UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS CÂMPUS DE BAURU VINICIUS MARTINUCHO GODEGUEZI MANHÊS, ACALANTO E DESENVOLVIMENTO HUMANO: UM ESTUDO PSICANALÍTICO SOBRE O ESTABELECIMENTO DAS RELAÇÕES OBJETAIS ATRAVÉS DOS ELEMENTOS SONORO-MUSICAIS BAURU 2021 VINICIUS MARTINUCHO GODEGUEZI MANHÊS, ACALANTO E DESENVOLVIMENTO HUMANO: UM ESTUDO PSICANALÍTICO SOBRE O ESTABELECIMENTO DAS RELAÇÕES OBJETAIS ATRAVÉS DOS ELEMENTOS SONORO-MUSICAIS Dissertação apresentada como requisito à obtenção do título de Mestre à Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Programa de Psicologia do Desenvolvimento e Aprendizagem, sob orientação do Prof. Dr. Érico Bruno Viana Campos. BAURU 2021 Godeguezi, Vinicius Martinucho. Manhês, Acalanto e Desenvolvimento Humano: um estudo psicanalítico sobre o estabelecimento das relações objetais através dos elementos sonoros- musicais/ Vinicius Martinucho Godeguezi, 2021 133 f. : il. Orientador: Érico Bruno Viana Campos Dissertação (Mestrado)– Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências, Bauru, 2021 1. Manhês. 2. Acalanto. 3. Música e Psicanálise. 4.Teoria do Desenvolvimento. I. Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências. II. Título. AGRADECIMENTOS Agradeço ao meu orientador Érico pela generosidade, paciência, confiança e amizade desde meu percurso na graduação e, depois, durante a realização deste trabalho o qual é fruto de conversas e interesses em comum que pudemos desenvolver a partir de uma relação muito amistosa e enriquecedora. Agradeço também aos colegas de grupo de pesquisa que contribuíram grandemente durante meu percurso no mestrado com observações muito instigantes e provocadoras, atestando que mesmo as realizações que são aparentemente pessoais só se fazem realmente coletivamente e que cabeças que pensam juntas sempre pensam melhor. Agradeço à minha família sempre muito compreensiva e que tem me encorajado e apoiado desde o início em todos os projetos em que empreendi ao longo da vida, estando comigo nas conquistas e nos fracassos. Também a todos os amigos e colegas que durante as conversas informais e momentos de distração me foram e são interlocutores muito caros que sempre me surpreendem com sua inteligência espirituosa e que me fazem seguir em frente para ter o que contar. Agradeço à Fundação de Aparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) que financiou este projeto permitindo minha integral dedicação a ele. Por fim, a todos os companheiros e companheiras de caminho e travessia que, em última análise, fazem a vida valer a pena. O presente trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de financiamento 001. A música é o vínculo que une a vida do espírito à vida dos sentidos. A melodia é a vida sensível da poesia. (Ludwig van Beethoven) Quando se ouve boa música fica-se com saudade de algo que nunca se teve e nunca se terá. (Samuel Howe) GODEGUEZI, V. M. Manhês, Acalanto e Desenvolvimento Humano: um estudo psicanalítico sobre o estabelecimento das relações objetais através dos elementos sonoro-musicais. 2021. Dissertação (Mestre em Psicologia do Desenvolvimento e Aprendizagem). f. 133. Faculdade de Ciências, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Bauru, 2021. RESUMO A compreensão do desenvolvimento na teoria psicanalítica é de fundamental importância tanto enquanto parte de seu arcabouço teórico, quanto como fundamento para embasar intervenções técnicas e clínicas. Nesse sentido, é reconhecida a grande relevância da palavra no estabelecimento de laços afetivos através da linguagem. Entretanto, o som, elemento primordial e anterior à palavra, não tem sido amplamente estudado no âmbito da psicanálise. Tendo isso em vista, a presente dissertação pretende buscar uma articulação entre as propriedades sonoras e musicais da voz presentes nos fenômenos do manhês e do acalanto com os primeiros laços estabelecidos na relação mãe/bebê. O trabalho teve o objetivo de analisar a produção psicanalítica a respeito do assunto no intuito de compreender como os elementos sonoro-musicais incidem no processo de erotização e na instauração de um circuito pulsional que possibilitará o surgimento das primeiras relações objetais, utilizando para isso a obra de autores clássicos e contemporâneos da psicanálise. Palavras-Chave: Manhês, acalanto, música e psicanálise, teoria do desenvolvimento GODEGUEZI, V. M. Motherese, Lullaby and Human Development: a psychoanalytic study on the establishment of object relations through the sonorous-musical elements. 2021. Dissertation (Master in Developmental and Learning Psychology). College of Sciences, Sao Paulo State University “Júlio de Mesquita Filho”, Bauru, 2021. ABSTRACT Understanding development in psychoanalytic theory is of fundamental importance both as part of its theoretical framework and as a support for technical and clinical interventions. In this sense, the great relevance of the word in the establishment of affective bonds through language is recognized. However, sound, a primordial and pre-word element, has not been widely studied in psychoanalysis. With this in view, the present project intends to seek a link between the sound and musical properties of the voice present in the phenomena of the motherese and the lullaby with the first bonds established in the mother/baby relationship. The objective of this work is to analyze the psychoanalytic production about the subject in order to understand how the sonorous-musical elements affect the process of erotization and the instantiation of a drive circuit that will enable the first object relations to appear, using the work of classical authors of psychoanalysis. Keywords: motheresese, lullaby, music and psychoanalysis, development theory. SUMÁRIO INTRODUÇÃO.......................................................................................................................10 Capítulo 1: Manhês, acalanto: caracterização geral e específica na psicanálise................15 1.1 O som, a música e a voz.......................................................................................................15 1.2 O Manhês.............................................................................................................................20 1.3 O Acalanto............................................................................................................ ...............27 Capítulo 2: Fundamentos da teoria psicanalítica do desenvolvimento e o lugar dos elementos sonoros e musicais..................................................................................................36 2.1 Freud, a teoria da sexualidade e a questão do narcisismo.....................................................37 2.2 Os paradigmas da psicanálise, Melanie Klein e a agressividade..........................................47 2.3 Laplanche e a teoria da sedução generalizada......................................................................51 2.4 Roussillon: os elementos não verbais das representações-afeto...........................................55 Capítulo 3: Encaminhamentos na interface entre Lacan e Winnicott...............................59 3.1 Diferenças e aproximações entre Lacan e Winnicott............................................................59 3.2 Lacan: um panorama geral..................................................................... ..............................65 3.3 A Pulsão Invocante nas origens da constituição do sujeito..................................................70 3.4 A dimensão real da voz e o gozo de lalíngua........................................................................74 3.5 Alain Didier-Weill: A Nota Azul.........................................................................................77 3.6 Winnicott e a Teoria do Desenvolvimento Emocional.........................................................86 3.7 A relação especular e a voz materna...................................................... ..............................89 3.8 Didier Anzieu: o Eu-pele e o envelope sonoro do si-mesmo................................................91 3.9 Discussão/ Síntese...............................................................................................................95 Capítulo 4: Sonoridade e psicanálise: voz, música e linguagem...........................................99 4.1 A questão da sonoridade e da música na psicanálise: produções contemporâneas.............100 4.2 O prazer da música e o sentimento oceânico......................................................................108 4.3 A voz como encruzilhada entre música e palavra: Barthes com Lacan............................ .112 Considerações Finais: os destinos do manhês e do acalanto:..............................................122 Referências.................................................................................................................. ...........125 10 INTRODUÇÃO A música pode ser compreendida como a criação artística e estética humana que se utiliza dos sons para manifestar os afetos, sentimentos e estados anímicos da vida. A percepção, manipulação e possível notação das alturas definidas pelas frequências e amplitudes da onda sonora podem ser consideradas uma atividade humana universal e fundamental no processo civilizatório. Cada cultura, ao longo da história, produziu sua música através de sistemas relacionais próprios determinados por métodos escalares modais ou tonais que, assim como as outras manifestações artísticas como a dança, a escultura ou a pintura, imprime uma identidade a um grupo humano e a um momento histórico, segundo seu conjunto de crenças, representações e apreensão simbólica do mundo. Deste modo, podemos dizer que a música enquanto feito humano é produto e ao mesmo tempo agente do processo civilizatório compreendido como o desenvolvimento de uma cultura (WISNIK, 1999). Se a música é algo tão característico e importante para o desenvolvimento cultural dos grupos humanos, é preciso considerar que também está presente como elemento fundamental no processo de desenvolvimento dos indivíduos e das possibilidades de interação com o mundo. Segundo Rousseau (1781/1999), a canção e a linguagem falada teriam origens comuns, pois, no início, o dizer e o cantar seriam uma única coisa que se diferenciam pela mediação dos afetos e pela facilidade destes serem expressos por um meio ou outro segundo sua qualidade. Para ele, “a cólera arranca gritos ameaçadores, que a língua e o palato articulam, porém a voz da ternura, mais doce, é a glote que modifica, tornando-a um som” (ROUSSEAU, 1781/1999, p.303). Deste modo, uma língua que tivesse apenas articulações seria capaz de transmitir ideias, no entanto para transmitir imagens e sentimentos, seria preciso “ritmos e sons, isto é, uma melodia” (1781/1999, p.304). 11 Freud, em uma passagem conhecida do texto O Moisés de Michelangelo (1914/2013) afirma que diferentemente da pintura e escultura, a contemplação musical não atraia seu interesse, pois, no caso da música, o incomodava o fato de não poder explicar o porquê dos efeitos anímicos que esta lhe causava (FREUD, 1914/2013). Os sons encadeados em sistemas melódicos ou harmônicos têm o efeito de provocar emoções e, diferentemente de outros tipos de arte, não se pode explicar esse efeito da música tão facilmente, porque os sons, à priori, não transmitem uma mensagem. Na música, há algo que transcende o domínio do significante. Apesar desta impossibilidade de se reduzir a música à linguagem verbal, é preciso reconhecer de maneira clara que, assim como sugere Rousseau, a fonte primitiva da produção tanto de sons quanto de palavras pelos seres humanos parece ser comum – a voz. Pode-se dizer que um dos primeiros meios de se relacionar com o outro que contém em si a possibilidade de diferenciação é a voz. A voz enquanto meio comunicativo do outro materno que fala ao bebê, a voz com que o bebê se manifesta com gritos e balbucios e a voz que serve de veículo às palavras que dão sentido a estas manifestações do infans, funciona como algo que instaura uma primeira relação dual onde há um emissor e um receptor, por assim dizer. Se no início da vida, as palavras carecem de sentido e, por isso, não podemos ser afetados por elas, o mesmo não parece acontecer quando se trata do som, da música materna, ou seja, das gradações melódicas da fala manhês que a mãe cria ao se dirigir ao bebê. O manhês é definido como um modo especial de fala materna dirigida ao bebê, com características peculiares em relação à sintaxe (tamanho das frases e repetições), léxico (simplificação morfológica e multifuncionalidade de palavras) e aspectos dinâmicos de prosódia (tom de voz mais agudo, velocidade lenta, supressão de letras e alongamento de vogais). Segundo Catão (2008), em um grande número de culturas estudadas, as mães conversam com seus bebês empregando as modificações características do manhês e estas 12 alterações os atraem, fazendo com que interajam a partir de vocalizações e movimentos, algo que não acontece quando se fala com o bebê “normalmente”. Uma característica deste tipo de fala peculiar das mães que interessa particularmente a este trabalho são as alterações prosódicas, pois estas são as portadoras da musicalidade da voz endereçada ao bebê. Talvez se possa dizer que as modificações feitas nas características sintáticas ou léxicas das frases no manhês sejam mais facilmente compreensíveis, pois são modificações que simplificam a língua e, de certo modo, imitam a fala das crianças que estão aprendendo a falar. No entanto, é notável que as mães falam com os bebês mesmo antes de eles possuírem qualquer tipo, ainda que rudimentar e balbuciante, de linguagem. Portanto, é no aspecto prosódico do manhês, com seus falsetes, alongamentos exagerados de vogais e alterações de altura tonal que o elemento melódico aparece e parece representar algo de afetuoso da mãe dirigido à criança. Para além desta fala dirigida ao bebê com suas gradações sonoras, a música também se faz presente no início da vida através do acalanto. As melodias doces, típicas das canções de ninar com que nos embalam nos momentos iniciais da vida, parecem ser algo que afeta os bebês de maneira agradável a despeito das letras terroríficas, com cucas, bichos papões e bois da cara preta, que em um momento pré-verbal da vida, não parecem oferecer risco algum ao calor musical e aconchegante do colo materno. Ainda que se reconheça que a produção psicanalítica a respeito dos efeitos do som e da música seja um tanto incipiente com relação a outros elementos como o olhar e a palavra, é possível encontrar em autores clássicos como Lacan e Winnicott considerações interessantes sobre a importância dos elementos sonoro-musicais veiculados pela voz no contexto de uma relação primária com o outro, seja por uma perspectiva do “amadurecimento emocional”, seja pela “constituição do sujeito”. Depois, seguidores das tradições teóricas inauguradas por esses autores tentaram avançar na questão, seja seguindo as reflexões de dentro de seu referencial 13 teórico como é o caso do lacaniano Alain Didier-Weill ou então propondo teorias que fazem uma articulação entre as duas matrizes como Didier Anzieu. Nesse sentido, o presente trabalho busca compreender, utilizando-se dos conhecimentos produzidos pela psicanálise, qual o possível efeito das melodias da voz materna presente nos fenômenos do manhês e do acalanto para o estabelecimento das relações objetais. O trabalho se constitui como pesquisa teórico-conceitual apoiada em uma revisão bibliográfica na área da psicanálise. Utiliza-se da estratégia hermenêutica proposta por Campos e Coelho Junior (2010) para a condução de pesquisas teóricas em psicanálise. Esta estratégia constitui uma forma de leitura crítica que se dá pela aproximação entre a perspectiva desconstrutiva e uma abordagem do texto a partir do método psicanalítico. Busca-se uma leitura que não se fecha em uma suposta unidade dogmatizante, procurando abordar as articulações internas do texto a ser estudado. Devido à relativa abrangência de seu objeto e entendendo que se trata de uma pesquisa que busca a problematização de pressupostos e conceitos psicanalíticos, mas sem perder de vista uma relação dialógica com estudados fenômenos não exclusivamente no campo da psicanálise (manhês e acalanto), o plano da dissertação compreende uma exposição em quatro capítulos. No capítulo I, buscaremos apresentar o campo da sonoridade e da música e a sua relação com o psiquismo, de modo a situar os fenômenos do manhês e do acalanto neste campo, compreendendo-os como meios possíveis de subjetivação. Neste eixo procuraremos apresentar as características estruturais destes fenômenos, assim como algumas reflexões que os analisam pelo viés da psicologia e psicanálise, sociologia, antropologia e estudos do campo da linguagem e da música. Nos capítulos II e III, procuramos delimitar os autores e conceitos da teoria psicanalítica através dos quais buscaremos uma compreensão de como os elementos musicais contidos na fala manhês e no acalanto podem ser relevantes para o estabelecimento das relações objetais no 14 início da vida. Nesse sentido, faremos inicialmente uma caracterização dos fundamentos da teoria do desenvolvimento e da metapsicologia das representações sonoras. Passaremos por Freud e sua teoria do desenvolvimento psicossexual e pulsional com intuito de compreender os mecanismos de ligação pulsional e erotização do psiquismo característicos de momentos iniciais da vida. Posteriormente, buscaremos os desdobramentos dessa teoria com relação a esses momentos iniciais e a relevância da voz, do som e da música como elemento de erotização e estabelecimento de relações de objeto. Assim, buscaremos apresentar autores pós-freudianos que privilegiam a “modalidade de objeto” para compreender o desenvolvimento. No capítulo seguinte adentraremos em nosso recorte específico, nos concentrando nas tradições da teoria da constituição do sujeito e das relações de objeto de Lacan e Winnicott respectivamente, onde daremos ênfase aos conceitos de pulsão invocante e lalíngua em Lacan e de relação especular em Winnicott. Ainda nesse capítulo, percorremos a obra de dois autores posteriores que têm relevantes contribuições ao assunto, são eles, Alain Didier-Weill com a ideia de Nota azul e Didier Anzieu com os conceitos de envelopes sonoros e Eu-pele. Por fim, no capítulo IV, procuraremos articular o conhecimento apresentado nos anteriores à luz de uma revisão de artigos recentes sobre a temática com intuito de fazer uma discussão a respeito da influência do elemento sonoro-musical presente nos fenômenos do manhês e do acalanto para o desenvolvimento e estabelecimento das relações objetais e laços afetivos primitivos. 15 Capítulo I Manhês e Acalanto: caracterização geral e específica 1. Som, música e voz Para iniciarmos este trabalho, acreditamos ser importante fazer algumas considerações sobre o campo da sonoridade e musicalidade e a importância de sua incidência para o psiquismo humano. Neste primeiro momento, não nos reduziremos somente a articulações do campo da sonoridade com a teoria psicanalítica, buscando assim compreender o fenômeno sonoro e musical a partir de outros saberes que não os específicos da psicanálise. A definição mais elementar que se pode conceber com relação ao som, talvez seja dizer que o som é onda. O som é o resultado das vibrações dos corpos que se propagam pela atmosfera, são captadas pelos ouvidos e interpretadas pelo cérebro (WISNIK, 1999). As características físicas desta propagação ondulatória a qual chamamos de onda sonora dão aos sons suas quatro características básicas – altura, intensidade, duração e timbre. A altura dos sons diz respeito à sua característica de grave ou agudo. Ondas sonoras que têm frequências entre 20 e 20.000 hertz são identificáveis pelo ouvido humano como sons. Quanto menor a frequência de uma onda sonora, mais grave é o som e quanto maior a frequência, mais agudo. Frequências abaixo de 20 hertz e acima de 20.000 hertz são chamadas de infrassons e ultrassons respectivamente e não são identificáveis pelo ouvido humano. A intensidade de um som se refere ao quão forte ou fraco é este som. Esta qualidade está relacionada com a amplitude da onda sonora e a unidade para sua quantificação é o decibel (dB) (KNOBEl; SANCHEZ, 2006). O timbre é a qualidade sonora que imprime uma identidade ao som, que permite que possamos diferenciar as vozes das pessoas ou identificar se uma nota é tocada por um piano ou por um violão. A grande variedade de timbres que encontramos no mundo está relacionada com as características físicas dos corpos que podem oscilar produzindo 16 um som e um tipo específico de ressonância. Todos os sons produzidos em situações naturais são impuros, isso quer dizer que o “desenho” de sua onda sonora é imperfeito se analisado em um osciloscópio. Isso se dá porque a ressonância produzida segundo as características físicas de uma fonte oscilatória (pregas vocais, palhetas de um clarinete, cordas de um violino) faz com que a onda vibre também internamente, ou seja, para além da frequência fundamental que produz a altura de um som, existe uma vibração interna, mais rápida (chamadas de sons harmônicos) que não percebemos isoladamente, mas acopladas ao próprio som e que lhe conferem uma característica particular – o timbre – que muitas vezes é chamada de “cor do som” (WISNIK, 1999, p. 24). E por fim, a duração é a propriedade que dá ao mundo dos sons o seu caráter rítmico. É basicamente o tempo que um som pode ser percebido segundo as características de sua fonte e de seu meio de propagação fazendo-os longos ou curtos. É evidente que esta apresentação do fenômeno sonoro é bastante sucinta e incompleta se formos levar em consideração todos os conhecimentos produzidos a respeito do som no campo da física, por exemplo. No entanto, o que nos interessa para este trabalho é a compreensão dos elementos básicos do fenômeno sonoro para que possamos passar da compreensão do som para a música, ou seja, dos elementos sonoros para os propriamente musicais. Diferentemente do som, que é um fenômeno natural relativo à propagação das oscilações dos corpos pela atmosfera ou pelos meios que propiciem esta propagação e sua identificação sensorial, a música, por sua vez, é o produto de uma criação humana, é a arte de expressar sentimentos, afetos e emoções através dos sons, podendo ser definida como “a arte do som” (LACERDA, 1967/ 2011, p. 3). Enquanto arte do som, os elementos básicos que são normalmente utilizados para definir a música, são desenvolvimentos das propriedades do som apresentadas anteriormente, mas que transcendem a compreensão da mera produção e percepção da onda sonora, se concentrando na 17 estrutura de organização dos sons que subsidia o fazer musical. Sendo assim, pode-se dizer que os elementos fundamentais da música são melodia, harmonia, dinâmica e ritmo. Melodia é a disposição sucessiva dos sons, a organização dos sons de maneira horizontal de modo que cada som soe em um momento específico, ou seja, um após o outro, a sua unidade básica é a nota1. A voz humana, assim como alguns instrumentos musicais (os de sopro principalmente) é considerada melódica devido a sua capacidade restrita de produzir um som de cada vez. Harmonia é a combinação de sons que soam simultaneamente de maneira sobreposta e vertical, sua unidade básica é o acorde2 (BONA, 1982/2017). Chama-se de dinâmica a distribuição das intensidades de som em uma música.3Ritmo diz respeito à divisão temporal dos sons de uma música tendo como referência uma pulsação cíclica. 4Portanto, a melodia e a harmonia se referem diretamente às qualidades sonoras das alturas e das durações, a dinâmica das intensidades e o ritmo particularmente à duração. Melodia, harmonia, dinâmica das intensidades e ritmo são, portanto, os elementos básicos que constituem a música, de modo que é possível encontrá-los nas mais variadas manifestações musicais em diferentes culturas, etnias, e momentos históricos. Para que possamos compreender as características dos elementos sonoros e musicais e da passagem do som à música na experiência humana, é ainda necessário que retornemos à nossa apresentação de seus elementos fundamentais para introduzir aqueles que talvez possamos chamar de “elementos negativos” com relação ao som – o ruído e o silêncio. 1 As notas musicais utilizadas no sistema de notação da música ocidental são dó, ré mi, fá, sol, lá e si com suas alterações correspondentes de aumento de altura (sustenido #) e de diminuição (bemol b). 2 Os acordes são agrupamentos de notas que soando simultaneamente criam uma unidade harmônica. A criação de acordes obedece a uma lógica das diferenças das alturas das notas internas dos acordes com suas combinações consonantes e dissonantes. 3As gradações das intensidades dos sons são representadas em uma partitura entre os polos de Forte e Piano (fraco). 4A representação gráfica do ritmo se dá, na partitura, através das figuras musicais (semibreve, mínima, semínima, colcheia, semicolcheia, fusa e semifusa). Essas figuras são referidas a uma divisão do tempo feita por um compasso que é a divisão da música em partes iguais representadas por uma fração. Para uma explicação pormenorizada sobre a representação das categorias melódica, harmônica, dinâmica e rítmica na partitura, sugiro consultar os trabalhos de Lacerda (1969/2011) e Bona (1989/2017). 18 A sonoridade pode se apresentar na experiência humana basicamente de duas maneiras, como som ou como ruído. Quando a onda sonora se apresenta com uma frequência regular, ou seja, com comprimentos de ondas semelhantes e ordenados a percebemos como som afinado. Entretanto, quando a onda é proveniente de fontes que propagam a oscilação com frequências irregulares e desordenadas temos a sensação de ruído. Ainda que se possa dizer que, uma vez que ambos são percebidos pelo sentido da audição, som e ruído são da mesma natureza, a uniformidade entre os elementos que constituem as características da onda sonora (frequência com relação às alturas e amplitude com relação às intensidades) é o que permite diferenciar o som afinado do ruído, mesmo em suas manifestações naturais, como por exemplo, no canto de um pássaro ou em um trovão. A apropriação humana dos sons no processo do fazer musical busca a extração dos sons da natureza ou então a transformação do ruído em som. Ainda que se admita que exista uma imensidão de possibilidades musicais criadas pelo homem nas mais variadas culturas e períodos históricos, com suas diferenças entre uma maior ou menor aceitação de elementos ruidosos, é preciso reconhecer que a experiência humana com a sonoridade e posteriormente com a musicalidade, implica em um mínimo domínio da onda sonora, ou seja, na conversão do ruído em som ou, pelo menos, no domínio e utilização inteligível destes elementos. Neste processo complexo de domínio do sonoro para fazê-lo musical, é preciso considerar um elemento que também é de extrema importância – o silêncio. Se ruído e som afinado se apresentam como uma polaridade entre regularidade e irregularidade da frequência e da amplitude da onda, estando estas dimensões relacionadas à percepção das alturas e das intensidades dos sons, a definição das durações e consequentemente dos ritmos se dão pela alternância entre o som e sua negação, o silêncio.5 5Os silêncios são representados na partitura através de figuras que são chamadas de “pausas”. 19 A música se faz com a disposição das notas (sons afinados) de alturas variadas a soar sucessivamente em construções melódicas ou em construções harmônicas que podem dispor diversas notas simultaneamente em acordes. Porém, para além disso, essa ordenação também se faz necessária em uma disposição dos sons no tempo. Deste modo, a música é necessariamente algo que se faz em uma divisão de presença e ausência cíclica dos sons que a insere em um tempo e dá o seu caráter rítmico. Portanto, segundo Wisnik (1999) a passagem da sonoridade para a musicalidade se dá por meio da organização do desordenado, na criação de um cosmos a partir do caos. Para o autor: O jogo entre som e ruído constitui a música. O som do mundo é ruído, o mundo se apresenta para nós a todo momento através de frequências irregulares e caóticas com as quais a música trabalha para extrair-lhe uma ordenação (...) Um único som afinado, cantando em uníssono por um grupo humano, tem o poder mágico de evocar uma fundação cósmica: insemina-se coletivamente, no meio dos ruídos do mundo, um princípio ordenador. (WISNIK, 1999, p. 33) Tanto sons, ruídos e ritmos estão presentes desde os primórdios da vida intra-uterina, quando a partir dos primeiros meses o bebê já é capaz de ouvir o batimento ritmado do coração da mãe (MARTINS, 2017). A partir do nascimento, o sentido da audição passa a ser cada vez mais estimulado e a percepção entre o ruidoso e o sonoro introduz à percepção do bebê, dentro dos princípios econômicos das excitações sensoriais, as experiências de contenção e organização tão importantes para o desenvolvimento de si mesmo e dos laços afetivos. Neste sentido, o bebê responde ao ruído traumático do mundo e ao seu próprio caos interior, chorando. Ele responde ruidosamente em uma expressão do caos que é esta experiência primordial, dando vazão aos desprazeres e ao desamparo que sua condição lhe impõe. A voz materna é uma resposta possivelmente organizadora que responde ao caos do choro do bebê nomeando-lhe as necessidades e o cobrindo com uma experiência de afeto que é, antes de ser simbólica e linguística, sonora. O bebê se detém e ouve a voz materna e, quando esta voz é carregada de gradações sonoras ou de melodias, parece ter o efeito de lhe seduzir e acalmar. Deste modo, essa musicalidade mediadora da relação inicial entre mãe e bebê pode ser 20 portadora não só desse caráter de resposta organizada à desorganização, mas também de algo irresistivelmente sedutor. Para aprofundar esta investigação, passaremos agora à apresentação dos dois fenômenos em que esta experiência dual primordial com a sonoridade e com a música se faz presente: o manhês e o acalanto. 2. Manhês O manhês pode ser definido como um modo especial de fala materna dirigida ao bebê, com características peculiares em relação à sintaxe (tamanho das frases e repetições), léxico (simplificação morfológica e multifuncionalidade de palavras) e aspectos dinâmicos de prosódia (tom de voz mais agudo, velocidade lenta, supressão de letras e alongamento de vogais). Segundo Catão (2008), em um grande número de culturas estudadas, as mães conversam com seus bebês empregando as modificações características do manhês e estas alterações os atraem, fazendo com que interajam a partir de vocalizações e movimentos, algo que não acontece quando se fala com o bebê “normalmente” (CATÃO, 2008, p. 155). Os estudos do “manhês” ou “maternalês” (originalmente baby talk ou motherese) surgiram no âmbito das pesquisas da linguagem em meados dos anos 1970 (CAVALCANTE; BARROS, 2012). Nessa área, foi de fundamental importância para trabalhos que objetivaram compreender a importância da fala dirigida aos bebês no processo de aprendizagem primitiva do idioma. Nesse sentido, em uma pesquisa realizada por Kuhl et al. (1997), analisou-se as formas estruturais da fala de mães americanas, suecas e russas através de gravações enquanto falavam com seus bebês. Os autores concluíram que em todos os idiomas pesquisados, os sons das vogais eram alterados de maneiras semelhantes, de modo a alongar seu som fazendo alterações da altura tonal que, segundo os autores, teria uma importância fundamental para a “entrada” dos bebês no idioma (1997, p. 664). 21 Esse fenômeno também tem sido pesquisado pela psicologia do desenvolvimento em trabalhos que abordam a função, no processo de desenvolvimento, dos aspectos prosódicos da fala materna ao bebê (PAPALIA; OLDS; FELDMAN, 2010), algumas vezes visando os processos iniciais de constituição psíquica e linguísticas (FLORES; BELTRAMI; SOUZA, 2011), a partir das abordagens piagetiana (CAREGNATO, 2013) ou sistêmica (SCORSI; PEREIRA DE LYRA, 2012). Observa-se nesses trabalhos, um enfoque no aspecto cognitivo do desenvolvimento das funções como percepção, memória e linguagem e também nas características dinâmicas dos processos de aprendizagem da linguagem e da comunicação. Outros trabalhos como os de Correa e Bellochio (2019) e Ilari (2005) abordam a questão da musicalidade no início da vida pelo viés da psicologia da educação e da psicologia experimental respectivamente. A partir de uma pesquisa de caráter observacional-interventiva, Correa e Bellochio concluem que o ambiente do berçário inundado por elementos sonoros advindos das cuidadoras com brincadeiras, cantigas e da própria fala faz com que os bebês tenha um interesse muito particular em “produzir música” a partir da exploração manipulatória de instrumentos e objetos e vocalizações. (CORREA; BELLOCHIO, 2019). Ilari (2005), em uma revisão sistemática e compilação de pesquisas a respeito do assunto, apresenta dados experimentais interessantes a respeito da percepção musical de bebês com menos de um ano, como, por exemplo, a preferência de bebês por vozes em detrimento a sons de instrumentos, por melodia simples, sons agudos e acordes consonantes e chama atenção para o fato de serem os elementos preferidos pelos bebês coincidentes com a estrutura da fala manhês e das canções de ninar (ILARI, 2005). No campo da psicanálise, alguns autores da tradição lacaniana ou da psicanálise francesa inspirada por Lacan tem se interessado pelo estudo desse pelo manhês como elemento constituinte da função materna e sua importância para o desenvolvimento psíquico e afetivo do 22 infante. Pode-se citar como exemplo Ferreira (1990), Lasnik-Penot, (2005) Catão (2008), Bentata (2009), Pierrotti, Levy e Zornig (2010) e Lima e Poli (2012), Correa e Bellochio (2019). Para estes autores, o efeito melódico presente na fala dirigida ao bebê pela mãe (ou pelo indivíduo que desempenha a função materna), pode ser algo de fundamental importância para se pensar as possibilidades de compreensão e ampliação de procedimentos clínicos que incidam em um nível muito originário da constituição subjetiva humana. Principalmente, considerando- se as falhas narcísicas e a instalação do auto-erotismo em jogo nos distúrbios globais do desenvolvimento em casos em que o acesso à comunicação verbal seja comprometido, como casos graves de autismo e alguns tipos de psicose. Segundo Ferreira (1990), em muitos autistas nota-se a preferência ao ruído em vez da voz. Laznik (2004) procura articular a questão metapsicológica da clínica infantil do autismo com o elemento articulador do circuito pulsional da voz. Uma pesquisa desenvolvida por Laznik-Penot (2005), na qual foram analisadas através de gravações domésticas durante os primeiros meses de vida interações de mães e bebês que se tornaram autistas, sugeriu que existe uma diminuição da fala manhês por estas mães e também que a atenção da criança autista é atraída por “picos prosódicos” característicos deste tipo de fala proferidos pelo psiquiatra ou por outras pessoas da família. Para Catão (2008) a criança autista desinveste a voz de seu caráter musical e, a partir deste mecanismo, a voz permanece como ruído, que por sua vez, parece ser mais cativante do que a própria voz. De acordo com Bentata (2009) existe no autista uma desarticulação da voz com relação ao olhar, só sendo capaz de reagir à voz materna quando esta não está na sua presença. Para que possamos compreender este fenômeno, é preciso considerar não somente os elementos constitucionais do manhês como um tipo de “protoconversação” (FLORES; BELTRAMI; SOUZA, 2011), mas também que existe a potencialidade de a melodia da voz como elemento articulador de libido e constituinte de laços afetivos. 23 Primeiramente, se tomarmos a definição de que o manhês é um “tipo específico” de fala, seria preciso considerar, qual aspecto dessa fala faz com que o bebê se sinta seduzido por ela e seja afetado mesmo sem compreender o sentido das palavras. Como já citado, os estudos do manhês que o abordam pelo viés teórico no campo das linguagens, propõem que este fenômeno apresenta alterações quanto à sintaxe, léxico e prosódia. Uma vez que o objetivo deste trabalho se concentra em uma análise das propriedades sonoras e musicais do manhês, a princípio, concentraremos nossa atenção na dimensão prosódica, aquela que diz respeito ao “tom” e velocidade da fala, aspectos que poderíamos associar imediatamente como relativos ao campo das sonoridades. Neste sentido, faremos uma breve análise da fala e da fala manhês especificamente, tomando como parâmetro os conceitos dos elementos sonoros e musicais que apresentamos anteriormente. Se observarmos a prosódia, o aspecto fonético e sonoro da língua é preciso considerar que, mesmo quando se fala normalmente, existe algo de um ritmo e entonação sonora da fala. A existência de sílabas tônicas nas palavras e a ideia de uma fala “compassada” nos revelam suas características de altura tonal, intensidade e ritmo. Quando falamos uma palavra proparoxítona como, por exemplo, “música”, dizemos, de modo corriqueiro, que a sílaba tônica “u” é a mais forte. Entretanto, se quisermos compreender isso levando em consideração as dimensões do som, notamos que, na verdade, não é apenas uma questão de força (no sentido de volume), mas também de altura, neste caso, a sílaba tônica é dita em uma altura superior (aguda). Não é por acaso que chamamos alguns acentos gramaticais de grave e agudo, assim como a qualidade sonora das notas musicais. Esse movimento da fala que passeia entre os polos graves e agudos dando expressividade às palavras através de uma dinâmica melódica é que chamamos de entoação. 24 Portanto, se observamos uma palavra dita em uma conversação normal e a desaceleramos, poderemos ver o desenho tonal desta palavra, as sílabas mais agudas, as mais graves. Outro aspecto relacionado à prosódia é a duração silábica interna às palavras, as sílabas mais longas e as mais curtas. Talvez o exemplo mais evidente seja a crase que prolonga o “a”, ligando-o a outro “a” e dobrando sua duração, assim como uma ligadura ou ponto de aumento faria a uma figura musical escrita em uma partitura. Ainda que a correspondência não seja exata e o desenho meramente ilustrativo, talvez possamos exemplificar da seguinte maneira: MÚ SI CA A À ou À = A+A É claro que quando falamos não notamos essa variação tonal e de duração de sílabas e fonemas, isso se dá porque na maioria dos idiomas ocidentais de tronco europeu, ainda que haja inúmeras variações entre um e outro, a dimensão prosódica da fala não tem uma função de alteração de sentido (semântica) muito ampla, ainda que em alguns casos isso se dê em um movimento de sílaba tônica. No caso do português, poderíamos pensar em algo como “secretária” e “secretaria” ou “pais” e “país”. Porém, as alterações prosódicas são utilizadas nesses idiomas para expressar informações paralinguísticas (emoções, ênfase, intensidades). Existem outros idiomas que são “tonais”. Nesses idiomas localizados principalmente no extremo oriente (mandarim, vietnamita e línguas sino-tibetanas), em povos da África subsaariana e em inúmeras línguas de indígenas amazônicos, o aspecto tonal tem também uma função semântica, ou seja, a depender da entonação, uma mesma palavra pode ter significados diferentes (DRYER; HASPELMATH, 2013). Portanto, as alterações prosódicas sonoras são um elemento importante da comunicação na linguagem de um modo geral, ainda que possa ter funções diferentes em idiomas diferentes. Cabe-nos perguntar como isso se dá no manhês. Seria o manhês uma espécie de língua tonal primitiva? A entonação e melodia desta fala é algo que se relaciona com a posterior inserção da 25 palavra e do sentido por meio de uma afetação que o transcende? E, por fim, como no contexto do fenômeno da fala manhês podemos entender o que a psicanálise chama de libidinização ou erotização. Primeiramente, poderíamos dizer que no manhês ocorre algo referente ao ritmo da fala, ou seja, devido a este alongamento das vogais das palavras ditas ao bebê já se evidenciaria o aspecto de dinâmica tonal natural da fala, assim como no exemplo dado anteriormente. No entanto, para além dessa variação corriqueira, o que se observa no manhês é um exagero dessa dinâmica sonora. Se uma melodia é a disposição dos sons de maneira sucessiva, podemos dizer que o que ocorre no manhês é a criação espontânea de uma melodia rudimentar que organiza os sons segundo as sílabas das palavras. Portanto, é interessante notar que na estrutura do manhês as dimensões verbais e sonoras se influenciam mutuamente. De todo modo, não se pode dizer que o que ocorre no manhês é o mesmo que nas línguas tonais, pois, no caso do manhês, não há uma imbricação direta dos elementos sonoros com os semânticos, simplesmente pelo fato de não haver uma dimensão de significados estabelecida para o bebê, portanto podemos presumir que o que “fala” realmente ao bebê de uma maneira mais direta, efetiva e principalmente afetiva são os sons, muito mais do que as palavras. Todavia, não podemos desprezar o elemento linguístico do fenômeno manhês, afinal, ainda que o bebê só possa responder com sorrisos, gritos e balbucios, a mãe, por sua vez, fala efetivamente ao bebê neste idioma. A respeito disso, Cavalcante (1999) evidencia nessa conversação algo que chama de “fala atribuída”, a mãe quando fala ao bebê se coloca no lugar dele nomeando suas manifestações e demandas, ou seja, ao invés de dizer “você está com fome” diz “eu estou com fome” ou ainda se colocando como interlocutora dessa fala que atribui ao bebê, como “eu estou com fome, mamãe!”. Psicanaliticamente, poderíamos analisar isso como algo característico de uma afirmação de completude do narcisismo primário colocado pela mãe, ao mesmo tempo em que ao nomear 26 a demanda do bebê e se referir como interlocutora prepara a passagem deste estágio para outro. Além disso, há algo desse movimento de fusão/separação entre mãe e bebê relacionado com a característica ligante e afetiva das vogais e as rupturas de caráter corporal evocadas pelas consoantes que se manifesta na imbricação entre linguagem e melodia, fala e ritmo presentes nessa relação afetivo-comunicativa. Um último aspecto que não podemos deixar de abordar é o elemento portador desse fenômeno que é a voz materna. Ainda que ressaltemos neste trabalho a importância da sonoridade e da música no início da vida, se quisermos compreendê-las no estabelecimento das relações objetais, é preciso localizá-las dentro do que chamamos de “função materna” em termos lacanianos ou de “maternidade suficientemente boa” a partir da teoria de Winnicott. Claro que quando se fala em função materna, em maternidade ou mesmo “a voz materna” isso não se restringe a algo proveniente da mãe biológica, trata-se de um elemento daquele que desempenha essa função de cuidado inicial. Cuidado este que pressupõe não só atender as necessidades fisiológicas de alimentação, higiene e sustentação, mas também de investimento libidinal, de endereçamento de afeto para que possa haver um bom desenvolvimento dos aspectos psíquicos e emocionais. Ou, se quisermos tomar como referência uma abordagem lacaniana, a invocação que nas origens da constituição do sujeito possibilita um encontro com Outro a partir de uma antecipação enquanto devir. Analisando-se os elementos desse processo, aquele que é portador da sonoridade e musicalidade tem de ser a voz materna. Essa voz se apresenta como uma experiência primária que direciona um investimento libidinal no bebê em forma de música, mas que também o atinge enquanto linguagem. Observa-se que a literatura psicanalítica a respeito do manhês reconhece a sua importância para o estabelecimento do laço afetivo entre mãe e bebê em um momento primitivo da vida, assim como as consequências relacionadas a este fenômeno que podem interferir na 27 constituição do psiquismo e das possibilidades de relação com o outro observadas em transtornos globais do desenvolvimento como o autismo e a psicose (BENTATA, 2009). Isso, nos leva a crer que o manhês introduz na relação dual mãe/bebê um elemento de excitação ou sedução que a torna recíproca e dinâmica através desta sonoridade libidinizada. No manhês há uma expressão sonora e primitivamente melodiosa da voz na relação mãe bebê em que se observa uma imbricação mútua dos elementos linguísticos e sonoros, ou seja, linguagem verbal e sonoridade melodiosa estão de tal modo fundidas que não se pode separá- las. O acalanto, por sua vez, é um fenômeno onde o elemento sonoro já é propriamente musical e, por isso, a dimensão linguística e musical pode ser tomada em separado nas chamadas “canções de ninar”, passaremos agora a este fenômeno. 3. Acalanto Pode-se dizer que o acalanto se constitui como um fenômeno particularmente complexo se considerarmos que sua definição abarca um gênero poético-musical com potencial de expressão cultural e também uma interação particular que se dá entre mãe e bebê que tem um caráter funcional, ou seja, do adormecimento da criança. Segundo Lima (1986) a etimologia do verbo acalantar é mista, tendo em sua raiz o sufixo “a” que indica privação e a palavra de origem grega Kaió que significa choro. O sufixo “ar” seria advindo da palavra latina actitare que significa “agitar”. Deste modo, segundo este autor “Acalentar, é uma prática que visa afastar o choro da criança embalando-a (ninando-a) suavemente e cantando-lhe cantigas (LIMA, 1986, p. 05). Se buscarmos a definição do verbete nos principais dicionários brasileiros encontramos: “Ação de acalantar, de embalar, de cantar baixinho para uma criança, para que ela adormeça. [Música] Canção que se baseia nas cantigas de ninar. [Música] Quaisquer canções de ninar, de 28 fazer adormecer” (BUARQUE DE HOLANDA, 2020). “1. Ação de acalantar, de cantar a meia voz, embalar e aconchegar ao peito uma criança para fazê-la adormecer; 2. Mús. Composição musical que lembra as cantigas de ninar 3. Bras. P.ext. Qualquer canção de ninar” (CALDAS AULETE, 2011). Em outros dicionários consultados o significado encontrado é igual ou de tal forma análogo que nada vem a acrescentar a esta definição. O que se observa é que nas definições dos dicionários há uma primeira conceituação como esta ação que tem a função de fazer uma criança dormir e por outro lado a dimensão musical da “canção de ninar”. Por isso, ainda que possam ser considerados sinônimos, para a análise que este trabalho busca fazer, consideraremos o acalanto e a canção de ninar como elementos distintos, sendo o primeiro este ato que tem a função de adormecer a criança e a canção de ninar como a parte poética e musical constituinte do acalanto. Essa distinção se faz necessária, pois a definição do “acalanto” não se reduz simplesmente à entoação da canção de ninar, pois existem os outros elementos como aconchegar ao peito, embalar, balançar. Para além das definições no léxico, existem alguns trabalhos clássicos de folcloristas, antropólogos e sociólogos que abordam o tema do acalanto pelo seu viés de expressão da tradição, da cultura e das relações sociais. No que diz respeito a esta dimensão de expressão folclórica do acalanto, o poeta Gabriel Garcia Lorca proferiu em 1928 uma conferência chamada Las Nanas Infantiles (1928/1984), onde fazia uma análise das canções de ninar espanholas chamando a atenção para seu hibridismo advindo dos diferentes povos que habitavam a Espanha e um caráter melancólico tipicamente ibérico. No Brasil, um dos primeiros folcloristas que abordaram o tema foi Lindolfo Gomes em seu livro Contos Populares (1918/1948). Nesta obra, o autor procura catalogar e apresentar os principais contos e elementos da cultura oral brasileira e, em sua última seção, faz uma breve análise estrutural e histórica do acalanto, apresentando, principalmente, as personagens 29 folclóricas que povoam as letras das canções. Neste trabalho, o autor se utiliza o termo “canções de adormecer” e “canções de berço” para se referir ao acalanto e as classifica como “uma das mais espontâneas e encantadoras manifestações das carícias maternas” e “uma das divisões mais interessantes da vasta variedade dos cantos populares” (GOMES, 1918/1948, p. 217). Winandy (2004) sugere que, no caso do Brasil, nossos acalantos sofreram influência das três culturas principais que compõe a população brasileira: indígena (influência na maneira de embalar os bebês), européia (presença de personagens da religião cristã) e africana (palavras onomatopaicas e outras como neném, tutu, anguecalunga). Ainda no campo dos estudos folclóricos, o seminal Dicionário do Folclore Brasileiro (1952/2012) organizado por Câmara Cascudo, traz a definição de acalanto tendo por base trabalhos anteriores da folclorista Oneyda Alvarenga e do musicólogo Renato Almeida. As definições, em seu âmbito geral são as seguintes: Canção para adormecer crianças. É palavra erudita, designando o ato de acalentar, de embalar . No seu sentido musical equivalente, por exemplo ao da palavra francesa berceuse e da inglesa lullaby, foi utilizada por extensão e pela primeira vez pelo compositor brasileiro Luciano Gallet. Popularmente, nossos acalantos são chamados de cantigas de ninar. (ALVARENGA, 1952/2012, p. 209) O acalanto, canção ingênua, sobre uma melodia muito simples [...] não raro com uma letra onomatopaica, de forma a favorecer a necessária monotonia que leva a criança a adormecer. Forma muito primitiva, existe em toda parte e existiu em todos os tempos, sempre cheia de ternura, povoada às vezes de espectros de terror. (ALMEIDA, 1926/1942, p. 106) Algo interessante de observar na definição dada por Alvarenga (1952/2012) é que a autora faz uma diferenciação entre o acalanto e a canção de ninar. Depreende-se de sua definição que o acalanto é o ato mais abrangente e a canção de ninar o sentido musical denominada acalanto “por extensão”. Outro aspecto interessante é a recorrente ideia de que o acalanto está presente em todas as culturas. Quanto a essa universalidade do acalanto, existem trabalhos clássicos e atuais que parecem corroborar esta posição. O linguista e antropólogo português Leite Vasconcelos 30 (1907/1938) sugere que este seja um gênero universal e testemunha, no início do século XX, a existência do acalanto em diversas culturas e povos fora da Europa, como por exemplo, em povos primitivos do Chile, nos índios Sioux, em povos do Alasca, em índios nativos brasileiros em povos da Oceania. Segundo o que diz o pesquisador brasileiro Mário Souto Maior em seu livro Cantigas de Ninar: origens remotas (1933/1994), as canções de ninar se constituem como um procedimento humano universal e atemporal na cultura humana, além disso, apresenta um catálogo com os nomes desta manifestação nos mais variados países. A cantiga de ninar, o acalanto, a cantiga prá fazer menino pequeno dormir, é procedimento, sem nenhuma dúvida, universal. Lula –na Suécia, kalebka– na Polônia, berceuse – na França, cantilena ou nane na Itália, wiegezang– na Alemanha, lulle– na Dinamarca, rurrupatas– no Chile, cancion de cuña– na Espanha e em outros países da América Latina, lullaby– nos Estados Unidos e na Inglaterra, lullen– na Holanda, cantigas de mucuru– entre os nossos nhengatus, cantigas de arrolar– em Portugal e nos países africanos quando colonizados pelos lusitanos, liulkovapiesen– na Bulgária, kolybethnaiapiecnh– na Rússia, cantec de legan– na Romênia, komoriuta–no Japão, e na boca de todas as mães do Mundo, as cantigas prá fazer menino pequeno dormir são um costume cuja idade é a mesma da primeira mãe quando pariu o primeiro filho. (SOUTO MAIOR, 1933/1994, p. 37) Recentemente, um projeto cinematográfico russo apoiado pela Agência para Cultura e Cinematografia da Federação Russa denominado Lullabies Around the World (2012)reuniu canções de ninar de 42 países diferentes em vídeos que estão atualmente disponíveis no site do projeto.6No Brasil, um projeto parecido foi realizado em 2008 pelo Instituto Auditório Ibirapuera, com o nome de Projeto Acalanto. O projeto reuniu áudios e textos de cantigas de ninar de diferentes culturas e línguas, dentre eles, em línguas indígenas como dos Waurá, Sateré-Mawé e Arawak. Portanto, a presença do acalanto nas mais variadas nações e culturas parece ser um fato suficientemente observado e documentado. Isso sugere que, assim como o manhês, o acalanto é universal e sua manifestação independe da cultura em que mãe e bebê estão inseridos. Por outro lado, como dito anteriormente, ainda que o acalanto seja algo universal enquanto procedimento para adormecer as crianças, este fenômeno, em sua dimensão poética e musical, 6http://www.lull.ru/eng/about.htm http://www.lull.ru/eng/about.htm 31 ou seja, no conteúdo e forma das canções de ninar é constituído segundo as tradições e a cultura, sendo, portanto, uma expressão de identidade cultural. Dada a complexidade do fenômeno do acalanto, inclusive no que diz respeito a sua universalidade, por um lado, e, por outro, as especificidades culturais de seu conteúdo, é importante, para os objetivos deste trabalho, que nos voltemos agora à questão da forma e do conteúdo da dimensão musical e literária das canções de ninar. Um aspecto relevante e que foi objeto de interesse de diversos estudiosos do acalanto tais como Fernandes (1958), Jorge (1988) e Pereira (2015), é a aparente contradição entre a doçura da melodia da canção de ninar e o conteúdo terrorífico de sua letra. Ora, em grande parte dos acalantos conhecidos, enquanto a melodia se constitui por sons agradáveis, simples e aconchegantes, as letras das canções são povoadas de seres mitológicos ameaçadores como a “Cuca”, o “Boi da cara preta” o “ Tutu Marambá”. A respeito desse conteúdo assustador das canções de ninar, o sociólogo Florestan Fernandes (1958) o interpretou como algo dotado de uma função social que prepara as crianças a lidar com o medo real através da manipulação deste pela apresentação dos temas assustadores das canções. Segundo este autor, os temas das canções de ninar ditos “assustadores” ofereceriam a partir da interação do acalanto, recursos simbólicos para lidar ativamente com o medo que se apresenta primeiro como o medo do escuro ou da solidão. Com base nesta ideia apresentada no campo sociológico, a psicanalista Maria Lúcia Cavani Jorge procura fazer uma interpretação psicanalítica do fenômeno do acalanto. Seu livro Acalanto e Horror (1988) talvez seja, ainda hoje, um dos trabalhos nacionais mais completos sobre o assunto no campo psicanalítico. Nesse trabalho, a autora aborda o fenômeno a partir de uma aproximação entre a aparente contradição de forma e conteúdo da melodia e letra das canções de ninar com a função materna e paterna respectivamente. Sendo assim, a doçura da 32 melodia cumpriria uma função de ternura enquanto o conteúdo terrível das letras seria uma alusão preparatória à necessidade de separação e à angústia de castração. Segundo a autora: [...] este estudo procura articular a contradição horror-ternura das cantigas de ninar – de completude narcísica e de reconhecimento da Lei que a interdita – através dos elementos do acalanto (texto, melodia-canção, embalo aconchego, afago), configurando o acalanto como um ritual complexo que ora tende ao exorcismo à castração, ora à sua elaboração. (JORGE, 1988, p. 16, grifos da autora). Outros psicanalistas têm trabalhado atualmente com as questões das intersecções entre música e psicanálise abordando, em alguns momentos, o fenômeno do acalanto, tais como Jean- Michel Vivès (2012), que procura articular as possibilidades do trabalho terapêutico da psicanálise através da análise das potencialidades da voz e da música no processo transferencial. Outro autor que trabalha com esse aspecto é Pereira (2015) que vê no fenômeno do acalanto algo que se situa entre o erotismo e o desamparo. Ganhito (2002), por sua vez, busca compreender a metapsicologia do sono e do “fazer dormir”, abordando a questão através do acalanto como “a relação do fazer dormir a partir do outro materno” (GANHITO, 2002, p. 65). Portanto, apesar de ser um assunto que não possui uma vasta bibliografia no campo psicanalítico, o acalanto tem sido abordado por psicanalistas e estudiosos da psicanálise. Entretanto, antes de entrarmos na psicanálise propriamente, faremos uma breve apresentação do elemento portador sonoridade e musicalidade no acalanto, ou seja, a dita canção de ninar. Se nos voltarmos para a produção artística musical vemos imediatamente que canção de ninar, nomeada como tal ou com seus correspondentes berceuse, lullaby ou mesmo acalanto, são termos que dão nome a várias obras musicais de diversos artistas. Encontramos este gênero tanto na música erudita quanto na música popular. Podemos citar algumas no campo da música erudita como Wiegenlied Op. 49, nº 4 de Johannes Brahms (1869), Lullaby for Strings de George Gershwin (1919), Berceuse ou Barcarolla de Offenbach (1864), Acalanto da Rosa de Claudio Santoro (1958),e Acalanto de Flausino Vale (1941). Na música popular brasileira ficaram famosos o Acalanto de Dorival Caymmi (1958), Acalanto para Helena de Chico Buarque de Hollanda (1971) e Doce Acalanto de Nelson Rufino e Noca interpretado por Elza https://pt.wikipedia.org/wiki/Opus_(m%C3%BAsica) 33 soares. Além de estar presente em outros gêneros, como por exemplo, em singles de bandas de Rock como a Lullaby de The Cure (1989), Golden Slumbers dos Beatles (1969) e Good Old Fashioned Lover Boy do Queen (1976) que faz uma referência à canção de ninar Rock a-bye baby, dentre outras. Portanto, para além de sua presença na relação entre mãe e criança como um recurso para acalmar e adormecer, a canção de ninar se constitui como um gênero musical próprio. Cabe nos perguntar então quais elementos fazem de uma música uma canção de ninar. Com relação às letras das canções, Jorge (1988) chama a atenção para a presença dos seres assustadores que aludem a um perigo ou à separação (a Cuca ou a mamãe que foi passear), que no entender da autora fazem uma preparação para a castração simbólica e para a inserção castradora de um terceiro nessa relação dual, mas para os objetivos deste capítulo, devemos nos voltar para o elemento sonoro e a estrutura musical das canções. De um modo geral, as canções de ninar entoadas pelas mães se constituem como uma melodia simples, na maioria das vezes desprovidas de um elemento harmônico pelo fato de ser algo que é cantado por uma pessoa apenas. 7Entretanto, quando se faz uma análise da harmonia que serviria de sustentação para a melodia se observa uma grande simplicidade que geralmente obedece às formas mais básicas do campo harmônico (alternância de acordes em I, IV, V ou I, II, V). As canções, em sua maioria, apresentam tom maior, mas, apesar de menos frequentes, também existem várias canções em tom menor. O ritmo não possui grande complexidade apresentado geralmente figuras musicais simples, no máximo pontuadas. Os compassos geralmente são quaternários ou binários simples, embora apareçam ternários com alguma frequência e compostos também. O andamento é de lento a moderado: Lento Andante e 7Obviamente, quando se trata de uma peça artística constituída como canção de ninar o elemento harmônico existe como no acompanhamento de piano para a Wiegenlied de Brahms ou no dueto da Berceuse de Hoffenbach. 34 Moderato (WINANDY, 2002). A estrutura intervalar das notas da melodia não costuma ter grandes saltos e sua progressão ascendente ou descendente se dá de modo progressivo criando uma sensação de onda. O significado de barcarolla, gênero de música italiana muito próximo em estrutura da berceuse francesa, é “música das ondas”, porque faz alusão às canções de gondoleiros venezianos que na sua melodia criam essa sensação de estar em um barco ao movimento de ondas. Isso também lembra o movimento que as mães fazem ao embalar os filhos no acalanto. Portanto, há uma conexão da própria estrutura musical da canção de ninar com o todo desta relação maternal na qual o acalanto se insere. Cabe-nos perguntar qual é o efeito dessa sonoridade no estabelecimento das relações objetais em um momento primitivo da vida. Jorge (1988) ao analisar os elementos assustadores das letras das músicas canções de ninar, atribui a este elemento linguístico e representante da castração simbólica que se interpõe na relação entre mãe e filho. Para a autora: [...] a criança que já articula ou distingue dois fonemas, junto à imagem da mãe que pelo olhar a constitui, compõem os quatro elementos (criança, dois fonemas, mãe), de ordem simbólica necessários à cadeia de significantes para a operação da função simbólica, ou castração. (JORGE, 1988, p. 82) Neste trabalho, interessa-nos o outro elemento do acalanto, a musicalidade da canção de ninar. A partir da metapsicologia da teoria freudiana compreendemos que, em um momento muito inicial da vida, anterior à castração e inserção do sujeito no domínio do simbólico, é preciso que o traumatismo primordial da pulsão de morte seja articulado com as pulsões de vida para dar início à vigência do princípio do prazer. Esta erotização só é possível através do outro, que, neste momento, é o outro materno que a partir do cuidado e do suprir das necessidades do infans o investe libidinalmente através de um desejo que permite que a criança também deseje de volta, tomando o outro como o objeto de sua libido. 35 Buscamos a partir dos fenômenos do manhês e do acalanto, entender qual relevância da sonoridade e musicalidade da voz materna neste processo. Pudemos perceber que, no que tange à produção teórica psicanalítica, o manhês é um tema mais recorrente nas investigações e teorizações que se propõem a estudar as relações da sonoridade nos momentos iniciais do desenvolvimento. Quanto ao acalanto, existem alguns trabalhos interessantes no campo da psicanálise que o abordam principalmente pelo viés das letras das canções, mas é notável uma recorrência maior do tema em estudos das ciências sociais que versam sobre o folclore e a dimensão simbólica da cultura. Não podemos deixar de notar também certa semelhança do fenômeno do manhês com a estrutura musical da canção de ninar, principalmente no que diz respeito ao ritmo lento dos sons e de uma tendência melismática da apresentação da sonoridade que desliza pelas alturas frequenciais da onda sonora de modo gradativo criando um efeito de glissando. Entretanto, quanto à função que podem desempenhar na relação primordial da mãe e bebê, notamos uma diferença que buscaremos aprofundar mais adiante, mas que cabe apontar aqui. Enquanto a fala manhês cumpre com uma função de excitar o bebê convocando-o para uma interação com a mãe através do caráter aparentemente sedutor da articulação sonora da fala, o acalanto, por sua vez, cumpre uma função contrária, onde a melodia doce da canção de ninar busca um apaziguamento, um relaxamento que conduz ao adormecimento permeado pela voz melodiosa. Compreendemos que a sonoridade presente no manhês e no acalanto podem ter sua importância do ponto de vista pulsional e identificatório neste momento pré-verbal da vida com relação ao estabelecimento das relações de objeto primárias. Portanto, passaremos agora à teoria psicanalítica para que possamos posteriormente situar o manhês e o acalanto, principalmente em sua dimensão sonora e musical, como elementos que podem ajudar a compreender como se dá este processo e também suas eventuais falhas. 36 Capítulo II Fundamentos da teoria psicanalítica do desenvolvimento e o lugar dos elementos sonoros e musicais Este capítulo tem o objetivo de apresentar alguns pontos basilares da teoria psicanalítica sobre o desenvolvimento que nos permitirão pensar a importância dos elementos sonoros e musicais do manhês e do acalanto nos momentos iniciais de constituição de laço com o outro. Partindo da teoria do desenvolvimento psicossexual de Freud, percorreremos o trabalho do autor dando ênfase a duas abordagens identificáveis ao longo de sua obra e que vão ser um ponto crucial e diferencial das escolas que o sucederam. Por um lado, uma abordagem pautada na pulsão como condutor dos processos através de uma “modalidade de atividade sexual” e, por outro, uma que enfatiza o narcisismo e seus mecanismos identificatórios que colocam o “outro” como central para o desenvolvimento, constituindo assim uma “modalidade de objeto” (CAMPOS, 2014). Uma vez que nosso objetivo é pensar a influência da musicalidade da voz no início da vida como meio articulador de laço afetivo entre o bebê e o outro materno, se faz necessário que essa diferença seja considerada e, neste caso, daremos especial atenção aos autores clássicos e contemporâneos que enfatizaram a centralidade do objeto no processo de desenvolvimento. Nesse percurso, apresentaremos alguns autores pós-freudianos que fizeram suas contribuições desde a chamada “era das escolas” e que são fundadores de filiações epistemológicas e teóricas que distinguem paradigmas específicos no movimento histórico psicanalítico (MEZAN, 2014). Neste caso específico, Melanie Klein e posteriormente Lacan e Winnicott. Além disso, abordaremos também autores mais atuais que dão seguimento aos clássicos em um esforço “transescolar” característico da psicanálise contemporânea que se vê 37 com essa necessidade de atravessamento de paradigmas que a possibilite lidar com as novas demandas da clínica contemporânea. (FIGUEIREDO; COELHO JUNIOR, 2018). 1. Freud, a teoria da sexualidade e a questão do narcisismo Nos Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (FREUD, 1905/2016), o autor procura desenvolver uma teoria do desenvolvimento sexual humano amparada nos conhecimentos da psicanálise. Nesse trabalho, Freud faz uma série de inovações no que diz respeito à compreensão da sexualidade vigente em sua época, propondo que a sexualidade tem um caráter infantil e que comportamentos considerados “perversos” revelam apenas uma característica universal inerente à sexualidade humana. A teoria dos estágios psicossexuais propõe que a sexualidade está presente nos humanos desde o início da vida, que apresenta a possibilidade de satisfação autoerótica e uma disposição perversa polimorfa, ou seja, tende a se manifestar das mais variadas maneiras e se subordinar a zonas erógenas diversas dos genitais como boca e ânus. Posteriormente, depois de uma repressão da sexualidade infantil e de um período de latência sexual, as pulsões se concentrariam nos órgãos genitais inaugurando a sexualidade adulta. O condutor desse desenvolvimento psicossexual seriam as pulsões, conceito fundamental representado por um impulso dotado de força energética que busca satisfação e que o autor situa em uma posição fronteiriça entre o somático e o psíquico (FREUD, 1915/2004). O conceito de pulsão é construído a partir de quatro termos essenciais: fonte, pressão, meta e objeto. A fonte da pulsão é um lugar de origem da pulsão, ou seja, um processo somático, uma parte do corpo de localização orgânica. Pressão representa o elemento motor da pulsão, é a quantidade de força constante e ativa exercida pela pulsão no psiquismo. A meta (ou alvo) é sempre a sua satisfação, é o meio de descarga de um excesso de estimulação na fonte da pulsão. Por fim, o objeto é aquilo através do qual a pulsão pode atingir a meta, ou seja, aliviar 38 o excesso de estimulação na fonte. É o elemento que mais varia na pulsão, tendo como única característica mais importante a possibilidade de realizar a meta. Inicialmente, Freud (1905/2016, 1915/2004) propõe que as pulsões se dividiriam em pulsões sexuais e de autoconservação. A partir desta concepção, sugere que no início do desenvolvimento, as pulsões sexuais se encontram apoiadas nas necessidades básicas da vida e que o desenvolvimento se dá por estágios ou fases que se sucedem segundo a dinâmica pulsional em torno de zonas erógenas corporais. Freud denomina como libido a expressão das exigências da pulsão sexual no psiquismo e propõe que o desenvolvimento psicossexual seria regido por pulsões parciais que se caracterizam segundo sua fonte corporal e que gradualmente se encaminham para uma unificação característica da sexualidade adulta, mas que pode decompor-se a partir de diferentes configurações patológicas (FREUD, 1923/2011). Acompanhando a progressão do desenvolvimento psicossexual, o primeiro estágio observado seria oral, em que a boca seria a zona erógena principal apoiada na necessidade de alimentação da criança através do seio materno. Posteriormente, emerge a fase sádico-anal, em que haveria um duplo protagonismo das pulsões parciais sádicas e da zona do ânus que passa a ser investida pelas pulsões sexuais. Nessa fase, na possibilidade de reter e expulsar as fezes através do controle do esfíncter, a criança encontra a satisfação erótica e se introduz uma primeira forma de apreender uma relação com um objeto externo. Por fim, na fase fálica, as crianças começariam a especular a respeito da diferença sexual sob a lógica de possuir ou não o pênis, que, na dinâmica psíquica, seria dotado de uma significação fálica, ou seja, seria o único órgão sexual reconhecido e que tem o valor de elemento distintivo da diferença sexual. É nessa fase que, posteriormente, Freud (1910/1996) situará o Complexo de Édipo. Em seguida, segue-se um período de latência, onde os interesses sexuais estão suspensos por determinado 39 tempo, até que, finalmente, na fase genital, as pulsões são unificadas sob o “primado genital”, investindo esses órgãos e inaugurando a sexualidade adulta. Esse processo seria base para modular fantasias específicas de cada fase do desenvolvimento que ordenam a relação da criança com os objetos, dando origem a modos característicos de angústia e de defesa (CAMPOS, 2014). A teoria do desenvolvimento psicossexual é considerada até hoje um dos pontos importantes da obra freudiana, entretanto, a partir das alterações operadas pela chamada “virada dos anos 20”, com a concepção do segundo dualismo pulsional e a segunda tópica ou modelo estrutural do aparelho psíquico, uma nova complexidade teórica é agregada à psicanálise de modo a possibilitar a expansão das reflexões sobre os fenômenos clínicos e culturais aos quais se refere, dentre os quais, podemos incluir a teoria da sexualidade. Nesse movimento, ao mesmo tempo em que uma nova luz pôde ser lançada sobre problemas e incompletudes teóricas anteriores, novas dificuldades também emergem, o que faz com que um trabalho simultâneo de revisão permeie todo desenvolvimento da obra freudiana e se constitua como uma característica inerente ao próprio modo de se produzir conhecimento no campo da psicanálise. Considerando que um dos pressupostos fundamentais da teorização freudiana e psicanalítica de um modo geral é a sua articulação com os fenômenos clínicos, pode-se dizer que a teoria do desenvolvimento psicossexual tal como apresentada no texto dos três ensaios (1905/2016) é fruto de observações advindas de uma “clínica da neurose”. Esta fase desenvolveu e consolidou uma metapsicologia inicial que tinha como seus principais elementos a primeira teoria pulsional – pulsões sexuais e de autoconservação - e o modelo tópico do aparelho psíquico. 40 Posteriormente, tendo em vista uma abordagem psicanalítica da psicose ou de quadros ditos narcísicos, a questão da gênese do Eu8 se faz presente para a psicanálise. Os esforços para lidar com essa questão dão origem aos conceitos como narcisismo e identificação, os quais vão revolucionar toda a teoria psicanalítica, possibilitando o advento de uma nova tópica para o aparelho psíquico também chamada de modelo estrutural. O narcisismo é um conceito econômico que pressupõe a possibilidade de o próprio Eu ser tomado como objeto de investimento libidinal. Freud (1914/2013) propõe dois tipos fundamentais de narcisismo - primário e secundário. No narcisismo primário, haveria um estado originário de indiferenciação entre bebê e mãe a partir da qual as relações de objeto se desenvolvem. O narcisismo secundário seria propriamente a retração da libido objetal para o Eu. Esse mecanismo permite pensar novas configurações de constituição de vínculo com a realidade em processos defensivos quanto a tipos específicos de angústia em quadros onde ocorre a perda do objeto de amor, como, por exemplo, no caso do luto e da melancolia (FREUD, 1915 [1917] /2013). Ainda que a questão sobre o narcisismo tenha gerado uma parte importante dos avanços teóricos da psicanálise, esse conceito também vem a suscitar vários problemas com relação à lógica dos estudos anteriores. Um desses problemas diz respeito justamente à teoria da sexualidade. Uma vez que o Eu passa a ser passível de investimento libidinal, o desenvolvimento da libido por fases que são definidas a partir de investimento em de zonas erógenas corporais precisa ser repensado. Não se sustenta mais um desenvolvimento de caráter endógeno como apresentado no texto dos Três Ensaios (FREUD, 1905/2016), pois é preciso que se defina, nesse processo, onde se situaria o narcisismo e qual sua relevância para o estabelecimento do circuito pulsional e da constituição das instâncias do aparelho psíquico. 8 Em algumas traduções como na versão Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas da editora Imago encontra-se o termo Ego. Aqui adotaremos a palavra Eu de acordo com a recente tradução de Paulo Cesar Pereira feita a partir dos textos originais em alemão da editora Companhia das Letras. 41 A introdução da questão do narcisismo e da identificação como seu principal mecanismo traz à tona a centralidade do outro com relação à constituição do Eu e do aparelho psíquico como um todo. Freud, em trabalhos como Introdução ao Narcisismo (1914/2013) e Luto e Melancolia (1915 [1917] /2013), aborda a questão do narcisismo e da identificação como algo central para compreender a determinação de certo tipo de escolha objetal em que o objeto investido libidinalmente reflete características do Eu, como um tipo de defesa específico presente em processos como o luto e patologias como a melancolia e também como o processo responsável pela constituição das instâncias ideais do psiquismo do ideal de Eu ou Supereu. No texto O Eu e o Id (FREUD, 1923/2011) a questão se aprofunda ainda mais, pois a identificação passa a ser também o mecanismo que permite pensar a gênese do próprio Eu no contexto do narcisismo primário. Portanto, assim como o conceito de narcisismo, o mecanismo da identificação também pode ser classificado, no âmbito da teoria freudiana, em primária e secundária. Sendo assim, a identificação primária seria um mecanismo próprio do narcisismo primário segundo a qual a constituição do Eu seria possível. Segundo a clássica definição de Laplanche e Pontalis seria o “modo primitivo de constituição do sujeito segundo o modelo do outro, que não é secundário a uma relação previamente estabelecida em que o objeto seria inicialmente colocado como independente” (1998, p. 231). A identificação secundária, por sua vez, seria a assimilação de características de um objeto previamente investido assimilando-as ao próprio Eu como as descritas na melancolia, no luto ou em casos de histeria, constituindo assim um tipo de narcisismo secundário. No caso da identificação primária, Freud sugere que esta se dá por uma lógica de incorporação oral do objeto. Neste ponto, poderíamos dizer que há um entrecruzamento entre a teoria da sexualidade e a dinâmica do narcisismo. Porém, a articulação entre a teoria dos estágios psicossexuais e a do narcisismo é complexa e se torna realmente um problema para a 42 psicanálise. A partir deste momento, é possível então pensar duas abordagens distintas para a questão que conservam cada qual uma ênfase em um ou outro esquema. Por um lado pode se considerar uma “modalidade de objeto” como moduladora em que o estabelecimento das relações de objeto se constituiria a partir da dinâmica do narcisismo e, por outro, uma “modalidade de atividade sexual” onde a ênfase da organização recai sobre o movimento das pulsões parciais segundo seu investimento em zonas erógenas nas fases da sexualidade infantil (CAMPOS, 2014). Além disso, é difícil encontrar uma ordem cronológica para os acontecimentos e, ao fazer coincidir o narcisismo primário com um estado anobjetal da libido, Freud contradiz a posição privilegiada do outro no processo de constituição do psiquismo introduzida pela própria ideia do narcisismo. Esta problemática é inclusive citada no verbete “narcisismo” do consagrado Vocabulário de Psicanálise de Laplanche e Pontalis: [...] com a elaboração da segunda tópica, Freud conota pelo termo narcisismo primário um primeiro estado da vida, anterior até mesmo à constituição de um ego, e do qual a vida intra-uterina seria o arquétipo. A distinção entre o auto-erotismo e o narcisismo é então suprimida. Não é fácil perceber, do ponto de vista tópico, o que é investido no narcisismo primário assim entendido. Esta última acepção do narcisismo primário prevalece correntemente nos nossos dias no pensamento psicanalítico, o que resulta numa limitação do significado e do alcance do debate; quer se aceite ou se recuse a noção, designa-se sempre assim um estado rigorosamente “anobjetal”, ou pelo menos “indiferenciado”, sem clivagem entre um sujeito e um mundo exterior. (1998, p. 260) Esse problema criado pelo narcisismo é algo que perpassa toda elaboração posterior de Freud, mas que, entretanto, nunca encontrou de fato uma resolução (CAMPOS, 2014). As diferentes abordagens de teóricos posteriores sobre esse assunto foram de fundamental contribuição para o desenvolvimento dessas questões e também, de certo modo, foi um fator diferencial entre elas. Para os objetivos deste trabalho é um ponto de crucial importância, pois para abordarmos a questão do manhês e do acalanto precisaremos olhar justamente para os processos dos momentos iniciais da constituição relacionados ao narcisismo primário e às relações objetais. Além disso, a abordagem dos autores escolhidos e que apresentaremos mais adiante se deve aos esforços que propiciaram interessantes contribuições para pensarmos a 43 questão dos elementos sonoros neste contexto, como é o caso da teoria das relações de objeto e do grupo intermediário inglês com Winnicott e também da teoria lacaniana e seus desdobramentos no âmbito da psicanálise francesa. Retornando à teoria de Freud e aos problemas advindos do narcisismo, a possibilidade de o próprio Eu ser tomado como objeto de investimento libidinal coloca o primeiro dualismo pulsional em xeque, pois a libido do Eu nada mais seria do que libido objetal dessexualizada e, portanto, a diferenciação qualitativa entre pulsões sexuais e de autoconservação perde o seu sentido. Essa é uma questão importante para Freud, pois uma das características centrais de sua metapsicologia é o seu dualismo pulsional que foi defendido pelo autor ao ponto de criar rupturas com outros teóricos, como foi o caso de Jung. A questão do dualismo pulsional fica em suspenso por um tempo, até que no contexto do horror e da violência da primeira guerra mundial, Freud constitui uma teorização baseada nos acontecimentos desse evento. A constatação de certa tendência à repetição de uma experiência desprazerosa observada nas neuroses traumáticas de guerra e a brincadeira infantil do fort-da, dão condições para Freud (1920/2013) propor a sua segunda teoria das pulsões ao questionar o seu princípio do prazer como o primeiro e único organizador da economia libidinal. Assim, no texto Além do Princípio do Prazer (FREUD, 1920/2013) é concebida a hipótese da pulsão de morte a partir de conjecturas próximas ao conhecimento biológico que tem em vista as articulações entre vida e morte dos organismos. A partir deste momento, inaugura-se na teoria freudiana o “segundo dualismo pulsional”, modelo na qual as pulsões passam a ser divididas entre pulsões de vida, que compreendem as pulsões sexuais e as de autoconservação e pulsão de morte. A pulsão de morte seria uma tendência primitiva, regressiva e desagregante que busca um estágio anterior à vida orgânica. O princípio de Nirvana é equivalente na pulsão de morte ao princípio do prazer nas pulsões sexuais e, assim como este último, obedece a uma tendência à estabilidade, entretanto, é anterior e conduziria a uma 44 descarga total dos estímulos da vida e, portanto, à morte e ao retorno ao inorgânico. Essa tendência precisaria ser dominada através do amálgama da pulsão de morte com as pulsões de vida para que se inaugure a vigência do princípio do prazer que atuando como um “guardião da vida” permitiria o início da constituição psicossexual através da dinâmica pulsional e dos laços afetivos com o outro (FREUD, 1924/2011). A própria vida em seus desdobramentos particulares na história dos indivíduos, as manifestações culturais e a constituição das relações sociais seria fruto de uma eterna luta entre as pulsões de vida (Eros) e pulsão de morte (Tânatos). Entretanto, ao contrário das pulsões de vida, a pulsão de morte seria “silenciosa” (FREUD, 1923/2011) e, por isso, muito mais difícil de observar. Porém, devido à sua qualidade de agressividade, os fenômenos do sadismo e do masoquismo seriam manifestações mais evidentes dessa pulsão. Deste modo, o sadismo seria uma expressão do amálgama das pulsões de modo que a agressividade pudesse ser “posta para fora” juntamente à sexualidade. Parte dessa pulsão de morte, no entanto, escaparia à possibilidade de fusão e permaneceria no organismo na forma de um masoquismo originário ou erógeno, anterior ao sadismo (FREUD, 1924/2011). Fusões e defusões dos dois tipos de pulsão seriam comuns e ocorreriam ao longo da vida. Porém, no que se refere ao período inicial onde essa erotização da tendência desagregadora da pulsão de morte é absolutamente necessária para a inauguração do princípio do prazer e também dos mecanismos narcísicos de relação identificatória com o objeto que permitem a formação do Eu, os meios pela qual esse processo daria continuam inexplicados, como reconhece Freud: Reconhecemos dois instintos fundamentais e admitimos para cada um sua própria meta. Como os dois se mesclam no processo da vida, como o instinto de morte é levado a servir aos propósitos de Eros, sobretudo no seu voltar-se para fora como agressão, são tarefas deixadas para a pesquisa futura. (1933/2010, p. 258) Fica claro a partir deste trecho, o reconhecimento por parte de Freud das limitações de seus esforços teóricos para lidar com a complexidade da teoria psicanalítica neste momento 45 final de sua vida e a incumbência de seus sucessores de dar continuidade a este movimento, principalmente no que diz respeito a temas complexos como o desenvolvimento da libido. Entretanto, antes de passarmos a alguns desses autores, o fato a que gostaríamos de ressaltar é que na própria obra de Freud, o desenvolvimento da libido e o narcisismo envolvem processos de erogeneização, sublimação e simbolização que dependem da identificação com o outro. Sendo assim, é preciso reconhecer a presença de um eixo objetal do desenvolvimento já em Freud, em contraposição ao mais conhecido e ressaltado de "desenvolvimento da libido" que toma a pulsão como condutor autônomo deste processo. Apesar de essa divisão ter sido um elemento fundamental para o surgimento e diferenciação de vertentes distintas na psicanálise pós-freudiana, alguns autores contemporâneos procuram trabalhar essa questão revisitando a teoria de Freud e buscando desenvolvê-la a partir de seus próprios termos. Nesse sentido, o trabalho de Campos e Loffredo (2019) traz algumas considerações interessantes a respeito das relações objetais primitivas a partir do conceito de sublimação. Para esses autores, nos escritos teóricos de Freud é possível considerar duas teorias distintas da sublimação. Na primeira, o mecanismo é compreendido como um destino pulsional onde ocorreria uma mudança da meta e do objeto da pulsão sexual para outros não sexuais e socialmente valorizados (FREUD, 1910/2013). Na segunda, a partir da introdução do narcisismo e do segundo dualismo pulsional, a sublimação passa a ser vista também como um mecanismo responsável pela dessexualização da pulsão sexual na captação de libido objetal pelo Eu (FREUD, 1923/2013). A partir deste ponto, a sublimação ganha um caráter muito mais metapsicológico e fundamentado nos aspectos dinâmicos do aparelho psíquico do que na reflexão sobre a valorização social (CAMPOS, 2013). No entanto, Freud não se dedica a explicar a diferença entre a primeira teoria da sublimação e a segunda e, ao longo de seus trabalhos, se refere à sublimação ora como destino 46 pulsional no social e ora como mecanismo de dessexualização da pulsão na constituição do Eu, gerando assim uma confusa indefinição. Na tentativa de esmiuçar este impasse e lhe dar alguma saída, Campos e Loffredo (2019) propõem que se considere os dois processos como distintos, como duas sublimações diferentes, ou pelo menos, como dois momentos da sublimação. Assim, os autores chamarão de sublimação em nível edípico o mecanismo envolvido no processo do complexo de Édipo que ocorreria em um segundo momento, na qual o ego já se encontra estruturado com relação aos objetos da realidade, as pulsões de morte e de vida se encontram fundidas em forma de libido e podem, através das fantasias, investir os objetos do mundo. Este tipo de sublimação seria o mais alinhado com a primeira teoria, onde a questão do desvio do objeto para destinações culturais é articulada com os processos de identificação a um ideal paterno típicos do complexo de Édipo. O outro tipo de sublimação chamada de sublimação em nível narcísico, diz respeito a um estágio anterior, um mecanismo que ocorreria em um momento inicial, prestaria sua ajuda no processo de formação do Eu e consistiria justamente na captação de investimentos pulsionais pelo ego que passam então e ficar disponíveis como libido narcísica. Diferentemente do tipo de sublimação edípica, na qual existe a identificação com um ideal paterno mediado por elementos simbólicos, na sublimação em nível narcísico este ideal é materno e mediado por uma lógica imaginária. Um ponto interessante nessa teorização é que, neste processo de sublimação o caráter narcísico da apropriação da pulsão pelo Eu não se opõe às relações objetais que ocorrem simultaneamente. Esse mecanismo apresentaria “duas dinâmicas” (CAMPOS; LOFFREDO, 2019), uma na qual ocorreria a captação de libido objetal pelo Eu e um segundo, onde haveria o processo necessário de ligação da pulsão de morte em libido e a possibilidade de sua projeção O aprofundamento feito aqui do conceito de sublimação permite aos autores propor uma complementação da própria teoria freudiana da sublimação, ao mesmo tempo em que avança em problemas cruciais deixados por Freud, como a questão da fusão pulsional na origem da 47 libido, a articulação entre o mecanismo da sublimação e os processos de simbolização e também dos mecanismos narcísicos primários no estabelecimento de laço com o outro em momentos iniciais pré-linguisticos. Portanto, esse tipo de sublimação em nível narcísico pode ser interessante para pensarmos as questões às quais este trabalho se propõe a tratar, pois assim como os autores citados anteriormente, procuramos pensar os momentos iniciais de constituição do Eu e da própria subjetividade, a questão da erotização a partir da fusão entre pulsão de morte e pulsão de vida e a relação entre a dinâmica pulsional e as relações objetais. Essa reflexão poderá nos auxiliar mais adiante em como compreender esses mecanismos e sua possível articulação com os fenômenos do manhês e do acalanto no contexto das relações objetais primitivas com as considerações necessárias sobre os movimentos pulsionais e identificatórios desse processo. Acreditamos que estas colocações são pertinentes, pois delimitam o contexto teórico em que nossa problemática se insere, ou seja, da teoria psicanalítica das relações objetais primárias. Pretendemos até este ponto, demonstrar um panorama geral do desenvolvimento da teoria freudiana, principalmente no que se refere às questões iniciais constituintes do psiquismo, com suas implicações na gênese do Eu e das relações objetais tendo em vista teoria da sexualidade, a teoria do narcisismo e os desenvolvimentos metapsicológicos da teoria das pulsões. Seguindo, passaremos agora a alguns teóricos posteriores que foram importantes para pensar esse momento inicial e sua compreensão no seio do movimento psicanalítico. 2. Os paradigmas da psicanálise, Melanie Klein e a agressividade O empenho em dar desenvolvimento às questões deixadas por Freud fez com que nos momentos finais de sua vida e depois de sua morte, rupturas entre os teóricos pós-freudianos se operassem dando origem a vertentes distintas na psicanálise. A diferenciação nesse movimento se dá não apenas por divergências internas, mas também por novas inscrições epistemológicas 48 dos teóricos que procuraram desenvolver a teoria psicanalítica dando maior ênfase a aspectos específicos do constructo teórico freudiano. Deste modo, a questão colocada do desenvolvimento compreendido principalmente como desdobramento das dinâmicas pulsionais em torno das zonas erógenas em oposição às implicações da introdução ao narcisismo e dos mecanismos identificatórios que tomam a relação com o outro (objeto) constituinte das instâncias psíquicas se torna fundamental. Na tentativa de se compreender esse movimento, discussões acerca do estatuto de “paradigmas” em psicanálise foram empreendidas por autores contemporâneos. Mezan (2014) ao estabelecer um debate com outros autores como Greenberg e Mitchell sobre a aplicabilidade do conceito kuhniano de “paradigma” à psicanálise, conclui que para contemplar a pluralidade dos desenvolvimentos teóricos é preciso compreender o paradigma como um conceito abrangente que considere não apenas o autor, mas também aspectos em comum que organizam todo o constructo teórico e prático do paradigma. Assim, estabelece três paradigmas para a psicanálise - pulsional (Freud e Hartmam), objetal (Fairbairn, Balint e Winnicott) e subjetal (Lacan). Entretanto, com relação à Melanie Klein, o autor sugere que a autora se situa em uma posição fronteiriça entre o paradigma pulsional e objetal. Essa localização de fronteira se deve ao fato de que realmente a teoria kleiniana dá uma grande importância a aspectos constitucionais e do indivíduo entendido como unidade cuja força de ação é, em última análise, a pulsão. Mas, também e por outro lado, promove a inovação e avanço quanto ao peso dado às experiências de relação com outro no início da vida através de uma nova concepção da noção de objeto. Melanie Klein se serve da ideia de “objeto” para abordar desde as experiências mais primitivas da elaboração de uma agressividade primária até processos mais complexos como sublimação e simbolização (SALEM, 2016). A partir de suas noções de “objeto interno”, “objeto externo”, “objeto parcial” e “objeto total”, a autora amplia o conceito freudiano de 49 modo que este deixa de ser um mero meio de satisfação da meta pulsional e passa a representar o elemento fundamental de articulação entre as fantasias inconscientes que, desde o início, envolvem angústias, fantasias e medos do bebê em sua relação com a realidade interna e externa. O psiquismo teria uma tendência de voltar-se imediatamente ao outro e, nesse movimento, a partir dos sentimentos ambivalentes de agressividade e amor estabelecidos com objetos não unificados como o seio materno, a criança viveria as experiências de satisfação e não satisfação como a presença positiva de um objeto bom (satisfatório) ou mau (frustrador, agressivo e persecutório). Este processo é importante para a compreensão da posição esquizo- paranóide onde existe uma impossibilidade de se conceber um objeto com características conflitantes, sendo este tomado como inteiramente bom ou mau e tendo como origem partes fragmentadas do próprio corpo ou do corpo da mãe (objeto parcial). Posteriormente, na posição depressiva, uma integração entre os diversos aspectos do objeto é possível, possibilitando o surgimento de um “objeto total”. Para Klein, ainda que a pulsão seja um elemento de grande importância, difere da pulsão freudiana, pois, para a autora, a pulsão é algo dotado essencialmente de expressividade, ou seja, é amor, ódio, voracidade (SIGLER, 2011). Sendo assim, ainda que haja muito de “pulsional” em sua obra, a própria noção de “pulsão” e o desenvolvimento do conceito de “objeto” se constituem de modo a incluir o outro nessa dinâmica, colocando-a no limiar dos paradigmas que tomam esses conceitos como traço identitário. Ainda a respeito dos objetos parciais, é interessante a observação feita por Kristeva (2002) com relação à assunção de fragmentos corporais do bebê e da mãe como objetos parciais. Para ela, os objetos parciais abarcados sob a classificação de seio mau (frustrador) seriam mais propriamente narcísicos e referentes à experiência do bebê (fezes e urina) enquanto do lado do seio bom (gratificador) estariam em maior medida relacionados à mãe, neste caso, leite, seios, 50 mãos, rosto e a voz materna. Esta observação é importante para o assunto deste trabalho, pois ao situar a voz materna ao lado do seio bom, ou seja, dos objetos parciais que propiciam a satisfação, isso se refere à sua função estabelecedora de laço afetivo com a mãe, ainda que esta seja fragmentada pela experiência da posição esquizo-paranóide. Os desenvolvimentos teóricos de Melanie Klein advêm de uma nova técnica de análise de crianças, a qual possibilitou uma nova apreciação dos estágios iniciais do desenvolvimento. Na relação inicial da criança com a mãe, a autora enfatiza um sadismo muito primitivo, indicando, a partir daí a necessidade de reconhecimento de relações de objeto arcaicas marcadas pela ambivalência e de um Eu e Supereu primitivos. Com isso, torna-se uma das pioneiras no estudo das fases pré-genitais da libido, o que contribui de uma forma muito relevante não só para a psicanálise de crianças, mas também para pensar patologias onde existe uma fixação libidinal em estágio iniciais, como é o caso das psicoses, por exemplo. Ao desenvolver as questões sobre o masoquismo originário e pensar o papel da elaboração da destrutividade não só para a construção das relações objetais e estruturas mentais, mas também para pensar os processos de simbolização articulados aos processos de sublimação, uma vez que a sublimação é possível a partir do desenvolvimento da capacidade de reparação simbólica resultante da elaboração da posição depressiva, Klein desenvolve também uma teorização que avança suas contribuições inovadoras pela teoria do desenvolvimento e não se restringe somente aos estágios iniciais. Por fim, é importante destacar que a grande contribuição da teoria kleiniana para a teoria psicanalítica do desenvolvimento, especialmente nos estágios iniciais, é da proposição de que existe a necessidade de uma elaboração da agressividade e destrutividade antes mesmo da elaboração da sexualidade para pensar uma teoria da libido. Além disso, pode-se dizer que essa teoria contém alguns esforços no sentido de incluir o outro na dinâmica da constituição do psiquismo e no circuito dos afetos, de modo a indicar 51 algo que aponte na direção de uma teoria das relações de objeto. Apesar disso, é amplamente reconhecido o peso que esta autora ainda atribui à dimensão endógena das pulsões e o pouco reconhecimento do ambiente ou da cultura na modulação desse circuito. É possível depreender que essa localização fronteiriça entre os paradigmas objetal e pulsional demonstra um esforço da autora de avançar a apreciação psicanalítica sobre diversos fenômenos e estágios deixados incompletos por Freud, mas que talvez, para não se afastar demais da teoria freudiana, acaba herdando as dificuldades e contradições paradoxais desta no que se refere à oposição entre um de