UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” CAMPUS DE ARARAQUARA ESQUIZOANÁLISE, SUBJETIVIDADE E EDUCAÇÃO 2009 ARARAQUARA FRANCISCO ESTÁCIO NETO ESQUIZOANÁLISE, SUBJETIVIDADE E EDUCAÇÃO Tese apresentada ao Curso de Doutorado em Educação Escolar da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Campus de Araraquara, como requisito parcial à obtenção do título de Doutor em Educação. Orientador: Prof. Dra. Maria Beatriz Loureiro de Oliveira. Araraquara 2009 FRANCISCO ESTÁCIO NETO ESQUIZOANÁLISE, SUBJETIVIDADE E EDUCAÇÃO Esta tese foi julgada adequada à obtenção do título de Doutor em Educação e aprovada em sua forma final pelo Curso de Doutorado em Educação da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho – Campus de Araraquara: Araraquara, 17 de Dezembro de 2009. ___________________________________________________________________ Dra. Maria Beatriz Loureiro de Oliveira Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”- Campus de Araraquara ___________________________________________________________________ Dr. Fábio Rychecki Hecktheuer . Universidade Católica de Rondônia ___________________________________________________________________ Dr. Ivair Coelho Lisboa Itagiba Universidade do Estado do Rio de Janeiro ___________________________________________________________________ Dra. Luci Regina Muzzeti Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”- Campus de Araraquara ___________________________________________________________________ Dra. Melissa Andréa Vieira de Medeiros Universidade Federal de Rondônia DEDICATÓRIA Para o meu amor Gisele Estácio, dedico de forma especial mais esta conquista que é nossa, fruto de nosso trabalho, amor, alegria e sacrifícios.....Aproveito, para dizer que a maior conquista da minha vida foi e será sempre você..... Para Luan Gouvêa, meu filho maravilhoso e tão afetuoso, a quem amo intensamente, que apesar de tão jovem, para mim sempre foi um mestre e doutor na amizade, respeito, carinho e apoio incondicional; Para minha filha Brigitte, cujo nascimento representa um dos momentos mais emocionantes de minha vida, dedico este trabalho e afirmo para você o meu incondicional amor por toda eternidade; Para minha filha Yasmin, nosso tesouro, que de forma rizomática, chegou para remexer e balançar as nossas vidas e nos inundar com sua alegria e sua força, resignificando as nossas existências; Para minha Mãe .... quantas lindas lembranças de minha infância, seu aconchego, seu cuidado e seu amor......conte para sempre com meu amor e o meu carinho; Ao meu Pai, Antonio Estácio de Sousa Lima, humilde operário que fez de mim um Professor, com seu trabalho, sua sabedoria e seus exemplos; Aos meus amados irmãos: Regina, Sérgio, Toninho, Vera, Maria de Fátima e Maria José ..... parte de mim é parte de vocês .... tudo que é meu é de vocês, por isso divido com cada um esta minha conquista especial. AGRADECIMENTOS À UNESP (Universidade Estadual Paulista – Araraquara), A CAPES e a UNIR (Universidade Federal de Rondônia), por tornarem institucionalmente possível este programa de Doutorado, tão necessário aos processos educativos na Amazônia, em especial em Rondônia; À Prof. Dra. MARIA BEATRIZ LOUREIRO DE OLIVEIRA, que tornou para mim concretamente possível a realização deste sonho, quanto aceitou ser minha Orientadora e me acompanhou com competência, carinho, amizade e compreensão na construção deste trabalho para qualificação; Ao Dr. IVAIR COELHO LISBOA ITAGIBA, que mesmo ausente fisicamente, sempre esteve presente com a força de suas idéias, a clareza de suas interlocuções e o afeto de sua amizade; Ao Prof. Ms. VALDECI RIBEIRO DOS SANTOS, amigo e irmão de caminhada, profundo conhecedor teórico e imanente da Esquizoanálise, que paga com o sangue de sua vida a crença em suas idéias, obrigado por sua amizade, idéias e orientação; In memorian, ao Prof. Dr. CLAUDIO ULPIANO LISBOA ITAGIBA, eterno mestre, obrigado sempre por me ensinar a pensar com coragem, alegria e potência; À Prof. Dra. MELISSA ANDREA VIEIRA DE MEDEIROS, à Prof. Dra. LUCI REGINA MUZZETI (UNESP) e ao Prof. Dr. FÁBIO RYCHECKI HECKTHEUER (Faculdade Católica de Rondônia) por aceitarem compartilhar seus conhecimentos, participando e colaborando em minha banca de defesa; Ao Prof. CLARIDES HENRICH DE BARBA, meu fraterno amigo de sempre, por toda a ajuda durante o percurso até aqui percorrido, sobremaneira nas dicas de Metodologia. “Uma vida é o que esta vida sonhou, uma vida é o pelo que esta vida se apaixonou” (Cláudio Ulpiano). “O valor das coisas não está no tempo em que elas duram, mas na intensidade com que acontecem. Por isso existem momentos inesquecíveis, coisas inexplicáveis e pessoas incomparáveis” (Fernando Pessoa) RESUMO Este trabalho trata da produção da subjetividade no contexto escolar em uma perspectiva histórica, com ênfase na produção da subjetividade no mundo contemporâneo, analisando os desafios da educação escolar face a estas novas configurações subjetivas, tendo na Esquizoanálise o suporte para o entendimento e intervenção educacional. Analisa para tanto a produção da subjetividade no trabalho, na escola, nas redes e movimentos sociais e detalha os principais conceitos da Esquizoanálise relacionados ao espaço educacional. Palavras-chave: Esquizoanálise, Subjetividade, Educação e Escola. ABSTRACT This work deals with the production of subjectivity on the school context in a historical perspective, with emphasis on the production of subjectivity in the contemporary world, examining the challenges of education with these new subjective settings, having in Schizoanalysis the support for understanding and educational intervention. Analyzes for such the production of subjectivity at work, at school, on the networks and social movements and details the main concepts of Schizoanalysis related to educational space. Keywords: Schizoanalysis, Subjectivity, Education and School SUMÁRIO INTRODUÇÃO .........................................................................................................10 1. SUBJETIVIDADE, TRABALHO E ESCOLA ..........................................................21 1.1 O CONCEITO DE SUBJETIVIDADE...................................................................21 1.2 A PRODUÇÃO DA SUBJETIVIDADE NO TRABALHO.......................................25 1.3 A PRODUCAO DA SUBJETIVIDADE NA ESCOLA............................................37 2. MODERNIDADE, SUBJETIVIDADE E PRODUÇAO DE CONHECIMENTO. .......43 3. PÓS-MODERNIDADE, SUBJETIVIDADE E EDUCAÇÃO ....................................64 4. ESQUIZOANÁLISE E EDUCAÇÃO NÃO ESCOLAR: REDES E MOVIMENTOS SOCIAIS....................................................................................................................90 5. ESQUIZOANÁLISE, SUBJETIVIDADE E PROCESSOS ESCOLARES ...............97 CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................................125 REFERÊNCIAS........................................................................................................137 INTRODUÇÃO Este trabalho situa as diferentes necessidades educativas surgidas ao longo do tempo sob uma perspectiva histórica, correlacionando os distintos contextos sociais e subjetivos que originaram uma diversidade de concepções educativas, com a finalidade de compreender qual é o contexto social atual em que se encontra a educação, a que sujeitos eles devem atender e como a Esquizoanálise pode ser útil a educação no geral, e em particular à educação escolar, no enfretamento desse desafio. Busca modestamente refletir sobre as contribuições dessa linha minoritária do pensamento educacional atual, a qual enseja fomentar as chances de a escola tornar-se lócus privilegiado de composição de forças desejantes capazes de ampliar a potência de dizer sim a outras formas de existência; existências dispostas, se necessário for, a criarem "máquinas de guerra" (mais propriamente, máquinas de produção de vida) afeitas a desintegrar tudo o que ofusca a vida, seja na escola, seja fora dela. Para tanto, analisando a história ocidental moderna, na perspectiva de Pierre Lévy (1993, p. 54) que delimita os “três tempos do espírito”, os três grandes momentos da história do conhecimento humano marcados por suas tecnologias específicas: o pólo da oralidade primária, característico do momento civilizatório em que a humanidade ainda não dominava as tecnologias da escrita e o conhecimento era transmitido através da palavra, momento este dominado por um conhecimento que costumamos chamar de mitológico; o pólo da escrita, com todo o impacto que essa tecnologia gerou sobre o saber humano, resultando na constituição da Filosofia e da(s) Ciência(s); e, por fim, o pólo mediático- informático, no qual estamos adentrando a partir da segunda metade deste século vinte e que já nos permite vislumbrar assombrosas possibilidades para o conhecimento, dada a variedade e velocidade que possibilita. Em síntese, a Era da palavra falada, a Era da palavra escrita, a Era da palavra impressa e a Era da palavra digitalizada 11 Hodiernamente, percebemos a presença intensa de instrumentos tecnológicos - que preferimos denominar de elementos tecnológicos que vem possibilitando uma nova razão cognitiva, um novo pensar, novos caminhos para construir o conhecimento de forma prazerosa e lúdica. Tal constatação provoca muitos questionamentos por parte de vários segmentos da sociedade, inclusive dos professores, que vêem, de um lado, estas tecnologias com certa desconfiança e, de outro, com expectativas exageradas que fogem à realidade, uma vez que acreditam que estes elementos tecnológicos, por si só, possam resolver os problemas do sistema educacional. Vivemos esta oscilação constante entre estes pólos e pensamos ser urgente, neste momento, construir uma postura de equilíbrio, percebendo as possibilidades e limites destas tecnologias no ambiente escolar. Portanto, pode-se dizer que a interação com os computadores, games, livros, Internet, TV, vídeo, representam a possibilidade de alteração das estruturas cognitivas do indivíduo, gerando um desequilíbrio que instaura uma nova forma de pensar. Nossas crianças e adolescentes vivem nesse mundo high tech, construindo e aprendendo novas formas de ser e pensar, que possibilitam o surgimento de uma lógica rizomática, lógica esta que se constrói a partir da diversidade que permeia o sujeito cognoscente - em permanente processo de construção e desconstrução - e do mergulho dos sujeitos no mundo plural e coletivo da comunicação digital. Por isso, a proposta deste trabalho é caracterizar a produção subjetiva correspondente a este pólo mediático-informático, os desafios da educação escolar diante dessas novas configurações subjetivas e discutir que pressupostos da Esquizoanálise podem ser trabalhados para fazer face a mais este desafio da escola. A abordagem que mais se aproxima desta investigação de produção teórica na forma de um ensaio acerca da relação sociedades, subjetividades e educação é a análise genealógica proposta por Michel Foucault por que preconiza como fundamental analisar não somente os fatos históricos dominantes mas principalmente os fatos considerados menores, irrelevantes numa análise histórica que não é cumulativa, progressiva, evolutiva e contínua. Pelo contrário, ela é descontínua, se realiza por saltos e cada estrutura nova da razão possui um sentido 12 próprio, válido apenas para ela, ou seja, cada época produz uma verdade, uma teoria (filosóficas ou científicas) e uma prática (ética, política, artística). Em cada época de sua história, a razão cria modelos ou paradigmas explicativos para os fenômenos ou para os objetos do conhecimento, não havendo continuidade nem pontos comuns entre eles que permitam compará-los, onde a análise arqueológica do discurso é entendida como a base que dá suporte à genealogia, ao propor a descrição do campo como uma rede formada na inter- relação dos diversos saberes ali presentes, que possibilitam a emergência do discurso como o percebemos, apenas como efeitos de uma formação histórica determinada e não como verdades eternas, mas efeitos de verdade. A abordagem genealógica busca a origem dos saberes através dos fatores que interferem na sua emergência, permanência e adequação ao campo discursivo como elementos incluídos em um dispositivo político que abre as condições para que os sujeitos possam se constituir imersos em determinadas práticas discursivas, destacando principalmente no mundo contemporâneo a relação sociedade, educação e produção de subjetividade. Neste sentido, pensando na promoção de subjetividades autônomas, um dos focos principais de análise investe em maneiras de produzir e criar ressonância de uma educação da diferença, que investe em posturas criativas desde a mais tenra idade e envolve modos de educar, de ensinar e aprender, que preparem o indivíduo para que se torne capaz de criar as próprias condições de pensamento e existência, que podem estar presentes tanto em práticas escolares como não escolares , como em redes e movimentos sociais. Isso em contraste com práticas educativas que prepara o aluno para a obediência “responsável” (submissa e obediente), fruto das exigências ainda do capitalismo industrial, que se exprime nas soluções ou preenchimentos de demandas instituídas por uma sociedade gregária, que promove um constrangimento do indivíduo levando-o em demasiado a fixar-se nos limites da conservação institucional e a mover-se somente dentro das redes do possível instituído, desperdiçando os modos mais ricos e sutis de criação de novos mundos e de relações com outras dimensões possíveis do real. 13 Na produção de subjetividades cheias de potência e em direção a uma produção estética da própria vida (“constituir a própria vida como se ela fosse uma obra de arte”), Deleuze e Guattari nos legaram a Esquizoanálise. É uma tarefa apaixonante apresentar, mesmo que superficialmente, a Esquizoanálise, que representa a multiplicidade e a lógica da diferença que nos desestabiliza, uma vez que nos vemos, às vezes, centrados no único, na similitude, no idêntico como naturais na produção do ser e do conhecimento. A análise do “esquizo” (do torto, do diferente do esquisito), longe de se constituir em uma patologia, representa para a Esquizoanálise um diferença, tanto empírica/comportamental como teórica, que deve ser afirmada em toda a sua potencialidade para inventar um mundo novo e melhor, um outro possível, novos territórios de ser e pensar. A Esquizoanálise tem sido uma das mais importantes contribuições para a Epistemologia Educacional, especialmente para os atuais desafios da educação escolar, por basear-se em si mesma em uma contínua experimentação do pensamento, se propondo sempre a desconstruir qualquer certeza cartesiana, resignificando conceitos e práticas já consolidadas e adormecidas na acomodação parmediana e positivista, correspondendo em muito a uma possibilidade de dar um sentido mais rico ao modo de produção subjetiva do mundo contemporâneo não raro sem sentido, fragmentada e pulverizada, por ela ser um instrumento de produção de subjetividades fortes, autônomas e afetivas. Gilles Deleuze um dos propositores da Esquizoanálise é um filósofo francês, vinculado aos denominados movimentos pós-estruturalistas, categorização que o próprio Deleuze questionava pelo que traz, ainda, da visão e luta pelo idêntico, mapeado e categorizado. Suas teorias acerca da diferença e da singularidade nos desafiam a pensar em temas como rizoma, ontologia da experiência, a teoria do que fazemos, a virtualidade e a atualidade, em contraposição ao conhecimento dogmático, disciplinar e homogeneizante. Dessa forma, a Esquizoanálise, reitero, se apresenta como uma possibilidade educativa no interior das práticas escolares e não escolares, no sentido de facilitar o estabelecimento de relações menos hierarquizadas e disciplinares, possibilitando sempre a emergência de uma subjetividade singular, do diferente e do inusitado, de acordo com as idéias de seu principal teórico Gilles Deleuze. 14 Deleuze, entusiasta imanente de criação de subjetividades livres e autônomas, assim como Foucault, foi um dos estudiosos de Kant, mas tem em Bérgson, Nietzsche e Espinosa, poderosas intersecções. Professor da Universidade de Paris VIII, Vincennes, Deleuze atualizou idéias como as de devir, acontecimentos, singularidades, enfim conceitos originais e por ele inventados que nos impelem a transformar a nós mesmos, incitando-nos a produzir espaços de criação e de produção de acontecimentos-outros. A Esquizoanálise Deleuziana, acima de tudo, nos convida a experimentar, em um sentido Hereclatiano, sem nos tornarmos representantes de deleuzianismos, ou de um pensamento deleuziano. Mas experimentar com a Esquizoanálise, sem se filiar, fazendo alianças sempre, intensas, porém não eternas ou mesmo de subserviência como nos sugere a filosofia dos bons e maus encontros de Spinoza, apontando para uma prática educativa que tem como objetivo o aumento da potência dos seus alunos. Desse modo, identifica-se a verdadeira natureza do conhecimento que longe de situar-se no campo da repetição, se propõe a mergulhar nas profundezas da invenção. Nas práticas escolares, redes sociais e nos movimentos sociais, este deve ser o modo de funcionamento desejado para que sempre exista a possibilidade de emergências, de soluções novas para problemas antigos. Experimentar, imaginar, intuir e inventar..., este deveria na verdade ser o motor da ciência que paradoxalmente, em sua tradição ocidental, se tornou amiúde uma formuladora de dogmas, que apesar de não serem mais religiosos, são agora científicos e acabam aprisionando , muitas vezes, os acontecimentos do mundo real. Trata-se, portanto, de uma filosofia do acontecimento, uma filosofia da multiplicidade, cujas bases rompem com uma filosofia dogmática do sujeito e da consciência. Propõe lidar com a criação de conceitos e com a produção de acontecimentos que os atualizem no perpétuo jogo entre virtuais e atuais. Dessa forma, a Esquizoanálise, resiginifica a concepção de repressão do desejo e se entrelaça com as idéias de Nietzsche, de vontade de potência, para inventar um desejo expressivo, que engendra outros jeitos de ser, pensar e viver, intensamente atravessados por acontecimentos e intensidades nesses 15 acontecimentos através de experimentações, sensibilizando a ação escolar em suas contribuições possíveis à atual configuração subjetiva da contemporaneidade. Muitas práticas educativas de redes sociais e movimentos sociais que trabalham com sujeitos desinstitucionalizados, encontram nessas proposições, uma oportunidade concreta de criação de possibilidades para muito além da simples institucionalização/re-institucionalização. O Olodum na Bahia e muitos grupos de idosos, resignificaram o destino institucional determinado de marginal e imprestável, respectivamente, que lhes eram atribuídos socialmente. A Filosofia a que se propõe a Esquizoanálise e que a mesma busca praticar é constituída por três instâncias correlacionais: o plano de imanência que ela precisa traçar, os conceitos e personagens filosóficos que ela precisa criar, portanto, numa constante inter-relação entre produção de pensamento e produção de vida. A Esquizoanálise nos invoca, alunos e professores, a dimensões de praticidade, de invenção, de criação, de experimentação, pois para ela os conceitos filosóficos são válidos na medida em que sejam verdadeiros , mas uma verdade regulada por interesses e importância, e não pela abstração vazia e sim por um empirismo criador próprio já presentes em muitas práticas educativas e que sejam capazes de trazer força e potência para o sujeito. Não passamos impune pelas proposições da Esquizoanálise, sem nos afetar- mos, ao atravessamos a produção desses conceitos, dessas idéias-experimentação. A Esquizoanálise é muito mais uma práxis, que, junto e a partir do de dentro, constrói coletivamente, busca constantemente promover processos de desnaturalizações: da distância, do pensar, da prática pedagógica, das teorias educacionais e do experimentar, possibilitando às práticas educativas, uma função epistemológica educativa, frente às escolares disciplinares, cuja função se reduz muitas vezes a simples reprodução do conhecimento. Produção de uma subjetividade que não dependente dessa ou daquela forma de pensamento, mas que seja autônoma e cidadã. Ao conceber a vida como acontecimento que se produz como um devir, um fazer-se, a Esquizoanálise vem nos desafiar com uma lógica do sentido, não com categorias entrincheiradas, um sentido já dado, mas com novos possíveis, colaborando assim com a educação escolar na compreensão e formação da 16 subjetividade contemporânea. Os acontecimentos, e assim os buscam ver e especialmente viver no referencial esquizoanalítico, são singulares e, como tal, não previsíveis na lógica de uma matriz identidária, epistemológica ou curricular, na qual tudo está definido, como é usual em muitas instituições escolares, distanciando-as da realidade subjetiva do mundo contemporâneo. São modos de subjetividade coletiva e individual que estão sempre se fazendo, acontecendo, que encontram na Esquizoanálise um instrumento privilegiado de compreensão e ação educativa. Ao se tratar de Esquizoanálise, se lida com uma ética do acontecimento, em cuja internalidade se busca não o tempo constituído pela continuidade e eternidade, mas o aberto pelo intempestivo da atualidade, sem categorias fixas, pelo qual o sujeito torna-se diferente do que é sendo ele mesmo. Desafia-nos, nessa linha, entre outras, à idéia de que a educação é rizomática, segmentada, fragmentária, não está preocupada com a instauração de nenhuma falsa totalidade. Não interessa criar modelos, propor caminhos, impor soluções. Importa fazer rizoma, conexões, trabalhando o "entre dois", entre as coisas, no “intermezzo”. Assumir a potência do pensamento ao colocar-se o mais perto possível do infinito, pois um pensamento é tanto mais criativo quanto menor for suas amarras. Muitas experiências educacionais, como a de Nice Silveira que introduziu gatos e tintas para tratamento de loucos, resultando no famoso Museu do Inconsciente, necessariamente implodem os caminhos já trilhados e facilitam a emergência do novo. Deleuze nos provoca com idéias de pensar e de criar conceitos, como dispositivos, ferramentas, algo que é inventado, criado, produzido, a partir das condições dadas e que opera no âmbito mesmo destas condições, tornado-se seu pensamento um aliado da educação escolar na compreensão formativa da subjetividade contemporânea na criação de uma ação pedagógica que além do já constituído permita também a emergência do novo. Deleuze e Guattari (1992, p. 109), entende que: . O conceito para Deleuze é um dispositivo que faz pensar e nós como intercessores, colocam-nos em condição de não se refugiar na "reflexão sobre", mas de operar, criar, experimentar, sem ser "agitando velhos conceitos estereotipados como esqueletos 17 destinados a intimidar toda criação, (...) [não se contentando] em limpar, raspar os ossos" Deixando emergir as multiplicidades, tais como conceitos e experimentações. O movimento anti-manicomial, o movimento dos idosos, os movimentos ecológicos e tanto outros, têm na “educação esquizoanalítica”, uma possibilidade concreta de construção de novos referenciais e de um novo mundo. A Esquizoanálise e toda a obra de Deleuze, assim como sua produção conjunta com Guattari querem ir para além de qualquer classificação teórica, o que importa são os efeitos que ela produziu e tem produzido no pensamento contemporâneo. E são esses efeitos para o campo da educação, especialmente nas práticas educativas e na sua compreensão da subjetividade contemporânea, que este trabalho pretende dar uma singela contribuição. É sabido que Deleuze nada escreveu sobre educação, que não foi um filósofo da educação. Contudo, este projeto aposta nas possibilidades das relações entre Deleuze e a educação focando principalmente o entendimento e as necessidades do campo subjetivo contemporâneo na construção de um pensamento novo em educação a partir desta produção filosófica e da possibilidade de novas práticas educacionais e da afirmação da escola como local privilegiado de formação e de reflexão e produção de subjetividades livres. Pessoalmente me apaixonei pela Esquizoanálise, através de um filósofo carioca chamado Cláudio Ulpiano. Professor da UERJ e da UFF, mestre em Filosofia pela UFRJ. Quanto conheci Claudio estava fazendo psicologia na Universidade Federal Fluminense, no Rio de Janeiro, era um ex-seminarista e um garoto pobre e estudioso que tentava arrancar sentido dos conteúdos do ensino universitário, mas pouca coisa saia....Tinha entrado no seminário de formação sacerdotal católico com 16 anos e saído com 23, tendo adquirido o hábito sistemático de estudo e da vida comunitária e o gosto pelo filosofia e pelo conhecimento. O encontro com Claudio foi definitivo e essencial na minha vida ... Claudio Ulpiano, resistia em se preocupar com diplomas. Mas sua permanência dentro do meio universitário o levou a isso. Só anos mais tarde convenceu-se que deveria se afastar um pouco das salas de aula para escrever sua tese de doutorado, tendo-a defendido pela Unicamp. Amava as salas de aula onde 18 seu cuidado inicial era sobretudo o de constituir um campo de entendimento comum entre ele e aqueles que o ouviam, rompendo com a figura do Mestre, com essa relação vertical que normalmente se funda entre professor e aluno. Daí suas aulas são sempre a sensação de uma intensa viagem. Começava inicialmente expondo os elementos, de que depois se utilizaria para nos forçar nossa entrada no pensamento: O nosso encontro pertenceu ao reino do encantamento, mostrando que a filosofia é uma linha melódica, tão poderosa, que produziu em nós um acorde, digo, ou melhor, repito - um acordo: o dos amantes do corpo expressivo, que só oferecem, um ao outro, o amor. O que posso chamar de livre senão aquilo que precisa só de sua natureza para efetuar sua existência? (Claudio Ulpiano, – aulas na Universidade Federal Fluminense, 1999) Cláudio Ulpiano considerava a Filosofia como alguma coisa essencialmente ligada à vida. E é nesse sentido que ele, como filósofo, influenciou tantas vidas, transformando-as de maneira definitiva. Porque, para ele, pensar era, é, um ato de vida, devendo portanto favorecer a vida, aumentar sua potência; a potência da vida. Pois para ele, que conhecia tão profundamente a história da filosofia, que dominava com tanta facilidade a diversidade dos saberes humanos, o que importava era atingir, através do pensamento, o cerne da questão do homem: a finitude, que traz como conseqüência a constante problematização do tempo, problema esse extremamente difícil e que abordava - a partir de sua gênese, fundada no hábito e subordinada ao movimento, até a sua libertação pela conquista do tempo puro - com a mais total clareza, em aulas que compunha como se compõe uma sinfonia ou se escreve um poema. É por essa razão que Claudio assumiu uma importância tão fundamental na vida de cada um de nós, seus alunos. Pois trazia para nós essa questão, forçava-nos a essa reflexão e procurava, com o rigor do seu pensamento e o encanto de sua criatividade, a saída mais bela: a da ética. A luta mais essencial: a da liberdade. E assim perguntava sem cessar: O que fazer com a nossa Para ele, a filosofia não era só pensar a abstração dissociada da vida concreta afetiva, social e pessoal... O estudo da Filosofia deveria trazer conseqüências intelectuais e pessoais... Aprendi que eu não precisa ser importante para ninguém, se não conseguisse ser alguém para mim mesmo, para acabar assim com os ressentimentos, a inferioridade, a má consciência e as culpas superegóicas, 19 buscando a singularidade e não somente processos identificatórios numa posição esquizoanalítica ...Me enxergar e sempre encher de potência a minha vida ...Como ele dizia, em suas aulas, antes de falecer, procurar sempre os bons encontros no sentido Spinosiano......Foi assim que me tornei professor universitário de Psicologia na Federal de Rondônia e encontrei nos alunos um campo de fortalecimento e de encantamento através da Esquizoanálise, tentando como Cláudio ter com eles uma relação, como ele dizia, não de professor e aluno, mas de amantes do pensamento .... Atualmente me tornei amigo de seu irmão Ivair Lisboa Itagiba com quem sempre mantenho encontros intelectuais e afetivos acerca da Esquizoanálise e de Deleuze....grande Cláudio obrigado e eu te amo sempre ... A metodologia desta Tese é de natureza bibliográfica em que são levantados dados teóricos/históricos, envolvendo textos e documentos escritos que ajudem o entendimento de fatos relevantes e importantes que produzam uma contribuição teórica que seja útil na busca do entendimento dos conceitos da Esquizoanálise e da relação subjetividade e educação, sobremaneira no mundo contemporâneo, bem como as práxis e pressupostos epistemológicos que configuram o fazer educacional nas chamadas sociedades do conhecimento, especificamente na relação subjetividade e educação. Desta forma, a pesquisa será apresenta contribuições teóricas acerca da relação entre a Esquizoanálise, Subjetividade e Educação, privilegiando a abordagem dos franceses Gilles Deleuze, Félix Guattari e do brasileiro Sílvio Gallo dentre outros autores que tratam do objeto desta investigação, sobremaneira Michel Foucault em sua análise da produção da subjetividade na escola e no trabalho. O objetivo geral desta pesquisa é a partir do referencial esquizoanalítico, analisar historicamente as práticas educacionais e as diferentes produções subjetivas a elas correspondentes, com ênfase no mundo moderno e contemporâneo e como para este último, a Esquizoanálise pode se constituir em um espaço de novas possibilidades de práticas educativas não disciplinares, não hierarquizadas e que busquem romper com o paradigma cartesiano racional e objetivo, apontando assim para emergência de soluções criativas e inventivas que possam operar um processo de resignificação constante do real e das subjetividades em direção a construção de uma sociedade mais solidária e singular, como também, 20 possibilitar a reflexão em torno de novas possibilidades epistemológicas para as práticas educativas e escolares. Em decorrência , são propostos os seguintes objetivos específicos: - Analisar os pressupostos da Esquizoanálise e sua interligação com os processos educativos escolares e não escolares; - Descrever historicamente as diferentes produções subjetivas resultantes das práticas sócio-educativas com destaque para mundo moderno e contemporâneo; - Analisar o perfil subjetivo contemporâneo e suas demandas para educação escolar e não escolar e as contribuições da Esquizoanálise para que principalmente a escola responda a essas necessidades; - Verificar a pertinência das proposições da Esquizoanálise para as práticas educativas das instituições escolares e não escolares. Em um sentido geral, é objetivo deste trabalho ainda, através da Esquizoanálise, contribuir para uma problematização dos modos de educação contemporânea e decorrente produção subjetiva, estabelecendo uma fronteira clara entre os modos de educação para potência e algumas práticas pedagógicas fundadas na moral, na educação para a obediência a um sistema de representações e na reprodução e memorização de fórmulas/formas de verdade. 1. SUBJETIVIDADE, TRABALHO E ESCOLA A subjetividade assumiu diversas formas ao longo das formações sociais históricas recentes na tradição ocidental. Como retrocitado, podemos dizer que já existiu um sujeito político na sociedade grega, um sujeito guerreiro/jurídico em Roma, um sujeito religioso no período medieval, um sujeito trabalhador na sociedade industrial e no mundo contemporâneo um sujeito consumidor. Deve-se falar em modos de produção de subjetividade, pois a subjetividade se define a partir de diferentes contextos históricos e sociais, não existindo uma subjetividade homogênea que perpassa as formações sociais que existiram até o mundo contemporâneo. A partir desde entendimento autores diversos tentam compreender como se dá e se define esse processo de subjetivação. 1.1 O CONCEITO DE SUBJETIVIDADE Na idade moderna houve a criação de uma esfera privada de existência, com a difusão de práticas disciplinares, a intimização das relações pessoais, o surgimento de instituições voltadas para o controle de indivíduos, o surgimento de uma leitura romântica mergulhada nos conflitos íntimos de seus personagens, valorização da infância, constituem alguns dos fenômenos que no nível da subjetividade testemunham o formidável processo de construção histórica do indivíduo moderno. Na tradição da psicologia ocidental o sujeito é colocado como objeto para um discurso científico socialmente autorizado a enunciar verdades a respeito de instâncias psicológicas que compõem este sujeito: o psiquismo, a cognição, a mente, a consciência, a identidade, mas também, as percepções, as interpretações, 22 e certa dimensão intrapsíquica, das emoções, do desejo, do inconsciente - o reino da subjetividade. Implica, portanto, enunciar o psicológico objetivando tais instâncias: construindo-as como "realidades psíquicas", universalizando-as, substancializando-as e naturalizando-as, ancorando-as nas objetividades do corpo e da natureza, bem ao estilo do modelo de ciência da época. Produziu-se uma naturalização do sujeito, sem a preocupação de colocar em questão a sua produção histórica em jogos de verdade, tomando-as como figuras de um discurso/prática especializado não apenas no conhecimento como também em intervenções sobre o psicológico. Em seu livro "a invenção do psicológico", Figueiredo (1994, p. 39) trata da produção histórica desta dimensão de existência subjetiva ligada aos jogos do conhecimento moderno, que designa um campo de experiências do sujeito, apontando que antes do nascimento das psicologias a experiência psicológica não existia, bem como não existiam a própria materialidade da substância psíquica, a existência psicológica e a percepção de si mesmo como ente subjetivo, que dão forma ao campo de experiências do sujeito moderno, compondo sensações de privacidade e intimidade que ele vivencia como reais e naturais. Então, tanto subjetividade quanto interioridade são produções históricas. Michel Foucault na obra “Vigiar e punir” considera que, assim como o cristianismo inventou a interioridade, a modernidade inventou a subjetividade - essa é a relação entre estas duas figuras do discurso: a noção de interioridade é anterior a de subjetividade, indicando que o moderno conceito de subjetividade apóia-se arqueologicamente na idéia cristã de interioridade encontrando-se, por isso mesmo, totalmente contaminado por esta concepção, este enunciado. Se os ocidentais cristãos se percebem como seres subjetivos e interiorizados é porque se encontram presos a estes dois enunciados que nascem nessa cultura em diferentes momentos e contextos, mas que são colados posteriormente, universalizando-se como natureza humana. Esse é, de certa forma, o trajeto da formação de uma tecnologia confessional no ocidente, por ele percorrido da hermenêutica de si à hermenêutica do desejo, que é constitutivo do sujeito moderno: meio racional, meio cristão; meio sujeito da razão, meio sujeito da culpa. 23 Assim como subjetividade não é sinônimo de interioridade, também não designa necessariamente um conjunto de capacidades, qualidades, sensibilidades, atitudes, reações inerentes a um sujeito tomado como unidade auto-centrada, autônoma e consciente. Traçando uma genealogia do sujeito paralelamente a esta arqueologia da subjetividade percebe-se que é apenas na passagem do século XVII ao XVIII que o sujeito torna-se "indivíduo", e é apenas no final do XIX que este indivíduo ganha uma subjetividade. Não há, portanto, simetria entre sujeito e subjetividade, não existe naturalmente esta unidade e esta fidelidade a si mesmo, esta relação, esta colagem das características subjetivas em um sujeito, esta individualização da subjetividade, é resultado dos jogos de normalização e de marcação da identidade, característicos das sociedades ocidentais modernas. A subjetividade se produz na relação das forças que atravessam o sujeito, no movimento, no ponto de encontro das práticas de objetivação pelo saber/poder com os modos de subjetivação: formas de reconhecimento de si mesmo como sujeito da norma, de um preceito. Equivale dizer que não é suficiente a objetivação pelo discurso psiquiátrico e pelo jogo da norma para produzir, por exemplo, um louco, mas é necessário ainda que este vá ao encontro da marcação, que ele se reconheça no diagnóstico como sujeito da loucura e o reproduza em si mesmo, subjetivando-se como louco. A resistência aos modos de objetivação e de subjetivação acaba desempenhando importante papel nestes jogos de identificação e reconhecimento de si. Essa diversidade dos sujeitos implica uma multiplicidade de formas de existência, modos históricos de ser: formas de subjetividade; e para além dessas decorrências em termos de saber/poder deve-se lembrar que numa sociedade capitalista estéticas de subjetividade, fetichizadas, investidas de valor, transformam- se em mercadorias a serem consumidas pelos "indivíduos". Isso reforça a questão das "etiquetas" a serem coladas - a bricolagem no sentido original, francês, de etiquetas a partir das quais construímos uma subjetividade-mosaico num arranjo desconexo. Elas ganham lógica no nosso corpo e, por vezes, de maneira bastante incoerente, resultando numa imprevisibilidade do sujeito Os indivíduos tornam-se resultado de uma produção de massa, muito embora também influencie e modifique as forças que o compõe. O indivíduo é serializado, registrado, modelado. Uma coisa é a individuação do corpo, outra é a 24 multiplicidade dos agenciamentos da subjetivação: a subjetividade é essencialmente fabricada e modelada no registro do social. Esse é um dos principais problemas do controle social moderno: como lidar com pessoas que não são regulares e previsíveis, sem uma lógica a ser capturada pelo poder? O poder vive dessa falsa unidade que o jogo das identidades constrói, o que remete à moderna política das identidades que mantém os indivíduos presos ao poder. A questão política do estado contemporâneo não é apenas manter a ordem social do todo, mas também governar cada um, visto que não há ordem social na sociedade como um todo se cada um dos indivíduos não se submeter ao poder. As técnicas macropolíticas do estado são conhecidas: a lei, a moral e os grandes conjuntos reguladores. No entanto, quais são as estratégias políticas do estado em relação aos indivíduos? Elas compõem a moderna política das identidades através da qual o estado governa cada um de nós, que é decorrente da matriz do poder pastoral, a partir do qual um pastor conduz cada ovelha do rebanho de forma individualizada. As máquinas tecnológicas de informação e de comunicação operam no núcleo da subjetividade humana, não apenas no seio das suas memórias, da sua inteligência, mas também da sua sensibilidade, dos seus afetos, dos seus fantasmas inconscientes. Para a Esquizoanálise, os processos de subjetivação são as diversas maneiras pelas quais os indivíduos e as coletividades se constituem como sujeito e só valem na medida em que, quando acontecem, escapam tanto aos saberes constituídos como aos poderes dominantes. Guattari (1992, p.19) entende que a subjetividade: É o conjunto das condições que torna possível que instâncias individuais e/ou coletivas estejam em posição de emergir como território existencial auto-referencial, em adjacência ou em relação de delimitação com uma alteridade ela mesma subjetiva. A subjetividade é o conjunto das condições que possibilita a emergência de territórios existenciais auto-referenciais, plurais e polifônica, diferenciando indivíduo 25 e subjetividade. A subjetividade é produzida no registro social, mas é vivenciada singularmente, havendo desta forma uma conexão direta entre as grandes máquinas de controle social e as instâncias psíquicas que definem a maneira de perceber o mundo, se preocupando por isso com processos de singularização através de processos de diferenciação que oferecem resistência aos modelos padronizados da subjetividade capitalística. A seguir, se faz uma breve exposição, a partir de Foucault, da produção da subjetividade em duas importantes e interligadas instituições modernas: a escola e o trabalho. 1.2 A PRODUÇÃO DA SUBJETIVIDADE NO TRABALHO A origem vocabular da palavra trabalho induz também a uma conotação depreciativa: deriva de “Tripaliare = Tripalium” que era um instrumento de tortura usado em condenados e também para manter presos animais difíceis de ferrar, tal qual mantém hoje também presos durante horas a fio o homem no trabalho, seja este industrial ou burocrático, tendo o homem sido reduzido quase à condição de coisa, de uma peça da produção, como meros “recursos”, recursos humanos mesmo sendo considerado paradoxalmente de forma tão desumana: dentro das organizações, regra geral, ele não pode se expressar, dar idéias, sugerir, pensar, ... só executar e... obedecer ..., pois conforme Clastres (1978, p. 61): Até porque falar é antes de tudo deter o poder de falar. Ou, ainda, o exercício de poder assegura o domínio da palavra: só os senhores podem falar. Quando aos súditos, estão submetidos ao silêncio do respeito, da veneração ou do terror. Palavra e poder mantém relacionamentos tais que o desejo de um se realiza na conquista do outro. Príncipe, déspota ou chefe de Estado, o homem do poder é sempre não somente o homem que fala, mas a única fonte de palavra legítima: palavra empobrecida, palavra certamente pobre, mas rica em eficiência, pois ela se chama ordem e não deseja senão a obediência do executante. 26 Mesmo com a crescente informatização da atividade industrial e a concentração de boa parte dos trabalhadores no setor burocrático e de serviços, os mesmos continuam sendo submetidos ainda aos efeitos agora não mais das condições de trabalho (luminosidade, atividades insalubres, etc) mas da organização do mesmo sobremaneira no aspecto das relações hierárquicas que impõe uma relação autoritária e de submissão onde a fala e a expressão humana lhe é negada e, ao nível das tarefas, que por vezes enfadonhas afetam diretamente a satisfação e a motivação no trabalho (BETIOL, 1994, p.35). Na Grécia, o trabalho é desvalorizado por ser uma atividade delegada somente aos escravos. Para Platão a finalidade do homem livre é a contemplação das idéias. Dessa forma, para o amigo do conhecimento, o trabalho manual e operacional não é uma tarefa adequada e sim, a busca e aproximação das idéias perfeitas e verdadeiras. A palavra latina “Negotium” (Negação do Ócio) corrobora mais ainda na cultura Romana à atividade contemplativa como uma prerrogativa dos homens livres. Assim, o trabalho é a ausência do lazer, do ócio, da ruminação, direitos daqueles que são cidadãos, em contraste com a triste realidade daqueles que tem que se entregar a atividades não contemplativas. Na Idade Média, São Tomás de Aquino tenta de forma tímida reabilitar um certo sentido virtuoso ao trabalho manual, dizendo que todos os trabalhos se equivalem, contudo a sua influência grega o leva na prática, a valorizar a atividade contemplativa, até porque a maioria dos textos medievais consideram a “Ars Mechanica” uma “Ars inferior ”. Na história do trabalho, poucos foram os movimentos que tentaram dar uma certa positividade ao mesmo e , quando o fizeram, estiveram atrelados à práticas de saber e poder determinados. Dessa forma, no início da economia capitalista um certo saber religioso, ligados ao movimento da Contra reforma, se aliaram a determinadas estruturas de poder, vinculadas ao nascimento da burguesia, para resignificar o trabalho como uma prática virtuosa. Os burgueses vindo dos segmentos dos antigos servos, só puderam começar a comprar a sua liberdade, graças ao seu interesse pela tão desprezada “Artes Mecânicas”. 27 Dessa forma, o trabalho longe de representar para eles a escravidão era um instrumento espetacular e eficiente de conquista da liberdade.(CHANLAT, J.F., 1993, pp. 21-45). Pelo exposto, verificamos como múltiplos solos epistêmicos produziram diferenciados sentidos para o trabalho humano, tendo o mesmo variado de práticas caracterizadas como própria do escravo para um instrumento de conquista de liberdade . Nesse contexto, pode-se verificar que os acontecimentos dramáticos que se observam universalmente hoje como a deterioração física, psíquica e cultural de grande parte da humanidade, da onda de violência que tanto assola os grandes e, agora também, os pequenos centros urbanos, e as já citadas ameaças que planam sobre o equilíbrio ecológico do globo, as descobertas genéticas e suas conseqüências no campo ético, a virtualização da economia e a confusão que toma conta dos valores morais, exigem uma questionamento do modelo economicista e técnico que costuma ser colocados como essencial para o funcionamento das empresas, pois o mesmo tem um alcance infinitamente pequeno diante das singularidades que permeiam a subjetividade das pessoas que estão no interior das organizações, mas também inseridos nesse confuso mundo, por ser extremamente reducionista e simplista na análise do sujeito no interior das organizações. Novos solos epistêmicos estão emergindo e velhas práticas enferrujadas continuam querendo se afirmar o tempo inteiro como modelos explicativos inquestionáveis, considerando deter ainda um certo poder mágico de “governos dos homens” cuja prática se encontra subordinada a uma certa gestão de negócios. Nesse contexto, torna-se fundamental resignificar o sentido do humano nas organizações, reintroduzir as pessoas no lugar que lhes pertence no universo do trabalho, na sua condição de ser humano complexo. Longe de uma postura unilateral, inflexiva e racional da abordagem corrente nas organizações, deve-se reconsiderar o ser humano dentro das mesmas como uma unidade pluridimensional, como um ser simbólico, vinculado a um quadro sócio-histórico, a um solo epistêmico específico e atualmente tão confuso, que mais importante do que se produzir sobre os mesmos um certo governo, devemos estimular que se constitua para todos os sujeitos organizacionais condições para a emergência de um governo de si para que cada um em sua singularidade possa no interior das organizações serem 28 subjetividades que são compreendidas em toda a sua complexidade e diferença, para assim até “produzirem” mais com criatividade e com toda a sua potencialidade. Assim, parece nos dizer Foucault... Sem entendimento das complexidades humanas, corremos o risco de estar cantando uma “velha canção” dentro das organizações. E, ademais que cada um com seu cajado seja pastor de si mesmo. O homem moderno foi pensado como objeto de saber das ciências humanas, a partir de transformações históricas, sociais e culturais, já que no final do século XVIII surge a biologia, que produz o conceito de vida e de evolução, onde o homem aparece como ser vivente; surge a economia política, que produz o conceito de trabalho, que permite ver o ser humano como ser que produz; surge a filologia, com o conceito de linguagem, e o homem é visto como o ser que fala. O sujeito também é constituído por práticas disciplinares, das quais surge um tipo de saber “organizado” em torno da norma que possibilita controlar os indivíduos ao longo de sua existência. Essa norma é a base do poder-saber, que abre as portas para a ciência de observação, afim de buscar a verdade, essa ciência é as ciências humanas: psicologia, psiquiatria e sociologia. O poder de tipo disciplinar sujeita o indivíduo, e, ao mesmo tempo, o objetiva, disso surge a procura para a normalidade e à sanidade. Há ainda para Foucault as práticas que constituem a subjetividade, provenientes da confissão cristã, que se difundiram e se modernizaram, e se tornaram práticas modernas como o faz a psicanálise extrair a verdade de si que é uma forma de saber sobre o sexo, e essa vontade de saber sobre o sexo, formou a ciência da sexualidade. Em nossa época qualquer formulação de verdade deve passar pelo filtro da verdade científica. A verdade é, na realidade, uma interpretação dada em certa época tendo as suas devidas adaptações conforme cada necessidade. O exercício do poder gera objetos de saber, levando a institucionalizar o saber, acumulando informações e fazendo-as circular. O poder funciona através do discurso, principalmente aqueles que produzem verdade, ou seja, a verdade é fruto de várias restrições que nós mesmos fazemos, não sendo possível sem o poder. O discurso, nesse caso, é a forma de circular a verdade. Sendo dos vários tipos, o mais poderoso, o discurso científico, pelo qual a verdade é difundida e mais aceita dentro da nossa sociedade. 29 O poder penetra e age nas instituições, nas desigualdades econômicas, na linguagem e no corpo. Foucault, em Vigiar e Punir (1975) mostra a norma, as regras, a vigilância, a punição que sujeitam e controlam os indivíduos, tornando-se peças de uma máquina que é a sociedade. Nessa sociedade disciplinar, a vigilância e a punição produzem corpos capazes e dóceis em relação ao seguimento da mesma. O capitalismo demanda sistemas de poder político com produção intensa, pessoas capacitadas e divisão da especialização do trabalho. Os indivíduos são considerados em função de sua “normalidade”, um dos mais importantes instrumentos de poder da sociedade contemporânea. A disciplina é antiga, começou há muito tempo nos colégios medievais. Expandiu-se para as escolas elementares, hospitais e fábricas. Na escola, facilitou a generalização da alfabetização, a localização espacial das carteiras, permitindo individualizar e classificar. A disciplina é própria para desenvolver aptidões, mas também é essencial para gerar a população, tornando-a governável (FOUCAULT, 1975). Os regulamentos, a inspeção, o controle, a classificação demandam saberes criados a partir de registros, descrições. Usar o ser humano, alguém como objeto da ciência resulta numa forma mais eficaz e econômica de controlar, e, provavelmente, seja desse pensamento que tenha surgido as ciências humanas e que tenha também surgido o homem moderno. Encontra o estranho, o diferente e afastá-lo do normal, marcá-lo como diferente não produz apenas o preconceito, produz também o indivíduo da sociedade disciplinar. Controlar o tempo e programá-lo em fases gera economia e prontidão, evitam desperdício. Esse controle sempre foi feito por vigília e punição. Atualmente tais vigilâncias são feitas por câmeras que vigiam prédios, ruas, estabelecimentos comerciais e até mesmo escolas. Atualmente, os impactos do processo de globalização, do tecnicismo, do maremoto virtual e da revolução da informática na constituição da subjetividade do trabalhador, ou seja, na forma como ele vê o mundo, nos valores que elege, nos medos que surgem para ele, dentre outras questões, se colocam hoje como um grande desafio para o mundo do trabalho. 30 Não para aqueles para quem o imaginário organizacional opera com fórmulas mágicas, com frases feitas e com saídas miraculosas de palestrantes mágicos. Mas, sim, para os que querem encarar de frente a imensa complexidade do mundo organizacional onde mais que paredes , mesas, documentos e máquinas estão pessoas com conteúdos simbólicos diferenciados, que amam, odeiam, sentem inveja, medo, disputam posições de poder, seduzem e são seduzidos ... Enfim, onde o homem é “humano, demasiadamente humano”. Para esse desafio, as contribuições de Michel Foucault (1975) conforme retrodescrito se tornou referência obrigatória para a compreensão e análise epistemológica do surgimento das ciências humanas no cenário científico e também como uma forma peculiar de entender o processo de constituição da subjetividade, é sem dúvida para os “arqueólogos” do mundo do trabalho um instrumental fundamental para a tarefa de compreensão das relações que ocorrem no ambiente organizacional. Dessa forma, é de fundamental importância entender, sobremaneira, a análise do processo de constituição da subjetividade moderna tendo em vista o objetivo de compreender a multiplicidade de fenômenos humanos que ocorrem dentro das organizações. Sabemos que a forma como o trabalho está organizada na maioria das atividades laborais modernas no ocidente, implica que as pessoas passem a maior parte de seu tempo no interior das organizações. Muitas vezes, o período em que ele vai para a sua casa é somente o tempo suficiente para repor suas energias físicas para, a seguir, retornar à sua rotina de trabalho. Embora as condições de trabalho tenham melhorado bastante desde o início do capitalismo industrial, sobretudo no aspecto das condições de trabalho, como de iluminação, condições insalubres e periculosas, a realidade do trabalhador continua a mesma: ele ainda não é dono dos meios de produção, seu trabalho continua sendo alienado e ele continua apartado do produto de seu labor, vivendo basicamente a maior parte de seu tempo nas organizações em que desenvolve o seu trabalho. Contudo, as organizações do trabalho, que não são paredes e nem um conjunto de máquinas, possuem cada uma peculiaridades, idiossincrasias e singularidades que as distinguem entre si, tal qual as pessoas que as constituem se diferenciam entre elas, embora a abordagem clássica (TAYLORISMO, Escola das Relações Humanas, O&M, só para citar algumas) das organizações insistam, regra 31 geral, em tratá-las como “basicamente semelhantes” e, em conseqüência, adotam procedimentos homogêneos para realidades essencialmente diferenciadas. Ao contrário, as organizações são na verdade não uma soma de prédios e maquinários, mas um conjunto de sujeitos e subjetividades. A questão da globalização e seus correlatos como o tecnicismo, o enfraquecimento dos estados nacionais, o uso das redes virtuais (infovias, estradas virtuais) dentre outros fatores, por não terem ainda uma configuração completamente definida de seus efeitos e conseqüências , deixa atônitos patrões e empregados, as vezes de forma explícita e de outras vezes de forma invisível e quase imperceptíveis tendo em vista a produção de alguns efeitos práticos no cotidiano do trabalho como a crescente informatização, as novas tecnologias , a competição agora globalizada, a crise dos empregos que são apenas alguns dos efeitos dentre muitos da globalização. A forma como cada um dos agentes organizacionais (dirigentes e subordinados) respondem a essa realidade é completamente heterogênea num primeiro nível pela diferencial de posição de poder e ademais pela própria complexidade da história pessoal dos mesmos. Contudo, por estarem em posição privilegiada de mando e controle nas organizações e, em nome da busca de uma excelência agora com exigências globais, os dirigentes muitas vezes por desespero estão não raro se apegando a qualquer modismo que supostamente coloque a sua organização em consonância com as novas exigências de mercado e, em geral, querem impor inúmeros novos comportamentos aos membros de sua organização derivados “do modismo da vez” , buscando com isso produzir idealmente uma uniformidade de resposta atitudinal de seus subordinados. Em conseqüência, o que se observa são trabalhadores se submetendo por medo ou coação a comportamentos na maioria das vezes impostos: “ Bom dia Senhor ... Muito obrigado ... Nós estamos aqui para lhe servir... O cliente é o nosso maior aliado ... A qualidade deve ser buscada por todos nós ... Sem qualificação nossa empresa não vencerá os desafios ...” Por meio desses comportamentos impostos, acreditam os dirigentes estarem produzindo sujeitos da era global , como se o processo de constituição da subjetividade fosse a mera repetição de palavras mecânicas e, uso de roupas engomadas ou o esboço de um sorriso mecânico. Tal equívoco leva a atitudes estereotipadas e formais que em última instância não melhora a excelência da qualidade e da produtividade nas 32 empresas por terem um caráter meramente formal e superficial. Foucault (1975) nos ensina que não é bem assim... A investigação que Foucault desenvolve em torno da questão da emergência da subjetividade se vincula não a estruturas cognoscitivas e a estruturas lógicas (PIAGET, 1967), ou a uma perspectiva psicanalítica que se fulcra na questão do simbólico, da linguagem e à cultura (FREUD, 1974) e nem a uma tradição marxista, sobremaneira nos trabalhos de Althusser (apud JAPIASSÚ; MARCONDES, 1996), que se conecta para falar do sujeito ao campo do social e aos movimentos de repressão e ideológicos. Ressalva-se, contudo em Althusser a sua preocupação com a produção do conhecimento, diferenciando-se assim da tradição humanista e Leninista do Marxismo que privilegia as superestruturas em sua abordagem do fenômeno social. Longe de se orientar por essas “trilhas batidas”, Foucault (1975) ao contrário, começa a trabalhar a noção de solo epistêmico, que inicialmente pode ser identificada a uma prática geológica no sentido de que solo epistêmico é uma mudança de território. Podemos dizer, por exemplo, que o solo epistêmico da modernidade em relação a subjetividade está ligado às perspectivas de Piaget, Freud e a uma certa tradição marxista, dentre outros pensadores. Contudo, em outros contextos históricos, como por exemplo na idade média, o solo epistêmico da subjetividade era outro, ou seja ocupava outro território, como por exemplo o da transcendência religiosa. Dessa forma, o solo epistêmico para Foucault pode ser caracterizado como uma intrigada rede de significados, conceitos e valores de uma determinada época nas diversas manifestações sociais, tais como na filosofia, na política, economia, na arte, na ciência e na literatura. A noção de sujeito típica da tradição racional do pensamento moderno por ter um solo epistêmico específico que o constitui passa a ter para Foucault não um caráter natural e eterno, mas sim o de uma produção social histórica cujas origens podem ser encontradas e delimitadas, portanto, com uma datação de sua origem. Há em sua obra uma desnaturalização da noção de sujeito e a compreensão de que o mesmo é um produto de solos epistêmicos específicos. Para realizar esta tarefa de desnaturalização de determinadas idéias como a da subjetividade, Foucault (1975) desenvolve um método original de compreensão das idéias, empreendendo uma verdadeira arqueologia do saber no sentido de 33 realizar uma série de análises discursivas tomando os discursos em um sentido prévio a qualquer categorização, estabelecendo relações não tematizadas visando examinar exatamente como as diversas categorizações de um campo histórico (ou solo epistêmico) se constituem, ou seja, como surgem os campos discursivos em uma determinada época. Realiza também e de forma brilhante, principalmente, em sua obra Vigiar e Punir (1975) uma análise histórica de como o poder pode ser tomado como produção de sentidos e saberes ao analisar a história da violência nas prisões, a emergência das práticas médicas e pedagógicas como um discurso científico sobre o homem. Dessa forma, os discursos são vistos a partir das condições políticas que os tornam possíveis em uma determinada época. Foucault passa a estudar diferentes solos epistêmicos buscando compreender o problema do sujeito, ele investiga a questão do sujeito na Grécia e em campos sociais mais antigos como o Egito e dos hebreus. Isto, sem nenhum pressuposto de estrutura inata, na perspectiva de Chomsky, ou também de organizações lógicas no sentido Piagetiano, ou seja, a sua premissa é a diversidade histórica, o que implica, pelo menos, que a história tem movimentos que sinalizam que o sujeito não tem estruturas absolutas e nem que podem ser mudadas por um desejo do “patrão” ou da moda administrativa do momento como a abordagem clássica em administração parece pressupor. Nessa linha de investigação, Foucault começa a investigar o campo político, sendo levado dessa forma a estudar o Estado para entender o sujeito. Assim, ele começa a estudar o sujeito e acaba tendo que estudar o Estado para entender o sujeito. Ele percebe, por exemplo, que a Grécia é um estado preocupado também com a terra, no sentido que uma das grandes questões do Estado grego é o da administração da terra. Nesse movimento, ele retorna ao Egito e tem uma surpresa ao verificar que os faraós usam o cajado, instrumento do pastor para “conduzir suas ovelhas”, significando que lá o governo que vigora não é só o da terra já acontecendo lá algo que aparece como um governo dos homens. Daí ele começa a verificar como funciona a administração de um pastor de ovelhas. Compreende que a principal preocupação de um pastor de ovelhas é que ele tem de INDIVIDUAR o seu rebanho. Individuar, nada mais é do que o pastor ter que conhecer indivíduo por indivíduo de seu rebanho. 34 É corrente a frase no meio cristão que “o bom pastor conhece as suas ovelhas”. Isso é uma qualidade primordial para um pastor, pois é por meio dessa prática que ele terá que dar uma identidade e um conjunto de características a cada uma de suas ovelhas. Então, o pastor individualiza, atribui identidade e características a cada ovelha de seu rebanho. A partir daí, e continuando sua análise do campo político, Foucault observa a fuga de Moisés do Egito e constata uma questão fantástica: é que os judeus não têm terra, então o tipo de poder político que vai nascer entre os Judeus não é a administração da terra, mas é a administração de homens. Esta perspectiva de análise de Foucault é espetacular pois, permite detectar muitas facetas por vezes desconsideradas pela historiografia tradicional, por serem apenas pequenos detalhes, mas que contudo se revelam de importância capital , como no exemplo acima, para compreensão dos fenômenos sócio-históricos. Notamos aqui uma tentativa de administração da alma humana pelos judeus, ou seja, existe um viés religioso, ou de tentativa de estabelecimento de uma religiosidade dentro da “alma”. Na modernidade, o que observamos é um processo de laicização da subjetividade humana deslocando o território discursivo para a construção de uma interioridade através de fichas, cadastros, nome, endereço, cargo, função, que venham a vincular ao subjetivo nesse momento não a necessidade de uma ordem religiosa mas à demandas oriundas de uma economia de mercado cada vez mais tecnologizadas. Ademais, a pós modernidade, está aos poucos se esboçando através de fenômenos como a engenharia genética, as relações virtuais, o esgotamento das biodiversidades e o fortalecimento dos movimentos ecológicos, a crise do trabalho na forma capitalista do emprego e tanto outros fatores, dos quais a globalização é apenas um deles, todos amalgamados em uma teia que não sabemos bem ainda em que conformação irá se esboçar, ou até se terá uma conformação final. Retornando a Vigiar e Punir, Foucault realiza uma profunda análise do processo de liberação epistemológica da medicina, observando todo um processo de categorização da clientela médica, da invenção de uma classificação nosográfica dos diversos tipos de doença chegando à especificidade de colocação de uma ficha 35 individual aos pés do leito de cada doente para identificar com clareza o tipo de enfermidade que o acomete. O médico se torna cada vez a principal autoridade dentro do hospitais substituindo assim as antigas congregações religiosas na administração dos moribundos e párias, que com a técnica clínica se transformam agora em doentes , fazendo assim a medicina emergir como ciência que detém o conhecimento de sua cura. O que está em jogo é um modelo de esquadriamento visando separar corpos dóceis, sadios, disciplinados e hábeis ao processo produtivo daqueles acometidos de qualquer incapacidade produtiva., ou seja, a busca da constituição de um modelo pestífero de sociedade. Este modelo médico serve de protótipo para a separação também no corpo social de delinqüentes, loucos, bêbados, alcoólatras e despreparados em geral para a tarefa da produção. Foucault empreende também a busca da compreensão de como se deu a liberação epistemológica da pedagogia, observa todo um esforço da escola em comparar e medir cada um dos alunos entre eles mesmos e com o coletivo da classe escolar. Este esquadriamento está visando medir para depois analisar e outorgar um carimbo de normal e produtivo somente àqueles que conseguirem não vadiar, não se distrair e se indisciplinar, isto é, somente àqueles que provarem estar extremamente domesticados para a produção e a obediência. Dessa forma, o exame passa a ser na escola uma verdadeira troca de saberes, pois o aluno passa a constituir um campo de observação (se aprende, como aprende, se tem postura, se é distraído, etc.) para o professor que mede e classifica o seu desempenho na compreensão do ditado e na execução de todas as demais rotinas escolares. O aluno passa a emitir assim um saber para o professor, pois o aluno deve apreender também um saber que emana do professor. Se constitui assim uma inserção da pedagogia no cenário oficial científico através da constituição do que passou a ser chamado de um saber pedagógico, fruto dessa relação. Observamos aqui, como no caso do saber médico acima descrito, o quanto o exame na escola supõe um mecanismo que liga certo tipo de formação de saber a uma certa tecnologia de exercício de poder. Os eventos que atravessaram separadamente espaços como a escola, a fábrica, o presídio e o saber médico, aparentemente tão diferentes, possuem para Foucault uma mesma matriz de constituição: selecionar, catalogar, dividir em partes, estabelecer métodos de jogos de perguntas e respostas, de classificação e de notas, 36 possibilitando assim a identificação de cada indivíduo, que mal o acomete, o quanto ele consegue aprender e qual é a sua capacidade individual produtiva dentro da fábrica, tal qual o pastor faz com as suas ovelhas. Conhecer para individuar, individuar para controlar. A biografia, que no passado era um privilégio dos nobres, soldados e heróis é agora uma necessidade social para o conhecimento detalhado das capacidades de cada indivíduo. Como vemos, a isto podemos chamar de constituição de subjetividade, que no ocidente se tornou mais eficaz a partir da emergência da sociedade industrial capitalista. Através de sua análise, Foucault verifica que a constituição de uma subjetividade nada tem de eterno e natural mas é constituída a partir de práticas discursivas de saber e de poder em uma determinada formação social. Na atualidade podemos verificar como as mudanças que ocorreram nos séculos XVIII – XIX desenharam uma maneira inteiramente peculiar de administrar os corpos e maximizar a produção. De certa forma, as técnicas produzidas de esquadrinhamento e de disciplina dos corpos operam no cotidiano das pessoas quase que de forma invisível. Na escola a reprodução de conteúdos substituindo a reflexão sobre eles é uma prática comum e através dos mesmos são repassados significantes ideológicos que são absorvidos muitas vezes de forma inadvertida. A economia de mercado e a prática consumista desenfreada formam um círculo vicioso que visam modelar um comportamento coletivo padrão através de mecanismos reprodutores de saberes e poderes em todos os recantos sociais. Dessa forma, o poder do Estado é referendado na família pela autoridade dos pais, na escola pelo autoridade do professor, no hospital pela do médico, ... Imagine-se essa situação no interior das organizações ... Muitas vezes, e aprofundando o poder de sua penetração, até o irmão mais velho acha ter mais autoridade que o mais novo... O poder se aliou ao saber para produzir um sujeito útil, acrítico e principalmente produtivo. A novela das oito, o sorteio da mega-sena acumulada ou os domingões televisivos se transformam em verdadeiras euforias coletivas nacionais, máquinas do capital, para a produção dos desejos coletivos disfarçados de individuais. O sexo ficou internado na relação conjugal através do saber psicanalítico que dita o que é 37 certo e o que é errado, o doente no hospital, através do saber médico, a criança na escola, o louco no asilo, ou seja, temos uma sociedade internada nas diversas especialidades do saber. A compreensão através da história dos sentidos do trabalho humano também sofreu e sofre uma série de variações históricas que devem ser compreendidas como movimentos, reflexos de solos epistêmicos diferenciados e não através de soluções mágicas e adaptações forçadas dos magos administrativos de plantão, como no caso de muitos processos de implantação de qualidade total e de Reengenharia empresarial. Na tradição Judaico-cristã, ainda nos livros do antigo testamento, o trabalho já sofre uma conotação negativa quando após cometerem o pecado original, Adão e Eva são condenados a viver do “suor de seus rostos” pela falta cometida. Como se viver no paraíso, é viver sem o pesado fardo das atividades laborais. Desconsiderando o quanto o trabalho foi importante para o domínio da natureza e a afirmação do homem sobre ela. Não é por acaso que Prometeu se arriscou tanto para levar o fogo do Olimpo para os homens: com o fogo pode-se produzir instrumentos de metal para caçar, para arar a terra e armas para a defesa. 1.3 A PRODUÇÃO DA SUBJETIVIDADE NA ESCOLA Durante o séc. XVIII surgiram as tecnologias de produção de subjetividade, pois fábricas, escolas e regimes militares se tornaram instituições produtoras de subjetividade e de normatização do sujeito. Foucault por não se preocupar com as macro-estruturas de poder, dá ênfase nas micro-relações de poder dentro das instituições, e desvela que as mesmas são, amiúde, responsáveis pela promoção da internalização de modelos subjetivos padrões necessários ao capital, onde os agentes de poder poderiam ser os pais, os professores, os médicos, psicólogos e etc. E, em decorrência dessas práticas, também surgem os mecanismos de exclusão daqueles que são classificados como diferentes dos demais. Foi preciso sempre “patologizar e psicologizar” , classificando os que seguem as normas como normal e de anormal aqueles que nela não se encaixam. Em decorrência, a norma sempre esteve presente em nosso cotidiano, sobremaneira dentro do espaço escolar, no modo que a escola muitas vez estimula um determinado modo subjetivo de 38 funcionamento, a saber, um sujeito disciplinado em excesso, obediente e conformado, em detrimento do estímulo à produção da diferença, do estímulo à criatividade e a invenção. Foucault desmembra o pensamento de que moral e ética são a mesma coisa e propõe pensar na ética como a relação do indivíduo consigo mesmo, sem serem guiados por regras externas e dando habilidades para que o indivíduo possa se transformar de acordo com situações e pessoas diferentes. Ao contrario, a moral seria as regras e valores impostos por instituições como igreja, família e escola. Essas regras servem para padronizar o comportamento e acabam por fazer os submetidos a tais regras a escolherem se vão ou não segui-las. A ética dá a possibilidade da pessoa se modificar e chegar a sua verdade, o dizer verdadeiro ligado a pratica de si. O individuo que defende suas praticas, tem uma atitude de coragem e a busca pela beleza da vida.O saber sobre si não se dá sozinho. Ele acontece em todo um contexto de técnicas do social como as capitalistas e a dos signos que proporcionam a comunicação, elas que ajudam a formar e dirigir a conduta das pessoas. Mas de acordo com Foucault, regra de conduta é diferente do que pode ser a conduta levada diante essa regra, ou seja, como a pessoa irá agir diante dela, se será um sujeito de acordo com as regras morais. Dessa forma ele chega à conclusão de que a moral estará sempre ligada a subjetividade do individuo, pois a ação virá do mesmo e sua pratica de si, independente da regra. A ética é a que está ligada à subjetivação e as praticas de si que revelam que mesmo em contextos e com finalidades diferenciadas a moral exige uma relação do individuo consigo mesmo para que ele se constitua como um sujeito moral. O conceito de cuidado de si envolve os cuidados que o homem toma física e mentalmente e também relacionados com o social. O conhecimento tem grande valia nesses momentos, em que o objetivo é chegar a uma soberania de si, como propõe a cultura grega, poder ser independente de coisas que não são essenciais. Este conceito foi modificado na Antiguidade pelo preceito do “conhece-te a ti mesmo” de Sócrates, onde a verdade estaria limitada ao conhecimento do sujeito, situando-se no plano da consciência. Assim o cuidado de si perdeu sua força, embora tenha sido muito utilizado na Antiguidade. Ao fazer esta analise, Foucault tenta mostrar a nós que estamos sujeitos a pensamentos já pensados e subjetividades elaboradas pelas instituições, principalmente as educacionais, que podemos sim escapar de padrões 39 determinados se tivermos coragem de elaborar nossa própria verdade e subjetividade, pois, “as pessoas são muito mais livres do que pensam” Foucault. Foucault também descreve as relações dos sujeitos objetivados e sujeitados, caracterizando uma sociedade normativa e homogênea, onde há a marginalização dos diferentes, analisando os casos onde há espaço disciplinar, como a escola, a medicina, indústrias e prisões. No caso da escola há, em termos, estruturais, crianças alinhadas em sala de aula para frente ao professor, homogêneas. Os alunos são divididos conforme idade, sexo e até mesmo por mérito. As séries, divididas por idade, tem níveis gradativos de dificuldade. As atividades são repetidas com o passar do ano, sendo cobradas para reprovar, castigar ou premiar, aprovar. Com isso, há economia de tempo, obediência e alienação dos alunos, facilitando o controle e o aprendizado. A vigilância nas escolas é registrada para a perfeição do aprendizado, correção e adaptação do aluno, onde a qualificação dos mesmos é vinculada às normas, ou seja, tudo o que foge às normas deve ser corrigido e punido. A criança e seu corpo tornaram-se objeto de pesquisa e manipulação: transforma cada indivíduo num caso, para ser descrito, analisado, comparado, adestrado, normalizado. Daí surge uma pedagogia que normaliza, examina e pune. O exame é o passo que mostra que a criança é apta a aprender, por meio de provas escritas onde o professor quer a prova de que o aluno aprendeu, por meio de registro. São nas provas que o professor estabelece um vínculo de transmissão de saber, onde ele é o detentor do conhecimento. A era da escola examinadora marcou o começo de uma pedagogia que funciona como ciência. As escolas desempenham o papel de ajustar o aluno, através de filas, carteiras e horários, onde os opera pedagogicamente através de testes treinamentos de habilidades e avaliações de capacidades. Há assim a formação de situar o indivíduo em: problemático, indisciplinado em que, assim há punição corretiva, para qualificá-los. Esses mecanismos disciplinares são constitutivos da nossa sociedade, pois a representação de educação serve para o “fornecimento” de trabalhadores para aquilo que a sociedade necessita. Para Foucault, a escola nos moldes atuais, é uma das instituições onde se busca a inserção da criança em forma de disciplina que visa à submissão delas à 40 norma, bem como sua homogeneização. Esses objetivos são atingidos pela utilização de ferramentas como a divisão das classes por série, idades, preenchimento do tempo da criança com exercícios, divisão espaciais e arquitetônicas em dormitórios, banheiros, salas de aula, carteiras, localiza e prende os indivíduos a um espaço analítico. Foucault não tinha a intenção de destruir os mecanismos de aprendizagem utilizados na escola, muito pelo contrário, ele propõe um ajustamento desses recursos para que possa modificar os padrões de um ensino voltado exclusivamente para a produção na escola da normalização, daí é preciso criar novas políticas do corpo, capaz de promover uma autonomia para que haja uma chance de inovação, ou seja, criatividade. Se não há subjetividade livre, não haverá pessoas educadas, criativas; justo o que a escola deveria produzir. Entende-se que as considerações de Foucault em relação aos processos educacionais e a utilização da escola como forma de manutenção do controle social são perfeitamente válidas, uma vez que aquela atua como um elemento de adaptação e submissão do aluno à norma social. Foucault preocupa-se também em diagnosticar e analisar o presente, entre temas como a sexualidade, as ciências humanas, a medicina, a psiquiatria e a governabilidade, pois a verdade é produzida em discursos que carregam consigo poder e saber. Na questão da subjetividade, Foucault analisou especialmente as práticas que se ligam aos discursos e saberes de um lado, e as instituições e poderes de outro, em um parâmetro genealógico. Estas análises são realizadas com materiais históricos concretos, de saberes sujeitados, normalmente, a ciência não concede relevância a esses saberes, e acha que eles estão inferiores à mesma. Ele questiona as afirmações das ciências em que a subjetividade é tida como fundadora. A nova crítica de Foucault diz respeito ao sujeito sujeitado e objetivado, e afirma que o sujeito não é um ser constituinte e sim um ser constituído, (por exemplo) pelas práticas disciplinares que formam o poder e o saber, o poder disciplinar sujeita e objetiva o individuo e dele surge um saber para induzir a sanidade, normalidade. Analisando o poder e o saber, Foucault define o exercício de poder, em que, este cria o saber e o saber traz efeitos do poder por meio dos discursos 41 (especialmente os baseados em verdades). Para Foucault, o saber e o poder são dependentes, e a verdade é impossível sem o poder. O discurso científico, portanto, é a “expressão fundamental” da verdade. Afirma que os regimes de verdade (como o sistema escolar) são necessários para o funcionamento da sociedade. Diferentemente de Marx, Foucault localiza o poder em instituições como a escola e analisa os efeitos das várias relações de poder das classes, e verifica que o cruzamento dessas relações é que produz a dominação de uma classe sobre a outra em uma microfísica do poder. Para ele, o poder entra nas desigualdades econômicas e nas instituições formando um sujeito sujeitado e obediente que convenha mais aos mecanismos da economia e da política. Os agentes do poder podem ser os médicos, psicólogos, pais ou professores. Na sociedade disciplinar, os indivíduos são vigiados e punidos a fim de transformá-los em seres governáveis, dóceis e passíveis. Tornar um indivíduo um objeto de estudo científico é torná-lo controlável de maneira economicamente mais eficaz e aceitável. Definir o que é diferente, o estranho para separá-lo do normal além de produzir preconceito também produz indivíduo de uma sociedade disciplinar: Hoje, o controle é menos severo e mais refinado, sem ser, contudo, menos aterrorizador. Durante todo o percurso de nossa vida, todos nós somos capturados em diversos sistemas autoritários; logo no início na escola, depois em nosso trabalho e até em nosso lazer. Cada indivíduo, considerado separadamente, é normatizado e transformado em um caso controlado por um IBM. Em nossa sociedade, estamos chegando a refinamentos de poder os quais aqueles que manipulavam o teatro do terror [nas execuções penais públicas] sequer haviam sonhado (FOUCAULT, 2003, p. 307). Para Foucault a escola é um dos mais característicos espaços disciplinares por apresentar várias das características normalizadoras, como por exemplo, as classes homogêneas, o espaço físico das salas de aula fazendo com que os alunos fiquem sempre alinhados em suas fileiras e o professor sempre à frente, entre outros. Também podemos observar nas escolas uma "aprendizagem" que ainda se dá por meio de premiações, punições, exames. Todo aluno que com sua conduta foge à regra é punido, castigado o que faz desse espaço escolar uma máquina de 42 aprender, mas também de vigiar. hierarquizar e premiar. Outra característica disciplinar presente em muitas instituições escolares é o exercício como sendo uma forma de empregar o tempo, e também os horários, a atribuição de tarefas com certa duração e ordem. Essa "técnica" acaba por fazer da aprendizagem uma espécie de condicionamento a realizar as atividades "propostas", e as mesmas vão servir como um meio deste mesmo aluno ser avaliado e posteriormente aprovado ou não, num esforço de mensuração do indivíduo. Assim na sociedade da norma, não raro a pedagogia e as ciências humanas produzem o indivíduo mensurável, adaptável, psicologizado. E isso se dá através dos constantes exames, registros, avaliações. É como se toda conduta do indivíduo e suas particularidades pudessem se colocadas no papel através de números, gráficos e outros métodos utilizados pelas escolas para dizer se o aluno está ou não "preparado" para seguir adiante. E onde vai parar toda a particularidade, a verdade desse aluno? Simplesmente é extraída, simplesmente não existe. O aluno tem sido muitas vezes limitado a produzir de acordo com o que lhe é imposto, não lhe é dada a oportunidade de mostrar através de suas produções suas habilidades. Dessa forma, em síntese, Foucault discute as relações de poder que a sociedade adquiriu para conseguir agrupar, caracterizar e manipular as massas ao longo dos anos; através de técnicas que foram se aprimorando na produção da subjetividade humana, tais técnicas hoje podem ser observadas em hospitais, escolas,presídios e outras instituições, quando precisam que nós sejamos acometidos a algum tipo de ordem, caracterizando-nos como ser constituído e não constituinte e, que sendo assim até mesmo a própria razão do saber é embutido em nosso ser. 2 - MODERNIDADE, SUBJETIVIDADE E PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO Para entender o conceito de modernidade1 e as suas implicações na educação e na produção da subjetividade contemporânea é necessário um retorno à como se formou o mundo Moderno e como se constituiu o Pensamento Ocidental, destacando como em cada formação sócio-histórico correspondeu um certo modelo de subjetividade e uma forma de pensar as práticas educativas. A escola contemporânea parece operar sobre os escombros do ideário pedagógico moderno, este centrado na tarefa de diagnosticar e de corrigir as anomalias humanas, bem como, dependendo das circunstâncias, de eliminá-las. A palavra escola em grego significa o lugar do ócio e surge, na Idade Média, para atender a demanda de uma nova classe social que não precisava trabalhar para garantir a sua sobrevivência, mas que necessitava ocupar o seu tempo ocioso de forma nobre e digna. Este lugar é a escola, que inicialmente se instaura como um espaço para o lazer e consequentemente o prazer. Com o passar do tempo, começa a perder esse significado, passando a ser vista como um lugar onde se vai buscar e adquirir novas informações, na maioria das vezes de forma descontextualizada, tornando-se um lugar enfadonho e desprazeiroso. Este contexto tem correlação com a forte herança do Cartesianismo e do positivismo nas práticas educativas, sobremaneira na especialização excessiva do saber que resulta em práticas curriculares disciplinares e estanques não estabelecendo muitas vezes uma relação entre uma disciplina e outra. Do ponto de vista subjetivo, esta perspectiva pressupõe um sujeito que enxerga a realidade de forma disciplinada (no duplo sentido da palavra: disciplina igual a conteúdos e disciplina igual a obediência) , ou seja, seccionada e obediente, sem estabelecer relações entre um fenômeno e outro, onde a reflexão é muitas vezes substituída pela memória e pela repetição em uma prática escolar muitas vezes excessivamente instrucional. 1 A utilização do termo modernidade se refere a um período histórico usualmente compreendido entre o séculos XV e XX , marcado pelas grandes movimentos/revoluções (renascimento, urbanização, ilustração, revolução francesa, revolução industrial, institucionalização da sociedade) 44 Esta produção de um sujeito acrítico serve ao modelo econômico que começou a se estabelecer na modernidade, o Capitalismo, que inicialmente dividia dentro do espaço da fábrica os poucos sujeitos que podiam pensar (chefes, gerentes e supervisores) e a grande maioria que precisava obedecer (trabalhadores). A escola na modernidade serviu muitas vezes como reforçador desse modelo através de práticas que repetiam na escola aquilo que ocorria no espaço fabril: poucos que refletem e pensam (professores) e uma maioria que escuta e obedece (alunos), fazendo emergir desde cedo no aluno a alma do futuro trabalhador2. Este processo começa a ser fundado no berço da cultura ocidental, na Grécia antiga através da substituição do discurso mítico pelo discurso filosófico, tomando força na metafísica platônica, no tomismo medieval, no racionalismo de Descartes e no positivismo de Comte. Entender os fundamentos helênicos da formação do saber se faz necessário tendo em vista que no início da modernidade o movimento renascentista resgatou como modelo de funcionamento, a episteme grega, que fruto da reflexão puramente humana, atendia a necessidade de cisão com a tradição católica e transcendental, onde o conhecimento é revelado por Deus aos homens e não atendia as novas necessidades do capital de romper com as restrições teológicas a sua expansão, sobremaneira à proibição da usura, conforme nos ensina Weber3 . Nessa perspectiva, sabemos que as práticas educativas no ocidente existem desde o início da humanidade, em sua forma não escolarizada, ou seja, informal, assistemática e não institucionalizada, mesmo nos períodos pré-literários (chamados também de pré-históricos), passando pelas narrativas míticas até constituir o discurso filosófico grego, que tem sua base nos chamados Pré-socráticos - por volta do final do século VII ao século V a.C. -, que segundo Vernant4, pensavam sobre a origem do universo5, na busca de compreender as causas das transformações da natureza, no entanto, entre os pré-socráticos, face a diversidade e profundidade de seus teóricos, vou destacar apenas, Tales de Mileto, Heráclito e Parmênides. 2 Conforme analisado por este autor no texto “Foucault e a produção da subjetividade no trabalho”, disponível em www.pensamentoecultura.psc.br. 3 Ver a obra “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo” 4 VERNANT, J.-P, escreveu um clássico sobre o mito e a trajédia na Grécia antiga, com este mesmo título publicado pela Editora Duas Cidades. 5 Daí que o período Pré-Sócrático é conhecido na filosofia como Cosmocêntrico 45 Vale reafirmar que no contexto da sociedade grega, sobremaneira em seu período clássico, a educação se torna uma necessidade de altíssimo valor no sentido de que ela é o instrumento político básico de funcionamento social, que se concentra na praça ou “Agora” onde se sai bem quem tem maior capacidade de argumentação e raciocínio lógico, fruto da exigência de formação de uma subjetividade política no contexto de uma sociedade sofocrática. Na Grécia umas das finalidades básicas da educação é formar o cidadão político, embora esta condição só se refira ao homem, não escravo e aristocrata. Vale lembrar que é na Grécia a partir do conceito de paidos (sentido duplo: 1 - criança – paida-agogos= pedagogia - 2 - Integral como em enciclopaidos=enciclopédia) e de agogos (conduzir) que surge a palavra Pedagogia , significando aquele que conduz a criança ao lugar do ensino. Tales de Mileto inaugura a primeira reflexão propriamente não mítica quando afirmou que a origem de todas as coisas do universo é a água, pois este não se baseava em explicações sobrenaturais mas na imanência da natureza. Daí não importa se Tales está certo ou errado, mas a mudança de discurso que ele operou, a saber, a passagem do discurso mítico para o discurso filosófico, estabelecendo desta forma uma primeira diferenciação entre a cultura oriental e a cultural ocidental, esta diferentemente daquela, marcada pela objetividade. Dessa forma, está surgindo um dos fundamentos para que a partir do século 15 venha a se constituir a educação escolar, pois a mesma não tem como base a explicação sobrenatural mas a explicação lógica dos fenômenos, ou seja o acúmulo de conceitos explicativos dos fenômenos naturais e, consequentemente, a consulta a eles quando se quer entender e compreender o mundo. Heráclito considerado o fundador da dialética moderna, irá trazer a concepção do mundo como eterna mudança, onde o mundo é um fluxo perpétuo onde nada permanece idêntico a si mesmo, mas tudo se transforma no seu contrário. (BORNHEIM, 2001, p. 76). Heráclito é o filósofo do devir6, onde tudo é um vir a ser, onde todo o juízo é falso, porque essencialmente transitório. A verdade se encontra no devir, não no Ser. Heráclito compreende o devir como princípio, onde o Ser não é mais que o não- 6 É o eterno movimento, como descrito na clássica afirmação de que “nenhuma pessoa se banha no mesmo rio duas vezes” (BORNHEIM, 2001, p. 76) 46 Ser. Entretanto, Parmênides7 terá conclusões contrárias às de Heráclito, seu contemporâneo. Enquanto Heráclito ensinava que tudo está em perpétua mutação, Parmênides desenvolvia um pensamento completamente antagônico, onde toda a mutação é ilusória. Parmênides afirma toda a unidade e imobilidade do Ser, onde o Ser é, e o não-Ser não é, portanto, o Ser é Um. Este resgate é importante porque até hoje estas posições se encontram presentes sobre outras formas conceituais na recente produção do conhecimento ocidental, no pensamento metafísico e dialético, onde a tradição ligada ao pensamento de Parmênides se afirmou como majoritária no pensamento originado posteriormente a ele. Parmênides fundou a metafísica ocidental com sua distinção entre o Ser e o não-Ser; e Heráclito fundou a dialética em sua concepção de alternância entre contrários, mais tarde sendo mais fortemente representada na oposição entre o pensamento socrático-platônico e o pensamento aristotélico. Em relação à subjetividade observa-se como o ocidente se tornou mais sedentarizado, avessa ao nomadismo, ao movimento herecladiano e mais próximo da idéia de permanência e ausência de movimento presentes nas idéias de Parmênides. A relação com o saber, como algo dogmático (seja um dogma teológico ou conceitual/científico), tem suas raízes no pensamento de Parmênides, enquanto que a relação com o saber enquanto uma reflexão dinâmica, necessariamente em transformação tem o seu fulcro nas proposições de Heráclito. Sócrates se situa no contexto social Grego de busca incessante pelo saber, como uma necessidade de funcionamento político da sociedade Grega, contudo o saber que ele inaugura é um saber que não se identifica com o saber dominante ensinado pelos Sofistas, mas busca sua construção a partir da reflexão genuína, muitas vezes oriunda não entre aqueles que se dizem doutores do saber. Desta forma, Sócrates8 tem como finalidade o conhecimento interior, a reflexão e a constituição de uma forma de compreensão pessoal e não baseada em opiniões9, muito comum nas práticas educativas hodiernas, pois é a interioridade de cada 7 Conhecido filósofo que rivalizava com a concepção de Heráclito pois para ele não existe movimento e nem mudança , mas apenas a aparência de movimento e mudança. 8 Sócrates inaugura o período antropocêntrico do discurso filosófico, não mais voltado para explicar a origem do universo (exterioridade) mas a interioridade humana: o homem quem ele é 9 Termo equivalente em grego é DOXA, que significa um entendimento geral e não um mergulho nos próprios conceitos como desejava Sócrates 47 homem que o distingue de qualquer outra coisa, dando-lhe, em virtude de sua história, uma singularidade, ou seja uma pessoalidade. (MARCONDES, 2003, p. 47) Sócrates tinha por foco a missão de ensinar o homem a cuidar de sua própria alma. Importa para Sócrates, que se produza no sujeito uma ignorância voluntária de tudo que ele pensa que sabe, acabando com a falsa ilusão de tudo saber, através do seu método que ficou conhecido por maiêutica10, onde ele nada ensinava, prática presente inclusive em algumas proposições pedagógicas atuais, como por exemplo, na escola nova, pois ele apenas ajudava as pessoas a tirarem de si mesmas opiniões próprias e limpas de falsos valores. Platão, um aristocrata que se encantara com as reflexões de Sócrates constrói apesar disso as suas próprias idéias acerca do que é o conhecimento, estabelecendo no plano político a necessidade de uma sociedade que seja governada pelo conhecimento e, portanto, por aqueles homens que tenha uma relação direta com o mesmo, os filósofos, constituindo assim o que passou a ser conhecido como uma sofocracia (governo do sábios). Funda uma subjetividade voltada para a abstração conceitual, que considera o corpo e os sentidos um obstáculo para o desenvolvimento intelectual, tendo por isso, posteriormente, suas idéias cristianizadas pela filosofia medieval (Santo Agostinho), na questão da negação do corpo e na constituição de uma relação culpada com a corporalidade que está presente até hoje na subjetividade de muitas pessoas e na exigência de repressão dos desejos como condição de funcionamento do capitalismo industrial e da instituição escolar. A metafísica Platônica com a sua distinção entre mundo das idéias e mundo sensível caracteriza que aprender é recordar das idéias um dia vislumbradas no mundo supra-sensível, pois desenvolveu a noção de que o homem está em contato permanente com dois tipos de realidade: a Inteligível e a Sensível. Essa concepção também é conhecida por Teoria das Idéias. Platão diz em seu diálogo “Fédon” 11 que o mundo concreto percebido pelos sentidos é um simulacro do mundo das Idéias. Cada objeto concreto que existe participa, junto com todos os outros objetos de sua 10 Através da maiêutica, Sócrates procurava fazer emergir de dentro de cada sujeito o seu próprio conceito acerca das coisas e da vida, desprovido de qualquer outra informação que não tivesse origem em seus próprios pensamentos. 11 PLATÃO. Fédon: Diálogo Sobre a Alma e Morte de Sócrates. São Paulo: Martin Claret, 2006. 48 categoria, de uma Idéia perfeita. Assim Platão12 divide os seres humanos pela quantidade de idéias perfeitas, quantum de educação que eles acumularam, designando de almas de bronze aos com pouca educação, de alma de prata aos com uma média quantidade de conteúdos e de alma de ouro aos que acumularam uma grande quantidade de educação. Para Platão toda a ciência é uma reminiscência e nos recordamos das Idéias por vê-las reproduzidas nos objetos, o conhecimento vem da busca pela verdade e a mesma não pode variar, logo a verdade deve ser buscada na Idéia Perfeita. Esta concepção de platônica do conhecimento metafísico13 funda nas práticas escolares a idéia de reflexão separada do real, num racionalismo por excelência e até hoje se manifesta através de alguns conteúdos escolares/curriculares divorciados do mundo real. Por isso, a busca desse conhecimento tem fins morais, ou seja, levar o homem a dar-se conta das verdades que o mesmo já possuí e assim poder discernir melhor dentre as aparências de verdades e as verdades. Platão contribui então para a constituição de uma base metafísica na cultura do ocidente, pois Platão entende o saber como abstração, como prática do pensamento, que para isso tem que se distanciar do mundo real. Em contrapartida, Aristóteles14 desenvolve a concepção de que todos os Seres são Potência e Ato. Um Ser em potência é um Ser que tende a ser outro, um Ser em ato é um Ser que já está realizado; também é interessante notar que todos os Seres, mesmo em Ato, também são em Potência, mas um Ser em Potência só pode tornar-se um Ser em Ato mediante algum movimento, e este vai sempre da Potência ao Ato. É por isso que o movimento pode ser definido como Ato de um Ser em Potência enquanto está em Potência. Ato e Potência relacionam-se com o movimento enquanto que a matéria e a forma com a ausência de movimento. Aristóteles tem dessa forma uma concepção dinâmica de educação pois acredita que nada é eternamente , pois aquilo que existe hoje em potência, potencialmente pode vir a se realizar e vice-versa: dessa forma um aluno não é deficiente , ele está tendo uma dificuldade, ou seja, a deficiência não constitui a sua natureza (ele não é – eternamente - burro), conotando que todos temos uma 12 De um ponto de vista estritamente pedagógico. 13 Conhecimento ligado portanto a atividade reflexiva, a abstração, portanto fora do corpo, do sensível, dos sentidos, “além do fisico” 14 Apud Mondin, Curso de Filosofia, vol. I, 1982, pp. 81 - 106. 49 condição humana( eu estou com dificuldade) e vez de uma natureza humana (eu tenho uma dificuldade). Aristóteles apesar de ter sido discípulo de Platão não concordava com a existência de um mundo superior, voltando sua atenção para a realidade sensível e para as ciências da natureza. Se tivéssemos que imaginar uma analogia para a oposição entre o pensamento socrático-platônico e o pensamento aristotélico, teríamos a imagem de Platão apontando para cima, para outro mundo; e de Aristóteles apontando para baixo, para esse mundo, para essa realidade, para essa vida e não para uma vida no além. Desta forma, temos na Grécia clássica uma sociedade política que tem no saber o seu elemento fundamental de funcionamento, da