CARLOS EDUARDO DOS SANTOS ZAGO ENTRE VERDUGOS E SEDUTORES: MODERNIDADE E (DES) MASCARAMENTO NA PROSA DE HILDA HILST ASSIS 2018 CARLOS EDUARDO DOS SANTOS ZAGO ENTRE VERDUGOS E SEDUTORES: MODERNIDADE E (DES) MASCARAMENTO NA PROSA DE HILDA HILST Tese apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista, para a obtenção do título de Doutor em Letras (Área de Conhecimento: Literatura e Vida Social) Orientador: Dr. Gilberto Figueiredo Martins Bolsista: CAPES ASSIS 2018 Dedico este trabalho a Gilberto Figueiredo Martins, pela continuação da caminhada. AGRADECIMENTOS Por mais solitário que possa parecer o estudo, a concretização de uma ideia só tem valor quando compartilhada, já que é, em si, produto de diálogos, influências e leituras. Dessa maneira, muitas vozes aparecerão ao longo deste trabalho, diretamente ou escondidas, nas entrelinhas, talvez em algum lugar em que o próprio autor não possa localizar. Na tentativa de rastreá-las, seguem meus agradecimentos. Aos meus pais, por sempre estarem presentes e jamais negarem ajuda à minha formação. Ao meu amigo, professor e orientador Dr. Gilberto Figueiredo Martins, por tudo que me ensinou e ensina, pelas valiosas orientações e aulas, pela intensidade das leituras, pelas revisões, provocações, acolhimento e oportunidades, pela casa – “Amigo é casa” – e biblioteca, e pelos mais francos dos diálogos. Pela minha formação, agradeço a todos os meus professores. Agradeço à UNESP e seus funcionários, pelos treze anos de casa, especialmente à Roseli, secretária do Departamento de Literatura. À Rachel, pelo companheirismo e por entender as ausências. Pelas viagens, encontros, ensinamentos e por acompanhar este trabalho capítulo a capítulo, agradeço à sempre presente Katya. Pelos vários incentivos, diálogos e livros, agradeço aos meus amigos: Susy, Agda, Gil, Mariana, Roberto, Álvaro, Karen e Vergílio. Ao Neto, pela parceria e Abstract. Ao Helton, pela gentileza das leituras. Aos companheiros dos grupos “Dramaturgia Clandestina” e “Literatura Contemporânea”. Aos professores Dra. Sílvia Maria Azevedo e Dr. Fabiano Rodrigo da Silva Santos, pelas valiosas críticas e sugestões realizadas no momento do exame de qualificação deste trabalho. Aos professores Dra. Simone Rossinetti Rufinoni, Dra. Cleide Antonia Rapucci, Dr. Alexandre Luiz Mate e Dr. Fabiano Rodrigo da Silva Santos, por aceitarem participar da banca de defesa desta tese. Agradeço, também, ao CEDAI da UNICAMP, pelo material disponibilizado para pesquisa. Ao Instituto Hilda Hilst (Casa do Sol), sobretudo à Olga Bilenky. A CAPES, pelo apoio financeiro. E aos meus alunos. [...] nada afins com a minha terra de mamões e bananas, nem por isso não estou aqui. HILDA HILST (Kadosh). ZAGO, Carlos Eduardo dos Santos. Entre Verdugos e Sedutores: Modernidade e (Des) Mascaramento na Prosa de Hilda Hilst. 2018. 240 f. Tese (Doutorado em Letras). – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Assis, 2018. RESUMO Partindo da constatação de que a crítica especializada sobre Hilda Hilst pouco fala a respeito das características históricas, sociais e políticas de sua obra, este trabalho procura desenvolver uma leitura interpretativa, mais marcadamente materialista, de parte de sua literatura, contando, para isso, com perspectivas ensaísticas sobre o Brasil e com a teoria crítica, sobretudo ligada ao pensamento de Walter Benjamin. O primeiro capítulo destina-se a aproximar e comentar os vários textos publicados sobre os diversos gêneros em que a autora escreveu. Após traçar as diferentes perspectivas críticas, segue, na segunda parte, a leitura interpretativa da peça teatral O verdugo (1969), cujo foco é posto em seu caráter alegórico, tendo em vista que é com o seu teatro que temas ligados ao nosso inconcluso processo de modernização começam a se configurar mais sistematicamente: a permanência de relações arcaicas no presente, a mistura das instâncias pública e privada, a relativização do sujeito e a força subjugadora do capital. O trabalho continua com o tracejo de um panorama da prosa ficcional de Hilda Hilst, estendido de 1970 à década de 1990, quando passa a publicar sua irônica obra pornográfica. Recursos de sua dramaturgia são incorporados em seus textos futuros, como a metalinguagem, a forma alegórica e dialógica, o rompimento das estreitas barreiras entre os gêneros e a crítica à nossa modernização desigual e processual. Sendo assim, o romance Cartas de um sedutor (1991) parece ponto convergente da linguagem e das artimanhas literárias da autora. Sua apropriação de recursos teatrais é analisada comparativamente com procedimentos de O verdugo, sobretudo no quarto capítulo, em que se busca entender o movimento dos disfarces, chave formal da peça de 1969 - postos potencialmente no jogo cênico e nas diluições das práxis e discursos dos personagens, possibilitadas pelas influências e subornos do capital – ao mascaramento da consciência organizadora do romance de 1991. O último capítulo também é destinado às Cartas de um sedutor, em que se analisa a posição do intelectual em meio às generalizações da mercadoria, a construção paródica, a aproximação de um dos enunciadores do romance com os narradores em primeira pessoa, autoenvenenados, da tradição da literatura brasileira, e o choque entre forma literária e o conteúdo pornográfico da indústria cultural. O trabalho, portanto, procura investigar, sobretudo, a forma alegórica, juntamente aos recursos teatrais, da prosa de Hilda Hilst, capaz de formalizar nossa modernidade de fachada, simulada. Palavras-chaves: Hilst, Hilda; Literatura Brasileira; Teatro Brasileiro; Metalinguagem. ZAGO, Carlos Eduardo dos Santos. Between Executioners and Seducers: Modernity and (Un) Masking in the Hilda Hilst’s prose. 2018. 240 f. Doctorate´sThesis in Literature. – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Assis, 2018. ABSTRACT According to the specialized critical studies on Hilda Hilst, it can be observed that there is little information about the historical, social and political features in her literature; therefore, this thesis intends to develop an interpretative reading, more materialistic, when based on essays about Brazil and mainly associated with Walter Benjamin’s thought. The first chapter aims to approach and comment on texts, around several genres, published by Hilda Hilst. After the presentation, there is an interpretative translation of the play “O Verdugo” (1969), which focus is about its allegorical character, associated with themes on the process of modernization, more systematically, about the permanence of archaic relations in the present, the mixture of public and private instances, the relativization of the subject and the subjugating force of capital. The analysis continues to be compared to a trace of a panorama of Hilda Hilst's fictional prose, extended from the 1970s to the 1990s, when the author started to publish her ironic pornographic literature. The resources of her dramaturgy are incorporated into her future texts, such as metalanguage, allegorical and dialogical form, a breaking of the strict barriers between genders and the criticism of our unequal and procedural modernization. Thus, the novel “Cartas de um sedutor” (1991) seems a convergent point of the author's language and literature sources. The appropriation of theatrical resources is analyzed comparatively with procedures in “O Verdugo”, especially in the fourth chapter, which intends to understand the movement of disguises, formal key of the play of 1969 - potentially placed in the scenic game and diluted of the characters praxis and speeches, making possible the influences and bribes of the capital to the masking of the organizing consciousness of the 1991 novel. The last chapter is also devoted to “Cartas de um sedutor” and this thesis analyzes the position of the intellectual in the midst of the generalizations of the commodity, the parody construction, the approximation of one of the enunciators of the novel in the first-person narrator, self-poisoned by the tradition of Brazilian literature, and the clash between literary form and the pornographic content of the cultural industry. This analysis intends to investigate, above all, an allegorical form, a set of practical resources contained in the Hilda Hilst´s prose, able to formalize our inalienable modernity. Keywords: Hilst, Hilda; Brazilian Literature; Brazilian Theater; Metalanguage. SUMÁRIO Introdução..........................................................................................................11 1. Fortuna Crítica: Poesia, Teatro e Prosa........................................................21 1.1. Apresentações Gerais................................................................................22 1.2. Reflexões Sobre a Poesia..........................................................................27 1.3. Pronunciamentos a respeito da Dramaturgia.............................................34 1.4. Análises da Prosa Ficcional........................................................................37 2. Entre Carrascos, Lobos e Santos: Disfarces e Moedas em O Verdugo........53 2.1. O Verdugo...................................................................................................66 2.2. Ato I: Entre o Público e o Privado: Moedas e Palavras nas Ciladas da Alcova................................................................................................................70 2.3. Ato II: Moedas e Massacre Público............................................................84 2.4. Entre Alegorias...........................................................................................95 3. O Mercado e o Percurso da Sedução: Uma Apresentação da Prosa Ficcional de Hilda Hilst....................................................................................................112 3.1. Os Anos 1970: A Prosa, o Engajamento e a Conquista da Linguagem...118 3.2. A Década de 1980: O Fortalecimento da Linguagem...............................125 3.3. A Ironia dos Anos 1990: A Provocação da Linguagem............................130 4. Entre Máscaras e Disfarces: Quando a Linguagem Vai à Cena.................138 4.1. As Cartas como Palco..............................................................................147 4.2. A Pulverização da Máscara......................................................................151 5. Entre Gabardines e Farrapos: Máscaras e Impedimentos em Cartas de um Sedutor............................................................................................................161 5.1. As Cartas de Karl......................................................................................166 5.2. Os Trapos de Stamatius...........................................................................184 5.3. Melancolias e Carnavais: Entre o Local e o Universal..............................202 Entre Verdugos e Sedutores: Últimas Considerações.....................................226 Bibliografia Obras de Hilda Hilst.........................................................................................232 Obras sobre Hilda Hilst....................................................................................232 Bibliografia de Apoio........................................................................................235 11 INTRODUÇÃO Há cerca de oito anos, a obra de Hilda Hilst se impôs soberana em minha vida de pesquisador, inspirando leituras desafiadoras, exigentes e, sobretudo, sedutoras. Não só pela densidade de sua temática, mas também pela complexidade do seu trabalho formal. Ao enfrentar sua produção, palavras como hibridismo e virtuosismo são tônicas, já que passa do abjeto ao sublime, da “alta” poesia à pornografia mercadológica, do lírico ao dramático, deste ao épico e, assim, sucessivamente. É neste sentido que sua produção reverbera a tradição clássica, literária e filosófica, junto às altas voltagens modernistas, ao mesmo tempo em que dialoga crítica e ironicamente com as armadilhas da indústria cultural. A escritora encarna as últimas possibilidades, os derradeiros esforços da nossa arte moderna maior. Salta em um escuro e longo abismo, trabalha para construir “altíssima” obra, em um mundo todo feito contra isso, seja pelos cerceamentos do contexto social que lhe cobram engajamento em época de ditadura, seja pelo mercado que dificulta o contato com a sua obra exigente. Em queda-livre, desce sempre mais fundo para elevar sua literatura, para reconquistar a glória da palavra. Temas e procedimentos modernistas surgem em seus textos: a liberdade formal, a problemática da representação dos despossuídos, o viés humorístico, o ecletismo de estilos, a experimentação e a autorreferencialidade da linguagem. Sua prosa parece herdeira da escrita vanguardista de Mário e Oswald de Andrade, sobretudo pelo caráter de montagem e pelo ácido humor. Mas também enfrenta problemas que se estabelecem na madura produção dos dois últimos nomes de peso da nossa prosa modernista, Clarice Lispector e João Guimarães Rosa. Após a fase mais experimental dos prosadores ligados aos anos 1920, o romance retoma suas bases realistas nos 1930, época que em também são desenvolvidas as pesquisas intimistas, de autores como Cornélio Pena e Lúcio Cardoso. Todavia, é entre 1940 e 1950 que a linguagem buscará representar o que lhe escapa, o que não pode ser captado realista e 12 objetivamente. Se Rosa, formalmente, resolve a questão, criando uma linguagem inovadora e, por isso mesmo, “estrangeira” dentro da própria língua, Clarice Lispector assume o problema e sua obra passa a conter a falha, a precariedade, mostrando-se processo. É a partir de então que Hilda Hilst se vincula, com uma linguagem que também enfrentará a precariedade e a insuficiência, que são, nos anos 1970, a própria literatura, cuja concorrência com o entretenimento dos meios de comunicação de massa é posta mais abruptamente. Assim, como a escritora anterior, o problema se instaura no cerne da sua produção ficcional. Por isso, seu esforço e sua singularidade estão no ato da teatralização do pensamento e da escrita, que não deixa de ser simulação, artifício, mascaramento. Repondo tônicas de Clarice Lispector e João Guimarães Rosa, faz de seus textos encenação dos sujeitos e dos códigos linguísticos. Pretende, como eles, a criação de um lugar à parte com a literatura. Aproximando-se de Rosa, cria, por vezes, uma sensação encantatória, ritualística, ligada ao significante, à sonoridade da palavra. Entretanto, difere-se, já que, para ela, o engenho não resolve o problema da representação do indizível. Compartilha, nesse sentido, uma visão mais estreitada com a de Lispector, para quem a linguagem não dá conta da experiência vivenciada em sua totalidade. Há algo que foge, que ultrapassa a simbolização. A literatura hilstiana investiga o terreno da falha, excede sua própria medida, rompe com a “alta” arte, para salvá-la, já que as imposições do mercado acentuam-se mais gravemente em seus escritos. Sua linguagem é, então, mais artificiosa e transforma-se, muitas vezes, em um torrencial dialógico, sobretudo em sua prosa ficcional. Seus enunciadores, geralmente em primeira pessoa, portam-se, ao mesmo tempo, como épicos, líricos e dramáticos. São, principalmente, máscaras: a própria consciência organizadora é construída em diálogos, em que se somam várias vozes. O processo de construção, o ato de pensar, com todas as suas contradições e bifurcações, é encenado. Há, no cerne de sua produção, uma angústia metafísica, cósmica, mas também histórica e política, entre o relativo e o absoluto. O transito entre o alto e o baixo é sempre perceptível, não só pela concepção de um mundo às avessas, que simplesmente inverte os polos, mas também pela mistura: 13 contêm-se, percebem-se um ao outro. Formalmente, seus textos rompem e ultrapassam os limites entre os gêneros e fazem das microestruturas reverberações do conjunto da obra, enquanto a totalidade é feito eco dos detalhes. Sua primeira lírica, iniciada em 1950, já sugere o salto, o projeto: a procura pela arte sublime, a mistura entre o alto e o baixo, a (re)utilização de gêneros clássicos, como elegias, odes, sonetos, canções, baladas, juntamente a constatação de que “Estão terrivelmente sozinhos / os doidos, os tristes, os poetas” (HILST, 2017, p. 22). Prevalecem o amor, a morte e a própria poesia, como temática. O eu-lírico se torna, cada vez mais, fragmentado. Angustiado, perante a instabilidade do mundo, projeta-se na imagem da morte, do suicídio. Mostra-se em uma profunda ruptura com a natureza: grande questão da lírica moderna que se impõe em seus versos. A consciência de que a poesia é criação, imaginação, crescerá ao longo de seus livros, que passarão a incorporar imagens de ruínas, de homens a se devorarem. Consciência transformada em resistência, frente a um terrível tempo anunciado no início na década de 1960: Tempo não é, senhora, de inocências. Nem de ternuras vãs, nem de cantigas. Antes de desamor, de impermanência. Tempo não é, senhora, de alvoradas. Nem de coisas afins, toques, clarins. Antes, da baioneta nas muradas (HILST, 2017 p. 155-156). Contra a hostilidade e os instrumentos de nulificação do sujeito no mundo moderno, frente às ditaduras que se impõem, a poesia se transforma em caminho alternativo, via paralela, retorno ao mito, à infância, ao tempo cuja fratura entre homem e natureza não abria fendas tão radicais. Ainda nos anos 1960, conscientiza-se da potência de sua escrita, da produção que poderia vir com seu ato artístico. Arrisca, assim, todas as cartas. Abdica de sua alta posição social, constrói sua casa no campo, na zona rural de Campinas, e, isolada, dedica-se exclusivamente à literatura, tendo em mente a ideia de que o intelectual é solitário e de que o ato de pensar provoca a condição marginal. 14 É assim, que entre 1965 e 1966 se muda para a Casa do Sol, a fim de continuar, com todas as forças, a sua obra. Sua poética comportará, então, outro gênero literário: o texto dramático, exigido por uma nova temática, que surgiu como afronta à composição artística e intelectual da época - a ditadura civil-militar havia se instaurado no país, cortando e fragilizando nossos parcos alicerces, que ajudariam à edificação dos monumentos democráticos. Parcos no sentido de que havia se passado pouco mais de setenta anos, contados a partir da data em que se formalizou, em lei, o fim da mão-de-obra escrava (1888) e pouco mais de trinta anos, contados a partir da ditadura de Vargas e do Estado Novo1, ocorridos em parte da década de 1930 e 1940. Hilda Hilst, portanto, encarna o artista que se rebela contra o sistema, tanto do ponto de vista político, quanto do estético. Incorpora a problemática do outsider, do sujeito que se revolta contra os dogmas sociais impostos. Caracterizado pela “[...] sensação de estranheza, de irrealidade, [...] não pode viver no mundo protegido e confortável da burguesia, aceitando como realidade o que vê e toca” (WILSON, 1985, p. 66). Com seu olhar, mais profundo e crítico, enxerga o caos e a irracionalidade na aparente ordem social civilizada. Portanto, sua primeira tarefa é buscar o autoconhecimento, o que exige solidão e movimento interiorizado. Como outsider, a escritora possui uma espécie de sentimento religioso, não nos moldes institucionais, longe disso, mas como um ímpeto, como um insight que a salva da futilidade que paira sobre a humanidade, geradora de “[...] um instinto de rebanho [...] que a leva a crer que o que a maioria faz deve ser o certo” (Idem, p. 139). No outsider, ao contrário, “[...] é mais forte o senso de fraternidade com algo mais do que o homem” das massas (Idem, p. 140). Seria necessário, para tanto, ultrapassar a razão instrumental e o esclarecimento comum, por uma via mística, entendida como “[...] reconhecimento da irrealidade do mundo” (Idem, p. 187). O misticismo recupera seu sentido originário grego, de “fechar os olhos” para ver melhor, 1 “‘Estado Novo’ designa a ditadura de Salazar, iniciada em Portugal em 1932, e o regime brasileiro compartilhava alguns traços com o fascismo europeu: a ênfase no poder do Executivo personificado numa liderança única; a representação de interesses de grupos e classes sociais num arranjo corporativo, isto é, sob a forma de uma política de colaboração entre patrões e empregados, tutelada pelo Estado; a crença na capacidade técnica posta a serviço da eficiência do governo e acompanhada da supressão do dissenso” (SCHWARCZ e STARLING, 2015, p.p. 374 – 375). 15 além das aparências (Idem, p. 230). Somente assim se pode atingir o estado visionário latente na humanidade, capaz de quebrar a ordem, que faz do mundo mercadoria, exigindo “[...] dos homens que gastem uma certa parcela de seu tempo ‘adquirindo e gastando’ para se manterem vivos” (Idem, p. 242): [...] o Outsider parece ser basicamente um homem religioso, ou imaginativo, que se recusa a desenvolver as qualidades da mentalidade prática, bem como a preocupação comercial, que parecem requisitos básicos para a sobrevivência em nossa complexa civilização (Idem, p. 263). O lirismo, pois, começou a se modificar com suas oito peças teatrais, atendendo interrogações mais políticas. Em cena, veremos “seres de exceção”, que renunciam ao sistema, marcados pela recusa ao saber puramente instrumental, às instituições sociais, à relativização da inteligência. Seres que, tragicamente, lutam por uma maior sensibilidade humana, capaz de despertar o homem para uma consciência crítica, coletiva e espiritualmente elevada. A partir do contexto autoritário e da nova criação, as imagens dos assombros e dos escombros da modernidade intensificaram-se em seu teatro ácido, crítico e político, sobretudo pela forma alegórica adotada, capaz de reconhecer e formalizar a dramaticidade - muitas vezes trágica – do nosso corpo social. O mesmo recurso da alegoria permitiu-lhe reconhecer o sistema opressivo como causa perversa do nosso substrato histórico, pois, em meio a uma modernidade inconclusa, em que as marcas do atraso convivem em conflito com o progresso, as forças reacionárias podem, a qualquer momento, ganhar escopo suficiente para se instaurar como poder vigente. Seus textos teatrais também conseguem alçar a problemática local a uma atmosfera universal, visto que as estruturas dos poderes totalitários e as artimanhas para a nulificação dos sujeitos rondam mundo afora, assumindo-se como ideologia e como força de produção e manipulação dos homens. É dessa maneira que o nazismo, motivo na peça As aves da noite, torna-se pano de fundo para discutir a ditadura civil-militar brasileira e a posição da arte e da poesia em meio à barbárie, que sempre pode se instaurar nas mais diferentes formas de organização social. A dramaturgia, portanto, indica uma reorganização de seu projeto literário e, a partir dela, temas e procedimentos formais foram se delineando 16 mais claramente, principalmente com a combinação que se dá entre alegoria e uma forma de composição textual feita em mosaico e rearranjada por uma competente bricolagem. Trata-se de textos formados por pedaços de outros textos, vindos da tradição literária, da própria obra da autora e de outras áreas do conhecimento, como a filosofia, a teologia e a física, que podem aparecer diretamente como influência ou objeto de paródia. A autora começou sua publicação em 1950, com Presságio, livro de poemas cujos modelos e materiais intertextuais pareciam ecoar a literatura clássica, em suas altas voltagens e preocupações formais. Porém, gradativamente, sua obra escancara seu modernismo e sente as imposições do mercado, pois, mesmo com relevância e aceitação crítica, nunca chegou a público amplo. Mesmo seu teatro, escrito com a intenção de uma comunicação mais urgente com o público, como confessa a autora em várias oportunidades, fracassou como consumo. Não houve, à época, montagens de peso, nem interesses editoriais. Sua publicação completa viria somente em 2008. A experiência, entretanto, expandiu sua linguagem. Volta, em 1974, a publicar poesia lírica, em um volume intitulado Júbilo, memória, noviciado da paixão, cujas marcas teatrais e as angústias frente a uma sociedade pautada em políticas abusivas, são perceptíveis, especialmente em “Poemas aos homens do nosso tempo”, parte do livro de teor mais acentuadamente político. Trata-se de uma poesia de resistência, que denuncia a atmosfera sombria, punitiva e autoritária, a qual, instaurada no país, legalizou a tortura e a censura, calando muitas vozes líricas e sufocando o pensamento crítico e livre. Contra isso, o eu-lírico passa a “[...] defender as alturas da sua condição contra a vulgaridade, a banalidade pessoal, social e também a banalidade política” (PÉCORA, 2008, p. 13), buscando se irmanar aos escondidos das gentes e deixando ecoar, em sua voz, artistas e intelectuais, vítimas de outros poderes totalitários, como Federico Garcia Lorca, um dos homenageados em seus versos. O lirismo, dessa maneira, pode ser um meio para expressar a visão do outsider, pode guardar um mistério, capaz de revelar uma realidade mais humana, despertando o homem para um estado coletivo, solidário e reflexivo: armas de combate contra a irracionalidade e a cegueira dos poderes totalitários 17 e contra o fetichismo da mercadoria, resguardado por discursos que se esvaziam e por forças brutais de manipulação e cerceamento dos sujeitos, assegurados por meio de uma indústria que impõe, aos objetos culturais, a repetição e o esgotamento formais, valorizando-os apenas como mercadorias lucrativas. Entretanto, a revolução é utópica, é gerada apenas por uma possível conversão poética coletiva. A partir de então, as rupturas, perceptíveis em sua primeira lírica, e a angústia metafísica central ganham profundidade. Perante a comunhão fracassada e a impossibilidade do absoluto, simbolicamente notado por três vias principais - o amor, a morte e deus2 -, sua poesia será caminho, indagação, experiência mediadora e reposição do mistério. É assim que a linguagem falha na tentativa de representação: como retratar um deus que sempre esteve ausente, como registrar a própria morte? Seus versos recorrem ao rebaixamento, à transformação do cosmo em linguagem, e ganham uma força erótica fundamental. O eu-lírico tentará, em seu terreno linguístico, uma fusão corpórea com o abstrato, a partir de uma aproximação, de uma personificação. O absoluto estará no relativo, como o detalhe estará na expressão integral. Todavia, a síntese ocorre apenas na linguagem, que logo se autodenuncia criação. Buscar-se-á o enfrentamento de igual para igual, o logro e o domínio. Para isso, será necessário rebatizar, seduzir e reduzir o inalcançável. Porém, o que prevalece, ao final, é a não decifração, é a fratura. A reação mais explícita ao mercado, entretanto, parece ter ocorrido com sua prosa, nos anos 1990, quando a escritora se expõe por meio da mídia e anuncia o fim da produção de sua “alta” literatura e o início da composição de textos pornográficos: tratava-se de uma complexa artimanha, que burlaria as leis do mercado e seus consumidores, como veremos ao aprofundar nossas análises. Hilda Hilst produziu obras em que a temática obscena - resultante das mais variadas práticas e tabus sexuais, como o incesto e a pedofilia, por exemplo, - contrasta com sua forma literária, em que se percebe a presença marcante da literatura clássica, erudita, e das várias referências filosófias, suscitando, em meio ao ato sexual, questionamentos metafísicos, teológicos, 2 Ver: ALBUQUERQUE, 2011. 18 políticos e sociais. Esses questionamentos, por vezes, são intercalados com situações onde impera a ironia, sob a ótica de um ácido humor, decepcionando o gozo das intenções eróticas de possíveis leitores, visto a implosão da matéria mercadológica pelo tratamento estético dado a ela: provoca-se, portanto, um proposital curto-circuito entre forma e conteúdo. A postura irônica de Hilda Hilst, perante a indústria cultural, pode ser percebida em várias de suas entrevistas. Transcrevo, aqui, um trecho em que a autora tece comentário sobre as figuras midiáticas: Sempre achei que o escritor se apresentar em público é, de certa forma, um engodo. O importante seria que o escritor fosse lido; que o livro fosse o veículo real do escritor. Pode acontecer de uma pessoa ser absolutamente genial e ser corcunda, feiíssima, não ter o poder da palavra. Então, as pessoas podem confundir a personalidade física com o escritor e achar que ele escreve bem porque é bonito. Ou, de repente, a pessoa é alguém humilde de figura que escreve muito bem. Enfim, não gosto muito de aparecer porque acho que nunca dá certo. E normalmente porque nós usamos sempre muitas caras o tempo todo (HILST apud DINIZ, 2013, p. 113). A forte imposição do mercado e do dinheiro, no mundo moderno, passa a ser, portanto, uma temática que fará a artista mergulhar em uma nova postura lírica e em sua prosa ficcional, que, desde suas primeiras linhas, mostra narradores envolvidos em uma atmosfera melancólica, gerada pelo rebaixamento da arte e pela impossibilidade de sua concretização frente ao mercado, tantas vezes, alegoricamente representado pela figura do editor. A sua angústia metafísica é também corpórea. Hilda Hilst encarna o escritor que se quer dedicar inteiramente à literatura, mas que encontra barreiras de ordem prática, censuras vindas dos cerceamentos políticos ou mercadológicos. A arte, cada vez mais, encontra barreiras para ser composta3. Dito isso, se faz necessária uma leitura mais marcadamente materialista da obra da escritora, buscando identificá-la em modernas composições, atreladas aos temas do dinheiro, da mercadoria e do nosso 3 Gostaria de agradecer a professora Sílvia Maria Azevedo, pelo desafio proposto de criar uma apresentação mais geral sobre Hilda Hilst. 19 processo de modernização conservadora. Temas que aparecem, mais sistematicamente, a partir de sua experiência dramatúrgica4. Nesse sentido, este trabalho tem como corpus principal de análise a peça teatral O verdugo (1969) e o romance Cartas de um sedutor (1991). Pois, diferentemente do que afirma a maior parte de sua fortuna crítica, as duas obras podem revelar uma escritora comprometida com questões sociais, históricas e políticas, ligadas à matéria nacional e ao seu processo de modernização inconcluso, turvado pelas marcas de um passado que insiste em permanecer atuante, o que faz com que o Estado democrático sempre corra o risco de se desmantelar em estados de exceção, as leis e os direitos públicos turvam-se pela influência constante das relações pessoais e vice-versa, e o dinheiro serve mais à garantia de posses e privilégios de classes, do que à implementação de políticas públicas dirigidas ao bem comum. O primeiro capítulo se destina às publicações críticas a respeito da autora, buscando compreender o atual estado da questão da fortuna crítica acerca dos diversos gêneros em que escreveu. Notar-se, ao longo dos pronunciamentos, o mínimo destaque dado aos temas históricos, políticos e sociais. A crítica sempre se preocupou mais com o caráter universal, metafísico ou intimista, com a grandiosidade da obra e não com os obstáculos a serem enfrentados ao chão histórico. Em seguida, o leitor encontra ensaios cujo objetivo é mobilizar conceitos da teoria crítica e de leituras interpretativas do Brasil para analisar as obras destacadas no corpus. O intuito é verificar a resistência dos textos a uma leitura mais marcadamente materialista e as suas possibilidades formais, vista a diferença entre os gêneros. Com O verdugo (1969), pretende-se analisar uma peça alegórica, que tematiza a censura e a violência cometidas durante a ditadura civil-militar 4 Para isso, evocamos Candido (2011), principalmente em textos como: “Crítica e sociologia”, “A literatura e a vida social”, “Estímulos da criação literária” e “Estrutura literária e função histórica”. Pois, em tais artigos, o autor comenta e exemplifica seu método de análise literária, que pretende ver na forma o reflexo das estruturas sociais e/ou psicológicas da sociedade em que seu produtor se instaura; como comenta Carvalho (In: SZONDI, 2004, p. 9): “[...] as formas artísticas [são] como ‘conteúdos precipitados’, como sedimento de matéria histórica”, o que significa que “[...] os elementos de ordem social são filtrados através de uma concepção de estética e trazidos ao nível da fatura, para entender a singularidade e a autonomia da obra” (CANDIDO, 2011, p. 24), fato que deve ser constatado em uma análise profunda da obra e não somente, ou não apenas, em sua superfície temática, pois “[...] em literatura uma mensagem ética, política, religiosa ou mais geralmente social só tem eficiência quando for reduzida a estrutura literária, a forma ordenadora” (CANDIDO, 2011, p. 183). 20 brasileira, já que encena o cerceamento dos que proferem discursos libertários. Por outro lado, o dinheiro aparece como força motriz para as ações do texto, reafirmando-se como símbolo da modernidade. A peça, nesse sentido, não só tematizaria seu contexto de produção, mas formalizaria, alegoricamente, os impasses do nosso inconcluso processo de modernização, sobretudo pela mistura das instâncias pública e privada. É observada, junto a isso, a relativização dos papéis sociais e a intercambiação dos discursos, que faz com que as personagens troquem facilmente de ideologia e passem a agir pela perspectiva do lucro e da troca mercantil. O uso do poder em causa particular e a introjeção do discurso elitista pela população, que passa a servir, como massa de manobra, aos interesses daqueles que a subjugam, também são encenados. Em Cartas de um sedutor, as influências da indústria cultural, a dominação da mercadoria e a marginalização do saber são criticadas. A intenção da análise é a verificação do diálogo que Hilda Hilst mantém com certa linhagem da literatura brasileira, principalmente da prosa narrada em primeira pessoa, cujos narradores, em grande parte, representam pontos-de- vista elitizados e autoritários. Por outro lado, a obra é um verdadeiro questionamento crítico da posição do intelectual na sociedade brasileira, que parece perder cada vez mais seu lugar de fala, rodeado por e produzindo simulacros. O trabalho busca compreender o dilema central da autora, a angústia entre o relativo e o absoluto, multiplicada entre as permeabilidades do público e do privado, do local e do universal, da sua filiação à “alta” literatura e à filosofia, e as imposições do mercado. Seguem, portanto, textos que rastreiam os engenhos hilstianos para a captação da materialidade, que, de antemão, se anuncia na forma alegórica e, ao mesmo tempo, teatral. Por isso, é necessário observar como recursos de sua dramaturgia se ligam a sua prosa ficcional, sobretudo pela passagem da relativização do capital, flagrada em O verdugo, à totalização da mercadoria, combatida e representada em Cartas de um sedutor. 21 1. FORTUNA CRÍTICA: POESIA, TEATRO E PROSA Mas o silêncio da crítica brasileira é que me impressionou muito. Hilda Hilst (Fico besta quando me entendem). Desde 1950, a literatura brasileira é contemplada com o nome de Hilda Hilst, escritora que passou, principalmente a partir da década de 1970, a receber elogiosos pronunciamentos críticos, que chegavam a considerá-la “[...] a mais perfeita escritora em língua portuguesa” (RIBEIRO, apud WERNECK, 2014, p. 245), visto ser [...] raro encontrar no Brasil e no mundo escritores, ainda mais neste tempo de especializações, que experimentam cultivar os três gêneros fundamentais de literatura – a poesia lírica, a dramaturgia e a prosa narrativa – alcançando resultados notáveis nos três campos (ROSENFELD, 1970, p. 10). Grande parte da nossa crítica, porém, manteve-se em silêncio perante tal exercício literário, que chegou até o ano 1999, com o livro de poesia Do amor. Fato que parece ter contribuído para o ressentimento da autora, demonstrado em seu comentário, intermediado por Werneck (2014, p. 246 e 245): [...] Hilda não esconde uma ponta de ressentimento quando menciona os críticos literários mais ilustres do país, como Antonio Candido e Benedito Nunes, que jamais lhe concederam uma linha. “Em segredo, Antonio Candido me diz que gosta muito do que eu faço, mas não escreve”, protesta. Garante que “adoraria” levar algumas pancadas da crítica, pois isso seria mais suportável que o silêncio. Mesmo assim, são relevantes os pontos observados pelos olhares que se interessam por sua obra, pois todos os gêneros exercitados pela autora 22 foram investigados por diversos pronunciamentos e linhagens teóricas, que passam pela biografia, filosofia, metafísica, psicologia, sociologia e estilística. Parece sintomático que um dos primeiros materiais a serem publicados, possuindo como tema unicamente a obra e a figura da autora, tenha sido o oitavo volume dos Cadernos de literatura brasileira do Instituto Moreira Salles, no ano de 1999, concentrando - além de depoimentos, entrevistas, cópias de originais, breve biografia, desenhos de Hilda Hilst, indicações bibliográficas e uma coleção fotográfica - quatro ensaios críticos que, de forma panorâmica, apresentam, cada qual, uma faceta de sua obra. Dito isso, o presente capítulo busca apresentar a fortuna crítica sobre a escritora, dividindo os textos entre apresentações gerais, reflexões sobre a poesia, pronunciamentos a respeito da dramaturgia e análises da prosa ficcional. 1.1. APRESENTAÇÕES GERAIS Na linha dos textos voltados à própria autora, à sua personalidade e ao seu modo de ser, encontram-se depoimentos de amigos e tentativas de apresentação de sua vida e obra. Partindo desta ótica, “O estrondoso silêncio de Hilda Hilst”, de Cecilia Prada, publicado em sua coletânea de artigos sobre escritores brasileiros, Profissionais da solidão, destaca a personalidade rebelde da jovem Hilda Hilst, antagônica aos bons modos exigidos a uma jovem dos anos 1950, característica que se potencializaria com a atitude que a levou ao recolhimento em sua Casa do Sol, fato essencial de sua biografia, pois, influenciada por Carta a El Greco, de Nikos Kazantzakis, radicaliza então sua introspecção, objetivamente. Sobre a literatura, propriamente dita, Prada chama a atenção para a versatilidade executada nos mais diferentes gêneros; para a proximidade com as obras de Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Joyce, Beckett, Woolf, Bataille e Kafka; para a virada política que a obra dá com o teatro; e para a provocação da década de 1990, quando publica as obras de caráter pornográfico. Isso tudo 23 sem aprofundamentos críticos e teóricos, o texto se quer apenas como apresentação despretensiosa de uma obra5. No exercício de apresentação genérica da autora, surge também Por que ler Hilda Hilst, pequeno livro editado pela Globo e organizado por Alcir Pécora, onde se encontram dados biográficos, trechos de obras e posicionamentos críticos. Na “Nota do organizador”, Pécora chama atenção para “[...] a radicalidade da autora e de seus textos” (2010, p.7), acentuando seu caráter universalista, ao afirmar, precipitadamente, que a “[...] questão do conteúdo ‘nacional’ da literatura [...] não se põe para ela” (Idem, p. 9). Fato que, segundo o crítico, pode causar dificuldades para o leitor, ainda mais quando a isto é somada uma anarquia de gêneros, realizada na construção de seus textos pelo [...] emprego de matrizes canônicas de diferentes gêneros da tradição, como por exemplo, os cantares bíblicos, a cantiga galaico-portuguesa, a canção petrarquista, a poesia mística espanhola, o idílio árcade, a novela epistolar libertina (Idem, p. 11). Tais matrizes jamais seriam praticadas “com purismo arqueológico”, sobretudo por serem submetidas “[...] à mediação de fenômenos literários decisivos do século XX: a imagética sublime de Rilke, o fluxo de consciência de Beckett, o sensacionismo de Pessoa” (Idem, p. 11). Em suas notas, o crítico aponta, ainda, para o torrencial narrativo que se faz teatral na produção hilstiana, já que, juntas à voz narrativa, outras aparecem em diálogo. A escritora, com isso, cria um estilo metalinguístico, ao “[...] denunciar-se como linguagem e como linguagem sobre linguagem” (Idem, p. 12), instituindo “O drama da consciência” (Idem, p. 11-12), ou seja: o “[...] drama da posição do narrador em face do que escreve” (Idem, p. 11), causando-nos a impressão de que ele “[...] está atuando em cena aberta diante 5 Há também o relato de Lygia Fagundes Telles, “Da amizade”, que, junto a depoimentos de Carlos Vogt e Caio Fernando Abreu, havia sido publicado no oitavo volume dos Cadernos de literatura brasileira, já mencionado neste texto, e reeditado em seu livro Durante aquele estranho chá. O relato de Ligya Fagundes Telles, assim como o de seus companheiros, não traz grandes novidades sobre a obra de Hilst, mas guarda, como arquivo e confissão, a devoção da amizade e os fortes traços que Hilda Hilst marcou em sua época e em seus próximos e queridos. 24 de uma plateia tendenciosa, não raro hostil, muitas vezes estúpida” (Idem, p.11). A teatralidade de seu fluxo de escrita manifesta-se, também, pelo fato de seu narrador, ou “antinarrador” (Idem, p. 15), ser “[...] montado por entes pouco definidos, aparentados entre si, incapazes de conhecer a causa ou o sentido de sua coexistência múltipla e dolorosa no ofício da escrita” (Idem, p. 14). Fato potencializado na fase pornográfica, visto que seus narradores “[...] contrariam a regra de ouro da pornografia banal, que é simulação realista” (Idem, p. 20), pois “[...] eles se dobram o tempo todo sobre si próprios, escancarando a sua condição de composição literária” (Idem, p. 20). Essas mesmas ideias foram escritas e desenvolvidas, com mais detalhamento, pelo próprio Pécora, na coleção organizada pela editora Globo, em notas introdutórias aos volumes. O interessante aí é que o crítico pôde ver e revelar como tudo isso se deu nos casos particulares. Dentre os textos mais panorâmicos e as apresentações, também se destaca “A maldição de Potlatch”, do jornalista e ensaísta José Castello, presente em sua antologia de perfis, o Inventário das sombras, de 1999. Seu ensaio volta-se para a cisão entre a obra e o público, revelando que o fenômeno se dá menos como fenda do que como maldição. A partir desse conceito, o jornalista conta como foi sua experiência de conhecer Hilda Hilst e sua Casa do Sol, buscando, no encontro e em trechos da obra, características de tal literatura. Esse aparente carma é pronunciado pela própria autora, baseando-se em uma antiga manifestação de povos indígenas, “da costa noroeste americana” (CASTELLO, 1999, p. 93). Trata-se da Maldição de Potlatch, “[...] um ritual incompreensível para a nossa sociedade [em que] os ameríndios tinham o hábito de pegar a parte mais importante de sua riqueza e simplesmente destruí-la” (Idem, p. 93-94). A maldição, por essa perspectiva, se liga ao medo, principalmente ao daqueles que se preferem estáticos frente às suas próprias e convictas crenças, que pairam apenas na superfície, sem jamais adentrarem ao essencial. Isso porque a sua arte não se faz com as objetividades, clarezas e facilitações que o mercado exige, buscando o lucro das adaptações cinematográficas, mas “Fala do intolerável que se manifesta quando ela, sem 25 ceder ao desejo de agradar ou desagradar, usa a literatura para afundar a face do essencial” (Idem, p. 101). “Por isso escreve livros que se distanciam das expectativas médias e se aproximam do susto” (Idem, p. 102), tocando “[...] as duas últimas fronteiras da modernidade” (Idem, p. 103): a paixão desorganizadora e a morte fulminante, cada vez mais recalcadas em nosso cotidiano. Hilda Hilst, portanto, “[...] parte da borda do literário e, em vez de avançar rumo ao centro gerador de normalidade, lança-se numa viagem para fora da literatura” (Idem, p. 102), refletindo, por meio de seu grande arcabouço de referências filosóficas e literárias, o essencial do homem, aquilo que nos angustia e que tendemos a esconder. Seu leitor, com isso, “[...] deve se preparar para o medo, pois ler Hilda Hilst é acompanhá-la sem a garantia de equipamentos de segurança e sem um destino fixo – ou cair fora, cinicamente, reclamando do peso de sua escrita” (Ibidem). Buscando, ainda, a construção de um retrato da autora, dois artigos foram publicados em Pornô chic6, livro que reúne os textos da fase pornográfica da década de 1990. O primeiro, “Hilda se despede da seriedade”, de Humberto Werneck, foi “[...] publicado originalmente no Jornal do Brasil, em 19 de fevereiro de 1990” (WERNECK, 2014, p. 244) e retorna para mostrar uma Hilda Hilst um tanto ressentida pela falta de dinheiro e pelo silêncio mantido sobre sua obra, levando-a ao provocativo ato, seu pronunciamento como pornógrafa. Também aponta as fortes críticas que a autora tece, ao público que não quer exercer o ato vital de pensar, e ao preconceito contra uma mulher que se põe a escrever 6 Trata-se de Hilst (2014). Sobre a reedição da editora Globo, podemos encontrar a resenha de Frank (2014), que avalia a antologia como ótima, se fazendo necessárias duas ressalvas. A primeira é que o texto Berta – Isabô, fragmento pornogeriátrico rural não é inédito, ele já havia sido publicado em Jandira – Revista de literatura, n. 1, Juiz de Fora, 2004, p. 92-93 e posteriormente em HILST, Hilda. Cascos e carícias e outras crônicas (1992 – 1995). São Paulo: Globo, 2001. A segunda ressalva é que se afirma: “Hilst partiu da literatura hermética para a farra literária de fácil digestão” (FRANK, 2014). Tal afirmação deve ser problematizada, pois a grande parte da crítica, que se debruçou nos textos pornográficos da autora, revela que a base de sua literatura continua a se fazer presente, pois os questionamentos filosóficos e a obsessão reflexiva de seus personagens continuam ativos, juntos às inúmeras referências literárias, históricas e culturais, sempre evocadas em sua literatura. O próprio público não consumiu seus textos como mercadoria pornográfica de fácil digestão, sendo que em sua época de publicação, “1000 exemplares de Cartas de um sedutor foram devolvidos à editora” (FILHO, 2007, p. 57). 26 alta literatura, de linguagem exigente e temas obsessivos e grandiosos para a arte, como a loucura e a morte. Já o segundo texto traz as palavras da própria autora, ditas ao amigo e também escritor, Caio Fernando Abreu7, organizadas sob o título de “A festa erótica de HH”. Em suas reflexões, é notável a consciência que possuía sobre a própria obra, ao dizer que modificou a prosa narrativa e que criou uma revolução na língua portuguesa. É possível perceber, ainda, a permanente dor por não ter obtido um maior número de público, atacando os editores que preferem obras facilitadoras, as quais exigem pouca reflexão. Entretanto, o maior autorretrato é o livro Fico besta quando me entendem, de 2013, que, sob a organização de Cristiano Diniz, traz as principais entrevistas dadas pela artista ao longo de sua carreira. É interessante notar aqui como ela “[...] também soube ‘escrever’ nesse gênero” (DINIZ, 2013, p. 5), já que podemos perceber como sua própria figura foi se tornando ficcionalizada, ao construir e divulgar uma imagem “[...] que deixou marcas, que ainda ecoam quando seu nome é lembrado” (Ibidem). Trata-se de afirmações que reforçam a excentricidade, a loucura, a grande e ousada inteligência e as inúmeras provocações desconcertantes. Por fim, dentre as obras que contemplam os estudos panorâmicos, há o livro Em torno de Hilda Hilst (2015), coletânea de ensaios organizada por Nilze Maria de Azeredo Reguera e Susanna Busato, publicada pela editora da Unesp, reunindo artigos que tratam dos variados gêneros praticados pela autora. Voltando olhares para temas que abrangem a obra como um todo, Alva Martínez Teixeiro assina, na coletânea, “Refulgência, dor e maravilha. Os conceitos de tempo, deterioração, infinitude e morte na obra de Hilda Hilst”. Com interesse pelo metafísico, as personagens, narradores e eu-líricos - representações do sujeito - são sempre imperfeitos e mutáveis, justamente por abrangerem os extremos da humanidade: glória e decadência, redenção e perda, são misturadas para a constituição de indivíduos que intuem a 7 A relação de amizade entre os dois é apresentada, descrita e comentada em Numa hora assim escura, livro de Paula Dip (2016), que inclusive disponibiliza transcrições de cartas trocadas ao longo da vida pelos dois autores. 27 precariedade e o absurdo da existência, mas, como demasiado humanos, não ultrapassam seus estados cruéis. Na mesma linha de raciocínio, há “Respirei teu mundo movediço”, de Ana Chiara, para quem o problema central da obra estaria concentrado no questionamento da representação do trauma pela linguagem. Assim, em uma filiação que envolve Sade e Bataille, a autora desprezaria a representação realista para causar uma desorganização na dimensão linguística. 1.2. REFLEXÕES SOBRE A POESIA Voltando ao Caderno de literatura brasileira (1999), encontra-se um importante artigo sobre a lírica histiana, “Da poesia”, assinado por Nelly Novaes Coelho. De maneira introdutória e panorâmica, demonstra como a poesia da escritora “[...] expressa em seu suceder as metamorfoses de nosso tempo” (COELHO, 1999, p. 67), principalmente por duas vias básicas de reflexão: [...] uma, de natureza física (psíquico-erótica), centrada na Mulher, cujo eu, através da fusão amorosa com o outro, busca em si a verdadeira imagem feminina e seu possível novo lugar no mundo; e outra, de natureza metafísica (filosófico-religiosa), centrada no além-aparências, ou melhor, no espaço-limiar entre o profano e o sagrado, tenta redescobrir o ser humano, as forças terrestres e a própria Morte, como elementos indissociáveis e integrantes do grande mistério da vida cósmica (Deus o Absoluto, o Princípio primeiro...) (COELHO, 1999, p. 67). Assim, da “essência camoniana do amor” (Idem, p. 70), responsável por sua primeira lírica, passa a adotar um eu-lírico que reforça “[...] a função mediadora (ou demiúrgica) da poesia” (Idem, p. 71), capaz de religar o homem tecnológico de nosso tempo “[...] aos impulsos primitivos/ naturais do ser” (Idem, p. 71), com doses e influências de Rilke e Nikos Kazantzakis. Em seguida, sua lírica assumiria o erotismo como centro reflexivo, “[...] no alto sentido filosófico do termo – a experiência de comunhão plena eu-outro que, partindo do corpo, atinge as raízes metafísicas do ser e o faz sentir-se participante da totalidade” (Idem, p. 74). Este mesmo erotismo, em suas últimas produções, será capaz de romper as barreiras que o separam do 28 misticismo, resultando em um niilismo ligado mais uma vez à obra de Kazantzakis, frente à angústia do rompimento entre Deus e Homem. Sua poesia, porém, segue buscando o corpo-a-corpo com o Absoluto que se faz ausência. Na década de 1990, quando a escritora se intitula publicamente pornógrafa e o erotismo vem à tona, é lançado, em 1992, Bufólicas, único livro em verso dessa fase, sobre o qual Deneval Siqueira de Azeredo Filho escreve “Bufólicas: pega, mata e come”, em seu A bela, a fera e a santa que levantou a saia: ensaios sobre Hilda Hilst (2007). Para ele, o livro de poemas parece exercitar o desempenho de um bufão, que relê, por via ácida e irônica, alguns contos de fadas e textos canônicos, abusando do humor político. Dessa forma, se faz uma revisão do que ficou às margens da história oficial da literatura, do nosso sistema literário e da literatura de caráter erótico, pela via de “[...] sua poesia animada com o coro dos contrários, da fina ironia e da sátira gostosa, o que é raro, pois seu interesse permanece centrado na discussão intelectual no melhor sentido” (AZEVEDO FILHO, 2007, p. 146). Como veremos ao longo deste capítulo, quando o assunto a ser tratado é a lírica hilstiana, encontramos textos que, em geral, abordam temáticas parecidas: a relação do eu-lírico com o sagrado, com a morte e com o amor. O trabalho de maior fôlego, dentro dessa perspectiva, é Deus. Amor. Morte e as atitudes líricas na poesia de Hilda Hilst (2011), de Gabriel Arcanjo Santos de Albuquerque. O material, que se encontra agora em formato de livro, foi anteriormente apresentado como tese de doutorado, no ano de 2002, na Universidade de São Paulo, sob a orientação de Alcides Celso de Oliveira Villaça. Logo no início, o pesquisador traz um importante recorte da fortuna crítica produzida sobre a poesia de Hilda Hilst, chamando atenção para importantes nomes da crítica brasileira, como Sérgio Buarque de Holanda, que, ainda nos 1950, apontou para o caráter experimental da jovem poeta, vendo-o com bons olhos em sua estreia, mas se decepcionando no segundo livro, pelo fato de Hilda Hilst ter modificado de forma “imatura” o canônico gênero da balada8. Outro nome citado é o de Sérgio Milliet, que julga a poesia da artista 8 Trata-se de dois artigos presentes em HOLANDA (2010): “Água no vinho” e “O fruto proibido”. 29 como feminina, tímida, frágil e cheia de pudores. Julgamentos que caem por terra sob o exercício de qualquer leitura mais atenta e sob a continuidade da obra. Albuquerque também apresenta os pronunciamentos mais assertivos de Jorge de Sena, que afirmam o grande potencial estilístico de Hilda Hilst, capaz de apresentar textos em que a forma se conecta radicalmente com o conteúdo e em que a experiência se transforma em criação artística, pois até mesmo “O apego à forma funciona como uma maneira de experimento e não como subserviência” (ALBUQUERQUE, 2011, p. 22), e “A expressão pessoal soa como verossímil e não como confessionalismo que, para muitos, é falha grave na expressão poética” (Idem, p. 22). Outro nome de peso, presente na tese, é o de Anatol Rosenfeld, primeiro crítico a tecer comentários que até hoje se mostram consistentes. Foi ele quem conseguiu observar a fatura dos três gêneros, irmanados, sempre, por uma rigorosa poeticidade, notando, assim, como estes não se subordinam, mas se complementam, ainda mais porque a “[...] convivência entre forças antagônicas e, posteriormente, híbridas, molda os seres da literatura hilstiana” (Idem, p. 23-24). Na sequência, a tese de Albuquerque busca descobrir, traçar e analisar o que, para ele, seriam os três temas fundamentais de tal produção – já anunciados em seu título -, mirando as atitudes e as transformações do eu- lírico frente ao recorte temático, ao longo da obra. Perante Deus, encontram-se o sacrifício, a súplica e a revolta; frente ao Amor, a nostalgia e a volúpia; e diante da Morte, o lamento e o enfrentamento. Sobre as formas do sagrado, surge, também, “Criação poética. Gnose e mística da transgressão”, de Claudio Willer. Texto publicado em Tertúlia, o autor como leitor, em que se reúne a escrita de várias personalidades da literatura contemporânea, sempre com a intenção de apresentar uma influência ou predileção literária. A ótica de Willer aproxima a poesia de Hilda ao gnosticismo, ou seja: “[...] à ‘religião’ do conhecimento absoluto, a reintegração e a descoberta do verdadeiro eu, a centelha divina que há em nós, capaz de nos levar à salvação” (WILLER, 2013, p. 244). 30 Como religião dualista, de feitio um tanto platônico, o gnosticismo apresenta a criação dividida entre o kenoma - nosso mundo “[...] criado e dirigido por um mau demiurgo, por um deus de segunda categoria, incompetente” – e o pleroma - “que seria um plano superior” (Idem, p. 245). Tal dualismo apresenta-se, principalmente se considerarmos os dois polos de criação hilstianos, o sublime e o abjeto, desenvolvidos por outra dualidade, dada entre a “[...] prosa extensa, frequentemente torrencial, sem limites e mais voltada para o abjeto” (Idem, p. 246), e a poesia da síntese e do sublime. A ideia da síntese, segundo Willer, pode ser entendida também na totalidade da obra, que caminha para [...] uma síntese de opostos, uma síntese de contradições fundamentais, inclusive a contradição mais básica, mais fundamental de todas, que é aquela entre o sujeito e o objeto, entre nós e o mundo, entre a imaginação e a realidade, entre o simbólico e o mundo das coisas (Idem, p. 255)9. Insistindo com o tema do sagrado, foram escritos mais dois artigos, “A vaidade em Hilda Hilst e Sophia Andresen” - de Kamilla Kristina Sousa França Coelho em parceria com Maria Zaira Turchi – e “Palavra e criação: passos do sagrado na poesia de Hilda Hilst” – de Karyne Pimenta de Moura –, ambos publicados em Entre o mito, o sagrado e o poético, ecos de uma sinfonia, livro organizado por Betina Ribeiro Rodrigues da Cunha. O primeiro texto trata da “vaidade” dos eu-líricos das duas autoras postas no título, “vaidade” gerada pela relação que a própria poesia estabelece com o tema universalista do sagrado, visto ser lugar privilegiado para refletir sobre ele e entendê-lo. Assim, seus poemas, mesmo que não desvendando totalmente a imagem de Deus, “[...] provocam um sentimento de nobreza e 9 Em sua tese de doutorado, disponibilizada no formato de livro, com o título Um obscuro encanto: gnose, gnosticismo e poesia moderna, Claudio Willer alça a obra de Hilda Hilst ao patamar de uma das mais representativas do século XX brasileiro. Particularmente, no capítulo “Gnósticos brasileiros, do simbolismo até hoje”, nota um dualismo gnóstico como matéria para a produção da autora, o que faz com que ela busque o conhecimento no contato dos opostos, manifesto não só em passagens de suas obras, mas também em seu projeto literário, sobretudo pela forma como manipula os gêneros. Assim, enquanto escreve uma poesia concisa, bem acabada e com certo rigor formal, experimenta uma prosa em progresso, verborrágica, em que um texto parece ser infinitamente continuado no outro. 31 vaidade no coração das poetas” (COELHO; TURCHI, 2013, p. 178), já que “Os poemas são escadas que as elevam aos céus” (Idem, p. 177-178). No entanto, tal visão do sagrado não parece ser condizente com a produção de Hilda Hilst, basta lembrarmos os pronunciamentos críticos já relatados aqui. A experiência de se indagar a Deus torna-se muito mais angústia e queda do que vaidade e ascensão. Já o segundo texto se faz interessante quando afirma que, sobretudo nos livros Amavisse e Trovas de muito amor para um amado senhor, a palavra poética se liga ao tempo arquetípico e coletivo dos mitos e do sagrado, sendo assim, capaz de atingir profundamente a psique coletiva. Mas parece equivocado quando, junto ao primeiro texto, confere à poesia um lugar de iluminação reveladora do sagrado. No mesmo livro, ainda existe “A Casa do Sol e a criação literária de Hilda Hilst”, de Danielle Stephane Ramos, cujo esforço é o de compreender a lírica da autora por meio do retiro e da construção de sua Casa. Com uma vertente mais biográfica e intimista, Ramos mostra que a casa passa a ser uma imagem arquetípica da vida privada, com predominância do mundo feminino. Buscando apoio no conceito “casa natal”, de Bachelard, o lar remeteria ao útero materno e a um espaço onírico, jamais recuperado por nós. Tal imagem arquetípica, que pode ser encontrada na real construção da Casa do Sol, seria refletida em sua poesia lírica, gênero que melhor se adaptaria à representação dos estados de alma íntimos e que é capaz de refletir as profundas vivências artísticas. No centro da produção das obras dedicadas à escritora, há Roteiro poético de Hilda Hilst, livro organizado por Elaine Cristina Cintra e Enivalda Nunes Freitas e Souza, reunindo artigos de vários pesquisadores participantes do “II Seminário de poesia – Homenagem a Hilda Hilst”, realizado na Universidade Federal de Uberlândia (UFU), em 2006. O livro divide-se em quatro seções que se esforçam para refletir sobre uma faceta da obra, sobretudo a partir da poesia. Na primeira seção, “Do exílio de si: corpo e desejo”, a investigação é sobre a consciência de uma subjetividade dada no corpo e na linguagem, promovendo, ao eu-lírico ou ao narrador, um constante “exílio de si”. Nesse sentido, há um impulso erótico e uma forte investigação da temporalidade, pois 32 o outro, tanto físico como metafísico, a exemplo da morte, possibilita traçar o contorno dos limites do eu que se busca e se percebe sempre incompleto. Expandindo as experiências, a segunda seção – “Do sentimento lírico do mundo: poesia e sociedade” - tenta detectar a relação da lírica com o mundo, voltando os olhares para os possíveis aspectos políticos da obra, sobretudo em “Poemas aos homens do nosso tempo”, parte do livro Júbilo, memória, noviciado da paixão, até agora pouco investigados pela crítica. Segundo os artigos dessa seção, a obra hilstiana, sem cair em proselitismo, possui uma essência política, notável ao tematizar a opressão do homem comum, por via de uma metalinguagem questionadora da função do poeta em meio a um mundo em que os bens culturais não chegam democraticamente a todos. Em seguida, as reflexões voltam-se, mais concentradamente, para o livro de poemas Da morte. Odes mínimas, investigando, nesta terceira seção – “Das profundezas das mortes mínimas” -, os processos filosóficos, religiosos, subjetivos, inconscientes e sociais que se dão na (ir)representação e no questionamento da e sobre a morte. Por fim, o livro apresenta “Dos leitores e autores: olhares críticos”, onde se traça um pequeno percurso crítico sobre a obra de Hilda Hilst. Outro relevante texto sobre o Da morte. Odes mínimas é “Lírica da morte”, de Simone Rossinetti Rufinoni, publicado no segundo número da revista Rodapé, crítica de literatura brasileira contemporânea (2002). O ensaio estuda os obstáculos que a morte impõe como temática e forma para o eu-lírico que experimenta representá-la e que, para isso, se utiliza dos mais variados procedimentos. Um deles seria o de rebaixar e dessublimar a morte, renomeando-a com palavras alusivas a objetos perecíveis. Porém, assim, a morte se aproxima do sujeito que tenta enfrentá-la com a linguagem, pois frente à grandeza do enigma, essência da própria morte, tanto o poeta, quanto a poesia, se apequenam. É dessa forma que “A experiência-limite da morte interage com a experiência-limite da criação: em ambas a atração pelo desconhecido, a vertigem do abismo” (RUFINONI, 2002, p. 88-89). A morte, que passa a ser personificada, se faz, portanto, objeto de desejo: é com ela que se dá a fusão corpórea mais radical com o outro a que podemos experimentar. Todavia, possuir a morte significa o fim do indivíduo. Logo, a poesia passa a ser apenas a possibilidade de reflexão sobre a 33 “cavalinha”, principalmente por meio da metalinguagem, já que, como afirmado, poesia e morte se irmanam. Por fim, a poesia serve à antecipação e à experimentação do luto. É preciso lembrar, ainda, da coletânea de textos críticos Em torno de Hilda Hilst, organizada por Nilze Maria de Azeredo Reguera e Susanna Busato, lançada pela editora da Unesp em 2015. Dentre os textos reunidos, “Traduzir as faces de Deus”, de Hsiao-Shih Lee, analisa os aspectos físicos do livro Sobre tua grande face, pautando-se nas relações entre Hilda Hilst e Wakabayashi, grafista que imprimiu kanjis junto aos poemas, pretendendo indicar os problemas entre suas traduções mútuas. Já Higor Sampaio, de visada mais temática, em “Os ofícios do sacro em Poemas malditos, gozosos e devotos, de Hilda Hilst”, afirma que nas forças que compõem a subjetividade do eu-lírico, o sagrado aparece associado aos impulsos do cotidiano e do erotismo batailleano, por isso violento, já que acusa a descontinuidade do sujeito no ímpeto da procura pelo outro, pela descontinuidade perdida e jamais recuperada plenamente. Há ainda, dentro da coletânea, “Os autorretratos na lírica de Hilda Hilst”, de Elaine Cristina Cintra, para quem a poesia moderna volta-se para si mesma, pois, se a lírica é a expressão mais absoluta do eu, ela se torna casulo em tempos em que o sujeito está fragmentado. Frente a tal impasse, Hilda Hilst constrói autorretratos, que fazem com que o eu-lírico seja composto enquanto tessitura discursiva. Como modos de se autorretratar, sua lírica pode aparecer como prece, confissão e testamento, juntos a formas de desenhos, espelhos, pinturas e imagens, sempre “[...] contaminados pela dissolução que a linguagem poética propõe das concepções seguras” (CINTRA, 2015, p. 164). Sendo assim, o sujeito é sempre de difícil apreensão, escorregadio, múltiplo e simultâneo, ainda mais pelo fato de o tempo e o outro, elementos nunca estagnados, conferirem, aos autorretratos, “[...] um caráter de experimentação e fugacidade” (Idem, p. 165). Com tais afirmações, a escritora construiria, por fim, autorretratos do retrato, ou seja: sempre faz convergir, para o eu-lírico, a imagem de poeta, de um eu que surge na poesia. Dessa maneira: 34 [...] a lição desses exercícios hilstianos de ‘dizer o eu’ é a de que a relação sujeito/linguagem poética, inextrincável, ambígua, mas una, reorganiza as formas de escrita do eu, e sugere que tudo é linguagem e toda linguagem é construção simbólica, sendo, portanto, submetida ao eterno retorno do mesmo, sob novas concepções (Idem, p. 174). 1.3. PRONUNCIAMENTOS A RESPEITO DA DRAMATURGIA A produção em gênero dramático é a parte menos estudada da obra de Hilda Hilst. Entretanto, existem importantes pronunciamentos que não podem ficar de fora, tanto pelo reconhecimento do caráter desbravador de novos procedimentos formais, identificados na obra da autora a partir de sua experiência com o teatro, quanto pela indicação das novidades temáticas, incorporadas em sua dramaturgia. Sendo assim, mesmo com alguns prenúncios em sua lírica anterior à escrita do teatro, são suas oito peças que, mais contundentemente, anunciam uma reviravolta em seu projeto literário, abrindo caminho para uma nova temática que será exercitada em sua futura prosa e que modificará sua poesia, desafiando a escritora a experimentar e a construir novas formas estéticas. A “nova temática” representa uma carga sufocante, já que encena poderes e espaços totalitários, ditaduras e relações psíquicas, metafísicas e sociais que nulificam os sujeitos. Ideia central para as discussões realizadas em “Do teatro”, texto assinado por Renata Pallottini, novamente publicado nos Cadernos de literatura brasileira10, e que procura mostrar como Hilda Hilst cria uma dramaturgia diferente da que se fazia em sua época, justamente por deixar sua arte de poeta adentrar e contaminar o drama, modificando alguns pressupostos básicos do gênero. Pode-se perceber, com isso, uma autora falando através de suas personagens e assim um interesse maior naquilo que eles sentem, pensam, sofrem e dizem, do que propriamente naquilo que fazem. Consequentemente, neste teatro, que, além de lírico, mobiliza recursos épicos, “Um poeta está optando por se comunicar com seu público através de 10 O texto é reeditado mais duas vezes, em Teatro reunido, publicado pela editora Nankin, juntamente as peças A empresa, O rato no muro, O visitante e Auto da barca de Camiri, e em Teatro completo da editora Globo, onde, pela primeira vez, foram publicadas todas as obras dramatúrgicas de Hilda Hilst. 35 situações, na maior parte das vezes, limítrofes, de situações de verdadeira crise” (PALLOTTINI, 1999, p. 101) e, para isso, “Um grupo de personagens é criado, em cada um dos casos, para apresentar-nos um momento de vida em que se chega ao limite extremo da resistência humana” (Idem, p. 101)11. Outros pronunciamentos são feitos em “A eminência da morte na dramaturgia de Hilda Hilst: A possessa e O verdugo”, publicado na coletânea de ensaios Em torno de Hilda Hilst, em coautoria de Éder Rodrigues e Sara Rojo. Para os dois autores, as peças citadas misturam gêneros, fundem materiais ficcionais e biográficos e proporcionam uma forte performance política, ao dar voz às vítimas, tanto à protagonista de A possessa, América, jovem condenada por fugir aos padrões educacionais de uma sociedade punitiva e autoritária, quanto ao Homem, revolucionário levado à morte em O verdugo, por ensinar palavras libertadoras à população de uma vila interiorana. As peças ainda criam uma atmosfera kafkiana, pois não se sabe objetivamente o motivo das condenações, já que as sugestões dos acordos corruptos e invisíveis fortalecem as estruturas encenadas. Na mesma coletânea crítica, Alcir Pécora publica “Hilda menor: teatro e crônica”, afirmando que os dois gêneros seriam as facetas mais desprestigiadas do conjunto da obra da autora, o que o leva a dizer, por exemplo, que “[...] o efeito mais importante de seu teatro foi o de ensaiar a sua prosa” (PÉCORA, 2016, p. 15), servindo como experimento que modificaria as posteriores produções. O fluxo narrativo de sua prosa ficcional receberia, com isso, um tratamento dramático, enquanto sua poesia lírica, escrita a partir de 1970, ganharia elementos novos, como humor, dialogismo e registros vulgares. Para o crítico, a comunicação, pretendida por Hilda Hilst com o seu teatro, falhou ao final da década de 1960, pois contrariava a produção dramatúrgica da época, desorganizando os modelos teatrais por sua singularidade. Tal afirmação aparece condensada na passagem a seguir: 11 Em minha dissertação de mestrado, orientada pelo Dr. Gilberto Figueiredo Martins e intitulada Assombros e escombros da modernidade no teatro de Hilda Hilst (2012), desenvolvi um capítulo chamado “Nos bastidores da crítica: diálogos sobre o teatro de Hilda Hilst”, em que realizo e apresento um comentário mais detalhado do texto de Renata Pallottini e de vários outros que compõem a fortuna crítica sobre a dramaturgia hilstiana, pesquisada até 2012, ano de defesa da dissertação na Unesp, campus de Assis – SP. 36 [...] A falta de ação, o enredo abstrato, o acento colocado sobre a palavra poética, uma discussão política que mais parece condenar a política, um teatro popular que parece implacável com o povo, certo catolicismo padecente e vitimista que contamina o pacifismo, o repúdio às posições polarizadas da época, sem deixar de acentuar os polos; um olhar mais agudo para as contradições e as incongruências, mais que para a clareza ideológica – qualquer coisa, ou tudo isso, resultou no fracasso de seu teatro (PÉCORA, 2015, p. 15). Entretanto, a meu ver, essa dramaturgia é alegórica. Com isso, os símbolos populares e as referências cristãs servem ao arcabouço de imagens constituintes das peças e servem à visão do alegorista. Nesse sentido, Hilda Hilst não parece comungar o ponto-de-vista da religião institucionalizada, manipulando a figura de Cristo mais como homem do que santo. Quanto às crônicas, estas serviriam como espaço de maior experimentação humorística, sendo as misérias da velhice o tema central, estilizado por ambiguidades e paradoxos que carregariam o baixo para os sentidos mais elevados do tempo, da humanidade e de suas transcendências, ao criar moralidades invertidas. Com esses textos - publicados entre 1992 e 1995, no “Caderno C”, do Correio popular de Campinas –, a autora também pretendia divulgar sua obra poética, o que se daria de forma mal resolvida, pois os poemas, para o crítico, aparecem deslocados do restante das crônicas. Voltando à dramaturgia, Deneval Siqueira Filho, em A bela, a fera e a santa que levantou a saia: ensaios sobre Hilda Hilst, particularmente no capítulo intitulado “A bela e a fera – ensaios sobre a ficção e o teatro”, chama a atenção para as semelhanças da escritora com o teatro do absurdo e com a ficção de Beckett, principalmente pelo rebaixamento do metafísico e pela ausência de acesso ao absoluto, embora se mantenha o empuxe. Outros pontos interessantes - que soam mais como sugestões para uma melhor investigação, do que propriamente como afirmações críticas firmemente embasadas - é a aproximação da peça O verdugo com Ponto de partida, teatro político da década de 1960, escrito por Gianfrancesco Guarnieri, especialmente por procedimentos brechtianos, manipulados pelos dramaturgos. Aproximação seguida de apontamentos que colocariam Hilda Hilst em posições próximas às 37 de Jean Genet, ao exercerem, os dois escritores, a literatura como resistência ao desamparo humano. Para finalizar, é necessário evocar O herói incómodo: utopia e pessimismo no teatro de Hilda Hilst, trabalho que surgiu como dissertação de mestrado, defendida na Universidade da Coruña, e que saiu publicado em livro no ano de 2009, com a assinatura de Alva Martínez Teixeiro. Partindo de uma apresentação geral da literatura de Hilda Hilst, a autora do trabalho indica uma predileção por temas que exploram as problemáticas do século XX, ligados à violência e à degeneração do sujeito, como as distopias sociais e os Estados totalitários, com seus instrumentos de tortura, coação e coerção. Para representar esta temática, a artista escreve um teatro não- realista, de viés mais simbólico e experimental, de linguagem híbrida, entre o lirismo e a dramaticidade, exercida por um ponto de vista universalizante e metafórico. Dentro de suas peças, o herói, tema central do trabalho, é sempre trágico, pois sua luta e morte de nada valem para as sociedades atuais. Portanto, passa a ser a representação da crise existencial, experimentada sempre de forma solitária, visto a incapacidade de uma religação e organização coletiva por parte de sujeitos que beiram a desintegração de si12. 1.4. ANÁLISES DA PROVA FICCIONAL Iniciando os comentários a respeito dos textos críticos que discutem a prosa ficcional de Hilda Hilst, voltemos, mais uma vez, aos Cadernos de literatura brasileira, particularmente ao ensaio de Leo Gilson Ribeiro, “Da ficção”, por apresentar, panoramicamente, essa face da literatura hilstiana. Para tal façanha, o crítico alça a escritora ao mesmo patamar dos grandes prosadores modernos, chamando a atenção para seu estilo de obra aberta, exigindo, assim, esforço do leitor, pois o diálogo proposto é denso e desafiador, visto que ao escrever, 12 Este trabalho está melhor comentado em minha dissertação de mestrado, já referida aqui. 38 [...] baseada em premissas filosóficas, religiosas, de alta erudição, [...] seus livros não transmitem mensagem alguma de otimismo, ao contrário, duvidam se há limites para a ferocidade do homem para com seu semelhante (RIBEIRO, 1999, p. 84). Além da pesada temática - em que “O misticismo alijado da sociedade humana, a libido avassaladora, as alegrias e as desditas do amor fruído se aliam, nos últimos textos, à degenerescência inelutável do envelhecimento” (Idem, p. 93) -, o leitor também se depara com a dificuldade imposta pelo estilo, que - além dos inusitados e exóticos nomes de suas personagens e neologismos – mescla, propositalmente, “[...] formas orais, dialetais, do linguajar caipira do interior de São Paulo, com o português culto, muitas vezes derivado de termos clássicos da língua, de séculos anteriores” (Idem, p. 85). A autora parece denunciar, por meio de seus textos, a [...] percepção de que os limites do homem se esboroam diante da velhice, do esquecimento, da solidão, da pobreza, como cacos de um sonho, resultado de uma força incompreensível e indiferente à condição humana: o Tempo (Idem, p. 81). No mesmo Caderno, Eliane Robert Moraes publica “Da medida estilhaçada”. De vertente mais filosófico-existencialista e procurando investigar a virada que ocorre no projeto da autora, o texto visa a compreender, a partir de “Fluxo” - texto inaugural de seu primeiro livro em prosa, Fluxo-Floema -, como se dá a relação entre “[...] três figuras fundamentais do imaginário literário de Hilda Hilst: o desamparo humano, o ideal do sublime e a bestialidade” (MORAES, 1999, p. 115). Relação que “[...] resulta no aparecimento de uma nova matéria literária que, nascida com a prosa, iria daí em diante também contaminar sua poesia” (Idem, p. 116). O confronto dessas três imagens faz com que a escritora que, até então, procurava o sublime e o Absoluto por meio de sua poesia, “[...] exceda sua própria medida”, ao fazer com que a transcendência seja “submetida aos imperativos da matéria” (Idem, p. 117). Sua prosa, portanto, “[...] ganha inusitada violência poética, sem paralelos na literatura brasileira”, colocando “[...] a linguagem à prova de um confronto com o vazio no qual o eterno 39 confunde-se irremediavelmente com o provisório e a essência resvala por completo no acidental” (Idem, p. 118). O divino e o sagrado não garantem mais uma aura de superioridade e o ser hilstiano, frente a tal impossibilidade do Absoluto, deve optar por dois caminhos: um, mais universal, pautado em uma forte “angústia cósmica” (Idem, p.120), e outro que busca uma saída cômica - característica mais brasileira de sua forma de pensar, segundo a crítica Eliane Robert Moraes. Isso por Hilda Hilst definir o Brasil como “o país da bandalheira”, onde nada pode ser levado a sério: “[...] ser brasileiro é ser ninguém, é ser desamparado e grotesco diante de si mesmo e do mundo” (Ibidem). Essa configuração do Brasil, em perspectiva que mistura riso mordaz e melancolia, reforça a dupla dicção de sua obra, “[...] ora voltada para os motivos graves da existência humana, ora para os aspectos patéticos da vida prosaica” (Ibidem)13. Dito isso, sua prosa mobiliza uma angustiante e aflita percepção, a da “[...] impossibilidade de deter o fluxo do tempo” (Idem, p. 122), que anuncia nossa finitude e a formaliza estilisticamente, pois: [...] marcada por uma linguagem telegráfica que muitas vezes dispensa a pontuação e multiplica os focos narrativos ao absurdo, estilhaçando não só a Ideia, mas também as ideias, para mostrar, no corpo da língua, o vazio insuportável que habita o centro de cada um de nós (MORAES, 1999, p. 123). Eliane Robert Moraes volta a abordar e a enfrentar o tema em outro texto, intitulado “A prosa degenerada”14, presente na reedição que reúne os textos ditos pornográficos de Hilda Hilst, Pornô chic. Com as novas observações, a pesquisadora se volta também para a década de 1990, fase final da produção analisada, partindo, sobretudo, da 13 Nesse sentido, mesmo que Eliane Robert Moraes não diga, Hilda Hilst parece reatualizar e dialogar com questionamentos e formulações do nosso primeiro modernismo a respeito do Brasil, principalmente quando lembramos Mário de Andrade e seu melancólico e grotesco Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, ou Oswald de Andrade e seus Serafim Ponte Grande e João Miramar. 14 Ensaio inicialmente publicado, em versão reduzida, no Jornal de Resenhas, Discurso Editorial/USP/UNESP/UFMG/Folha de São Paulo, São Paulo, 10/03/03. Posteriormente, aparece como “A prosa degenerada de Hilda Hilst”, em PRZYBYCIEN, Regina; GOMES, Cleusa (orgs). Poetas mulheres que pensaram o século XX. Curitiba: UFPR, 2008 40 frase “É metafísica ou putaria das grossas?” (HILST apud MORAES, 2014), presente no livro Contos d’ escárnio – Textos grotescos. Nessa nova investida, esforça-se para compreender como a fusão entre o alto e o baixo se radicaliza em Contos d’escárnio – Textos grotescos. Fusão que não se encontra apenas tematizada, mas formalizada, afirmando sua “[...] capacidade de transgressão [...] manifesta numa perfeita sintonia entre forma e fundo” (MORAES, 2014, p. 268), pois [...] para responder aos dilemas da representação do sexo, mas sem acatar as restrições impostas à pornografia, a autora perverte as leis literárias, criando uma prosa em que os gêneros se degeneram. Uma prosa degenerada (Idem, p. 268). É dessa forma que o conhecimento é associado à atividade sexual e que uma “paródia vertiginosa” é posta sobre os mais altos e antigos gêneros literários, como as cantigas de escárnio medievais, por exemplo. Associada ao lixo cultural, produzido no país, a paródia cria um “[...] inventário da mercadoria literária” (Idem, p. 266), respondendo, ironicamente e ao seu modo, aos imperativos do mercado. Seu texto passa a criticar não só a “[...] hegemonia do lixo cultural, mas também a suposta superioridade das elites intelectuais” (Idem, p. 268), sugerindo que “[...] entre esses polos da nossa cultura também existam relações mais complexas do que normalmente se costuma admitir” (Ibidem) e que, portanto, ignorar o fenômeno mercadológico não é a forma de amenizar sua impostura. Na mesma linha de raciocínio, Sonia Purceno escreve “O obsceno objeto de desejo de HH” e o publica em Por que ler Hilda Hilst. Em sua visada crítica, destaca, como base da literatura hilstiana, “[...] um ponto de vista nuclearmente obsceno, isto é, que supunha imperativo trazer à cena justamente o que se esperava que ficasse fora dela, por incomodar o leitor, ou pelo que for” (PURCENO, 2010, p. 64) e assim, na tentativa de “[...] mudar aquele que a lia, e de falar de estados extremos do homem” (Ibidem), muitas de suas personagens renunciaram ao pacto social, principalmente pela predisposição ao afastamento. 41 O ensaio também se atém à teatralidade de sua prosa, marcada pelas características presentes em suas oito peças teatrais. Indica-se, assim, que “marcações cenográficas”, como em seu teatro, podem ser percebidas [...] na sequência ininterrupta de falas que se divide entre microcenas, narradores e personagens esquizofrênicos. O contorno das falas nem sempre é nítido, como não são nítidas as fronteiras entre as personagens, mas é exatamente em meio a esta permeabilidade – que também dilui espaços e tempos – que a cena se dá (Idem, p. 77). Outro potente instrumento usado por Hilda Hilst, para desconcertar o leitor, é a manipulação do riso, potencializada de forma mais sistemática em sua “fase” pornográfica. Seu riso não é facilitador, nem ameniza tensões, é provocativo e incômodo, justamente por ser provocado pelo deslocamento dos “[...] objetos de seus lugares convencionais” (Idem, p. 84), mesclando e confundindo o alto e o baixo, em meio a todos os atos obscenos. Com a fusão do que, em princípio, pareceria oposto, nada se salva, pois tudo “[...] remete às grandes descidas ao inferno” (Idem, p. 92), como a infância desconstruída em Lori Lamby, “[...] o núcleo de nossa mentalidade moral” (ibidem), as identidades sociais, a arte e a função do escritor. “Talvez sobre somente a ‘risada ancorada no fio’ do rancor, o que ainda se pode nomear de ato de resistência” (Ibidem). Voltando a Pornô chic, a coletânea conta com outros textos críticos que se misturam e se complementam em visões de tendências jornalísticas, acadêmicas e biográficas. Entre eles, “Tu, minha anta, HH” aparece com dupla assinatura, de Alcir Pécora e João Adolfo Hansen. Partem do último livro em prosa da autora, Estar sendo. Ter sido, para descreverem a feroz visão que ela tece sobre um mundo onde “Não há profanação possível” (PÉCORA; HANSEN, 2014, p. 253), visto “[...] que o único sagrado é o troca-troca mercantil” (Idem, p. 253). Deus se torna, por esse viés, busca impossível e a vida passa a ser regrada por uma forte e dura lei de mercado, que nos quer impor o mediano, exercido por um potente policiamento ideológico, sob a tutela da indústria cultural, a nos sufocar com o pensamento excessivamente regrado, enquanto a vida é cada vez mais obscena. Restam, como saídas possíveis, a animalidade e a loucura. 42 Para os dois pesquisadores, afinal, “A literatura de HH, que no Brasil repõe radicais de Lispector e Rosa, é pródiga no ensinar desconhecimento, o verdadeiro oposto da ignorância. [...] Assim, a consciência é o inferno, mas também a única poesia possível” (Idem, p. 254-255), já que: No mundo obsceno, repor o baixo é um pouco como reencontrar o lugar onde o mito da liberdade antes se insinuava. Mas ainda é o mito, não a substância livre, indeterminada. Assim, a consciência utópica que ainda vinha do futuro decai no pretérito, resíduo do gesto baixo: é tendencialmente consciência da destruição das formas cínicas do presente, mas não tem vez. O hemisfério da destruição reconstrói como sombra ou névoa amarelo-laranja, não como sol, o rigoroso da consciência (Idem, p. 254). A fortuna crítica reunida em Pornô chic é encerrada com “Discrição e finura”, de Jorge Coli. Retrato que, após relatar um pouco da vivência traçada entre crítico e autora, mostra como O caderno rosa de Lori Lamby, Contos d’escárnio – Textos grotescos e Cartas de um sedutor são expressões da “alta” literatura que Hilda Hilst sempre produziu. Pois, para o crítico, foi ela quem “[...] carreou, para a língua e para a cultura brasileiras, um universo de belezas inquietantes, novo, único, indo buscar nas carnes, nas vísceras, interrogações metafísicas em modos antes ignorados” (COLI, 2014, p. 274). Saindo dos textos críticos reunidos em Pornô chic e recuando no tempo, encontra-se o trabalho Hilda Hilst: três leituras, de Vera Queiroz. Nesse livro, como seu próprio título sugere, três ensaios de leitura interpretativa são apresentados. O primeiro, “O guardião do mundo”, serve como apresentação da obra em prosa, marcada pela transgressão, capaz de criar “[...] cenas de inigualável teor dramático” (QUEIROZ, 2000, p. 17). Transgressão que se daria pela mistura entre prosa e poesia e entre o alto e o baixo, formalizando-se um de seus temas centrais, muito bem desenvolvido em Rútilo nada, pois, partindo de um relacionamento homoafetivo, a novela denuncia a imposição de “[...] isolamento e morte a que estão condenados os sujeitos que se afastam do senso comum” (Idem, p. 18). 43 São desenvolvidas, essas afirmações, também no segundo ensaio, ”Rútilo nada: as margens”, que acrescenta, a respeito da novela, a construção que nela se daria de um universo barroco, gerado pelo culto da frase; pelas imagens visuais, criadoras “[...] das analogias entre o profano e o sagrado” (Idem, p. 41); e pela “[...] alternância sem mediação das perspectivas narrativas, da mistura de vozes” (Ibidem). O livreto é encerrado por “Hilda Hilst e o cânone” em que se buscam aproximações e diferenças entre a escritora, Raduan Nassar e Clarice Lispector. Sobre Nassar e seu Um copo de cólera, Queiroz afirma haver um jorro discursivo com características teatrais, estilo em que Hilda Hilst levaria vantagem, pois o escritor perderia a mão em alguns momentos, fazendo de seu texto apenas verborragia. Quanto a Clarice Lispector, a diferença não estaria na qualidade, mas no procedimento: enquanto esta tematiza a busca e a falha da palavra, Hilda Hilst persegue “[...] o sentido do inominável [...] em imagens muitas vezes estáticas, teatrais, máscaras minimalistas e grotescas do teatro nô japonês, que vibram em ricochete sobre a fatura do discurso” (Idem, p. 48). Em seguida temos A bela, a fera e a santa que levantou a saia: ensaios sobre Hilda Hilst, cujo nome foi modificado pela inclusão de alguns ensaios extras à sua primeira versão, Holocausto das fadas: a trilogia obscena e o carmelo bufólico de Hilda Hilst. Trata-se da pesquisa realizada por Deneval Siqueira de Azevedo Filho, originalmente defendida como dissertação de mestrado e já citada. A tentativa do pesquisador é a de categorizar a “trilogia obscena”, O caderno rosa de Lori Lamby, Contos d’escárnio – textos grotescos e Cartas de um sedutor, como obras “kitsch-obscenas”, isso graças à desarmonia causada com o rótulo pornográfico, difundido e distribuído pelo mercado editorial. Os descompassos estariam na metalinguagem; no intelectualismo demonstrado por narradores e personagens; na violência causada por certos recortes temáticos – como a suposta prostituição infantil; na representação de uma perversa relação entre editores e escritores; no humor ácido e sarcástico; nas paródias e trânsitos intertextuais, feitos a partir de obras canônicas da literatura universal; na linguagem poética que, por vezes, assume; e na 44 focalização não-realista da matéria erótica, o que serve para denunciar o próprio texto como simulação. Já os elementos do kitsch seriam percebidos, especialmente, na mistura de estilos, pois a linguagem mais banal e rebaixada encontra-se, na mesma obra, com a “alta” poesia, com as inúmeras referências eruditas e, entre outros, com o uso escrachado de modelos literários canônicos, servindo, assim, a uma linguagem denominada, por Azevedo Filho, “parnaso-pornô”. Tal descompasso levaria, segundo o pesquisador, a um fracasso da autora, que não consegue alcançar seu objetivo de escrever uma literatura ferozmente consumida pelo mercado. Hilda Hilst teria, com isso, “[...] empurrado a obra para um lugar ambíguo, entre a boa literatura – quando cede ao próprio talento – e o banal – quando se entrega à irresponsabilidade literária e ao mau gosto” (AZEVEDO FILHO, 2007, p. 134). Talvez, o terreno ambíguo, para onde se empurrou a obra, não seja irresponsabilidade, mas sim o que há de inovador e potente nessa trilogia, como muitos críticos apontam. Sendo assim, a explosiva mistura radicaliza o que a autora desenvolveu ao longo do seu projeto literário: a interrogação angustiada do sublime em meio ao grotesco, o exercício para a representação do choque e da hibridização dos contrários. Outro dado, que chama a atenção na pesquisa de Azevedo Filho, é o fato de ele afirmar, em muitos momentos, uma visão preconceituosa da autora. Afirmação problemática, pois, ao demonstrá-la, cita trechos dos narradores dissimulados, representantes do ponto de vista da oligarquia aristocrática. Assim, cria-se uma confusão de instâncias: parece não haver distinção entre a persona autoral e os narradores. Para exemplificar, transcrevemos duas passagens citadas por ele e retiradas dos Contos d’escárnio – textos grotescos, nas quais localiza supostos preconceitos étnicos, sociais, acadêmicos e sexuais da própria Hilda: Compre meia dúzia de cerejas, um copo de creme de leite, uma dúzia e meia de framboesas, cem gramas de nozes já descascadas, um cálice de Cointreau, duas ambrósias. Pingue três gotas de néctar (informe-se), três de casquinha de nectariana, uma gota mínima de algália (informe-se, isto não é cartilha para esse pessoalzinho que está fazendo mestrado). 45 Bem. Ponha todos os ingredientes no liquidificador, acondicione corretamente nessas pequenas geladeirinhas portáteis e viaje para a Grécia. Tá na hora (HILST, apud AZEVEDO FILHO, 2007, p. 76). Segue o segundo trecho: Deitada toda solta, Clódia me diz: tenho uma vontade enorme de chupar dedos de negros. não serve um charuto? Perguntei exausto (HILST, apud FILHO, 2007, p. 76). O que se percebe nos dois excertos é o ponto de vista do narrador, arrogante e irônico, ligado a uma tradição brasileira de enunciadores em primeira pessoa, das quais Brás Cubas é mestre, por exemplo; eles, ao mesmo tempo, desafiam, ignoram e agridem o leitor. Portanto, o plano autoral se dá muito mais como ironia contrapontística do que como reforço da perspectiva ideológica do foco narrativo. O livro ainda conta com mais quatro artigos do pesquisador, não presentes em sua primeira versão, mas que ganharam, agora, a primeira parte do volume, intitulada A bela e a fera – ensaios sobre a ficção e o teatro. Os artigos seguem reafirmando o tom paródico da ficção, sua oposição à narrativa tradicional e realista, sua teatralidade e seu barroquismo, já anunciado também por Vera Queiroz. Dialogando com o conceito “pornô-kitsch”, há o artigo “A língua pulsante de Lori Lamby”, assinado por Luisa Destri e publicado em Protocolos críticos, coletâneas de textos sobre a literatura brasileira produzida a partir de 1980. Logo nas primeiras páginas afirma: “Embora tenha havido uma tentativa de definir O caderno rosa de Lori Lamby como pornô-kitsch, não se trata nem de um nem de outro” (DESTRI, 2009, p. 194), pois o que ocorre é a paródia dos dois conceitos, visto que Hilda Hilst “[...] oferece um produto aparentemente baixo que, se pensado com seriedade, propõe uma pertinente reflexão a respeito da literatura em geral” (Idem, p. 194). Isso porque, graças aos recursos metalinguísticos, a própria obra se repensa, muito pelo auxílio de parênteses que refletem o momento de 46 enunciação do discurso, mudando o foco da história para o da construção literária. O que há em Hilda Hilst, portanto, é simulação, visto que até mesmo o discurso da menina de oito anos, que acreditamos, inicialmente, narrar as próprias experiências sexuais, é apenas criação de seu pai, para servir ao romance que ele decide escrever por imposição editorial, ou por se fazer colcha de retalhos do material que ele utiliza para escrever o seu livro. Com isso, o que temos é a paródia e a história do romance. Mas “O caderno rosa de Lori Lamby é paródia sobretudo na forma como recria o real” (DESTRI, 2009, p. 206), pois “[...] ao tomar a palavra num caderno (e não num livro) rosa, suspende tempo e espaço e nos conduz a um universo em que tudo se apresenta invertido” (Idem, p. 206). Com tal afirmação e ainda conceituando o Brasil como “país dos espelhos” (Idem, p. 206), Destri encerra, afirmando que a lógica do real é mais do que revelada, o que gera uma grande inversão, pois “[...] a ficção nos revela o que é verdadeiramente real” (Idem, p. 207) e não o contrário. Nos mesmos Protocolos, ainda aparece “O mapa da morte na literatura homoerótica brasileira contemporânea”, de Adelaide Calhman de Miranda, artigo em que se tecem, novamente, considerações a respeito de Rútilo nada. A crítica interpreta a novela como uma denúncia sobre o enorme preconceito que paira em nossa população, capaz de provocar os mais bárbaros e violentos atos. Assim, a mistura dos gêneros, traço marcante da obra, mimetizaria o desespero do narrador frente à morte do amado e a insuficiência de um único gênero para representar a dor e os vastos sentimentos humanos. Como se viu até agora, foi bastante relevante, para a crítica, afirmar a teatralização na obra ficcional da autora, refletindo, através da própria linguagem, certa simulação, justamente por deixar claro, aos seus leitores, que estão frente a uma construção discursiva, a uma criação estética. Quero chamar a atenção, com isso, para O fluxo metanarrativo de Hilda Hilst em Fluxo-floema, livro de Juarez Guimarães Dias, inicialmente apresentado como dissertação de mestrado na PUC Minas, em 2005. Os pressupostos críticos desse trabalho partem de uma apresentação geral da autora e de sua obra para defenderem a tese de que há no primeiro livro, Fluxo-floema, uma simbiose entre a voz autoral e a voz narrativa, 47 denunciada, principalmente, na escolha de narradores-personagens escritores, que, assim como a própria Hilda nos anos 1970, começam a viver uma terrível pressão do mercado editorial e que, assim como ela, resistem bravamente em suas concepções estéticas, com uma linguagem de densa veia poética. Tal projeção transfere a voz autoral para a narrativa [...] e a escrita [dessa maneira] parece construída no movimento de leitura, como se fosse permitido ao leitor o acompanhamento dos bastidores, como num ensaio: os erros, a repetição, as indagações e as angústias de prosseguir até o fim (DIAS, 2010, p. 50). Afirmado isso, Dias passa a chamar o narrador hilstiano de “narrador- ator”, pois suas personagens, multifacetados e plurais, assumem a voz narrativa, juntos e dentro de um fluxo de linguagem, capaz de misturar pronunciamentos que estão para além da obra, dizeres de filósofos e das mais variadas influências literárias e não literárias da autora. Esses discursos formariam o texto e, embora dialoguem entre si, “[...] partem de uma voz primeira, a do narrador-ator” (Idem, p. 70), que muitas vezes se dirige ao leitor, comparado, aqui, a membros de uma plateia, reforçando-se o caráter teatral da linguagem15. É ne