Lilian Maria da Silva GRAFIAS NÃO CONVENCIONAIS DE PREPOSIÇÕES E SÍLABAS PRETÔNICAS: PISTAS DE PROSODIZAÇÃO DE CLÍTICOS PREPOSICIONAIS São José do Rio Preto 2018 Campus de São José do Rio Preto Lilian Maria da Silva Grafias não convencionais de preposições e sílabas pretônicas: pistas de prosodização de clíticos preposicionais Tese apresentada como parte dos requisitos para obtenção do título de Doutora em Estudos Linguísticos, junto ao Programa de Pós- Graduação em Estudos Linguísticos, do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de São José do Rio Preto. Financiadora: FAPESP Proc. 2014/18050-7 e 2015/23238-8 CAPES Orientadora: Profa. Dra. Luciani Ester Tenani São José do Rio Preto 2018 Silva, Lilian Maria da. Grafias não convencionais de preposições e sílabas pretônicas: pistas de prosodização de clíticos preposicionais / Lilian Maria da Silva . -- São José do Rio Preto, 2018 219 f. : il. Orientador: Luciani Ester Tenani Tese (doutorado) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas 1. Linguística. 2. Língua portuguesa – Ortografia e silabação. 3. Língua portuguesa – Variação. 4. Português brasileiro. 5. Variação (Linguística) I. Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho". Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas. II. Título. CDU – 41 Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca do IBILCE UNESP - Câmpus de São José do Rio Preto Lilian Maria da Silva Grafias não convencionais de preposições e sílabas pretônicas: pistas de prosodização de clíticos preposicionais Tese apresentada como parte dos requisitos para obtenção do título de Doutora em Estudos Linguísticos, junto ao Programa de Pós- Graduação em Estudos Linguísticos, do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de São José do Rio Preto. Financiadora: FAPESP Proc. 2014/18050-7 e 2015/23238-8 CAPES Comissão Examinadora Profa. Dra. Luciani Ester Tenani UNESP – São José do Rio Preto Orientadora Profa. Dra. Elisa Battisti UFRGS – Porto Alegre Profa. Dra. Flaviane Romani Fernandes Svartman USP – São Paulo Profa. Dra. Larissa Cristina Berti UNESP – Marília Profa. Dra. Cristiane Carneiro Capristano UEM – Maringá São José do Rio Preto 21 de fevereiro de 2018 A G R A D E C I M E N T O S Ao iniciar esta seção de agradecimentos, vejo se desenhar o fim de uma etapa tão almejada ao longo desses anos de formação acadêmica. Ao chegar nesse momento final (mas que é só o começo para novas experiências!), me encho do sentimento de gratidão por todos os momentos de aprendizado e por tantas pessoas maravilhosas que passaram (e muitas se tornaram parte) da minha vida. Em meio aos muitos presentes que ganhei para toda a vida, meu primeiro agradecimento é para a professora Luciani Tenani. Agradeço a ela não só pela orientação séria e competente desde a iniciação científica, mas por ter compartilhado comigo suas experiências acadêmica e de vida, as quais me fazem admirá-la como profissional e mais ainda como ser humano. Lu, muuuuito obrigada por todos esses anos de pareceria e de confiança! O valor de seus ensinamentos é imensurável. Por me ajudarem nos desafios que a realização desta tese impôs, agradeço à professora Marina Vigário, da Universidade de Lisboa, pela orientação durante o período de doutorado sanduíche. À professora Idalice Rillo pelo trabalho de consultoria estatística. Sua paciência e seu amor pelos números, me fizeram entender um pouquinho de estatística! Por me ajudar em minhas limitações computacionais, agradeço ao Rubens Leão, à época bolsista de informática junto ao Laboratório de Fonética da UNESP/SJRP, o suporte técnico para manipulação dos dados de percepção no software PERCEVAL. E agradeço, grandemente, aos alunos do Curso de Letras (diurno), da UNESP/SJRP, por aceitarem participar dos experimentos de produção e de percepção de fala. Por contribuições a versões anteriores desta tese, agradeço à Ana Paula Nobre da Cunha pelas considerações feitas durante o debate no SELIN e às professoras Flaviane Fernandes-Svartman e Larissa Berti pelas contribuições valiosas que deram durante o Exame de Qualificação e por aceitarem participar também da defesa. Ainda por aceitarem o convite para a banca de defesa, estendo meus agradecimentos às professoras Elisa Battisti e Cristiane Carneiro Capristano. E, também, agradeço aos professores Lourenço Chacon, Fabiana Komesu, José Sueli de Magalhães e Carolina Ribeiro Serra por aceitarem participar como membro suplente. Faço um agradecimento especial à professora Fabiana Komesu, pois suas conversas (mesmo que informais) são sempre uma oportunidade valiosa de aprender mais sobre a linguagem e a vida. Como parte dos desafios que o doutorado me trouxe, agradeço à professora Sanderléia Longhin que, com muita seriedade e competência, orientou meu trabalho de Qualificação Especial. Mas nenhum momento vivido nesses quatro anos foi tão difícil e rico de aprendizagem como minha passagem por Lisboa. Esse período se tornou inesquecível para mim, em especial, pelos grandes presentes que recebi de Deus. Começo agradecendo os amigos-anjos, Paola e Oscar, que me acolheram com tanta ternura e amor. Meus amigos, com vocês eu aprendi o que é generosidade; tudo o que fizeram por mim eu jamais poderei agradecer. Agradeço à Aline, por tornar muito mais leve qualquer problema e por me mostras, nas nossas longas caminhadas, cada pedacinho de Lisboa. Agradeço à Joelma, por ter dividido comigo grande parte da gravidez da pequena Helena e as angústias por deixar Lisboa. Por fim, agradeço à família portuguesa-brasileira que me acolheu como “piima”: Daniela, Vitor, Clara e Carolina. Ao meu grande amor, Carolina, agradeço pelo amor puro que me ofereceu. Minha pequenina, não tem um dia que eu não morra de vontade de estar com você! Voltando ao Brasil, tenho uma gratidão imensa pelos amigos de vida que a pós- graduação me trouxe. Ana Cândida, Gabriela, Jean, Roberta, Geovana, Tainan, Viviane e Giordana: vocês são simplesmente maravilhosos! Agradeço à Ana pela confiança em dividir seus momentos mais difíceis. Agradeço à Gabi pela amizade que construímos ao longo dos anos. Ao Jean, agradeço por ser minha outra metade acadêmica. À Ro, eu agradeço por todas as conversas e risadas, além da confiança que ela sempre teve em me pedir conselhos. Agradeço à Geovana, pois mesmo em pouco tempo de proximidade, sempre esteve pronta a um conselho e ajuda. Agradeço à Tainan pela doçura e prontidão. À Vivi, eu agradeço pelos momentos leves que partilhamos juntas. Agradeço à Giordana, por ser minha BFF e pelas várias conversas cheias de desabafo e risadas. Não posso deixar de agradecer minha família, especialmente, meus tios Ana e Oswaldo e minha prima Viviane. Obrigada por serem meus fãs número um e por terem vibrado com cada conquista minha, como se fosse deles. Agradeço, ainda, à minha prima- mãe Joana, por ter sempre as palavras certas nas horas certas. Agradeço às minhas amigas Camila e Bianca, que sempre foram amigas para todas as horas. Meus últimos agradecimentos são para as pessoas que dividem comigo os momentos mais íntimos e especiais: minha mãe e meu namorado. Aos dois eu agradeço por serem luz nos meus momentos de angústia e sorrisos nos meus momentos de alegria. À minha mãe, em especial, agradeço por ter me dado todas as oportunidades que esteve ao seu alcance e por NUNCA me deixar sem uma palavra de esperança e conforto. Ao Bruno, quero agradecer pelo amor que me demonstra em cada gesto, cada palavra, cada olhar. Obrigada por ser meu parceiro e por me demonstrar que posso contar com você sempre. Agradeço à CAPES, pelos sete meses de bolsa recebida. Agradeço à FAPESP, pela concessão das bolsas de doutorado (Processo: 2014/18050-7) e de estágio pesquisa no exterior (Processo: 2015/23238-8), as quais permitiram a realização desta pesquisa. A todos, RESUMO Esta tese investiga se grafias de segmentação em palavras forneceriam pistas da prosodização de clíticos preposicionais do Português Brasileiro (doravante, PB). Para conduzir esse objetivo, inicialmente são analisadas hipossegmentações envolvendo preposições (“denovo”, para de novo) e hipersegmentações de sílabas pretônicas cuja cadeia segmental é idêntica a um clítico preposicional (“de vagar”, para devagar). Analisando as estruturas das grafias de segmentação em palavras, constatou-se diferenças morfossintáticas no funcionamento dos clíticos preposicionais e instabilidade em categorizar uma sílaba átona ora como clítico ora como sílaba pretônica. Partindo desses resultados, foram construídos experimentos de produção e de percepção de fala, com o intuito de verificar, por um lado, se diferenças acústicas (no tempo de duração da sílaba) estariam vinculadas a diferenças sintáticas e, por outro lado, se informações acústicas e perceptuais forneceriam pistas aos falantes do PB sobre um limite entre clítico e sílaba pretônica. Com base nos resultados do teste de produção de fala, segundo o parâmetro da duração, não foram encontradas evidências que sustentassem diferenças entre os clíticos preposicionais e diferenças entre clíticos e sílabas pretônicas. Considerando os resultados do experimento de percepção de fala, foi possível constatar que informações sintáticas e fonéticas idênticas dificultam a percepção e categorização de uma sílaba átona como clítico ou como sílaba pretônica. No entanto, informação fonológica (evidenciada pela aplicação de processos fonológicos) é crucial para a identificação de estatutos distintos da sílaba átona, colocando em evidência que, em termos prosódicos, há distinção entre sílabas átonas internas e externas à estrutura de palavra. Nesse sentido, os dados de segmentação analisados fornecem mais pistas da organização das relações sintáticas entre preposições e seus complementos e menos pistas da organização prosódica de estruturas de clítico e hospedeiro. Palavras-chave: Clíticos preposicionais. Segmentação de palavras escritas. Prosodização. Produção de fala. Percepção de fala. ABSTRACT This thesis investigates whether spellings in word segmentation would provide clues to the prosodization of prepositional clitics of Brazilian Portuguese (henceforth, PB). In order to achieve this goal, we analyze hyposegmentations involving prepositions (e.g. "denovo" (“de novo”) - again) and hypersegmentations of pretonic syllables whose phonic chain is identical to a prepositional clitic ("de vagar" (“devagar”) - slow). Analyzing the spellings in words segmentation, we verified morphosyntactic differences in the functioning of prepositional clitics and instability in categorizing an unstressed syllable or as clitic or as a pretonic syllable. From these results, speech production and speech perception experiments were constructed to verify, on the one hand, whether acoustic differences (at the time of syllable duration) would be related to syntactic differences and, on the other hand, if acoustic and perceptual informations would provide clues to PB speakers about a boundary between clitics and pretonic syllables. Based on the results of the speech production test, according to the duration syllable, no evidence was found to support differences between prepositional clitics and differences between clitics and pretonic syllables. Based on the results of the speech perception experiment, we verify that only syntactic and phonetic informations are not enough for perception and categorization of unstressed syllable as clitic or as pretonic syllable. However, phonological information (evidenced by phonological processes) is crucial for identification of distinct status of the unstressed syllable. Therefore, in prosodic terms, there is a distinction between pretonic syllables and clitics. Therefore, the word segmentation data provides more clues to the organization of the syntactic relationship between prepositions and their complements and less clues of the prosodic organization of clitic and host structures. Keywords: Prepositional Clitics. Segmentation of written words. Prosodization. Speech production. Speech Perception. LISTA DE FIGURAS E GRÁFICOS Figura 1. Segmentação da estrutura de novo em unidades VV ................................................. 140 Figura 2. Segmentação da estrutura de novo em sílabas ............................................................ 140 Figura 3. Estrutura do córpus de sentença do experimento de produção de fala ............... 161 Gráfico 1. Percentual de identificação e não identificação do estatuto da sílaba átona, para o alvo ɷ .............................................................................................................................................. 180 Gráfico 2. Percentual de identificação e não identificação do estatuto da sílaba átona, para o alvo clítico e hospedeiro ............................................................................................................... 180 LISTA DE QUADROS Quadro 1. Limites de segmentações não convencionais e limites de constituintes prosódicos ........................................................................................................................................ 71 Quadro 2. Organização métrica da palavra convencional e da grafia de hipossegmentação99 Quadro 3. Organização métrica da palavra convencional e da grafia de hipersegmentação ......................................................................................................................................................... 106 Quadro 4. Conjunto de sentenças do G1 .................................................................................. 127 Quadro 5. Conjunto de sentenças do G2 .................................................................................. 128 Quadro 6. Fraseamento prosódico das sentenças do G1 e G2 .............................................. 128 Quadro 7. Conjunto de sentenças do G3 .................................................................................. 129 Quadro 8. Conjunto de sentenças do G4 .................................................................................. 131 Quadro 9. Tipos de comparações entre unidade VV e sílaba ................................................ 141 Quadro 10. Sentenças e estímulos auditivos para o alvo palavra prosódica ........................ 160 Quadro 11. Sentenças e estímulos auditivos para o alvo clítico ............................................. 160 Quadro 12. Tipos de comparações entre os pares do G1 ...................................................... 162 Quadro 13. Tipos de comparações entre os pares do G2 ...................................................... 162 Quadro 14. Tipos de comparações entre os pares do G3 ...................................................... 162 Quadro 15. Tipos de comparações entre os pares do G4 ...................................................... 163 Quadro 16. Tipos de comparações no interior do G1 ............................................................ 163 Quadro 17. Tipos de comparações no interior do G2 ............................................................ 164 Quadro 18. Tipos de comparações no interior do G3 ............................................................ 164 Quadro 19. Tipos de comparações no interior do G4 ............................................................ 164 Quadro 20. Tipos de comparações entre G1 e G2 .................................................................. 165 Quadro 21. Tipos de comparações entre G1 e G3 .................................................................. 165 Quadro 22. Organização da análise de dados (teste de produção) ........................................ 167 LISTA DE TABELAS Tabela 1. Distribuição das segmentações não convencionais de palavras pelo tipo de classe de palavra ......................................................................................................................................... 88 Tabela 2. Associação entre classe de palavra e tipo de segmentação não convencional de palavras ............................................................................................................................................. 89 Tabela 3. Nova distribuição das segmentações não convencionais de palavras pelo tipo de classe de palavra .............................................................................................................................. 91 Tabela 4. Nova associação entre classe de palavra e tipo de segmentação não convencional de palavras ........................................................................................................................................ 91 Tabela 5. Elementos átonos (preposição/sílaba de palavra) identificados nas fronteiras de segmentação não convencional de palavras ................................................................................ 93 Tabela 6. Associação entre tipo de elemento átono e tipo de segmentação não convencional de palavras ........................................................................................................................................ 96 Tabela 7. Função sintática locução e não locução e distribuição pelas grafias de hipossegmentação e de segmentação convencional ................................................................. 110 Tabela 8. Valores das funções sintáticas locução e não locução em relação ao total de hipossegmentação e de segmentação convencional ................................................................. 111 Tabela 9. Posição da sílaba átona e distribuição pelas grafias de hipersegmentação e de segmentação convencional .......................................................................................................... 113 Tabela 10. Associação entre a posição da sílaba átona e tipo de segmentação .................... 113 Tabela 11. Valores das sílabas em posições pretônica e postônica em relação ao total de hipersegmentação e de segmentação convencional ................................................................. 114 Tabela 12. Duração em segundos da unidade VV (en) e da sílaba (de), na produção da estrutura de novo .............................................................................................................................. 142 Tabela 13. Duração em segundos da unidade VV (ov) e da sílaba (no), na produção da estrutura de novo .............................................................................................................................. 143 Tabela 14. Resultado do teste ANOVA fator duplo com repetição sobre a comparação entre as unidades VV (en) e (ov) e as sílabas (de) e (no), na produção da estrutura de novo144 Tabela 15. Duração em segundos da unidade VV (en) e da sílaba (de) na produção da estrutura de nojo .............................................................................................................................. 144 Tabela 16. Duração em segundos da unidade VV (oj) e da sílaba (no) na produção da estrutura de nojo .............................................................................................................................. 145 Tabela 17. Resultado do teste ANOVA fator duplo com repetição sobre a comparação entre as unidades VV (en) e (oj) e as sílabas (de) e (no), na produção da estrutura de nojo 145 Tabela 18. Comparação entre as médias de duração das sílabas do PAR 1 (G1) ................ 168 Tabela 19. Comparação entre as médias de duração das sílabas do PAR 2 (G1) ................ 168 Tabela 20. Comparação entre as médias de duração das sílabas do PAR 1 (G2) ................ 170 Tabela 21. Comparação entre as médias de duração das sílabas do PAR 2 (G2) ................ 170 Tabela 22. Comparação entre as médias de duração das sílabas dos PARES 1 (G1 e G2) 171 Tabela 23. Comparação entre as médias de duração das sílabas dos PARES 2 (G1 e G2) 172 Tabela 24. Comparação entre as médias de duração das sílabas do PARES 1 (G3) ........... 174 Tabela 25. Comparação entre as médias de duração das sílabas do PARES 2 (G3) ........... 174 Tabela 26. Resultado do teste Tukey para comparações no G3 ............................................ 176 Tabela 27. Resultado do teste Tukey para comparações entre G1 e G3 .............................. 177 Tabela 28. Comparação entre as médias de duração das sílabas do PAR 1 (G4) ................ 178 Tabela 29. Comparação entre as médias de duração das sílabas do PAR 2 (G4) ................ 178 Tabela 30. Identificação/não identificação dos estímulos envolvendo a sílaba de .............. 181 Tabela 31. Identificação/não identificação dos estímulos envolvendo a sílaba em ............. 182 Tabela 32. Identificação/não identificação dos estímulos envolvendo a sílaba com ........... 183 SUMÁRIO APRESENTAÇÃO ...................................................................................................................... 16 CAPÍTULO 1. PROBLEMATIZAÇÃO TEÓRICA SOBRE A PROSODIZAÇÃO DOS CLÍTICOS E CARACTERIZAÇÃO DOS CLÍTICOS PREPOSICIONAIS .................... 27 1.1. Formalização da prosodização de clíticos: problemas teóricos ........................................ 28 1.2. Evidências da prosodização de clíticos: processos fonológicos ....................................... 42 1.3. Clíticos preposicionais: características morfossintáticas, gramaticais e prosódicas ....... 54 CAPÍTULO 2. PROSODIZAÇÃO DE CLÍTICOS PREPOSICIONAIS: PISTAS A PARTIR DE SEGMENTAÇÃO EM PALAVRAS ................................................................. 68 2.1. Clíticos e sílabas pretônicas em grafias de segmentação não convencional de palavras 69 2.2. Procedimentos metodológicos .............................................................................................. 78 2.2.1. Textos do Ensino Fundamental II ................................................................................ 78 2.2.2. Considerações sobre o dado de escrita como um dado linguístico .......................... 82 2.2.3. Forma de análise dos dados ............................................................................................ 85 2.3. Análise de dados: regularidades, problemas e hipóteses .................................................... 88 2.3.1. Descrição geral dos resultados ....................................................................................... 88 2.3.2. Regularidades das grafias de hipossegmentação .......................................................... 98 2.3.3. Regularidades de grafias de hipersegmentação .......................................................... 103 2.3.4. Comparando grafias convencionais e não convencionais de segmentação em palavras ....................................................................................................................................... 108 2.4. Hipóteses sobre o funcionamento prosódico dos clíticos ............................................... 115 CAPÍTULO 3. PROSODIZAÇÃO DE CLÍTICOS PREPOSICIONAIS: EVIDÊNCIAS FONÉTICAS E PERCEPTUAIS ............................................................................................. 121 3.1. Os testes experimentais: produção e percepção ............................................................... 122 3.2. Experimento de produção de fala ....................................................................................... 124 3.2.1. Bases teórico-metodológicas ........................................................................................ 124 3.2.2. Design do experimento de produção de fala ............................................................. 126 3.2.3. Procedimentos metodológicos aplicados à medida de duração .............................. 135 3.2.3.1. Unidades VV e sílaba: análise teste para definição da unidade de medida ....... 137 3.3. Experimento de percepção de fala ...................................................................................... 146 3.3.1. Bases teórico-metodológicas ........................................................................................ 146 3.3.2. Design do experimento de percepção de fala ............................................................ 156 3.4. Forma de análise dos dados experimentais ........................................................................ 161 3.5. Evidências fonéticas e perceptuais da prosodização de clíticos preposicionais ........... 167 3.5.1. Resultados do experimento de produção ................................................................... 167 3.5.2. Resultado do experimento de percepção .................................................................... 179 3.5.3. Discussão dos resultados do experimento de produção e percepção .................... 184 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 188 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................. 201 ANEXOS ...................................................................................................................................... 212 Anexo I ........................................................................................................................................... 212 Anexo II ......................................................................................................................................... 215 A P R E S E N T A Ç Ã O Esta tese investiga a prosodização de preposições clíticas do Português Brasileiro (doravante, PB) e parte de grafias de segmentação em palavras para extrair pistas da relação entre clítico e hospedeiro. Tocante às grafias, elegemos, em especial, as chamadas segmentações não convencionais de palavras. Tendo como critério a norma ortográfica, essas segmentações correspondem a registros divergentes das fronteiras de palavra. Dentre os possíveis registros não convencionais, recortamos os casos de hipossegmentação envolvendo um clítico preposicional e uma palavra, conforme o exemplo (0.1), e os casos de hipersegmentação envolvendo sílabas pretônicas homófonas a algum clítico preposicional do português, como mostrado em (0.2)1. (0.1) Convenção Hipossegmentação de novo “denovo”(clítico preposicional + palavra) (0.2) Convenção Hipersegmentação devagar “de vagar”(sílaba pretônica correspondente à preposição de + potencial correspondência à forma infinitiva do verbo vagar) A partir do exemplo (0.1), definimos que a hipossegmentação é o tipo de segmentação não convencional que envolve a ausência de fronteira gráfica entre palavras escritas. Na hipossegmentação “denovo”, a ausência da fronteira gráfica é identificada entre as palavras de e novo. Por sua vez, como mostrado em (0.2), definimos que a hipersegmentação diz respeito à presença de fronteira gráfica no interior de palavras 1 Nos exemplos, identificamos, entre parênteses os elementos envolvidos nas segmentações não convencionais e, em negrito, destacamos a sílaba relevante para este trabalho. 17 escritas. No exemplo “de vagar”, a presença não convencional ocorre entre a sílaba pretônica de e o restante da palavra, isto é, vagar. Assim, o recorte para os casos de hipossegmentação e de hipersegmentação envolvendo, respectivamente, preposições e sílabas átonas correspondentes a preposições, se alinha ao objetivo geral desta tese. No entanto, para chegar ao conjunto desses dados, consideramos, em um primeiro momento, todas as grafias de segmentação não convencional de palavras identificadas no córpus, conforme explicitaremos na análise geral das grafias a ser apresentada no Capítulo 2. Por sua vez, nesta apresentação inicial, já adiantamos que, para analisar a relação entre clítico preposicional e hospedeiro, desconsideramos grafias de segmentação não convencional de palavras que: (i) Envolveram unidades linguísticas maiores que a sílaba, como nos exemplos (0.3). (0.3) Convenção Hipossegmentação vamos fazer “vamofazer”(palavra + palavra) Convenção Hipersegmentação maravilha “mara vilha”(pseudopalavra + pseudopalavra)2 (ii) Envolveram clíticos fonológicos correspondentes a outra classe de palavras (por exemplo, artigos), como apresentado em (0.4). (0.4) Convenção Hipossegmentação agente “agente”(clítico correspondente ao artigo a + palavra) Convenção Hipersegmentação amanhã “a manhã”(sílaba pretônica correspondente ao artigo a + correspondência à palavra manhã) 2 A noção de pseudopalavra foi definida por Cunha (2010) para nomear unidades restantes de uma hipersegmentação, as quais podem não corresponder a palavras segundo critérios ortográficos, mas poderiam ser entendidas como palavras prosódicas, em razão de apresentarem um possível acento primário. A palavra maravilha, por exemplo (cf. (0.4)), tem o acento primário identificado na sílaba vi, sendo que sobre a sílaba ma pode recair a proeminência de acento secundário. Assim, considerando os dois tipos de proeminências sobre sílabas ma e vi da palavra maravilha, essa palavra, quando hipersegmentada, passa a formar duas possíveis palavras dissílabas, de modo que a proeminência configurada sobre a sílaba ma pode ser entendida como possível acento primário de palavra. 18 (iii) Envolveram ausência ou presença de hífen, como em (0.5)3. (0.5) Convenção Hipossegmentação chamá-lo “chamalo”(palavra + clítico pronominal lo) Convenção Hipersegmentação conversasse “conversa-se”(palavra + sílaba postônica correspondente ao clítico pronominal se) Em termos teóricos, o tema da prosodização de clíticos tem como questão central a aceitação ou a negação de um domínio prosódico específico para os clíticos, o grupo clítico, proposto inicialmente por Hayes (1989) e por Nespor e Vogel (1986[2007]). Muitos argumentos tanto favoráveis quanto contrários ao grupo clítico são encontrados na literatura. Na linha de posicionamento favorável, podem ser citados Nespor e Vogel (1986[2007]), Vogel (2009), Bisol (2000a, 2005) e Veloso (2012). Nas propostas contrárias, encontram-se Selkirk (1984, 1986, 1996), Inkelas (1990); Vigário (2003, 2007, 2010) e Simioni (2008). Essas posições divergentes são sustentadas em evidências fonológicas de diferentes línguas sobre o tipo de relação que o clítico mantém com seu hospedeiro e, portanto, tratar da prosodização dos clíticos é teoricamente desafiador seja quando comparados fatos entre línguas diferentes (HORNE, 1989; BOOIJ, 1996; PEPERKAMP, 1996, HALPERN, 1998; VIGÁRIO, 2003) seja quando analisados fatos no interior de uma língua específica (PB, por exemplo: BISOL, 2000a; SIMIONI, 2008; BRISOLARA, 2008; GUZZO, 2015). O percurso teórico para a compreensão da prosodização dos clíticos, que é permeado pela necessidade ou não de um domínio como o grupo clítico, é especialmente um entrave para modelos de Fonologia Prosódica fundamentados em princípios universais 3 Referente ao hífen, interpretamos que esse recurso gráfico tem estatuto ambíguo (de juntar e separar simultaneamente), de modo a seu uso acarretar complexidade particular, que é indiciada, em partes, pela ação mais direta de outras informações linguístico-discursivas, vindas de práticas letradas/escritas mais institucionalizadas (TENANI, 2011), ou seja, variáveis que ultrapassam o tema da prosodização dos clíticos. 19 de constituição da estrutura prosódica (SELKIRK, 1984, 1986, NESPOR; VOGEL, 1986). Entretanto, em outras bases teóricas, como a da Teoria da Otimalidade (doravante, OT, do inglês, Optimality Theory), parte dos problemas de formalização da prosodização não se verifica e, embora a OT possa se apresentar como uma abordagem alternativa de natureza menos restritiva (ver SELKIRK, 1996, 2004), mantém-se o desafio de serem identificadas evidências do comportamento dos chamados clíticos fonológicos e, consequentemente, o exercício de formalização de sua prosodização. Nesta tese, as reflexões serão pautadas pela busca de evidências da prosodização de clíticos preposicionais, em particular, apontando possíveis contribuições para teorias fonológicas. Ainda no que concerne a falta de consenso sobre a prosodização dos clíticos, entendemos que parte dela se configura na própria natureza linguística dos clíticos. Restringindo a características dos clíticos no PB, Bisol (2005) descreve esses elementos como universalmente átonos – diferentemente das palavras prosódicas, que sempre carregam acento primário (NESPOR, VOGEL, 1986; AIKHENVALD; DIXON, 2002; BISOL, 2004; VASILÉVSKI et.al., 2015) –, dependentes de itens proeminentes (seu hospedeiro fonológico) e não pertencentes a uma única classe morfológica de palavra4. Spencer e Luís (2012), na mesma linha de Bisol (2005) para o PB, defendem que os clíticos são itens prosodicamente fracos e dependentes de uma palavra proeminente. Considerando a dependência dos clíticos, na abordagem estruturalista de Câmara Jr. (1964, 1970), esses elementos são identificados por formas dependentes. Conforme esse autor, as formas dependentes se diferem, por um lado, das formas livres, já que não se sustentam sozinhas na oração (a preposição está sempre acompanhada do seu complemento, por 4 São clíticos no PB: artigos (o, a, um, uma), preposições (de, em, com, sem, por, a), pronomes (me, se, te, nos, o, a, lhe, que) e conjunções (e, ou, mas, se, que). 20 exemplo), e, por outro lado, se diferem das formas presas, pois têm mais independência em relação à palavra que se liga que um afixo a sua base. Diferentemente dos afixos, alguns clíticos são essencialmente proclíticos (i.e., pré-hospedeiro), como os preposicionais (por exemplo: “de maçã”), enquanto outros, como os pronominais, podem ser proclíticos (por exemplo: “se espera”) e/ou enclíticos (i.e., pós-hospedeiro) (por exemplo: “espera-se”)5, demonstrando mobilidade desses elementos em relação ao hospedeiro. Além disso, os clíticos têm a capacidade de eleger a classe gramatical de seus hospedeiros: os clíticos pronominais sempre se ligam a verbos, já os preposicionais, alvos desta pesquisa, podem estar apoiados em nomes, em verbos e até em orações6. Assim, as propriedades dos clíticos, ora descritas, convergem para o entendimento desses elementos como palavras morfossintáticas sem estatuto prosódico claramente definido (WERLE, 2009). Enquanto, do ponto de vista sintático, os clíticos constituem nós terminais capazes de encabeçar sintagmas7, prosodicamente eles apresentam outro estatuto, uma vez que só se integram à estrutura prosódica acompanhados de uma palavra proeminente. Nesse sentido, a natureza da relação entre o clítico e o hospedeiro é a chave para se compreender a sua prosodização. Tendo por base a configuração das grafias de segmentação não convencional de palavras, nos concentramos em pistas da relação entre os clíticos preposicionais e seus hospedeiros. Nesta tese, adotamos o conceito de pista, segundo desenvolvido nas análises de Abaurre, Fiad e Mayrink-Sabinson (1997), para quem os registros escritos se constituem como indícios que permitiriam, ao pesquisador da linguagem, reconstituir fatos da relação 5 Apesar de os clíticos pronominais poderem ocupar posição enclítica, no PB essa é uma posição marcada, sendo a próclise preferencial nessa variedade do português (ABAURRE E GALVES, 2002). 6 No Capítulo 1, trataremos de algumas características gramaticais dos clíticos preposicionais, como, por exemplo, o tipo de elemento regido pelas preposições. 7 As preposições são os elementos cabeça de um sintagma preposicional. 21 sujeito-linguagem e, nesse aspecto, as pistas não são de natureza concreta. Em nosso trabalho, a forma como se deu as junções e separações não convencionais das fronteiras de palavras nos auxiliará na reconstituição da organização linguística de sílabas átonas por parte de escreventes da língua. A investigação se as segmentações não convencionais de palavras podem indiciar a prosodização de clíticos preposicionais do PB está organizada em três capítulos, somada as considerações finais. No capítulo Problematização teórica sobre a prosodização dos clíticos e caracterização dos clíticos preposicionais (Capítulo 1), trataremos das representações prosódicas que o clítico pode ter na hierarquia prosódica, conforme discutido na literatura fonológica (NESPOR; VOGEL, 1986[2007], INKELAS, 1990, SELKIRK, 1996, 2004 e outros), e das características morfossintáticas, gramaticais e prosódicas dos clíticos preposicionais do PB. Na primeira seção do capítulo, partindo do embate sobre a pertinência de um constituinte específico para os clíticos, demonstraremos como quaisquer das alternativas teóricas têm consequências diretas na constituição da estrutura prosódica. Na segunda seção, apresentaremos as análises de cada proposta teórica de prosodização dos clíticos, observando os processos fonológicos que se aplicam aos clíticos. A terceira e última seção, será dedicada às características morfossintáticas, gramaticais e prosódicas dos clíticos preposicionais do PB. No capítulo Prosodização de clíticos preposicionais: pistas a partir de segmentação em palavras (Capítulo 2), dedicaremos atenção aos dados de segmentação em palavras. Na primeira seção, a proposta é discutir análises anteriores acerca de grafias de hipossegmentação e de hipersegmentação envolvendo registros de clíticos fonológicos (TENANI, 2011, SILVA; TENANI, 2014, TENANI, 2016 e outros). A partir da literatura, situamos os avanços que 22 propõe esta tese. Na segunda seção, trataremos dos aspectos metodológicos referentes: 1) ao material e ao córpus de investigação, com atenção especial para o tipo de texto a partir do qual foram selecionadas as ocorrências de segmentação; e 2) aos critérios adotados para a análise da relação entre clítico e hospedeiro, bem como sob qual perspectiva foram compreendidos os dados de escrita. A esse respeito, marcamos desde já o nosso distanciamento em relação a qualquer noção normativa atrelada às grafias de segmentação não convencional. Sendo conduzidos, pois, pelas reflexões de Abaurre (1991, 1996, entre outros) e Abaurre, Fiad e Mayrink-Sabinson (1997), nos afastamos de abordagens que concebem, por exemplo, grafias não convencionais como erros ortográficos (cf. ZORZI, 1997). Defendemos que a visão de erro exclui a priori a possibilidade de investigar uma questão linguística a partir do modo como se configuram os registros de segmentação em palavras, na medida em que a ideia de erro leva em conta apenas o fato de que existe uma norma ortográfica a ser atendida. Da perspectiva adotada nesta tese, assumimos que um registro não convencional é um objeto privilegiado de investigação linguística, pois coloca em evidência lugares em que o funcionamento da língua é mais instável, os quais são, aparentemente, “apagados” nos registros convencionais. Um desses locais instáveis é o estatuto dos clíticos, pois como já mostramos, sua definição não se fundamenta em critérios de uma só natureza linguística. Acrescentamos, que a aproximação dos dados de escrita aos aspectos prosódicos da língua é feita neste trabalho segundo uma perspectiva teórica segundo a qual a fala não é oposta ou exterior à escrita, mas ambas são heterogeneamente constituídas (cf. CORRÊA, 2004). É, pois, a partir desse olhar para as grafias, que vemos a segmentação não 23 convencional de palavras como lugar privilegiado para investigar a relação entre fala e escrita. Para fundamentar a análise dos dados de escrita, de modo a construir hipóteses sobre o funcionamento prosódicos dos clíticos preposicionais, nos guiamos pelas seguintes questões: 1. Quais características da hipossegmentação e da hipersegmentação permitem extrair informações sobre a relação entre clítico e hospedeiro? 2. O que tais informações indiciam sobre o funcionamento prosódico dos clíticos? Na terceira seção, dedicada à exposição dos resultados, constatamos que as sílabas átonas investigadas variam em relação ao seu funcionamento morfossintático, especificamente: (i) No caso dos clíticos preposicionais, eles integram construções sintáticas em que, junto com a palavra adjacente, formam uma estrutura mais dependente (i.e., estrutura de locução, como em: de novo, com certeza, em frente), ao mesmo tempo em que atuam de modo mais independente como preposições plenas (i.e., estabelecendo relações sintáticas entre elementos da oração, como em: cansado de correr, cheguei em casa, moro com meu pai); (ii) Em relação às sílabas pretônicas que são interpretadas como clíticos preposicionais, a configuração prosódica das palavras junto ao fato de serem homônimas a palavras morfossintáticas, possibilita maior independência de elementos internos à estrutura de palavra. Na seção que encerra o capítulo, a partir da compilação desses resultados, postulamos um conjunto de hipóteses relacionadas ao funcionamento prosódico dos clíticos: 24 (i) A primeira hipótese apoia que diferenças morfossintáticas motivam diferenças prosódicas. Desse modo, a organização prosódica seria distinta em função de cada funcionamento morfossintático dos clíticos preposicionais. (ii) A segunda hipótese afirma que diferenças morfossintáticas não motivariam diferenças prosódicas. As diferenças morfossintáticas não seriam diretamente representadas na estrutura prosódica. (iii) A terceira hipótese é a de que informações prosódicas permitiriam identificar/perceber a existência de uma fronteira morfológica entre clíticos e sílabas de palavra. (iv) A quarta hipótese é a de que não haveriam informações prosódicas suficientes para identificar/perceber a existência de uma fronteira morfológica entre clíticos e sílabas de palavra. A primeira e segunda hipótese englobam o funcionamento dos clíticos preposicionais e a terceira e quarta hipótese tratam da relação entre clítico e sílaba de palavra. Considerando a interação entre as hipóteses, esclarecemos que elas foram construídas em caráter de oposição. Assim, a confirmação de uma das hipóteses leva à refutação da outra. Por exemplo, a confirmação da primeira hipótese infirma a segunda; e a confirmação da terceira hipótese refuta a quarta e vice-versa. No capítulo Prosodização de clíticos preposicionais: evidências fonéticas e perceptuais (Capítulo 3), mobilizaremos dados de produção de fala controlada e de percepção de fala para confirmar ou refutar as hipóteses formuladas. Seguindo a visão tradicional de estudos de base fonético-fonológica, analisaremos os dados obtidos experimentalmente como evidências que comprovam ou refutam hipóteses. 25 Na primeira seção, apresentaremos as bases teórico-metodológicas subjacentes aos designs experimentais de cada tipo de teste, bem como o córpus de sentenças construído para os procedimentos de produção e de percepção de fala. Para que pudéssemos verificar as características prosódicas, no teste de produção de fala, a proposta foi a de medir o tempo de duração dos clíticos preposicionais e das sílabas átonas que são parte da estrutura de palavra. No experimento de percepção de fala, o objetivo foi o de observar se somente o estímulo auditivo era suficiente para que um ouvinte (falante nativo do PB) identificasse o sentido de duas sequências fônicas idênticas na língua. Na segunda seção, conduziremos a análise de um conjunto de sentenças, com o intuito de testar metodologicamente o tipo de unidade de medida da duração. Foram testadas duas medidas de sílaba: de natureza fonética (unidade VV) e de natureza fonológica, sendo adotada, para esta tese, a noção de sílaba fonológica. Na terceira seção, apresentaremos os resultados dos experimentos. Em termos gerais, no teste de produção, a análise acústica, fundamentada na duração da sílaba, mostra que: (i) As diferenças morfossintáticas particulares dos funcionamentos dos clíticos preposicionais não se vinculam a diferenças acústicas. (ii) Clítico e sílaba átona de palavras não seriam tipos distintos de sílabas átonas. No teste de percepção, as respostas dos participantes revelaram que o estímulo auditivo (quando considerada apenas a natureza física) não é suficiente para diferenciar estruturas segmentalmente idênticas. No entanto, informação de natureza fonológica, a respeito de processos fonológicos aplicados a clíticos e sílabas pretônicas, são relevantes para diferenciar o estatuto da sílaba átona, ou seja, quando ela é uma palavra funcional e quando é uma sílaba de palavra. 26 Em relação às hipóteses de pesquisa, os resultados experimentais confirmam, por um lado, a segunda hipótese, pois, do ponto de vista acústico, seguindo o parâmetro da duração, não há evidências de diferenças na classe dos clíticos preposicionais; e, por outro lado, confirmam a terceira hipótese, pois, do ponto de vista da percepção, há critérios de ordem fonológica (mas não somente) que guiam a identificação e diferenciação de sílabas átonas que se configuram externas e internas à estrutura de palavra. Por fim, nas considerações finais, retomaremos o percurso de análise, apontando as contribuições dos resultados para a teoria fonológica e para o entendimento linguístico das grafias de segmentação não convencional de palavras. C A P Í T U L O 1 PROBLEMATIZAÇÃO TEÓRICA SOBRE A PROSODIZAÇÃO DOS CLÍTICOS E CARACTERIZAÇÃO DOS CLÍTICOS PREPOSICIONAIS Os clíticos fonológicos são unidades átonas das línguas e, por essa característica, devem ser prosodizados junto a um hospedeiro. Identificar o domínio em que clíticos são prosodizados é tema central de pesquisas em diferentes línguas. A formalização teórica desse processo não se mostra consensual, cuja ausência pode ser explicada, em alguma medida, em função de diferenças de filiações teóricas. Neste capítulo, um dos objetivos é o de discutir a problemática que envolve a prosodização dos clíticos, tendo como ponto de partida a formação do constituinte prosódico grupo clítico, domínio específico de estruturas de clítico e hospedeiro. Baseado na formação desse constituinte, exporemos os argumentos de algumas propostas e as evidências fonológicas que sustentam, por um lado, a pertinência de um domínio específico para prosodização de clíticos e, por outro lado, a eliminação de um domínio específico para essa prosodização (cf. seções 1.1 e 1.2). Seguida da discussão dos aspectos teóricos da prosodização dos clíticos, voltaremos atenção para a classe dos clíticos preposicionais (cf. seção 1.3), pois, como já anunciado, consiste no tipo de clítico investigado. Quanto à caracterização, serão apresentadas as características morfossintáticas, gramaticais (segundo as normas) e prosódicas dos clíticos 28 preposicionais no PB, acenando para problematização feita em línguas, como o persa, sobre a mesma categoria de clítico. 1.1. Formalização da prosodização de clíticos: problemas teóricos A Fonologia Prosódica é um arcabouço teórico que trata da estruturação universal dos sons das línguas. Essa organização é derivada da interface entre sintaxe e fonologia, por meio da qual tem origem um conjunto de estruturas, denominadas constituintes prosódicos. Segundo os fundamentos dessa teoria, o contínuo da fala é segmentado em constituintes prosódicos, que correspondem a unidades abstratas, que se evidenciam, nas línguas, por meio de fenômenos fonético-fonológicos (segmentais, rítmicos, entoacionais) que se aplicam tanto no interior quanto entre as fronteiras dos constituintes. Outra premissa básica acerca dos constituintes prosódicos é que, embora originados na interface com a sintaxe, eles não necessariamente coincidem com constituintes morfossintáticos. Os clíticos, por exemplo, representam a não correspondência entre unidades morfossintáticas e prosódicas, pois constituem-se em palavras funcionais de diferentes classes, mas pela atonicidade não se constituem como palavras prosódicas. A organização dos constituintes prosódicos é dada de forma hierarquizada. No entanto, como são formadas e quais são as unidades prosódicas são questões debatidas até hoje. Notadamente, Selkirk (1984) e Nespor e Vogel (1986, 2007) propuseram dois modelos teóricos distintos, considerando diferentes informações na construção dos 29 constituintes prosódicos8. Em (1.1) é exposta a hierarquia prosódica proposta em ambos os modelos citados. (1.1) SELKIRK (1984): NESPOR E VOGEL (1986): IP Frase Entoacional U Enunciado Fonológico PPh Frase Fonológica I Frase Entoacional PWd Palavra Prosódica ϕ Frase Fonológica Ft Pé Métrico C Grupo Clítico σ Sílaba ω Palavra Prosódica Σ Pé Métrico σ Sílaba No que toca ao constituinte de prosodização dos clíticos, é relevante comentar que tal domínio gera dissensões entre ambos os modelos. Na hierarquia prosódica, segundo Nespor e Vogel (1986), os clíticos são prosodizados em um constituinte específico, o grupo clítico (C), domínio localizado entre ω e ϕ9. Por sua vez, na hierarquia prosódica proposta por Selkirk (1984), não há esse domínio, pois, para a autora, os clíticos, a depender de seu funcionamento, se prosodizam junto a ω ou junto a ϕ. Mais recentemente, Selkirk (1996, 2004) reafirmou a proposta sobre diferentes domínios de prosodização, com base na existência de tipos universais de clíticos. Detalhes sobre essa proposta recente serão dados mais adiante. Dessa divergência sobre a formalização dos clíticos surgem posicionamentos teóricos em duas direções. O primeiro defende a manutenção de um domínio prosódico constituído de sequências de clítico e hospedeiro (NESPOR; VOGEL, 2007; VOGEL, 8 O modelo de Selkirk (1984), conhecido como end-based, é fundamentado na premissa de que as fronteiras dos constituintes prosódicos são definidas a partir de fronteiras sintáticas. Por sua vez, o modelo de Nespor e Vogel (1986), conhecido como relation-based, considera que os constituintes prosódicos se constroem a partir de relações sintáticas. 9 Para fazer referência aos constituintes prosódicos, será utilizada a notação proposta por Nespor e Vogel (1986). Sem desconhecer diferenças entre arcabouços teóricos, optamos por uma notação padrão para identificação dos constituintes prosódicos. 30 2009). Já o segundo posicionamento argumenta em favor da prosodização dos clíticos em diferentes constituintes da hierarquia prosódica (SELKIRK, 1996, 2004; SIMIONI, 2008), incluindo domínios recursivos (INKELAS, 1990; SELKIRK, 1996, 2004; VIGÁRIO, 2003; ZEC, 2005). Por ora, salientamos que independentemente do posicionamento, ambas as propostas trazem implicações para a organização da estrutura prosódica, uma vez que incidem sobre os princípios de boa-formação que regulam a constituição dessa estrutura. Como apresentado em (1.2), de acordo com Nespor e Vogel (1986, p. 7), são quatro os princípios de boa-formação que regem a estruturação da hierarquia prosódica. Desse conjunto, os dois primeiros princípios são fundamentados pela Strict Layer Hypothesis (SLH), proposta inicialmente em Selkirk (1984). (1.2) Princípio 1. Uma dada unidade não-terminal da hierarquia prosódica, Xp, é composta de uma ou mais unidades da categoria imediatamente inferior, Xp-1.10 Princípio 2. Uma unidade de um dado nível da hierarquia está exaustivamente contida na unidade superordinária da qual é parte. Princípio 3. As estruturas hierárquicas são de ramificação n-ária. Princípio 4. A relação de proeminência relativa entre os nós irmãos é tal que para um é atribuído o valor forte (s) e para todos os outros é atribuído o valor fraco (w)11. A partir desses princípios, a construção dos constituintes prosódicos é definida como se descreve em (1.3): 10 Xp representa qualquer domínio prosódico; Xp-1 representa domínio prosódico imediatamente inferior. 11 Original: “Principle 1. A given nonterminal unit of the prosodic hierarchy, Xp, is composed of one or more units of the immediately lower category, Xp-1. Principle 2. A unit of a given level of the hierarchy is exhaustively contained in the superordinate unit of which it is part. Principle 3. The hierarchical structures of prosodic phonology are n-ary branch. Principle 4. The relative prominence relation defined for sister nodes is such that one is assigned the value strong (s) and all the other nodes are assigned the value weak (w)”. 31 (1.3) Construção de constituinte prosódico12 Junte em uma ramificação n-ária Xp todos os Xp-1 incluídos em uma cadeia delimitada pela definição do domínio de Xp. Associando os princípios de boa-formação e o algoritmo geral de formação dos constituintes prosódicos, destacamos particularmente o preceito de Exaustividade. Essa noção na construção dos domínios prosódicos determina que um domínio mais alto domine diretamente o constituinte inferior e que um domínio mais baixo deve estar totalmente presente no constituinte imediatamente acima. No que diz respeito à construção do C, essa noção traz duas consequências, sendo a primeira a de que se um Xp é composto de Xp-1, então o clítico passa a ter o estatuto de ω, uma vez que o constituinte inferior ao C é a ω; já a segunda é a de que ωs, sem qualquer clítico associado, também deve se configurar como C antes de ser dominada por uma ϕ13. Com base em Bisol (2000a, p. 9), ambos os problemas são exemplificados em (1.4), em que os parênteses representam fronteira de constituinte prosódico: (1.4) Aquelas meninas apanharam todas as rosas do jardim ( )( )( )( )( )( )( )( )ω ( )( )( )( )( )( )C ( )( )( )( )ϕ A atribuição de estatuto de ω ao clítico, como representado na primeira linha em (1.4), foi amplamente questionada na literatura, especialmente porque essa assunção é 12 Original: “Prosodic Constituent Construction: Join into na n-ary branching Xp all Xp-1 included in a string delimited by definition of the domain of Xp” (NESPOR E VOGEL, 1986, p. 7). 13 Para posições contrárias ao C (cf. INKELAS, 1990), a segunda consequência do princípio de Exaustividade na construção do C representa uma redundância de constituintes prosódicos, pois se palavras não acompanhadas de clíticos precisam ser primeiro analisadas no interior de um C antes de compor uma ϕ, então significa que apenas um constituinte deve ser parte da hierarquia prosódica. 32 contrária ao real estatuto linguístico desse elemento (sílaba átona), sendo assim uma posição falseável à existência do C, conforme argumentam pesquisadores como Vigário (2007, p. 678), por exemplo. Segundo Bisol (2005), os clíticos do PB não atendem as propriedades que, de acordo com Booij (1983), definem uma ω, a saber: 1. Apresentar relações de proeminência. Em (1.5), são marcadas as proeminências forte (s) e fraca (w) das sílabas internas da palavra lâmpada. Como destacado, toda ω tem apenas uma sílaba com prominência forte, a qual receberá o acento primário. (1.5) (lâmpada)ɷ lâm. pa. da s w w 2. Ser domínio de aplicação de regras fonológicas lexicais. Em (1.6), ilustramos a regra de neutralização vocálica, por meio da qual se observa a perda de contraste entre vogais média-baixa e média-alta em contexto de sílaba pretônica (átona): (1.6) m[é]dico > m[e]dicina 3. Ser domínio de restrições fonotáticas. O PB restringe ωs iniciarem por consoantes palatais, com exceção para os casos de palavras estrangeiras, como em (1.7): (1.7) lhama (espanhol) nhoque (italiano) 33 Seguindo as três propriedades que definem uma ω, os clíticos do PB não têm estatuto de ω, já que: 1. Em relação à proeminência, os clíticos são itens átonos, de modo que na relação com o hospedeiro, a proeminência sempre recai sobre o último. Em (1.8), na sequência na casa, a sílaba com proeminência forte é uma das que compõem a ω casa: (1.8) (na)σ (casa)ω na. ca. sa w s w 2. Quanto às regras fonológicas lexicais, os clíticos são insensíveis para determinados processos que se aplicam à ω. Em (1.9), apresentamos a regra de harmonia vocálica, a qual é aplicada à ω (1.9a), mas não à sequência de um clítico e hospedeiro (1.9b): (1.9) a. palavra: a elevação da vogal da sílaba pretônica é motivada pela vogal alta da sílaba seguinte: v[e]stido > v[i]stido b. clítico e hospedeiro: a elevação da vogal do clítico não é motivada pela vogal da sílaba seguinte. A elevação se assemelha à neutralização de sílaba postônica final d[o] destin[o] > d[u] destin[u] s[e] fer[e] > s[i] fer[i] m[e] pediu > m[i] pediu 3. Referente às restrições fonotáticas, a restrição do PB de que palavras não são iniciadas por consoantes palatais não se aplica aos clíticos. No exemplo em (1.10), destacamos o clítico lhe: 34 (1.10) Eu lhe disse tudo Nespor e Vogel (2007), ao retomarem a formação do constituinte C, afirmam que a atribuição do estatuto de ω aos clíticos é um problema decorrente da geometria da hierarquia prosódica e não tem relação com o conjunto de constituintes prosódicos que compõem a estrutura prosódica. A fim de solucionar esse problema formal, as autoras propõem uma modificação dos princípios de boa-formação, que consiste em permitir “saltos” de até dois constituintes prosódicos. Desse modo, essa proposta aceita que haja flexibilização do princípio de Exaustividade. A consequência dessa nova formulação é, por um lado, a de que os clíticos garantem o seu estatuto de sílaba átona, pois não precisam mais, por convenção, serem analisados como Σ e ω e, assim, são sílabas se unem diretamente a seus hospedeiros já no domínio do C, mas, por outro lado, ao permitir flexibilização, tem-se um enfraquecimento dos preceitos gerais da proposta teórica de princípios universais. As autoras defendem, ainda, que modificações na base de um quadro teórico devem avaliar os custos que geram para a abrangência explicativa dos fatos linguísticos. Nesse cenário, elas defendem que para explicar o funcionamento dos clíticos, uma versão “enfraquecida” do princípio de Exaustividade resolve melhor o problema inicial dos clíticos com rótulo de sílaba dentro do C. No entanto, a proposta de flexibilizar a noção de Exaustividade não é a única possibilidade no quadro de soluções para a controversa formalização do clítico como ω. Como anunciado no início do capítulo, outras opções encontradas preveem a eliminação do constituinte C e a inclusão de estruturas recursivas na estrutura prosódica. Para Nespor 35 e Vogel (2007), ambas as propostas têm resultados negativos maiores quando consideradas tanto a explicação dos fatos fonológicos quanto a formação e particularidade da estrutura prosódica frente a outras estruturas gramaticais, como a sintática, por exemplo. Nessa linha de argumentação, embora a exclusão do C possa simplificar o arranjo da hierarquia prosódica, com a vantagem de que seriam necessários poucos domínios para explicar os fatos prosódicos das línguas, se passariam a ignorar as evidências fonológicas exclusivas que se mostram apenas entre um clítico e um hospedeiro (mais detalhes se encontram na seção seguinte). Nespor e Vogel (2007), portanto, salientam que a exclusão do C não se justifica, na medida em que para a formalização dos clíticos passam a ser admitidas estruturas de natureza recursiva, pois uma ω recursiva (que incluem clíticos), por exemplo, não apresenta o mesmo funcionamento de uma ω “simples”. Sendo assim, continua-se a distinguir duas estruturas com funcionamentos diferentes (palavra/palavra recursiva) e assumir a noção de ω recursiva consiste apenas de uma sobreposição da ideia de que há um constituinte que abriga a prosodização dos clíticos14. Vogel (2009) trata da diferença entre análises que consideram um constituinte como o C e análises que consideram as estruturas de clítico e hospedeiro como uma ω recursiva15. Para a autora, ambas as abordagens se diferem quanto à aceitabilidade de recursividade na hierarquia prosódica. Por princípio, a noção de recursividade é o que distingue a estrutura 14 Como apresentado, na segunda edição do Prosodic Phonology, Nespor e Vogel (2007) reafirmam sua posição favorável ao constituinte C. Portanto, no decorrer deste trabalho, será referida somente a primeira versão da obra, de 1986, tendo em vista que na edição mais recente não ocorreram mudanças quanto à concepção teórica de constituintes que compõem a hierarquia prosódica. 15 Vogel propõe a renomeação do constituinte C para Grupo Composto. Com a nova denominação, a autora inclui também a prosodização de compostos nesse domínio. Desse modo, a mudança no nome do constituinte se faz mais coerente ao tipo de elementos que passam a compô-lo (sequências de clítico e hospedeiro e estruturas de palavras compostas). Assim como o dos clíticos, o estatuto prosódico de compostos é um problema, em especial pela presença de mais de um acento. Trabalhos como os de Vogel (2009), Vigário (2007, 2010), Guzzo (2015), Toneli (2015) propõem a prosodização de compostos em um constituinte prosódico específico. A proposta de Peperkamp (1997), Bopp da Silva (2010) e Schwindt (2013) defendem que compostos se prosodizam como estrutura recursiva. 36 prosódica (não recursiva) da estrutura sintática (recursiva). Essa diferença quanto à recursividade permite que a noção de constituinte prosódico seja definida com base em propriedades específicas do componente fonológico. Portanto, segundo Vogel (2009), a presença de um constituinte específico para a prosodização do clítico acarreta menos problemas à constituição da estrutura prosódica. Ao avaliar a necessidade de um constituinte como o C, Vogel (2009, p. 18) dialoga com a solução que indica mudança nos princípios de boa-formação, ou seja, a de um enfraquecimento que permita a um constituinte dominar mais que um domínio abaixo, como representado a seguir: (1.11) Cn Cn-2 Mantendo uma abordagem teórica de que na hierarquia prosódica há um domínio localizado acima da ω e abaixo da ϕ, Vigário (2007, 2010) apresenta uma revisão do C, a partir do que tinha sido definido em relação a esse constituinte na proposta de Nespor e Vogel (1986). A reanálise defendida por Vigário discute que o constituinte seja renomeado em função dos elementos que estão sob seu domínio, assim, de C, o constituinte passa a ser denominado Grupo de Palavra Prosódica (PWG, do inglês Prosodic Word Group), posto que, segundo Vigário (2007, p. 679), “o que este constituinte agrupa não são, necessariamente, clíticos, mas sim palavras prosódicas”. Assim, compõem o PWG: palavras derivadas com sufixos que formam domínios acentuais independentes da sua base (-mente, z-avaliativos, -avos), palavras derivadas com prefixos acentuados (e.g. pré-acentual), compostos morfológicos (não-lexicalizados), compostos morfossintáticos (e.g. porta-óculos), alguns compostos sintácticos (com certo grau de lexicalização), estruturas mesoclíticas (e.g. dar-te-emos), siglas (e.g. RFM), sequências de letras (e.g. em matrículas, como LM-33-53), sequências de letras e números (e.g. nome de estradas N1) e certas sequências de 37 numerais+N (onde parece haver um efeito de frequência, associado à pertença dos membros da expressão e classes fechadas) (VIGÁRIO, 2007, p. 683) Em relação aos clíticos, a remodelação do antigo C para o constituinte PWG tem por consequência a exclusão da prosodização dos clíticos do constituinte intermediário entre a ω e a ϕ16. Dessa maneira, a proposta de Vigário (2007, 2010), quanto à integração prosódica dos clíticos, admite recursividade na formação de estruturas prosódicas (cf. na próxima seção: Vigário, 1999; 2003). Fazendo um paralelo entre as propostas de manutenção de um constituinte intermediário na hierarquia prosódica, salientamos a diferença entre a concepção de Vigário (2007, 2010) e a de Vogel (2009), em especial, pelo fato de que Vogel mantém a prosodização dos clíticos no constituinte originado da revisão do C, ou seja, o Grupo Composto, e não admite recursividade na construção de nenhum domínio prosódico. Contrária à noção de C (e de qualquer outro constituinte específico de prosodização dos clíticos), Inkelas (1990) aceita recursividade na formação de domínios prosódicos. Em seu trabalho, a autora defende que estruturas de clítico e hospedeiro formam uma ɷ recursiva. Essa formalização leva em consideração que a prosodização dos clíticos é mais bem explicada a partir da diferença entre: (i) palavras prosódicas e regras lexicais; e (ii) palavra prosódica e regras pós-lexicais. Isto é, haveria palavras prosódicas formadas no léxico (morfologia) e palavras prosódicas formadas no pós-léxico (sintaxe); essas últimas incluiriam os clíticos. Vale frisar que a proposta de Inkelas (1990) é desenvolvida em um arcabouço que a autora define como Fonologia Lexical Prosódica, o qual, segundo Lee (1995, p. 8), 16 A posição de um constituinte intermediário entre a ω e a ϕ pode ser questionada se considerados trabalhos que apontam a ϕ e a I também como hospedeiros dos clíticos (cf. INKELAS, 1990; PEPERKAMP, 1997). Desse modo, se o hospedeiro do clítico não é unicamente uma ω não se justifica que o constituinte específico das estruturas de clítico e hospedeiro esteja localizado entre a ω e a ϕ. 38 “introduz os constituintes prosódicos no léxico, que funcionam como domínio de aplicação de regras fonológicas, motivadas independentemente das estruturas métricas – mora, sílaba, pé e palavra prosódica”. Nessa abordagem de Inkelas (1990), a retirada do C do conjunto de constituintes prosódicos simplifica a hierarquia prosódica, pois as evidências para a existência desse constituinte podem ser reinterpretadas com a distinção na formação de palavras prosódicas. A partir de dados do PB, Guzzo (2015) delega outro estatuto à recursividade na estrutura prosódica. A autora defende que a recursividade seja admitida como mecanismo de adjunção do clítico ao hospedeiro e não como formação de constituintes, posição que é defendida em Inkelas (1990) e Zec e Inkelas (1991), por exemplo. Ou seja, para Guzzo (2015, p. 92), “recursão é o mecanismo pelo qual, em representação prosódica, constroem- se relações hierárquicas dentro de constituintes”. Essa noção adotada pela autora permite formalizar, por exemplo, que, em uma sequência de clíticos, todos estão dependentes prosodicamente do mesmo hospedeiro, como mostrado em (1.12), em que D equivale a um domínio prosódico17. (1.12) D D D PWd A B C HOSP O de que falávamos 17 Na pesquisa de Guzzo (2015), domínio diz respeito à constituição interna de um constituinte prosódico. Portanto, constituinte trata-se da estrutura que é formada a partir das unidades organizadas sob um domínio. 39 Nessa representação, os clíticos: (i) que é ligado diretamente ao hospedeiro falávamos; (ii) de se liga ao constituinte formado por que falávamos; e (iii) o se liga à estrutura que já existe e forma o constituinte: o de que falávamos. De acordo com Guzzo (2015), essa formalização, embora recursiva, assegura a relação entre clítico(s) e hospedeiro. Essa proposta de que a recursividade é um mecanismo de adjunção prosódica conserva a relação de que os clíticos vão se ligando, a partir da direita, à estrutura formada inicialmente apenas pela palavra hospedeira. No âmbito da OT (PRINCE; SMOLENSKY, 1993), Selkirk (1996, 2004) adota o conceito de restrições de dominância prosódica, apresentadas em (1.13), em substituição à noção de princípios de boa-formação. Sob essa mudança está subjacente a diferença entre os conceitos de princípio e restrição, ou seja, enquanto princípios sempre devem ser atendidos, restrições podem ser violadas. Vale salientar, que a concepção de gramática na OT é diferente daquela baseada em princípios e parâmetros na qual se fundamentam os modelos iniciais da Fonologia Prosódica. Em síntese, a gramática na OT é constituída de um componente “GEN” que gera as estruturas linguísticas as quais serão avaliadas por “EVAL”, componente que compara os possíveis outputs, a partir de um ranking de restrições. Uma característica importante dessa diferença de concepção de gramática está justamente na possibilidade de violação dos padrões subjacentes à constituição dos domínios prosódicos. Por consequência, essa característica também se mostra mais abrangente no tocante às particularidades de cada língua, como mais à frente será explicado. 40 (1.13) Restrições de Dominância Prosódica18 Layeredness: Nenhum Ci domina um Cj, j>i “Nenhuma σ domina um Ft” Headedness: Qualquer Ci deve dominar um Ci-1 (exceto Ci = σ) “uma PWd deve dominar um Ft” Exaustividade: Nenhum Ci domina imediatamente um constituinte Cj, ji (e.g., “No σ dominates a Ft”) / (ii) Headedness. Any Ci must dominate a Ci-1 (except if Ci = σ) (e.g., “A PWd must dominate a Ft) / (iii) Exhaustivity. No Ci immediately dominates a constituent Cj, j < i-1 (e.g., “No PWd immediately dominates a σ”) / Nonrecursivity. No Ci dominates Cj, j=i (e.g., “No Ft dominates Ft) (cf. SELKIRK, 2004, p. 466-467). 41 1.14b); por fim, o clítico livre é mais independente do hospedeiro e é prosodizado diretamente na ϕ20 (cf. 1.14c). (1.14)21 a. clítico interno ((fnc lex)ɷ)ϕ b. clítico afixal ((fnc (lex)ɷ)ɷ)ϕ c. clítico livre (fnc (lex)ɷ)ϕ Esses três tipos de clíticos prosódicos, defendidos por Selkirk (1996, 2004), são, segundo a autora, possibilidades universais. Essa afirmação implica que, em todas as línguas do mundo, o funcionamento dos clíticos pode ser de natureza interna, afixal ou livre. Porém, em uma língua não há necessariamente todos os tipos de clíticos, como atesta, por exemplo, Simioni (2008), para o PB. Cada tipo de clítico tem um domínio de prosodização distinto (i.e., ω, ω recursiva, ϕ), fato que implica que esteja envolvido um ranqueamento de restrições de dominância prosódica que é específica de língua para língua a depender do tipo de clítico que é encontrado. Assim, essa proposta de Selkirk (1996, 2004), baseada na OT, tem um poder mais abrangente na explicação de fatos de línguas particulares, o qual é decorrente da forma como a teoria prevê a organização universal da informação prosódica, ou seja, a partir de um conjunto de padrões a ser seguido (i.e., as restrições de dominância prosódica), mas que podem ser atendidos em conformidade com o funcionamento de cada língua. Por sua vez, quando se trata de um arcabouço teórico fundamentado em princípios, ainda que a partir de uma visão enfraquecida, as diferenças linguísticas entre funcionamento dos clíticos têm 20 Peperkamp (1997), para os clíticos do italiano, interpreta os tipos de clíticos como tipos de prosodização. Nessa abordagem, a diferença relevante não é sobre o elemento clítico, mas cobre a forma de integração na estrutura prosódica. 21 Notações: fnc: palavra funcional; lex: palavra lexical. Essa notação mostra que a partir de uma única estrutura sintática (fnc + lex) é possível obter diferentes estruturas prosódicas. 42 uma formalização mais fixa, agrupada em um único domínio prosódico (NESPOR; VOGEL, 1986; VOGEL, 2009). Como consequência desse traço menos flexível, está o fato de que as línguas particulares devem seguir sempre o mesmo padrão na representação prosódica das estruturas e, para tanto, é necessário encontrar evidências fonológicas que justifiquem a formação de um domínio específico de sequências compostas por clíticos. Em resumo, procuramos demonstrar que a investigação do processo de prosodização dos clíticos esbarra em problemas de constituição da estrutura prosódica. Observando a falta de consenso quanto ao domínio prosódico a que pertencem os clíticos no interior das possibilidades teóricas descritas, essa discussão permite problematizar uma questão importante sobre a universalidade da estrutura prosódica, ou melhor, da forma como ela é constituída, portanto, com base em princípios fixos ou regras flexíveis que atendem as particularidades das línguas. A fim de acrescentar fatos para embasar o desenvolvimento de discussão dessa temática, serão apresentados na seção seguinte, os argumentos que sustentam as abordagens de formalização da prosodização dos clíticos ora apresentadas. 1.2. Evidências da prosodização de clíticos: processos fonológicos Nas investigações sobre prosodização, processos fonológicos constituem-se em evidências importantes para endossar abordagens teóricas. No caso dos clíticos, esses processos são fundamentais para ser sustentada a proposta de um domínio prosódico específico (quando são identificados processos considerados exclusivos da sequência de clítico e hospedeiro) ou para se defender a proposta alternativa segundo a qual clíticos seriam prosodizados em diferentes constituintes prosódicos, não havendo um constituinte 43 específico. No decorrer desta seção, análises de clíticos do PB serão apresentadas com o intuito de mostrar que definir o estatuto prosódico desses elementos gera diferentes interpretações mesmo quando são considerados fatos de uma mesma língua. A assunção tradicional de que os clíticos se aproximam ora do estatuto de palavras independentes e ora do estatuto de afixos (ZWICKY, 1985) é o ponto de partida para Nespor e Vogel (1986) assumirem que os clíticos têm natureza híbrida, ou seja, são elementos com um funcionamento particular. Essa natureza é demonstrada pelo fato de as sequências de clítico e hospedeiro serem um domínio de aplicação de regras fonológicas que não são observadas em nenhum outro domínio. Por essa razão, as autoras defendem que clítico e hospedeiro compõe um constituinte independente da hierarquia prosódica. No grego, condições de boa-formação na localização de acento preveem a presença de acento em uma das três últimas sílabas (1.15a) e não permitem mais que duas sílabas não-acentuadas localizadas à direita do acento primário. Em uma sequência de hospedeiro mais enclítico, é aplicada uma regra de reajuste de acento (1.15b), em que a presença do enclítico leva à inserção de um novo acento da borda direita da palavra (cf. NESPOR; VOGEL, 1986, p. 151): (1.15) a. διάβασε (leia) b. διάβασέ το (leia-o) > διάβασέ μου το (leia-o para mim) Em palavras compostas, equivalentes a uma ω no grego, o acento primário também obedece à condição de acento nas três últimas sílabas. No composto, o acento não recai sobre nenhuma das sílabas que portavam o acento primário antes da composição (1.16). 44 (1.16) a. palavra simples: kúkla (boneca) spíti (casa) b. palavra composta: kuklóspito (casa de boneca) Da comparação entre (1.15) e (1.16), Nespor e Vogel (1986) concluem que o reajuste de acento que ocorre em um C e em palavras compostas é essencialmente diferente, pois: (i) no C, o acento primário do hospedeiro não é alterado para qualquer outra sílaba da palavra, mas um acento extra é adicionado quando é violada a condição de boa-formação de acento; (ii) já nos compostos, o acento primário é redefinido para uma nova sílaba e esse processo não é motivado pela condição de que a partir do acento primário não se exceda duas sílabas átonas. As autoras defendem, dessa maneira, que a regra de reajuste de acento é específica do C. A posição do acento de palavra também foi apresentada por Veloso (2012) como uma evidência para a existência do C no Português Europeu (PE). Como no grego, em línguas românicas, como o português, o acento não excede a terceira sílaba a partir da posição direita da palavra, como em falávamos. Para Veloso (2012, p. 7), casos de estruturas proproparoxítonas, ou seja, “palavras/grupos acentuais com acento para lá da terceira sílaba a contar do seu limite direito” (cf. falávamo-nos), só são possíveis no português por se tratar de uma combinação de hospedeiro e clítico, sendo que se os clíticos integrassem uma ω, estruturas proproparoxítonas não seriam aceitáveis em razão da regra de localização de acento. Assim, o autor assume que o C é o constituinte prosódico que melhor representa a prosodização dos enclíticos em PE. A perspectiva adotada pelo autor já assume uma versão enfraquecida dos princípios de boa-formação, conforme Vogel (2009). 45 Tanto no grego (NESPOR; VOGEL, 1986) quanto no PE (VELOSO, 2012), as evidências de natureza acentual convergem para a interpretação do clítico como um elemento que está externo à palavra. Desse modo, o clítico, segundo as evidências ora apresentadas, não faz parte do hospedeiro, já que não altera a sua estrutura, mas passa a formar com ele uma nova estrutura prosódica. No PB, Bisol (1996, 2000a, 2005) defende o C como um domínio da hierarquia prosódica. Para a autora, os clíticos não formam parte de palavra, uma vez que são suscetíveis a regras pós-lexicais junto com a ɷ, como a neutralização da átona final. Nos exemplos em (1.17), as vogais médias dos clíticos são afetadas pela mesma regra de alçamento que atinge as vogais das sílabas átonas em fim de palavra, como é destacado entre os colchetes (BISOL, 1996, p. 234, adaptado)22: (1.17) m[e] lev[e] > m[i] lev[i] [o] lequ[e] > [u] lequ[i] lev[e]-m[e] > lev[i]-m[i] Porém, a evidência principal de que a combinação de clítico e hospedeiro constitui “o primeiro constituinte prosódico pós-lexical” (BISOL, 2000a, p. 19) é encontrada a partir dos processos de sândi, designadamente a degeminação e a elisão. Bisol (2000a, p. 26) mostra que a degeminação ocorre dentro de palavra com e sem contexto de fronteira morfológica (1.18), entre clítico e hospedeiro (1.19) e no interior de uma ϕ (1.20). 22 Bisol (2000a) também destaca a invisibilidade do clítico à restrição das três janelas (acento de palavra não ir além da terceira sílaba a partir da borda direita), que afeta a ω. Salienta-se, porém, que essa é uma característica de enclíticos, predominantemente, conforme já apresentado por Nespor e Vogel (1986) e Veloso (2012). Por isso, não será explorada essa evidência no trabalho de Bisol (2000a), pois como já discutido em outros trabalhos, a posição enclítica não caracteriza a gramática do PB (ver ABAURRE; GALVES, 1996). 46 (1.18) reestabelecer > restabelecer (com fronteira) álcool > álcol (sem fronteira) (1.19) do oceano > [do]ceano (1.20) casa amarela > ca[za]marela A elisão da vogal /a/, por sua vez, não se aplica no interior de uma palavra (1.21), mas ocorre entre clítico e hospedeiro (1.22) e entre elementos de uma ϕ (1.23) (BISOL, 2000a, p. 26): (1.21) baunilha > *bunilha (1.22) uma hotelaria > u[mo]telaria (1.23) casa escura > ca[zes]cura Na observação de ambos os processos, Bisol (2000a) defende que se a elisão, ao contrário da degeminação, inicia aplicação a partir de uma combinação de clítico e hospedeiro, ignorando o domínio de palavra. Segundo a autora, esse fato mostra que a elisão se trata de um fenômeno fonológico que abrange apenas estruturas pós-lexicais. Portanto, ela constitui uma evidência de que o clítico “não faz parte da palavra fonológica 47 lexical, mas constitui com a palavra de conteúdo com que se relaciona um constituinte prosódico pós-lexical” (p.28). De acordo com a autora, esse constituinte é o C. A elisão da vogal /e/ é, para Bisol (2005, p. 175), o processo fonológico que só se aplica na presença de um clítico. O processo ocorre especialmente entre dois clíticos (cf. 1.24) e entre um clítico e uma palavra funcional (cf. 1.25). Porém, não se aplica na combinação de um clítico e uma palavra lexical (cf. 1.26), tampouco no interior de ϕ (cf. 1.27). (1.24) de+um > dum dia (1.25) em outro dia > noutro dia (1.26) de amor > *damor (1.27) cidade antiga > *cidadantiga A elisão não é observada em (1.26) e (1.27), pois o elemento designado terminal (DTE) do constituinte impede a aplicação do processo (respectivamente: amor e antiga)23. De todo modo, é sempre na presença de um clítico que a regra acontece, sendo a elisão da vogal /e/ um fenômeno exclusivo que ocorre entre elementos funcionais e, portanto, uma regra específica do domínio que abrigam clíticos e um hospedeiro acentuado. Para Bisol (2005), esse processo é mais uma evidência da existência do C para explicar fatos do PB. 23 Um elemento designado terminal consiste em um “elemento de proeminência relativa que projeta na grade uma posição forte, pronta para carregar o acento preponderante” (BISOL, 2005, p. 174). 48 Retornando à prosodização de clíticos no PE, Vigário (1999, 2003) e Frota e Vigário (2003) trazem argumentos a favor de assimetria na prosodização de enclíticos e de proclíticos, com base em processos segmentais. Os proclíticos se unem ao hospedeiro que lhe segue por adjunção, já os enclíticos são incorporados junto à ω precedente. Assim, segundo essa perspectiva, enclíticos e seus respectivos hospedeiros são dominados por uma só ω pós-lexicalmente, e os proclíticos ligam-se por adjunção às ɷ que o seguem, também, no nível pós-lexical, formando, nesse caso, uma ɷ recursiva. Nessa proposta, Vigário (2003, p. 186) observa que regras fonológicas pós-lexicais, como o processo de semivocalização da segunda vogal (V2) em uma sequência vocálica, que se aplica na borda direita final de palavra (cf. 1.28), também afeta uma sequência de palavra e enclítico (cf. 1.29), evidenciando que o clítico (restrito aos pronominais em posição pós-verbal) tem comportamento idêntico ao de segmento interno de palavra. O mesmo processo não é verificado quando um clítico pronominal está localizado antes do verbo (cf. 1.30), nem para artigos definidos com mesma cadeia sonora (cf. 1.31) (cf. VIGÁRIO, 2003): (1.28) o ri[u]/[w] lento (o rio lento) (1.29) eu vi-[u]/[w] deitado (eu vi-o deitado) (1.30) só a ti [u]/*[w] diz (só a ti o diz) (1.31) eu vi [u]/*[w] texto (eu vi o texto) 49 Por sua vez, a presença de um proclítico é contexto favorável para a ocorrência de regras pós-lexicais na margem esquerda inicial de palavra, sinalizando, segundo Vigário (2003), que entre o proclítico e o hospedeiro há a presença de uma fronteira prosódica: nesse caso, o clítico não pode ser considerado parte da palavra. A presença de um proclítico (cf. 1.32) não altera a realização da vogal em início de palavra prosódica (cf. 1.33) (VIGÁRIO, 2003, p. 197): (1.32) a organização [o]/[ɔ] (1.33) organização [o]/[ɔ] Essa abordagem de clíticos pronominais feita por Vigário (1999, 2003) também é considerada válida por Brisolara (2008) para o PB. A pesquisadora brasileira defende que, no PB, os clíticos se integram à estrutura prosódica por recursividade, de modo semelhante ao proposto por Vigário (1999, 2003) para os proclíticos do PE. A representação para a incorporação prosódica dos clíticos pronominais, conforme indicada por Brisolara (2008, p. 153, adaptado) é apresentada para os proclíticos em (1.34) e para os enclíticos em (1.35). (1.34) [[[se]σ[conta]ω]ω]ϕ (1.35) [[[conta]ω[se]σ]ω]ϕ As formalizações em (1.34) e (1.35) mostram que no PB não há assimetria na prosodização de enclíticos e proclíticos, pois os clíticos em ambas as posições são 50 adjungidos à ω. Uma evidência da simetria de proclíticos e enclíticos é o processo de neutralização da átona final (ver exemplo 1.17), uma vez que esse processo se aplica independentemente da posição em que o clítico está em relação ao hospedeiro. Como constatado inicialmente por Bisol (2005, p. 164) e reafirmado por Brisolara (2008, p. 154), os clíticos do PB são suscetíveis apenas a regras pós-lexicais e, assim, não podem ser integrados como parte de uma ω simples. No entanto, Brisolara assume que o C não é um constituinte da hierarquia prosódica, admitindo a prosodização dos clíticos como uma palavra recursiva, a qual está no mesmo domínio da ω, uma vez que nas sequências de clítico e hospedeiro só há um acento de palavra. Além disso, as regras fonológicas pós- lexicais que afetam os clíticos também atingem a ω (por exemplo, neutralização de átonas finais). Observa-se que, nessa proposta de Brisolara (2008), esse argumento é crucial para a defesa de que a prosodização dos clíticos ocorre em um domínio de palavra pós-lexical, pois caso fosse assumida a prosodização no constituinte superior à ω, ou seja, na ϕ, por consequência determinadas regras da língua deveriam mudar seu domínio de aplicação. Dando continuidade aos argumentos que sustentam as posições contrárias à visão de que os clíticos são prosodizados em um domínio específico da escala prosódica, na seção anterior foi discutida a proposta de Selkirk (1996, 2004) acerca da existência de tipos universais de clíticos. Sob essa perspectiva, os tipos de clíticos propostos pela autora estão discutidos em Simioni (2008) para o PB. Segundo Simioni (2008), os clíticos do PB são do tipo livre e se anexam diretamente a uma ϕ. Quantos aos outros tipos de clíticos e domínios de prosodização, a autora refuta a possibilidade de ser um clítico afixal com base em processos fonológicos que atingem determinados prefixos legítimos adjungidos a uma raiz (SCHWINDT, 2000). Para Simioni (2008), esses tipos de prefixos apresentam, por exemplo, processos de ressilabificação que 51 não ocorrem em uma combinação de clítico e palavra. É o caso de prefixos terminados em segmento nasal seguidos de palavras iniciadas por vogal, como em (1.36), que passam a ter a sua consoante nasal como o ataque da próxima sílaba da palavra, mas o mesmo não se aplica aos clíticos, como mostrado em (1.37) (cf. SIMIONI, 2008, p. 438, adaptado): (1.36) (an+(aeróbico)ɷ)ɷ > (a[na]eróbico)ɷ)ɷ (1.37) (em(apuros)ɷ)ϕ > *(e([ma]puros)ɷ)ϕ A configuração que representa um clítico interno leva à interpretação de que o clítico está integrado à ω. A consequência dessa interpretação é a de que o clítico funcionaria, quando proclítico, como uma sílaba pretônica. Simioni (2008) mostra, por exemplo, que clíticos terminados pelos segmentos /e/ e /o/ sofrem processos característicos de sílabas átonas finais de palavra, como é o caso da neutralização da átona final. Esse processo de neutralização, porém, não é esperado em sílabas pretônicas, como mostra (1.38a), com exceção para os casos de harmonia vocálica, como em (1.38b), e de alçamento sem motivação aparente (BISOL, 2014), como em (1.38c). (1.38) a. elefante > *[i]l[i]fante b. m[e]nino > m[i]nino c. b[o]neca > b[u]neca Portanto, para Simioni, a configuração a qual o clítico se anexa diretamente a uma ϕ é a estrutura que se mostra mais coerente para o PB quando se toma por base a observação de processos fonológicos segmentais, pois indica que o clítico é um elemento diferente de 52 um afixo que está integrado e adjungido a uma ω, ou seja, marca que o tipo de relação entre clítico e hospedeiro é mais livre. Assim, clítico e hospedeiro formariam uma ϕ com apenas um item acentuado, configuração que seria semelhante às frases formadas por apenas uma ω. Recentemente, Guzzo (2015) propôs que a prosodização de clíticos pronominais e não pronominais do PB é formalizada em constituintes prosódicos distintos. Os clíticos pronominais estariam no domínio do Grupo Composto (VOGEL, 2009), conforme representação em (1.39a) e os não pronominais (i.e., artigos, preposições, conjunções) se integrariam a uma ϕ, como formalizado em (1.39b). (1.39) a. b. CG PPh PWd PWd σ σ me machuquei de frio A distinção na prosodização de tipos de clíticos (pronominais e não pronominais) é feita a partir da comparação do funcionamento morfossintático e fonológico dos clíticos. Por um lado, clíticos não pronominais apresentam fusão clítica (de+um = dum), não têm uma classe específica de hospedeiro, são afetados com mais frequência pela regra de neutralização da átona final (cf. GUZZO, 2010) e podem formar uma sequência de clíticos (o de que falávamos). Por outro lado, clíticos pronominais não se fundem a nenhum tipo clítico (me+o = *mo) e sempre elegem formas verbais como hospedeiro (me deu). As características dos clíticos pronominais indicam que junto ao hospedeiro esses clíticos 53 formam uma estrutura composicional, ou seja, mais dependente. Já os clíticos não pronominais são mais independentes e funcionam como elementos sintáticos. Considerados os procedimentos de investigação da prosodização de clíticos, constatamos que poucas pesquisas fundamentaram suas análises e argumentações no funcionamento de uma classe específica de clítico. Foi possível perceber que quando analisado particularmente um tipo de clítico, os estudos focalizaram a análise dos pronominais, os quais, dada sua característica de mobilidade em relação ao hospedeiro, trazem questões interessantes quanto à integração prosódica de proclíticos e enclíticos em diferentes línguas. Apesar de não haver distinção clara entre classes de clíticos, entendemos que, em alguma medida, certas perspectivas teóricas têm se concentrado em uma diferenciação no funcionamento dos clíticos, ao proporem diferentes domínios de prosodização. Selkirk (1996, 2004) discute diferentes tipos de clíticos e de prosodização com base em evidências de línguas como o inglês e o servo-croata. Peperkamp (1997), na mesma linha, defende haver diferentes constituintes de prosodização para os clíticos italianos. No PB, o trabalho de Guzzo (2015) discute diferentes domínios de prosodização, ao propor a existência de dois conjuntos de clíticos: pronominais e não pronominais. A autora sustenta essa divisão em diferenças que caracterizariam os funcionamentos morfossintático e fonológico de cada conjunto. Nesta tese, ponderamos os apontamentos da literatura sobre prosodização de clíticos, a partir do funcionamento de uma classe específica: os clíticos preposicionais. O pressuposto para eleição dessa classe está firmado em duas constatações. A primeira se refere às características linguísticas das preposições, em especial, ao complexo funcionamento morfossintático dessas formas (cf. próxima seção). A segunda constatação 54 está no registro gráfico dos clíticos preposicionais em casos de segmentação em palavras, o qual revela certas regularidades que corroboram a particularização das preposições átonas (cf. próximo capítulo). A seguir, será explicitada a primeira constatação, com base na apresentação de características morfossintáticas, gramaticais e também prosódicas das preposições do PB. 1.3. Clíticos preposicionais: características morfossintáticas, gramaticais e prosódicas Diferentemente de verbos, substantivos e adjetivos, que são classes de palavras de categoria lexical, as preposições, ao lado de outras classes como artigos, pronomes e conjunções, são consideradas uma categoria funcional. Na literatura linguística, é empregado alternativamente o conceito gramatical, para a referida categoria funcional (ILARI et.al., 2015; CASTILHO, 2009). Nesta tese, adotamos a denominação funcional, a qual é empregada em trabalhos sobre prosodização de clíticos (NESPOR, VOGEL, 1986; SELKIRK, 1996, 2004, ZEC, 2005). Em relação à constituição das categorias lexical e funcional, se considerados os traços nominal [N] e verbal [V], os quais combinados em diferentes graus (+ ou -) definem um núcleo lexical, as preposições não se enquadram na classificação de categoria funcional, ao receberem os traços distintivos [-N] [-V]. Para o português, Mioto et. al. (2007) avaliam que as preposições não são uma classe de palavras puramente lexical como são os verbos, os substantivos e os adjetivos, em função de características que serão discutidas a seguir. Embora os autores ponderem a classificação das preposições como uma categoria lexical, há itens, como sobre, que, igual aos elementos lexicais, são capazes de selecionar 55 semanticamente seu argumento. Em relação ao fato de certas preposições terem características de palavras lexicais, interessa destacar que essa discussão não será aprofundada, uma vez que as preposições investigadas nesta tese apresentam claramente características que as relacionam à categoria funcional de palavras. Conforme Abney (1987, p. 64-68) e Cook e Newson (1996, p. 187), as palavras de categoria lexical constituem uma classe aberta (i.e., admitem a criação de novos elementos24), são independentes tanto fonológica quanto morfologicamente (i.e., são palavras prosódicas e podem ocorrer sem complementos), podem ter um ou mais complementos (i.e., em se tratando de verbos, esses podem ser transitivos ou bitransitivos). Em oposição, as palavras de categorial funcional formam uma classe fechada (i.e., apresentam um número restrito de elementos), em geral são clíticos fonológicos25 e dependentes morfologicamente (i.e., formas que precisam necessariamente de um complemento: *fomos ao cinema com). Em termos semânticos, entende-se que as palavras funcionais não têm o que Abney (1987), por exemplo, definiu como conteúdo descritivo. Esse conceito diz respeito à ligação de um elemento com o “mundo real”. De acordo com o autor, se uma pessoa diz bola, automaticamente tem-se qual é o significado desse substantivo, sem necessariamente tê-lo a sua frente. Tal característica não se verifica para palavras funcionais, cujo sentido é de natureza abstrata, gramatical. Em termos da representação prosódica, também há distinção entre a prosodização de palavras lexicais e funcionais (SELKIRK, 1996, 2004). Para o PB, Toneli (2009) constata 24 Conforme destaca Basílio (2014), processos de formação de palavras (derivação e composição) são os responsáveis pela expansão lexical. 25 Nem todas as palavras funcionais são clíticos fonológicos. Algumas delas, ao formarem pé e receberem acento primário, se configuram como ɷs, como é o caso da preposição sobre. No entanto, em alguns casos, as palavras funcionais podem ser suscetíveis a reduções, perdendo informações segmentais e se cliticizando. A preposição para, por exemplo, representa um processo de cliticização, sendo realizada, na fala, como “pra” e até mesmo “pa” (ver Bisol (2005) e Marcato (2013) sobre a cliticização da preposição para, respectivamente, nas variedades gaúcha e paulista do PB). 56 que palavras lexicais, por carregarem acento primário, são prosodizadas como ω. Por sua vez, as palavras funcionais são bastante variadas, podendo ser prosodizadas como clítico ou como ω. As palavras funcionais dissílabas e trissílabas atendem a condição de formação de pé, recebem acento primário e se prosodizam como ω, assim como as palavras lexicais. Já as palavras funcionais monossilábicas são átonas e se prosodizam como um elemento clítico. No entanto, Toneli (2009) ressalva que em contexto de focalização, palavras funcionais monossilábicas recebem um evento tonal, sendo prosodizadas como ωs. Quanto à constituição da classe das preposições, com base em Câmara Jr. (1979), destacamos que nas línguas românicas elas substituíram a marcação flexional do sistema de casos do latim. Em virtude dessa substituição, as preposições se tornaram os elementos indicativos das relações de subordinação entre os constituintes de uma