikólóéhj elaborado na escola Zavidjaj Xikov Pi ............. 132 Pòhv. ................................................................................................................................. 132 LISTA DE SIGLAS AIS – Agente Indígena de Saúde ANAÍ – Associação Nacional de Apoio ao Índio ANE – Articulação Nacional de Educação BONDE – Grupo de Trabalho “Mecanismo de Ação Coordenada” BR - 364 – Rodovia Federal Brasileira Mato Grosso-Acre CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior CEEJA – Centro stadual de Educação de Jovens e Adultos CERNIC – Centro de Reabilitação Neurológica Infantil de Cacoal CIMI – Conselho Indigenista Missionário CIMI/RO – Conselho Regional Rondônia CIR – Conselho Indígena de Roraima CNE – Conselho Nacional de Educação CNPI – Comissão Nacional de Professores Indígenas CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico COIAB – Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira COLE – Congresso de Leitura e Escrita COMIN – Conselho de Missão para Índios COPIAR – Comissão dos Professores Indígenas do Amazonas, Roraima e Acre CPI/AC – Comissão Pró-Índio do Acre CPI/SP – Comissão Pró-Índio de São Paulo CR – Coordenação Regional CUNPIR – Coordenação da União das Nações Indígenas de Rondônia, Norte do Mato Grosso e Sul do Amazonas EFMM – Estrada de Ferro Madeira-Mamoré FOIRN – Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro FUNAI – Fundação Nacional do Índio GRIN – Guarda Rural Indígena IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IES – Instituição de Ensino Superior INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira ISA – Instituto Sócio Ambiental JOCUM – Jovens com uma Missão LDBEN – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional LOAS – Lei Orgânica da Assistência Social MEC – Ministério da Educação MPF – Ministério Público Federal NAO - Núcleo de Apoio Operacional NCT – Núcleo de Ciências e Tecnologia NEI – Núcleo de Educação Indígena NEIRO – Núcleo de Educação Escolar Indígena OGPTB – Organização Geral dos Professores Ticuna Bilíngue OMS – Organização Mundial de Saúde ONG – Organização não Governamental ONU – Organizações das Nações Unidas OPAN – Operação Amazônia Nativa OPIAC – Organização dos Professores Indígenas do Acre OPIKB – Organização dos Professores Kaingang do Brasil OPIR – Organização dos Professores Indígenas de Roraima OPIRON – Organização dos Professores Indígenas de Rondônia OSCIP – Organização da Sociedade Civil de Interesse Público PADEREÉHJ – Organização Indígena dos Arara-Karo, Gavião-Ikolen e os povos da Terra Indigena Rio Branco PCN – Parâmetros Curriculares Nacionais PCNS – Parâmetros Curriculares Nacionais PEEI – Projeto de Educação Escolar Indígena PI – Posto Indígena PIN – Programa de Integração Nacional POLONOROESTE – Programa Integrado de Desenvolvimento do Noroeste do Brasil PP – Projeto Pedagógico PPP – Projeto Político Pedagógico PRODEF – Programa de Desenvolvimento do Ensino Fundamental REFPI – Referencial para a Formação de Professores Indígenas REBIO – Reserva Biológica RCNEI – Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas RENs – Representações de Ensino RESEX – Reserva Extrativista SEDAM – Secretaria do Desenvolvimento Ambiental SEDUC – Secretaria de Estado da Educação SEED – Secretaria de Educação Física e Desportos SEF - Secretaria de Educação Fundamental SEMED – Secretaria Municipal de Educação SIL – Sociedade Linguística Internacional SPI – Serviço de Proteção ao Índio SPILTN – Serviço de Proteção ao Índio e Localização de Trabalhadores Nacionais TIs – Terras Indígenas UCS – Unidade de Conservação UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro UNIR – Universidade Federal de Rondônia SUMÁRIO INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 24 1 APONTAMENTOS SOBRE A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA NO ÂMBITO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS ................................................................................... 34 1.1 Os documentos oficiais que fundamentam as políticas de educação indígena.................................................................................................................... 42 1.2 O currículo diversificado para as escolas indígenas: um desafio ................ 44 1.2.1 Os professores não índios nas escolas das aldeias ................................... 47 2 UM BREVE HISTÓRICO DA EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA NO BRASIL E EM RONDÔNIA ........................................................................................................ 50 2.1 O Período Colonial ............................................................................................ 50 2.2. O Período Imperial............................................................................................ 52 2.3 O Período Republicano ..................................................................................... 53 2.4 Estudos sobre educação escolar indígena no Brasil..................................... 57 2.5 A questão indígena em Rondônia .................................................................... 59 3 O PROJETO AÇAÍ: A FORMAÇÃO DE PROFESSORES INDÍGENAS NO ESTADO DE RONDÔNIA ......................................................................................... 74 3.1 O movimento da construção do Projeto Açaí: antecedentes ........................ 76 3.2 O projeto pedagógico do Projeto Açaí ............................................................ 80 3.2.1. Justificativa .................................................................................................... 80 3.2.2 Objetivos ......................................................................................................... 82 3.3. Estrutura do Projeto Açaí ................................................................................ 85 3.4 Estrutura didática e matriz curricular .............................................................. 87 3.5 A avaliação da aprendizagem .......................................................................... 97 3.6 Produção de materiais didáticos do Projeto Açaí .......................................... 99 4 O PROJETO AÇAÍ NA PERCEPÇÃO DE SUJEITOS ENVOLVIDOS: PROFESSORES INDÍGENAS, LIDERANÇAS E EXECUTOR/ES ......................... 108 4.1 O que dizem os professores indígenas formados no Projeto Açaí ............ 113 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 151 REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 158 APÊNDICES ........................................................................................................... 182 APÊNDICE 1 e 2 - Roteiro das entrevistas efetuadas com professores indígenas, com TCLE - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido ............ 183 APÊNDICE 3 – Roteiro da entrevista com uma executora no Projeto Açaí ...... 185 ANEXOS ................................................................................................................. 186 Anexo 1 – Leis, Decretos, Pareceres 073/05-CEE/RO de 06/12/2005 e 031/05- CEE/RO de 06/12/2005 - Conselho Estadual de Educação de Rondônia ......... 187 24 INTRODUÇÃO Após concluir a graduação em Educação Física na Fundação Educacional de São Carlos, em 1981, migrei para a cidade de Guajará-Mirim, Estado de Rondônia. Ali, distante cerca de 360 quilômetros da capital do estado, Porto Velho, na fronteira com a Bolívia, presenciei as consequências do projeto de cunho desenvolvimentista implantado pelo governo militar e iniciado na década de 1970. Seu objetivo era, por meio de incentivos do governo federal para a distribuição de terras, viabilizar assentamentos de projetos agrários geradores de empregos para formar a mão de obra de que necessitava o emergente Estado de Rondônia, ainda Território Federal. Na época, a Amazônia ficou conhecida como o novo Eldorado brasileiro. Àqueles que possuíam diploma de curso superior eram rapidamente dadas as chances de empregos públicos, o que me propiciou integrar o quadro do magistério público estadual, ficando à disposição da Prefeitura Municipal de Guajará-Mirim para prestar serviços na Secretaria Municipal de Educação e Cultura (SEMEC). Assim, passei a ministrar aulas de Educação Física na Escola Durvalina Estilben de Oliveira para alunos do Ensino Fundamental e Médio, entre os quais havia um indígena – Joel Oro Não‟, dos povos Oro Wari1. Nesse contexto, passei a manter contatos periódicos com as populações indígenas daquela região e de outras localidades. Os encontros com essas comunidades ocorreram por meio de visitas a trabalho às aldeias indígenas, acompanhando os trabalhos de professores da Secretaria Municipal de Educação e da Fundação Universidade Federal de Rondônia, ou estudantes do Curso de Pedagogia do Campus de Guajará-Mirim. Essa experiência provocou em mim preocupações relativas à questão indígena e à escola pública, especialmente naquela parte da região amazônica. Ingressando numa instituição federal de ensino como professor de Educação Física no ano de 1996, intensifiquei o convívio com as populações excluídas das escolas públicas daquelas regiões, voltando o meu interesse para as pessoas com deficiência física, mental e sensorial, especificamente para jovens e crianças com necessidades especiais pertencentes a grupos indígenas, pois são ainda mais 1 Vilaça (1992) divide o grupo Wari‟ em oito subgrupos: Oro Nao‟, Oro Eo, Oro At, Oro Mon, Oro Waram, Oro Waram Xijein, Oro Cao-Oro Waje e Oro Jowin. 25 excluídos especialmente pela escola que deveria integrá-los2. Nesse sentido, por fazer parte de minha história pessoal, profissional e acadêmica, tive como propósito continuar investigando os problemas concernentes àquela população e às políticas públicas educacionais a eles relacionados. A Universidade Federal de Rondônia promoveu estudos e comissões dos quais participei, um deles tratando especificamente da viabilidade de implantação de um curso de educação superior para a formação de professores indígenas, o qual se iniciou no ano de 2010 no Campus de Ji-Paraná3. Aproveitando a oportunidade oferecida pela UNIR de trabalhar nessas comissões, bem como na implantação do referido curso, passei a acumular informações e experiências que, posteriormente, deram o suporte para propor um projeto de pesquisa sobre a educação escolar indígena, em particular a formação de professores indígenas no Programa de Doutorado Interinstitucional em Educação Escolar da UNESP (DINTER/UNESP/UNIR). Um dos maiores desafios atuais da Amazônia brasileira é fazer a transição de um sistema de áreas preservadas, ou de uso tradicional, para um programa abrangente de desenvolvimento sustentável que inclua todo o seu território. Não há dúvidas de que conflitos pela posse da terra envolvendo grandes grupos econômicos nacionais e internacionais (sobretudo da agroindústria exportadora), grandes e pequenos proprietários, posseiros, sem-terra e indígenas geram um complexo quadro de violência estrutural e de embates sociais. Na década de 1970, ocorreram assembleias e a estruturação de diferentes organizações indígenas no país4, o que possibilitou ao movimento indígena ganhar visibilidade nacional. Na década de 19805, a consolidação desse movimento refletiu nas propostas para a educação escolar do índio: a formação de professores com o 2 Tal interesse resultou na minha dissertação de mestrado intitulada “Políticas públicas para populações indígenas com necessidades especiais em Rondônia: o duplo desafio da diferença”, apresentada, em 2005, ao Programa de Mestrado em Desenvolvimento Regional e Meio Ambiente da UNIR. 3 O curso de Licenciatura em Educação Básica Intercultural da UNIR oferece 50 vagas e objetiva a formação de docentes indígenas para lecionar nas escolas de Ensino Fundamental e Médio para atender a demanda das sociedades indígenas de Rondônia, Sul da Amazônia e Noroeste de Mato Grosso. Conta com as áreas de concentração Educação Escolar Intercultural no Ensino Fundamental e Gestão Escolar, Ciências da Linguagem Intercultural, Ciências da Natureza e da Matemática Intercultural e Ciências da Sociedade Intercultural. O mesmo foi criado no âmbito do Programa de Apoio aos Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI) do Ministério da Educação (MEC), com base na política de direitos, no diálogo com os movimentos indígenas e indigenistas e considerando a pauta formativa da instituição (UNIR, 2010). 4 Cf. FERREIRA (2001) In: SILVA e FERREIRA ( 2001, p.71-111) 5 Conferir em Ferreira (2001). 26 foco na dinâmica da sua comunidade e a sua luta para a construção de políticas específicas, de modo especial, para o acesso à escola. Somente a partir da promulgação da Constituição Federal em 1988, foram assegurados os direitos dos povos indígenas, entre eles, o direito à manutenção e à valorização de sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições. A partir da década de 1990, o olhar foi direcionado para as propostas de regulamentação de educação escolar nas comunidades indígenas. No campo da educação, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN-1996) instituiu como dever do Estado a oferta de uma educação escolar bilíngue e intercultural e uma legislação regulamentar – a Resolução CEB n.3 do Conselho Nacional de Educação de 1999 – que estabeleceu as diretrizes curriculares nacionais e fixou normas para o reconhecimento e funcionamento das escolas indígenas. O tema em estudo é relativamente novo na história nacional e tem merecido a atenção das universidades brasileiras. Nos últimos anos, inúmeros trabalhos vêm sendo produzidos acerca das diversas dimensões que perpassam a educação escolar indígena (saúde, territorialidade, gênero, diversidade, educação, política indigenista, antropologia, entre outros) os quais são importantes para orientar políticas públicas de educação indígena e, mais recentemente, projetos de formação de professores para o magistério para atuarem em suas comunidades. Um desses projetos, objeto de estudo desta tese, é o Projeto Açaí, que faz parte do Programa de Educação Escolar Indígena do Governo de Rondônia. A formação de professores indígenas no Brasil é realizada por meio de projetos pedagógicos que, em seu discurso, buscam respeitar o multiculturalismo próprio das etnias indígenas, a sua identidade e alteridade6. No estado de Rondônia, o Projeto Açaí é visto como um instrumento de ação pedagógica que possibilita a formação desses professores em espaços formais, informais, oficiais e não oficiais. Por ocasião da realização do I Encontro de Professores Indígenas do Estado de Rondônia, “Piraculina”, ocorrido em Vilhena, de 4 a 8 de novembro de 19907, o governo estadual reconheceu esses professores integrantes da categoria profissional dos docentes. Deixaram de ser, a partir de então, meros “monitores bilíngues”. 6 Esses conceitos serão desenvolvidos posteriormente na Seção 2. 7 Sobre os debates gerados por esse encontro, ver Grupioni (1991) e Ferreira (2001). 27 Em 1991, a coordenação das ações educativas em terras indígenas deixou de ser do Ministério da Justiça e passou ao Ministério da Educação, o qual decide que a responsabilidade por essas ações seja dos estados e dos municípios. Ocorreu, a partir dessa medida, um processo de estadualização e de municipalização das escolas indígenas, exigindo dos governos um esforço de estruturação e de institucionalização, para que a elas fosse assegurado um funcionamento adequado (BRASIL, Decreto 26/91). No contexto dos novos paradigmas educacionais, identificam-se ações relacionadas à Educação Escolar Indígena em Rondônia, como, por exemplo, a criação, em 1992, do Núcleo de Educação Escolar Indígena de Rondônia (NEIRO)8 (ABRANTES, 1998), que tem como função coordenar o Fórum de entidades governamentais e não governamentais e as políticas de educação escolar indígena. Também participam do Núcleo a Secretaria de Estado da Educação de Rondônia (SEDUC), a Secretaria de Desenvolvimento Ambiental de Rondônia (SEDAM/RO), a Secretaria Municipal de Educação de Porto Velho (SEMED), o Conselho de Missão para Índios (COMIN), a Fundação Universidade Federal de Rondônia (UNIR) e a Organização dos Professores Indígenas de Rondônia (OPIRON). Nessa direção, notam-se, por parte do Governo do Estado de Rondônia, ações interessadas nas políticas de formação de professores indígenas para o magistérios e a elas vinculadas, especialmente as iniciativas referentes à produção de um projeto pedagógico para a educação escolar indígena. O Projeto Açaí – Curso de Formação de Professores para o Magistério Indígena Nível Médio – foi elaborado para o atendimento das séries iniciais do ensino fundamental em escolas situadas em terras indígenas. Foi resultado de uma 8 O (CIMI) Conselho Indigenista Missionário, criado em 1972, é um organismo da CNBB e deu novos rumos ao trabalho missionário da Igreja Católica junto aos índios, quando já não se acreditava na sobrevivência dos povos indígenas. Seu objetivo é apoiar o processo de autonomia dos índios como povos étnica e culturalmente diferenciados, contribuindo para o fortalecimento de suas organizações, articulações e alianças no Brasil e no continente. O Conselho de Missão para Índios (COMIN), criado em 1982, é um órgão da IECLB (Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil) cuja finalidade é assessorar e coordenar o trabalho da referida Igreja com os povos indígenas em todo Brasil. A Coordenação da União das Nações e Povos Indígenas de Rondônia, Noroeste do Mato Grosso e Sul do Amazonas (CUNPIR) é uma entidade indígena que representa cerca de 50 povos, dos quais 42 encontram-se em Rondônia, além dos oito Povos sem contato. O Jovens Com Uma Missão (JOCUM) iniciou suas atividades no Brasil em 1975 e é uma missão internacional e interdenominacional, empenhada na mobilização de jovens de todas as nações para a obra missionária. O Summer Institute of Linguistic, hoje Sociedade Linguísticda Internacional (SIL), iniciou seu trabalho no Brasil em 1956 a convite de duas entidades: o então Serviço de Proteção ao Índio (SPI), órgão do Ministério de Agricultura que antecedeu a FUNAI, e o Museu Nacional da Universidade do Brasil no Rio de Janeiro. 28 das ações da Secretaria de Estado da Educação de Rondônia (SEDUC-RO), por meio do Projeto de Educação Escolar Indígena (PEEI) do governo do Estado (RONDÔNIA, 1998). Como as políticas públicas da educação indígena apresentam limites e possibilidades cuja compreensão exige um grande esforço de análise devido às múltiplas dimensões dos problemas9, optou-se, neste estudo, por concentrar a análise nas questões relacionadas à formação de professores indígenas em Rondônia e, particularmente, pelo Projeto Açaí, do qual participei como observador assistemático10. Já a educação escolar indígena será considerá-la sob o aspecto da educação institucionalizada, ou seja, aquela que está definida nas diretrizes nacionais para a cultura indígena, normatizada em legislação específica e integrada no sistema educacional de Rondônia. Nesse sentido é que se pode entender o que é educação escolar indígena – não apenas “educação indígena” – que ocorre no interior dessas comunidades indígenas, segundo suas tradições seculares, sem a presença do Estado. No presente trabalho busca-se, portanto, analisar a contribuição do Projeto Açaí na formação de professores indígenas durante o período compreendido entre 1998 e 2004 a partir das seguintes questões: Como se deu a Gestão Pedagógica do Projeto Açaí e qual foi a efetiva repercussão na formação de professores indígenas? O projeto foi adequado às necessidades de formação dos professores considerando as suas realidades, ou seja, as escolas situadas nas aldeias onde iriam desenvolver suas atividades no que diz respeito ao ensino e à gestão escolar? Essas questões gerais desdobram-se nas seguintes: 1 – A formação de professores indígenas no Brasil está sendo feita por meio de projetos pedagógicos adequados que respeitam o multiculturalismo, a identidade e a alteridade das etnias indígenas? 2 – A legislação que normatiza a educação escolar indígena está adequada e proporciona suporte aos Projetos Pedagógicos específicos de formação de professores indígenas bem como a sua gestão? 9 Entre os problemas, destacam-se: o contato interétnico (CARDOSO, 1976), práticas fragmentadas e descompromissadas que afetam o direito a própria vida. 10 Segundo Arlindo Costa (2006), a observação assistemática é realizada sem planejamento e sem controle anteriormente elaborados, como decorrência de fenômenos imprevistos, sem que se tenha determinado de antemão quais os aspectos relevantes a serem observados e que meios utilizar para observá-los. 29 3 - Qual é o significado do modelo de escolarização institucionalizada dos povos indígenas implantado no Brasil nos anos de 1980 a 1990 no que se refere à preparação de professores indígenas? Qual a percepção desses professores em relação ao Projeto Pedagógico e a sua gestão? Como isso ocorre, em particular, no Estado de Rondônia? 4 – O Projeto Açaí enquanto modelo de educação escolar institucionalizada para professores indígenas pode ser considerado um padrão de formação a partir do respeito à interculturalidade, ao multiculturalismo e à alteridade, com as devidas adequações às realidades locais e regionais? A partir desses questionamentos, estabelecemos como objetivo geral da pesquisa verificar se o Projeto Açaí, em termos pedagógicos, contribuiu de fato para a formação dos professores indígenas no estado de Rondônia, possibilitando-lhes recursos pedagógicos e de conhecimentos específicos para atuarem nas escolas de suas aldeias. Como objetivos específicos, pretendemos analisar a gestão das bases políticas e pedagógicas do referido projeto a partir da legislação que normatiza a educação escolar indígena; identificar, por meio de entrevistas, qual a percepção dos alunos professores em relação ao Projeto Açaí; obter subsídios na dimensão organizacional e pedagógica para fundamentar futuras propostas de formação de professores. Quanto à abordagem metodológica, a presente pesquisa pode ser classificada, segundo Silva e Menezes (2001, p. 20), como qualitativa, pois “há um vínculo indissociável entre o mundo objetivo e a subjetividade do sujeito que não pode ser traduzido em números” e, quanto à sua natureza, é um estudo de caso descritivo, pois objetiva a obtenção de conhecimento profundo e exaustivo de uma realidade delimitada (YIN apud GIL, 1999, p. 73), o qual tem sido cada vez mais utilizado nas pesquisas sociais (COSTA, 2006, p.73). Os estudos de caso e a abordagem qualitativa têm sido adotados na maioria dos estudos sobre educação indígena e educação escolar indígena, como nos mostram as pesquisas que começaram a surgir, em maior profusão, nas décadas de 1980 e 1990 (PALADINO, 2001; NOBRE, 2005) já que se mostraram mais adequados para tratar a realidade complexa e diferenciada da questão indígena no Brasil. Quanto aos procedimentos adotados para a coleta de dados, foi utilizada a pesquisa bibliográfica que, conforme Marconi e Lakatos (2002, p. 71), “abrange 30 toda a bibliografia já tornada pública em relação ao tema estudado, desde publicações avulsas, boletins, jornais [...]” e a entrevista semi-estruturada, que, para os mesmos autores, apresenta algumas vantagens e desvantagens, entre elas a flexibilidade que proporciona ao entrevistador para formular, esclarecer, especificar seu significado, avaliar condutas, podendo o entrevistado ser observado não só naquilo que diz e como diz, dentre outros, mas também na falta de motivação para expressar de forma mais livre e flexível seus pontos de vista sobre a temática da pesquisa (GIL, 1999, p.18). Além da pesquisa documental, da pesquisa bibliográfica e da entrevista semi- estruturada, mostraram-se de grande valor, em termos de informações para se avaliar os resultados do Projeto Açaí na formação e atuação dos professores indígenas, a análise dos planos de aula e de currículos das diversas disciplinas que foram elaborados pelos próprios professores durante as aulas presenciais e dos professores formados pelo Projeto Açaí nas aldeias. A forma e o conteúdo desses documentos poderiam mostrar (ou não) a prática pedagógica dos professores indígenas em processo de formação. A hipótese é a de que a implementação desse Projeto e os resultados obtidos, a partir da percepção dos principais sujeitos envolvidos (professores indígenas) a quem o Projeto foi dirigido, ao respeitar a sua diversidade e a interculturalidade, atinge os objetivos propostos em seu Projeto Pedagógico, ou seja, foi adequado às necessidades de formação de professores para o magistério indígena. Embora exista uma série de problemas nas iniciativas de projetos e cursos de formação de professores indígenas oferecidos por várias universidades brasileiras, como, por exemplo, o fato de serem desenvolvidos em locais distantes das comunidades onde atuam esses professores, tais cursos e projetos de formação poderão constituir um embrião de futuros cursos superiores voltados especialmente para indígenas que desejam ser professores nas escolas de suas comunidades. Se isso ocorrer – algo que precisa ser mais bem discutido –, projetos como o Açaí constituir-se-ão experiências a serem seguidas em termos pedagógicos, curriculares e administrativos sobre as quais se deve refletir, principalmente sobre a elaboração do projeto político-pedagógico e a implementação de uma gestão flexível e dinâmica. Para realizarmos a pesquisa, tivemos como preocupação inicial obter informações junto à Secretaria de Estado da Educação (SEDUC) por meio de um 31 ofício ao titular da pasta solicitando autorização para que o responsável pelo Projeto de Educação Escolar Indígena (PEEI) da divisão de Educação daquela Secretaria disponibilizasse cópias das versões do Projeto de Formação de Professores Indígenas, das atas de entrega dos certificados aos indígenas que concluíram o curso, de relatórios das Etapas (I a X), da lista com nomes dos professores que ministraram as disciplinas, dos órgãos pertencentes e cargas horárias elaboradas durante a operacionalização do projeto (1998-2004). Foi solicitada ainda a autorização para que efetuássemos entrevistas (por meio de questionários e gravações) com os respectivos técnicos daquela SEDUC e demais servidores envolvidos na operacionalização do Projeto Açaí. A partir dessa autorização, foi-nos permitido buscar, nos arquivos da SEDUC, os demais documentos relativos ao desenvolvimento do Projeto, isto é, os requerimentos, pareceres e as novas versões elaboradas por exigências do Conselho Estadual de Educação. As novas versões foram elaboradas mediante a realização de diligências direcionadas à SEDUC para justificar vários procedimentos que vinham sendo tomados a respeito do Curso. Durante várias visitas, dirigimo-nos à Divisão de Educação/SEDUC, com o intuito de efetuar cópias dos processos referentes ao andamento do Projeto. O responsável pela Divisão informou que seria impossível ter acesso aos documentos relacionados ao Projeto, uma vez que, quando de sua realização, muitos dos arquivos armazenados nos computadores daquela Divisão foram danificados e a sua maioria, perdidos. Diante disto, elaboramos oficio ao Presidente daquele Conselho solicitando o fornecimento de uma cópia do Processo de reconhecimento do Curso de Formação de Professores Magistério Indígena desenvolvido pela Secretaria de Estado da Educação no período de 1998 a 2004, bem como autorização para efetuar entrevistas (por meio de questionários e gravações), quando necessário, com pessoas que estiveram envolvidas na sua operacionalização. Vale ressaltar a importância desses documentos para a elaboração e a conclusão desta tese, o que nos levou a insistir no acesso aos mesmos, reiterando a solicitação, dessa vez, feita à SEDUC para autorizar o Conselho Estadual de Educação a liberar uma cópia dos documentos. Assim tivemos acesso aos documentos os quais foram fotocopiados. A Fundação Nacional do Índio – Delegacia Regional de Porto Velho – também foi 32 procurada e a ela encaminhado um ofício solicitando documentos, e fomos prontamente atendidos. Como se observa, além da consciência e da responsabilidade, fez-se necessária muita persistência na superação das barreiras que se colocam no percurso de uma pesquisa de campo. Contribuiu decisivamente para que esta pesquisa, enquanto estudo de caso, não se limitasse à utilização de documentos oficiais e não oficiais ou à entrevista estruturada a nossa constante presença e participação nos encontros da Organização dos Professores Indígenas de Rondônia (OPIRON), naqueles promovidos pela SEDUC em Porto Velho, nas reuniões do Núcleo de Educação Indigena de Rondônia (NEIRO)11, nos fóruns de Educação Indígena e nas etapas presenciais do curso de formação. O registro fotográfico das ocorrências deu uma dimensão mais antropológica e mais realista ao estudo; o contato direto, formal e informal com os principais sujeitos aos quais se deu a oportunidade de se posicionarem de maneira mais espontânea sobre o Projeto Açaí enriqueceu a nossa visão que ultrapassou o conteúdo dos documentos escritos. Esta tese está dividida em quatro seções. A Introdução trata de situar o Projeto Açaí e apresentar o problema, os objetivos, a hipótese, a tese e os procedimentos de pesquisa. A primeira, intitulada Apontamentos sobre a educação escolar indígena no âmbito das políticas públicas nacionais, trata dos documentos oficiais que fundamentam as políticas de educação indígena e do currículo diversificado para as escolas indígenas. A segunda seção, designada Um breve histórico da educação escolar indígena brasileira e em Rondônia, incursiona pela luta dos indígenas, o seu direito a terra, os conflitos pela sua posse e a política indigenista brasileira. Na terceira parte, denominada O Projeto Açaí: a formação de professores indígenas no estado de Rondônia, faz-se a análise do movimento de construção do Projeto Açaí e dos aspectos referentes à sua gestão pedagógica. Na seção seguinte, O Projeto Açaí na percepção dos sujeitos envolvidos: os professores indígenas, as lideranças indígenas e os executores do Projeto, apresentam-se os conteúdos das entrevistas realizadas com 31 professores 11 NEIRO é um fórum de representação das entidades que trabalham com educação escolar indígena, onde acontecem as discussões e as avaliações dos trabalhos feitos pelos órgãos gestores. 33 indígenas de 16 etnias e também uma entrevista com uma das pessoas executoras desse projeto12. As Considerações finais acerca dos aspectos levantados com os sujeitos da pesquisa trazem também propostas que julgamos importantes para os atuais e futuros projetos de educação escolar indígena, particularmente de formação de educadores. 12 As entrevistas foram realizadas com professores indígenas das seguintes etnias: Arara, Amondawa, Canoe, Cinta Larga, Gavião, Kampé, Karipuna, Karitina, Jaboti (Djeoromitxí), Makurap, Oro At, Oro Bom, Oro Eu, Oro Mon, Oro Nao‟, Oro Waram, Oro Waram Xijien, Oro Win Cabixi Surui, Uru Eu Wau Wau. Dessas 16 etnias participaram das entrevistas um total de 31 professores indígenas. 34 1 APONTAMENTOS SOBRE A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA NO ÂMBITO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS Entende-se, inicialmente, como educação escolar indígena institucionalizada aquela que ocorre em instituições educacionais integrantes do sistema oficial de ensino (municipal, estadual e federal) e é regida tanto pela legislação normativa geral quanto pela específica, elaborada exclusivamente para atender à diversidade desses povos e suas culturas, particularmente nos territórios legalmente demarcados e protegidos pelas leis brasileiras. Ao falarmos, pois, de educação escolar do índio, forçosamente, não podemos deixar de discutir os problemas das escolas indígenas e de formação de professores que nelas irão atuar. A Constituição Brasileira (1988) trouxe aos índios o direito a uma escola com características específicas, que valorize as línguas e os conhecimentos tradicionais vigentes na sua sociedade. É necessário o fortalecimento de instituições educacionais que priorizem os valores culturais indígenas por meio de currículos específicos, calendários que respeitem as atividades tradicionais desses grupos, metodologias de ensino diferenciadas, publicação de materiais didáticos em língua indígena e formação especializada de índios para que atuem como professores nas suas comunidades. A Portaria Interministerial 559/91 criou o Comitê de Educação Escolar Indígena no MEC para dar subsídios e apoio técnico às ações referentes à Educação Escolar, orientando a criação de Núcleos de Educação Escolar Indígena (NEI), com a finalidade de apoiar e assessorar as escolas e priorizar a formação, a capacitação permanente de professores indígenas para a prática pedagógica, bem como garantir, no orçamento dos diversos órgãos envolvidos, recursos financeiros destinados às ações dessa educação. Essa portaria também determina a adequação das escolas indígenas à sua realidade sociocultural e ainda garante a seus alunos as condições para a continuidade da escolarização nas demais etapas do sistema nacional de educação. Percebe-se, assim, que o processo de evolução histórica na educação escolar nacional, ao se encaminhar para uma legislação específica que trata das questões da educação especial, favoreceu a educação escolar indígena. 35 Esse ideário de inclusão corresponde a uma tendência ocidental das últimas décadas, implicando dialogar com o contexto da globalização e de novas tendências de revisão da perspectiva nacionalista das políticas anteriores (econômicas, educacionais, entre outros), trazendo para a discussão a necessidade de se preservar e valorizar as culturas locais ameaçadas pelo processo homogeneizador da globalização. Na visão de Geertz (2008, p.37): [...] a cultura fornece o vínculo entre o que os homens são intrinsecamente capazes de se tornar e o que eles realmente se tornam, um por um. Tornar- se humano é tornar-se individual, é nós nos tornarmos individuais sob a direção dos padrões culturais, sistemas de significados criados historicamente em termos dos quais damos forma, ordem, objetivo e direção às nossas vidas. Nesse raciocínio, as etnias indígenas têm o direito à autonomia e assim não devem ser obrigados a se submeter a programas integracionistas, que são expressão de atitudes etnocêntricas e preconceituosas, que ignoram os valores das especificidades indígenas, e que não respeitam as suas tradições, crenças habituais, que, por mais exóticas que possam parecer, permitiram-lhes viver durante milênios e sobreviver ao penoso contato com os chamados homens brancos. É o que se entende como identidade cultural (LARAIA, 1995) e, pensando mais profundamente, como alteridade. Encontramos em Molar e Larocca (2009) uma noção de alteridade que recebe tendências distintas até mesmo para sua etimologia. Na Psicologia a alteridade é definida como “o conceito que o indivíduo tem segundo o qual os outros seres são distintos dele. Contrário a ego.” (DICIONÁRIO DE PSICOLOGIA, 1973, p. 75 apud MOLAR; LAROCCA, 2009, p. 2-3). Na Filosofia se tem o verbete alteritas vindo do latim como “Ser outro, colocar-se ou constituir-se como outro”. (ABBAGNANO, 1998, p. 34-35 apud MOLAR; LAROCCA, 2009, p. 2-3). Então, considerando as duas acepções, Molar e Larocca (2009) definem como a mais próxima para seu artigo aquela que possui uma “índole filosófico” e que carrega a origem da noção de alteridade enquanto a capacidade de se reconhecer no outro. Embora se considere a existência de diferenças físicas, psíquicas e culturais. Maria Elena Viana Souza (2005, p. 3), ao se referir ao conceito de alteridade, afirma que: 36 [...]. o discurso do respeito pelas diferenças culturais vem carregado de conotações sobre o "eu e o outro" – pode-se até falar em diversidade, mas, não sobre o eu e o outro em relação, em alteridade – porque esse “eu e o outro em relação” pressupõe a “descentralização do olhar”, isto é, a sensibilidade de se colocar no lugar do outro, de ver como o outro vê, aceitar um conhecimento que não se pauta exatamente nos nossos modelos de conhecimento. A noção de alteridade, enfim, supera o aceitar a existência do outro apenas como necessidade e interesse econômico, construindo-se assim uma identidade de aceitação do outro. A formulação de políticas de educação indígena em geral e de educação escolar indígena em particular está estreitamente vinculada às políticas indigenistas e às políticas públicas de educação. A Constituição Federal do Brasil assimilou, como as constituições de grande parte dos países latino-americanos, a forma pela qual essa temática é tratada nas declarações e convênios dos organismos internacionais, como a Organização dos Estados Americanos (OEA), a Organização das Nações Unidas (ONU) e as metas das Políticas Públicas na América Latina. O discurso oficial da educação indígena e da educação escolar indígena não é apenas influenciado pelas discussões internacionais sobre os direitos sociais e as políticas públicas voltadas para as minorias e as suas implicações étnico-culturais, como nos referimos no início desta seção, mas está, sobretudo, relacionado à força política e comunicativa que ganham os movimentos sociais e ambientais organizados, conforme o Relatório do Encontro 500 anos de Resistência Índia, divulgado em Quito, no Peru, em 2007: Em diversos fóruns locais e nacionais por toda a América Latina, os movimentos indígenas e seus aliados reivindicaram os direitos à educação, no marco democrático dos direitos à cidadania e à diversidade... No tocante à educação, reivindicam não só o direito às escolas diferenciadas daquelas oferecidas aos demais cidadãos, mas incluem, com o forte coloração, o direito ao reconhecimento e oficialização de seus processos próprios escolares de aprendizagem, ou seja, de seus projetos curriculares, “onde estejam reconhecidas oficialmente pelo Estado a inclusão das línguas, tradições” (QUITO, 1987 apud MONTE, 2007 p. 01). Dessa forma, considerando a origem desse movimento, verificamos que esse quadro político-educacional foi impulsionado pelo trabalho de diferentes setores da sociedade civil representados sobretudo pelas organizações não governamentais, entre as quais estão os movimentos indígenas, suas associações e organizações. No Brasil, esse trabalho foi, sem dúvida, decisivo para a construção de políticas públicas de educação indígena que, em décadas passadas, foi 37 responsabilidade única do Estado sem a participação da sociedade organizada. Monte (2007, p. 2) afirma: No Brasil cerca de 10 ONGs foram protagonistas da renovação da educação escolar indígena em alianças com diferentes organizações indígenas. Desenvolveram seus trabalhos em uma linha básica de ação: formação de professores indígenas com implementação de escolas de educação básica dentro de um novo marco conceitual. No entanto, quanto à educação escolar indígena, apesar dos avanços obtidos como política pública, não se rompeu completamente a relativa inércia do Estado brasileiro e a predominância de missões religiosas encarregadas da tarefa educacional. Há que se considerar também que, durante muitas décadas, prevaleceu um padrão de educação tradicional integracionista muitas vezes disfarçada da filosofia positivista13, como nos tempos de atuação do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) sob inspiração de Rondon. Esse quadro que teve uma longa duração foi marcado sobretudo por aspectos negativos para as populações indígenas. Segundo Carmen Junqueira (2002, p. 85), “nossa história revela que a constituição do Estado brasileiro, da unificação ao controle político, assentou-se na dominação e no extermínio de centenas de povos indígenas”, até que a sociedade brasileira, por meio dos movimentos sociais, da atuação de organizações não governamentais e Igrejas, passou a intervir com mais frequência na questão indígena no Brasil. Também foi importante a profusão de trabalhos acadêmicos, nas universidades brasileiras, transformados em livros e outras publicações, contribuindo para transformar a questão indígena em uma questão de política de Estado. Monte (2007, p. 2) aponta que essas ações tiveram uma forte relação com a atuação pioneira da Igreja Católica entre a década de 1970 e 1980. A partir daí, a educação indígena passa por inovações pedagógicas orientadas por cursos de formação de magistério indígena e escolas organizadas vinculadas às decisões e interesses da comunidade. Destaca ainda essa autora que, a partir de 1990, os documentos oficiais brasileiros legitimam essas inovações pedagógicas, 13 Doutrina social de origem francesa, cujo maior representante foi o filósofo Augusto Comte (1798- 1857), que teve profunda influência na primeira geração republicana. O Marechal Cândido Mariano Rondon era um adepto dessa ideologia que, juntamente com o pensamento de Benjamin Constant, teve forte penetração nas escolas militares. Pode-se considerar que essa perspectiva positivista ainda não desapareceu totalmente, podendo-se identificá-la, de forma sutil, em um ou outro pronunciamento militar sobre a questão indígena no Brasil. 38 considerando os processos próprios de aprendizagem, o uso e o desenvolvimento das línguas e culturas dos povos indígenas como um direito14. No Brasil, o trabalho da educação indígena conta com a consultoria de diversas instituições governamentais e não governamentais e tem avançado de forma significativa tanto do ponto de vista conceitual como de formulação de propostas pedagógicas. Isso se dá na medida em que reúne uma variedade de organizações preocupadas em atender, de forma flexível, as demandas indígenas a partir de práticas educativas – currículo, organização, estruturas escolares entre outras –, o que implica, obviamente, projetos pedagógicos e práticas de gestão alternativas. De qualquer maneira, discursos voltados às práticas inovadoras e mudanças podem também se transformar em uma proposta uniformizada e fechada em si mesmo, perdendo suas características de diversidade e de atendimento às demandas locais (MONTE, 2007). Ainda segundo a referida pesquisadora, o quadro político-institucional brasileiro aponta três principais elementos problemáticos voltados para a educação escolar indígena. O primeiro deles diz respeito a uma autonomia local limitada que se dá, por exemplo, à medida que os governos não reconhecem professores não habilitados por agências oficiais de ensino. O segundo elemento se refere à escassez de recursos humanos no quadro de funcionários do governo, a qual se dá tanto do ponto de vista quantitativo como qualitativo. O terceiro e último aponta para a ainda estreita abertura conceitual e jurídica nos Conselhos Estaduais de Educação que deveriam garantir, pela legislação, o caráter inovador e especifico dos currículos, a organização e a gestão para as escolas indígenas e a formação de professores com a necessária competência didático-pedagógica para atender os povos indígenas. A implementação de políticas públicas condizentes com a realidade indígena implica a formação de educadores com práticas críticas e conscientes diante dos contextos interculturais e sociolinguísticos. Para tanto, é necessário que sejam inovadoras e flexíveis e que possam atender aos anseios e expectativas das comunidades indígenas considerando a interculturalidade, o multiculturalismo e a alteridade desses povos. 14 Completando essa ideia, o MEC/INEP (1997) sinaliza que os currículos flexíveis ou diferenciados garantem a descentralização da atividade educativa. 39 A interculturalidade, que é o intercâmbio positivo e mutuamente enriquecedor entre as culturas das diversas sociedades, deve ser característica básica da escola indígena. Isso significa passar de uma visão estática da educação para uma concepção dinâmica: não se pode somente valorizar ou mesmo ressuscitar conteúdos de culturas antigas; deve-se, pelo contrário, ter em vista o diálogo constante entre elas – a inter-relação, o intercâmbio e as contribuições recíprocas são processos aos quais todas as sociedades são e foram submetidas ao longo de sua história – a fim de que possam desvendar seus mecanismos, suas funções e sua dinâmica, como reconhecem as Diretrizes para a Política de Educação Escolar Indígena de 1994: [...] O eixo conceitual em torno do qual se situam as questões e as reflexões emergentes nesse campo, e que caracteriza os mais espinhosos problemas do nosso tempo, é o da possibilidade de respeitar as diferenças e de integrá-las em uma unidade que não as anule. Isso vale, de fato, tanto para o discurso das diferenças étnicas e culturais, de gênero e de gerações, a serem acolhidas na escola e na sociedade, quanto para a distinção entre os povos, a ser considerada nos equilíbrios internacionais e planetários. (DIRETRIZES PARA A POLÍTICA DA EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA, 1994, p. 11) Nessa direção Fleuri (2004, p.10) observa que: [...] a intercultura vem se configurando como um objeto de estudo interdisciplinar e transversal, no sentido de tematirzar e teorizar a complexidade (para além da pluralidade ou da diversidade) e a ambivalência ou o hibridismo (para além da reciprocidade ou da evolução) dos processos de elaboração de significados nas relações intergrupais e intersubjetivas, constitutivos de campos identitários em termos de etnias, de gerações, de gêneros, e de ação social. As sociedades indígenas apresentam um quadro complexo e heterogêneo em relação ao uso da língua materna (a língua indígena) e ao uso e conhecimento da língua oficial (o português). Monolinguismo total em língua indígena é situação transitória de comunidades indígenas nos primeiros momentos do contato. A maioria dos povos indígenas se encontra em diversas situações e modalidades de bilinguismo e/ou multilinguismo. Essa situação sociolinguística, assim como o momento histórico atual e suas implicações de caráter psicolinguístico, faz com que se assuma a educação escolar indígena como sendo necessariamente bilíngue: 40 a) cada povo tem o direito constitucional de utilizar sua língua materna indígena na escola, isto é, no processo educativo oral e escrito, de todos os conteúdos curriculares, assim como no desenvolvimento e reelaboração dinâmica do conhecimento de sua língua; b) cada povo tem o direito de aprender na escola o português como segunda língua, em suas modalidades oral e escrita, em seus vários registros – formal, coloquial, etc. c) a língua materna de uma comunidade é parte integrante de sua cultura e, simultaneamente, o código com que se organiza e se mantém integrado todo o conhecimento acumulado ao longo das gerações, que assegura a vida de todos os indivíduos na comunidade. Novos conhecimentos são mais natural e efetivamente incorporados através da língua materna, inclusive o conhecimento de outras línguas (DIRETRIZES PARA A POLÍTICA NACIONAL DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA, 1994, p. 10-11). De acordo com Maria Margarida Morgado15, apud Mac Laren (1997), existem várias modalidades de posições multiculturais: o multiculturalismo16 conservador, o multiculturalismo liberal e liberal de esquerda e o multiculturalismo crítico ou de resistência. Para ele, não existe uma humanidade comum, mas apenas identidades definidas pelos contextos de poder, de discurso ou de cultura. Como refere à autora: O multiculturalismo implica basicamente a transição de uma cultura comum ou homogênea para culturas, visando a inclusão dos racial e sexualmente excluídos, e das vozes daqueles que têm sobrevivido nas franjas do poder central ou nas margens dos cânones literários e culturais. [...] No contexto educativo, por exemplo, a educação multicultural corresponde à ideia de uma educação liberta de preconceitos raciais e promotora da diversidade cultural e de tolerância, respeitadora da diferença de grupos sociais, étnicos e sexuais, bem como de cada indivíduo, que atravessa currículos, manuais escolares, e dita mudanças estruturais e institucionais, por vezes até mesmo radicais, nas atitudes dos professores, nas políticas escolares e nas relações entre alunos (MORGADO, s/d). Na avaliação de Maria Aparecida de Souza Perrelli (2007 p. 257): O multiculturalismo sem uma agenda política de transformação pode apenas ser outra forma de acomodação a uma ordem social maior [...] A perspectiva que estou chamando de multiculturalismo crítico compreende a representação de raça, classe e gênero como resultado de lutas sociais mais amplas sobre signos e significações e, neste sentido, enfatiza não pensar o jogo textual e o deslocamento metafórico como forma de resistência (como no caso do multiculturalismo liberal de esquerda), mas enfatiza a tarefa central de transformar relações sociais, culturais e institucionais nas quais os significados são gerados. (PERRELLI, 2007 apud Mc LAREN, 2002, p. 123). 15 MORGADO. Maria Margarida. Multiculturalismo. Disponível em: www.fcsh.unl.pt/invest/edt/verbetes/M/multiculturalismo.htm. Acesso em: 12 nov. 2010. 16 Para Mario de Mori, “Multiculturalismo (ou pluralismo cultural) é um termo que descreve a existência de muitas culturas numa localidade, cidade ou país, sem que uma delas predomine, porém separadas geograficamente e até convivialmente no que se convencionou chamar de „mosaico cultural‟.” DE MORI, M. F. Multiculturalismo. Disponível em: . Acesso em: 15 dez. 2010. 41 Para Antônio Greco Rodrigues (2008, p. 26), o multiculturalismo pretende diluir fronteiras assim criadas, marcando-se como o oposto do nacionalismo. É a construção teórico-ideológica que busca lidar com as diferenças nas sociedades onde convivem múltiplas etnias. As inovações tecnológicas, paradoxalmente, apresentam novas possibilidades de desenvolvimento nesse campo, apesar de, no dia a dia, constatar-se o aumento da exclusão social que afeta também os povos indígenas. Prova disso pode ser evidenciada na fala do professor indígena da etnia Karitiana17: Mexer com computador, por exemplo. Nós, professores, nunca mexemos com computador. Nós temos que ficar capacitado para mexer nisso, computador, porque é importante. Nesse sentido, “a globalização, o crescimento da interdependência de todos os povos e países, os meios de comunicação de massa, potencializados por essas tecnologias, rompem ou ultrapassam fronteiras, culturas, idiomas, religiões, regimes políticos” (IANNI, 1996, p. 94) e as comunidades indígenas estão cada vez mais envolvidas nesse processo, ou, pelo menos, sofrendo as suas consequências em profundidade e escala muito maiores do que a sociedade não índia. A antropóloga Berta Ribeiro (1991, p. 50-51) procura analisar essas interligações e contradições da seguinte forma: “Temos muito a aprender com os índios, inclusive sobre a modernidade a quem ela serve. Com efeito, o extraordinário avanço tecnológico das últimas décadas trouxe mais miséria e marginalidade à maioria da população”. Diante do contato forçado com a cultura ocidental e suas tecnologias, as comunidades indígenas – entre as quais Rondônia é um exemplo – vêm sofrendo uma grande pressão. Em grande parte, para resistir a um iminente e potencial processo de extermínio ou confinamento, clamam por políticas públicas de educação que, de um lado, preservem valores, tradições, costumes; de outro, deem-lhes recursos educativos para integrarem-se, de forma autônoma, à sociedade18. 17 Entrevista efetuada no CENTRER, durante a participação dos Professores Indígenas no Curso de Formação continuada promovido pela SEDUC/RO (2008). 18 A título de exemplo de uma comunidade que convive num contexto multiétnico, reunindo num mesmo espaço e tempo, apontamos a de Sagarana no Rio Mamoré, na qual habitam povos de nove etnias, Makurap, Aruá, Aricapu, Tupari, Djeoromitxi (conhecida como Jaboti), Ajuru, Cujubim, Canóe e Massacá (informação: Professor da Etnia Makurap). “Tal diversidade, ao invés de ser recurso positivo para o conhecimento e uso das diversas línguas na construção do conhecimento disciplinar, tem sido um obstáculo, com a adoção quase exclusiva do português pelos docentes não indígenas nos cursos de formação e mesmo pelos indígenas em muitas de suas escolas”(MONTE e MATOS, 2006 p.97). 42 Portanto a educação escolar indígena institucionalizada aparece como elemento estratégico de luta dessas comunidades nesse contexto. 1.1 Os documentos oficiais que fundamentam as políticas de educação indígena A análise das políticas e dispositivos legais atualmente em vigor, que reconhecem direitos e normatizam a educação escolar indígena, possibilita, em princípio, compreender as diferentes ideias pedagógicas subjacentes às estratégias de fazer educação sob o ponto de vista das políticas públicas cujo objetivo fundamental é a formação do cidadão, seja qual for a sua posição social, econômica, religiosa, étnico-racial etc. e, mais uma vez, isso inclui os indígenas. Os documentos oficiais que fundamentam a Educação Escolar Indígena, dentre eles os Parâmetros Curriculares Nacionais (1997), enfatizam a temática da pluralidade cultural e dizem respeito às características étnicas e culturais dos diferentes grupos sociais vivendo em território brasileiro. O Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas (1998), no qual estão reunidos os fundamentos históricos, políticos, legais, antropológicos e pedagógicos que norteiam a proposta de uma escola indígena intercultural, bilíngue e diferenciada, oferece também, como sugestão de trabalho, a construção dos currículos escolares em seis áreas de estudos: línguas, matemática, geografia, história, ciências, arte e educação física. Seu objetivo maior é oferecer subsídios e orientações para a elaboração de programas de educação escolar que atendam aos anseios e interesses das comunidades indígenas (BRASIL, 1998) 34. O objetivo da educação escolar indígena é de possibilitar uma educação diferenciada, intercultural e bilíngue (CONSTITUIÇÃO FEDERAL, 1988), portanto 34 Importante observar que essa legislação não aborda a questão da Educação para pessoas Indígenas com necessidades especiais, conforme estudos realizados em minha dissertação de mestrado (VENERE, 2005). Esse assunto foi discutido pela pesquisadora Patrícia Carla da Hora Correia e apresentado no I Encontro Nacional de Educação Indígena promovido pela Universidade Estadual da Bahia, realizado em Porto Seguro, em 2007. Destacamos, ainda, que a autora vem desenvolvendo projeto de pesquisa junto à Universidade Federal da Bahia no programa de Pós- Graduação, curso de Doutorado, cujo tema é: “A interação da pessoa com deficiência na comunidade indígena: um estudo na etnia Pankararé da Bahia”. Disponível em: < http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.jsp?id=W339070#PP_A intera%C3%A7%C3%A3o da pessoa com defici%C3%AAncia na comunidade ind%C3%ADgena: um estudo na etnia Pankarar%C3%A9 da Bahia >. Acesso em: 19 jan. 2010. Desses trabalhos, extraímos importantes subsídios para esta tese. 43 abre a possibilidade para a construção de “pedagogias indígenas”, isto é, ações educativas, práticas pedagógicas e modos próprios de educação e de socialização dessas comunidades educativas tradicionais. Para a Escola tornar-se realmente indígena, deverá reencontrar-se e inserir-se na dinâmica própria dessas comunidades educativas, e, além disso, essa identificação passa pela presença de um professor índio e/ou um professor preparado para atender essa comunidade. Neste aspecto, o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas chama a atenção para o seguinte fato: “A formação especifica do professorado indígena é, hoje, forte demanda das comunidades e também um direito previsto em lei” (IBASE, 2004, p. 72). O Referencial Curricular Nacional Para a Educação Escolar Indígena (1998) estabeleceu orientações no que diz respeito à contratação de professores para atuarem nas escolas indígenas e ressalta, implicitamente, a necessidade de sua institucionalização: Para que a educação escolar indígena seja realmente específica e diferenciada, é necessário que os profissionais que atuam nas escolas pertençam às sociedades envolvidas no processo escolar. E preciso, portanto, instituir e regulamentar 20 , no âmbito das Secretarias de Educação, a carreira do magistério indígena, que deverá garantir aos professores indígenas, além de condições adequadas de trabalho, remuneração compatível com as funções exercidas e isonomia salarial com os demais professores da rede de ensino. A forma de ingresso nessa carreira deve ser o concurso público específico, adequado às particularidades linguísticas e culturais dos povos indígenas. (RCNEI, 1998, p. 42). Nessa perspectiva, a educação escolar indígena institucionalizada torna- se um instrumento político, que deve contribuir na luta pela conquista da autonomia em todos os níveis (econômico, político, cultural, religioso e social), e é nesse sentido que reafirmamos que as políticas pública, indigenista e de educação indígena devem ser compreendidas a partir de uma perspectiva inclusiva. Monte (2001, p. 104) afirma que, diante do fato de que as vozes das sociedades indígenas foram silenciadas pelas políticas educacionais, deve-se 20 Sobre esta questão, o Governo do Estado de Rondônia, após ser pressionado por parte dos movimentos sociais indígenas e pelo Ministério Público Federal de Rondônia, publicou, no Diário Oficial do Estado, Lei Complementar n.º 578, de 1.º de junho de 2010, que dispõe sobre a criação do Quadro de Magistério Público Indígena do Estado de Rondônia, da carreira de Professor Indígena e da carreira de Técnico Administrativo Educacional Nível 1 e Técnico Administrativo Educacional Nível 3. Fomos convidados pelos professores e lideranças indígenas a participar dessa sessão de votação na Assembléia Legislativa do Estado de Rondônia. 44 [...] formular e explicitar um novo projeto de escola, acompanhada pelo eco de outras vozes, ressoando e reproduzindo, ainda que sob um intenso debate e conflito, em novas garantias e direitos coletivos e propostas de políticas públicas diferenciadas, a serem implementadas pelos estados brasileiros dentro dos sistemas de ensino. Como um marco político e pedagógico, essas políticas deverão possibilitar a conciliação da cidadania com a diversidade como direito coletivo que implicará a participação dos emergentes movimentos sociais indígenas e as definições e os rumos de suas comunidades como parte integrante da nação brasileira. As comunidades indígenas expressam suas expectativas em relação à escola de muitas maneiras. Em alguns casos, ela é explicitamente solicitada para atender às necessidades presentes na luta pela terra: como é necessário ao índio deslocar- se para outras localidades, torna-se importante comunicar-se por meio da leitura, da escrita, do manejo do dinheiro e da compreensão de mapas – a qual implica conhecer o aumento ou a redução de áreas ocupadas pela sua comunidade. Outro aspecto relevante do Referencial Curricular Nacional de Educação Escolar Indígena, de 1998 refere-se: Os princípios contidos nas leis dão abertura para construção de uma nova escola, que respeite o desejo dos povos indígenas por uma educação que valorize suas práticas culturais e lhes de acesso a conhecimento e práticas de outros grupos e outras sociedades. Uma normatização excessiva ou muito detalhada pode ao invés de abrir caminhos inibir o surgimento de novas e importantes práticas pedagógicas e falhar no atendimento a demandas particulares colocadas por esses povos. A proposta da escola indígena diferenciada representa, sem dúvida alguma, uma grande novidade para o sistema educacional dos pais, exigindo das instituições e órgãos responsáveis a definição de incorporadas e beneficiadas por sua inclusão no sistema, quanto respeitadas as suas particularidades (RCNEI, 1998, p. 34). 1.2 O currículo diversificado para as escolas indígenas: um desafio Para Catarina Costa Fernandes (2006), na história da renovação das práticas pedagógicas e curriculares da escola indígena, algumas ideias se firmaram a partir da reflexão e da ação promovidas pelas experiências inovadoras conduzidas pelas organizações de apoio aos povos indígenas e também da mobilização de professores e dessas lideranças interessadas em uma educação escolar que contribuísse para sua autonomia. Uma dessas ideias é o reconhecimento da multietnicidade e da pluralidade. 45 No Brasil contemporâneo, existem mais de 225 povos indígenas que, segundo o Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas (RCNEI), (1998), cultural e linguisticamente representam uma magnífica [...] soma de experiências históricas e sociais diversificadas, de elaborados saberes e criações, de arte, de música, de conhecimentos, de filosóficos as originais, construídos ao longo de milênios pela pesquisa, reflexão, criatividade, inteligência e sensibilidade de seus membros. [...] Sua variedade e sua originalidade são um patrimônio importante não apenas para eles próprios e para o Brasil, como de fato, para toda a humanidade (BRASIL, MEC, 2005a). É importante compreender a diversidade implícita na pluralidade étnica para a formulação de políticas e ações adequadas às realidades e perspectivas de cada povo indígena. Por isso, não são condizentes com essa realidade propostas de políticas e ações que tomem os povos indistintamente, sem contemplar suas especificidades em termos culturais, linguísticos, de histórias de contato com a sociedade nacional, de projetos de futuro e de presente. Construir uma agenda política, acordada com professores e representantes de cada povo, que reflita suas perspectivas e suas demandas socioambientais é um enorme desafio para os gestores públicos, tendo em vista a necessária distinção entre educação indígena e educação escolar indígena. A aprendizagem de diferentes povos é uma dimensão ignorada pelas políticas assimilacionistas que não reconheciam os padrões de transmissão dos conhecimentos tradicionais para a formação de jovens e crianças de acordo com suas concepções sobre sociedade e formação da pessoa humana As práticas socializadoras da comunidade, em diversificados momentos, por meio de diferentes agentes e ao longo de toda a vida são educacionais por natureza, se valem da oralidade e têm estratégias próprias. A essa atividade, a educação escolarizada foi imposta intentando substituir e neutralizar esses processos de formação. (MELIÁ, 1979, p. 58). As ações inovadoras e decisivas da cultura e da sociedade acontecem e se refletem diretamente nas projeções dos conteúdos e métodos distribuídos nos currículos escolares, girando em torno da conscientização da práxis e da quebra de paradigmas. Nesse sentido, recorremos a Sacristan no intuito de contribuir com nossas reflexões. Para tanto, o autor define que: 46 O currículo aparece, assim, como o conjunto de objetivos de aprendizagem selecionados que devem dar lugar à criação de experiências apropriadas que tenham efeitos cumulativos avaliáveis, de modo que se possa manter o sistema numa revisão constante, para que nele se operem as oportunas reacomodações. (SACRISTAN, 2000, p. 46). Escreve Thomaz Tadeu da Silva (1996, p. 165): “[...] nós fazemos o currículo e o currículo nos faz”. Com essa afirmação, pode-se dizer que o currículo escolar se constitui também um dos elementos centrais na construção do indivíduo como sujeito histórico Ao compreender melhor o texto e o contexto em que estão inseridas as questões de educação escolar indígena, é possível observar que nem sempre essa escola oferece um currículo adequado aos seus alunos, tendo em vista sua realidade. O professor da etnia Oro Mon21 afirma que a escola indígena é diferenciada das demais até mesmo no calendário, pois “[...] a gente trabalha com o calendário não escolar indígena”. Isso significa que o calendário escolar não foi definido exclusivamente pela sua comunidade. De acordo com a (SECAD, 2007 p. 21): [...]. A escola indígena se caracteriza por ser comunitária, ou seja, espera-se que esteja articulada aos anseios de comunidade e a seus projetos de sustentabilidade territorial e cultural. Dessa forma, a escola e seus profissionais devem ser aliados da comunidade e trabalhar a partir do diálogo e participação comunitária, definindo desde o modelo de gestão e calendário escolar – o qual deve estar em conformidade às atividades rituais e produtivas do grupo - até os temas e conteúdos do processo de ensino- aprendizagem. Moreira e Candau (2003, p. 161) afirmam: A escola sempre teve dificuldade em lidar com a pluralidade e a diferença. Tende a silenciá-las e neutralizá-las. Sente-se mais confortável com a homogeneização e a padronização. No entanto abrir espaços para a diversidade, a diferença e para o cruzamento de culturas constitui o grande desafio que está chamada a enfrentar. Catarina Costa Fernandes (2006), afirma que atitudes impositivas, por sua vez, expressam valores e predispõem uma pessoa para agir ou reagir de certa maneira em relação a alguma coisa ou pessoa, enquanto comportamento é qualquer forma de ação humana. A diversidade cultural existe dentro e entre culturas; mas, 21 Entrevista gravada no Centro de Treinamento CENTRER/EMATER do município de Ouro Preto d‟ O‟Este, estado de Rondônia (2008). 47 dentro de uma única cultura, certos comportamentos são incentivados e outros, reprimidos. Segundo um professor indígena: “[...] o currículo também é imposto e não respeita as especificidades culturais dos índios”. Do mesmo modo, Fernandes, (2006) considera que a defesa da diversidade cultural é um imperativo ético, inseparável do respeito à dignidade humana. Ela implica o compromisso de respeitar os direitos humanos e as liberdades fundamentais, em particular os direitos das pessoas que pertencem a minorias e dos povos autóctones. Ninguém pode invocar a diversidade cultural para violar os direitos humanos garantidos pelo direito internacional, nem para limitar o seu alcance. A declaração universal da diversidade cultural defende que ela é um patrimônio comum da humanidade e incentiva o diálogo intercultural e o multiculturalismo como formas de garantir um desenvolvimento harmonioso das sociedades. Nesse sentido, entende-se que a escola indígena é um local composto por uma população diferenciada, permeada por seus costumes e suas crenças, logo o currículo escolar deveria levar em consideração as especificidades de cada povo. 1.2.1 Os professores não índios nas escolas das aldeias O universo escolar é marcado pela presença de pessoas que se apresentam com suas singularidades, variedade de etnias, diferentes visões de mundo e modos muito particulares de ser, de sentir e de viver. Segundo Edgar Morin (2001, p. 56): A cultura é constituída pelo conjunto dos saberes, fazeres, regras, normas, proibições, estratégias, crenças, ideias, valores, mitos, que se transmite de geração em geração, se reproduz em cada indivíduo, controla a existência da sociedade e mantém a complexidade psicológica e social. [...] Assim, sempre existe a cultura nas culturas, mas a cultura existe apenas por meio das culturas. Os professores índios reclamam da forma como os professores não índios são recrutados aleatoriamente para atender às comunidades, já que muitos não têm o devido conhecimento para trabalharem com a diversidade. A coordenação encarregada de selecionar os professores o faz somente com base em um currículo vitae, sem que haja uma entrevista e uma verificação prévia sobre seu real preparo para trabalhar nas comunidades indígenas situadas em regiões distantes. Na fala de 48 uma liderança indígena Tupari, durante a Reunião de Avaliação do Projeto Açaí realizada por professores indígenas e lideranças indígenas, em 2008, em Rondônia, fica evidente esse problema: [...] Eu acho que, em primeiro lugar, a coordenação daqui de Porto Velho ou da representação para contratar uma pessoa para trabalhar na terra indígena, tem que fazer entrevista com essa pessoa, porque, às vezes, quando o governo abre um espaço para a contratação de profissionais, vai um monte de contratado para aquele setor. Só que as pessoas que mandam o currículo, não estão preparadas para trabalhar no mato com os indígenas. [...] Então, muitas vezes, elas são contratadas, mas, em primeiro lugar... chegam lá de joelho, pedindo para serem contratadas. Mas isso não é com o interesse de ficar lá. É com o interesse de ganhar só para sobreviver. Muitas pessoas que são contratadas não são daqui, são do Nordeste, vêm de São Paulo, vêm lá não sei de onde, procurando emprego para poder sobreviver. Ou talvez para pagar o repasse, os custos da volta; muitas vezes isso acontece. Então eu acho que é necessário alertar e explicar para essas pessoas antes de saírem daqui de Porto Velho, porque, se não, elas vão sair daqui pensando que irão ficar num apartamento que tem ar-condicionado, num escritório que tem computador, tem tudo. Não é isso, é muito diferente do trabalho na cidade o trabalho no campo [...]. Consequentemente, os professores de tal forma contratados, não contribuem para o desenvolvimento da educação escolar Indígena, o que se torna da maior importância que a construção do currículo seja elaborada a partir das necessidades levantadas pelos próprios indígenas juntamente com sua comunidade. Mediante as anotações realizadas pelos eles, expressas em seus registros diários, é possível identificar quais as aspirações dessa população. Wilmar Rocha da Rocha D‟Angelis, (2003, p. 42), formula dez tópicos que deveriam compor a formação desses professores para atuar na escola de sua comunidade. Os tópicos sugeridos pelo autor para o Núcleo Comum de Formação para a Educação Básica são: 1) pedagogia; 2) ensino – especificidade da situação de conflito de culturas; 3) perspectiva antropológica: especificidade da situação do bilinguismo: 4) língua materna; 5) língua portuguesa; 6) ensino de línguas; 7) bilinguismo e ensino bilíngue; especificidade das outras áreas de conhecimento; 8) abordagem indígena de outros conhecimentos; especificidade do estado atual da educação escolar indígena; 9) currículo; 10) material didático (D‟ANGELIS, 2003 p. 43). Enfatiza, ainda, que há necessidade de um planejamento local a cada nova turma de professores, objetivando atender as propostas de autonomia, ou seja, um planejamento que seja dirigido pelas sociedades indígenas interessadas. 49 Nesta seção, nosso objetivo foi esclarecer alguns conceitos que fundamentam a política de educação indígena e da educação escolar indígena em particular, como multiculturalismo, interculturalidade, alteridade, bilinguismo, dentre outros e que estão na base dos Referenciais e das Diretrizes para a Educação Escolar Indígena no Brasil e, consequentemente, dos projetos educacionais de iniciativa do Estado. Na seção seguinte, vamos fazer um breve histórico das iniciativas de educação escolar indígena no Brasil e em Rondônia, bem como dos estudos e pesquisas que possibilitam dar maior clareza para se analisar o Projeto Açaí. 50 2 UM BREVE HISTÓRICO DA EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA NO BRASIL E EM RONDÔNIA Esta seção tem o objetivo de rever, mesmo que brevemente, as principais fases da educação indígena no Brasil no contexto da política indigenista deste país, identificando as suas principais características e tendências particularmente com relação à visão de educação indígena que predominou em cada uma dessas etapas. Pretende-se identificar iniciativas pioneiras de implantação de projetos de educação escolar indígena, bem como alguns dos estudos realizados sobre essas iniciativas no Brasil e em Rondônia que antecederam o Projeto Açaí. Entendemos que a importância dessa breve revisão é que ela nos permitirá analisar melhor esse projeto em relação aos anteriores. A ideia de integração dos índios à sociedade nacional por meio de ações educativas remonta ao período colonial com a chegada das primeiras caravelas até meados do século XX, quando o panorama da educação escolar indígena foi marcado pelas palavras de ordem “catequizar, civilizar e integrar”. (SILVA e AZEVEDO, 2004) Catequizar seria converter os índios à religião católica, tarefa dos padres missionários que aqui chegaram junto com os primeiros colonizadores. Civilizar seria substituir sua forma “primitiva” de vida pelas supostas vantagens da civilização, e, a partir daí, seriam integrados à sociedade nacional, abandonando seus costumes, que eram considerados atrasados e primitivos do ponto de vista de uma história etnocêntrica europeia. De acordo com Silva e Azevedo, 2004, p.149: “A implantação de projetos escolares para populações indígenas, portanto, é quase tão antigo quanto o estabelecimento dos primeiros agentes coloniais no Brasil”. 2.1 O Período Colonial Antes da chegada dos europeus à América havia aproximadamente 100 milhões de americanos no continente (BERTA RIBEIRO, 1984). Só em território brasileiro [...] supõe-se que, à época da chegada oficial dos portugueses ao Brasil, em 1500, a população indígena era superior a cinco milhões de pessoas; hoje, não ultrapassa 250 mil indivíduos, distribuídos em cerca de 200 povos distintos, falando por volta de 170 línguas, das quais apenas 5 têm mais de 5.000 falantes; 25% dessas línguas têm menos de 100 falantes. (MONSERRAT, 1989, p.245). 51 Esses índios brasileiros estavam divididos em vários povos, “[...] com suas línguas próprias. É difícil calcular, mas é seguro que havia bem mais de mil línguas faladas no Brasil, antes da entrada dos portugueses” (D‟ANGELIS, s/d, p.1). (RIBEIRO, 1984; MELATTI, 1970). Desde o início da colonização do Brasil, os jesuítas tiveram preocupação em criar “escolas” para os filhos dos indígenas e os filhos dos colonos aqui estabelecidos, utilizando-se, no caso dos primeiros, da criação de uma língua própria, o nhengatú ou neotupi, até hoje falada em algumas regiões do Brasil (GERSEM JOSÉ DOS SANTOS LUCIANO, 2001, p. 124), facilitando assim a comunicação com os indígenas a fim de incutir neles os ideais civilizatórios, fortemente marcados pela religiosidade católica, favorecendo, dessa forma, a ação colonizadora. A ideia de integração dos índios à sociedade nacional e os respectivos estudos remontam a uma tradição que advém do período colonial brasileiro, quando o governo português dividia-se entre os interesses dos colonos de escravizar os índios e as tentativas dos missionários de impedir essa escravização, convertendo os índios ao cristianismo e levando-os a adotar costumes “civilizados”. Desse modo, o projeto de educação e catequese indígena permaneceu a cargo dos missionários católicos de diversas ordens religiosas, estabelecidos por delegações explícitas da Coroa Portuguesa (Padroado22). Alguns autores (D‟ANGELIS, 2005; NOBRE, 2005), consideram que o período colonial, no que se refere à educação escolar indígena, deve ser dividido, pelo menos, em duas fases distintas. A primeira, à qual já nos referimos anteriormente, coincide historicamente com os dois primeiros séculos da colonização, ou seja, de 1500 a 1700, ou, para sermos precisos, de 1549, data da chegada dos primeiros jesuítas, a 1749, quando foram expulsos dos territórios português e espanhol. Nessa fase, a escolarização era, como já foi menci