UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” INSTITUTO DE BIOCIÊNCIAS - RIO CLARO MATHEUS HENRIQUE MIGLIANI LELLIS BIOLOGIA E ARTE: ENCONTROS E DESENCONTROS Rio Claro 2015 CIÊNCIAS BIOLÓGICAS MATHEUS HENRIQUE MIGLIANI LELLIS BIOLOGIA E ARTE: ENCONTROS E DESENCONTROS Orientador: PROF Dr. Romualdo Dias Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Instituto de Biociências da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - Câmpus de Rio Claro, para obtenção do grau de Bacharel e Licenciado em Ciências Biológicas. Rio Claro 2015 Lellis, Matheus Henrique Migliani Biologia e arte: encontros e desencontros / Matheus Henrique Migliani Lellis. - Rio Claro, 2016 122 f. : il., figs. Trabalho de conclusão de curso (Ciências Biológicas) - Universidade Estadual Paulista, Instituto de Biociências de Rio Claro Orientador: Romualdo Dias 1. Ciência - Filosofia 2. Ciência e as artes. 3. Criação. 4. Corpo. 5. Subjetividade. I. Título. 501 L542b Ficha Catalográfica elaborada pela STATI - Biblioteca da UNESP Campus de Rio Claro/SP Dedico esse trabalho a todos os artistas de alma, em cujo seio a arte dorme e através de cujo corpo contaminam vivamente o mundo. AGRADECIMENTOS A meu pai, Paulo, minha mãe, Eunice, e minha irmã, Júlia, pelos tantos momentos ternos e pelo suporte que me dão. Vocês são essenciais em minha vida. À Priscila Duarte, pela contínua lembrança de que a vida e a arte pulsam em cada pequeno momento. Pelos momentos que ficam para sempre. Pelos aprendizados que só a convivência e a proximidade podem trazer. À Helena Oliveira, pelo companheirismo – por me ensinar mais sobre a amizade. À Letícia, que me ajudou a olhar para mim mesmo e para o mundo de outras formas. À Renata, que me auxiliou a criar um espaço para ouvir e ser ouvido. Por me ajudar a construir um barco que navegue com resiliência as tempestades da vida. Ao mestre Cirilo Bento, pelos toques musicais e humanos. Pela sensibilidade com que me guiou na música. Ao grupo Gira-sol, pelo acolhimento tão caloroso e humano (vivo), nessa minha reta final na universidade. Estar junto de vocês me deu forças e inspiração para continuar meu caminho. Gratidão. À (ex-)Companhia teatral Bumba-meu-Baco (Olívia, Renan, Fabiana, Rodrigo, Isabela, Isabelle, Iasmin, Paulo, Daniel, Ricardo, Gabriela), pelos momentos intensos, tão próximos, lúdicos e acolhedores. Ao projeto EA Valores (Dalva, Bernadete, professores), pela oportunidade de estar em contato com os “bastidores” da docência, pensando, ouvindo, aprendendo. Ao (ex-) projeto Flauta Doce e Coral Infantil (Professora Dejanira, Dilza, Alana, Daniel), que me possibilitou entrar em contato com a educação pela arte e com crianças que despertavam em mim a alegria de viver, e a Escola Armando Grisi que possibilitou essa vivência. Pelo aprendizado de que só conseguimos ensinar aquilo que pulsa em nós (como o ritmo de uma melodia). Ao grupo Parts (Andreia, Fernanda, Fabiana, Lucas, Helena, Bismarck), que constituiu um espaço para viver a poesia. Pelos encontros vivos, delicados e leves que me ajudaram a continuar acreditando na arte e na união que ela gera. Ao grupo Entre Árvores e à Emilly Cavalcanti, pelo apoio e lições no fazer teatral. Pelas conversas enriquecedoras e inquietantes. A todos os artistas e cientistas que me tocaram de alguma forma e me despertaram inquietações e encantamentos. Sou grato pelos diálogos (des)construtivos e encontros pulsantes. A todos os professores da vida que, muito além de ensinar disciplinas, ensinam pela sensibilidade e pelo toque humano. Ao meu orientador e amigo Romualdo Dias, por todo apoio, instigação e crença nas ideias e no que fui construindo no percurso deste trabalho. Por ter me ensinado sobre a abertura ao diferente e por ter me ajudado a trilhar esse caminho de constante reformulação do viver. Sou grato a todas as pessoas (essas e todas as outras que esqueci de mencionar) que me ajudaram no percurso da vida e que fizeram dessa experiência, de estar vivo, mais rica. Os Estatutos do Homem (Ato Institucional Permanente) Artigo I Fica decretado que agora vale a verdade. agora vale a vida, e de mãos dadas, marcharemos todos pela vida verdadeira. Artigo II Fica decretado que todos os dias da semana, inclusive as terças-feiras mais cinzentas, têm direito a converter-se em manhãs de domingo. Artigo III Fica decretado que, a partir deste instante, haverá girassóis em todas as janelas, que os girassóis terão direito a abrir-se dentro da sombra; e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro, abertas para o verde onde cresce a esperança. Artigo IV Fica decretado que o homem não precisará nunca mais duvidar do homem. Que o homem confiará no homem como a palmeira confia no vento, como o vento confia no ar, como o ar confia no campo azul do céu. Parágrafo único: O homem, confiará no homem como um menino confia em outro menino. Artigo V Fica decretado que os homens estão livres do jugo da mentira. Nunca mais será preciso usar a couraça do silêncio nem a armadura de palavras. O homem se sentará à mesa com seu olhar limpo porque a verdade passará a ser servida antes da sobremesa. Artigo VI Fica estabelecida, durante dez séculos, a prática sonhada pelo profeta Isaías, e o lobo e o cordeiro pastarão juntos e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora. Artigo VII Por decreto irrevogável fica estabelecido o reinado permanente da justiça e da claridade, e a alegria será uma bandeira generosa para sempre desfraldada na alma do povo. Artigo VIII Fica decretado que a maior dor sempre foi e será sempre não poder dar-se amor a quem se ama e saber que é a água que dá à planta o milagre da flor. Artigo IX Fica permitido que o pão de cada dia tenha no homem o sinal de seu suor. Mas que sobretudo tenha sempre o quente sabor da ternura. Artigo X Fica permitido a qualquer pessoa, qualquer hora da vida, uso do traje branco. Artigo XI Fica decretado, por definição, que o homem é um animal que ama e que por isso é belo, muito mais belo que a estrela da manhã. Artigo XII Decreta-se que nada será obrigado nem proibido, tudo será permitido, inclusive brincar com os rinocerontes e caminhar pelas tardes com uma imensa begônia na lapela. Parágrafo único: Só uma coisa fica proibida: amar sem amor. Artigo XIII Fica decretado que o dinheiro não poderá nunca mais comprar o sol das manhãs vindouras. Expulso do grande baú do medo, o dinheiro se transformará em uma espada fraternal para defender o direito de cantar e a festa do dia que chegou. Artigo Final. Fica proibido o uso da palavra liberdade, a qual será suprimida dos dicionários e do pântano enganoso das bocas. A partir deste instante a liberdade será algo vivo e transparente como um fogo ou um rio, e a sua morada será sempre o coração do homem. (Thiago de Mello) Resumo A Biologia e a arte compõem dois campos distintos, porém com pontos de contato: o corpo humano, a organicidade, a natureza, a criatividade presente tanto no campo artístico quanto no campo científico. Onde arte e Biologia se encontram e se desencontram? As articulações entre uma prática científica e a arte podem contribuir para melhor compreensão e maior produção dos sujeitos aí envolvidos? Esse trabalho tem como objetivo estudar possíveis relações entre a arte e a Biologia, em um esforço por explorar e entender os pontos de contato e de afastamento entre esses dois campos situados no plano de nossa formação realizada no curso de graduação. A partir do contato com objetos artísticos bem como o contato com alguns modos de expressão de sensibilidade por parte de alguns cientistas em suas práticas de ciência, exploramos as relações entre os dois campos mencionados. Fazemos o acompanhamento de percursos de sentidos pelos territórios da ciência e da arte, fazendo uma espécie de cartografia, de tal modo que desenhamos as paisagens emergentes no movimento dos sentidos. Palavras Chave: Ciência, Criação, Corpo, Subjetividade. SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO.......................................................................................................10 2. A CARTOGRAFIA DE NOSSAS INQUIETAÇÕES................................................20 3. PERCURSOS PELOS TEXTOS E LEITURAS EM OUTRO MODO DE FAZER CIÊNCIA....................................................................................................................30 3.1 Nosso encontro com Humberto Maturana.................................................30 3.2 Nosso encontro com Jean-Didier Vincent..................................................36 3.3 Nosso encontro com Michel Maffesoli.......................................................38 3.4 Nosso encontro com Luis Carlos Restrepo...............................................43 3.5 Nosso encontro com Suely Rolnik.............................................................47 4. PERCURSOS PELA ARTE....................................................................................52 4.1 A natureza nas belas esculturas de Adrian Arleo......................................52 4.2 Percursos nossos em movimento de poesia.............................................78 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................112 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.....................................................................119 10 Introdução O olhar predominante nas ciências biológicas sobre o corpo humano é de um corpo biológico (corpo com órgãos, corpo material que funciona como um organismo). Nas ciências humanas encontramos a noção de corpo construído pelas relações sociais, tendo em sua constituição efeitos dos pensamentos, das emoções e de um modo de interação com o mundo – ou, falando na linguagem teatral de Antonin Artaud1, constitui-se um “corpo sem órgãos”. Essa segunda concepção de corpo não nega a biologia do homem enquanto organismo vivo, mas adiciona o componente social à noção de corpo e não entende o funcionamento biológico como determinante na ação do indivíduo dentro da sociedade. O corpo compõe a materialidade da vida, confere sustentabilidade ao existir de cada indivíduo, porém não o aprisiona em dinâmicas de instintos. Em nosso corpo não podemos prescindir da materialidade biológica, pois não somos anjos. Vivemos nosso cotidiano com o atendimento de necessidades diretamente relacionadas com a manutenção de nossos corpos. Precisamos nos alimentar, descansar, dormir, praticar exercícios físicos. Precisamos de agasalhos e moradia. Com estes elementos aqui descritos já identificamos marcas que nos auxiliam para afirmar que o corpo é uma construção cultural. Ampliando o nosso olhar sobre os nossos corpos também podemos afirmar que a arte afeta o corpo através de sentimentos e sensações, e portanto já constrói um olhar não reificado sobre aquele. Podemos ainda atentar para as artes que trabalham com o movimento (como a dança e o teatro), que constroem uma relação mais intensa do artista com o corpo, já que este se constitui como um recurso possível para o fazer da arte, em uma luta tensa com o peso e a gravidade. Surgem então perguntas que podem ser exploradas a partir dessas reflexões: pode a Biologia trazer para o corpo outros olhares, que não fiquem limitados a concepção de corpo como organismo? Qual a relação da noção de “corpo social” com a Biologia? Há na Biologia cientistas que deixam expressar esta relação entre a cultura e o corpo humano em suas práticas de pesquisa? Queremos lembrar aqui a nossa experiência com a arte, especificamente com o Teatro. Antes de começar o nosso curso de graduação já tínhamos alguma 1 Aqui nos referimos ao livro “O teatro e seu duplo”. ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. Tradução Teixeira Coelho. São Paulo: Martins Fontes, 2006. 11 experiência com o teatro. Durante a graduação ainda mantivemos, sempre na medida do possível, a atividade teatral. Foi a partir desta experiência que expandimos as nossas inquietações nesta relação entre a arte e a Biologia. Enquanto fazíamos teatro nós nos perguntávamos: o que é o corpo para o teatro? O que é o corpo para a Biologia? Em etapas posteriores de nosso estudo agregamos as nossas indagações a respeito do sujeito, tanto aquele que faz arte, quanto aquele que faz um curso de graduação. Assim fomos estabelecendo relações entre o processo de construção do sujeito e a formação do biólogo. Na fronteira forjada entre estes dois campos de pensamento nós encontramos um lugar de acolhida para as nossas inquietações de jovem e estudante de Biologia. Buscamos um modo de integrar o nosso modo de fazer arte com a tentativa experimentar um modo artista de ser estudante, um modo artista de pensar, um modo artista de escrever. Nosso trabalho de conclusão de curso é uma humilde apresentação dos resultados de nossos esforços no âmbito de busca feita no território estabelecido entre a Arte e a Biologia. A partir desses questionamentos, propusemos estudar as relações entre a concepção de corpo presente nas ciências biológicas, em práticas científicas de alguns estudiosos por nós selecionados, e a concepção de corpo do teatro na elaboração proposta por um autor específico, que é Antonin Artaud. Esta escolha se justifica pelo fato de encontrarmos em seus textos a formulação do conceito do “corpo sem órgãos”. Na apresentação dos resultados deste estudo ainda não foi possível expor todos os desdobramentos provocados por nossas leituras de Antonin Artaud. Vamos deixar este tema para uma oportunidade posterior, pois demanda maior fôlego teórico, e mais tempo de dedicação para as releituras necessárias. Mesmo assim, decidimos manter a nossa preocupação com a relação entre a Biologia e a Arte. Fizemos, portanto, um exercício de mostrar o movimento de nosso pensamento, movidos por estes dois afetos: o da arte e o da Biologia. A partir daquilo que a Biologia nos afetou nós começamos a nos indagar sobre outro modo de fazer ciência, sem perder a atenção com o papel da sensibilidade. As nossas indagações nos fizeram investigar biólogos que já fazem esta prática científica a partir de maior atenção com a sensibilidade, com o sujeito da ciência enquanto um humano tão precário quanto os outros trabalhadores de outras áreas. E descobrimos que estes biólogos não eram lidos em nosso curso. Por outro lado, percebemos que se trata de nomes de cientistas reconhecidos mundialmente. 12 Este fato nos inquietou muito. Por que os jovens estudantes de Biologia, nossos colegas, nunca ouviram falar a respeito destes outros cientistas de nossa área?2 O que nos move neste estudo? Em primeiro lugar é o sofrimento causado por esta inquietação em ver interditado um percurso de formação para a ciência, com alguma possibilidade de experimentar um movimento de criação, um modo artista de estudar, um modo artista de produzir conhecimento. Em nosso corpo nos mantemos em contato com angústias e dúvidas. Nossa pele arde em inquietações diversas. Como a inquietação pode ser algo bom? Ao estar inquieto não há paz, e sem paz não há felicidade. Mas há argumentos que escutamos sobre a inquietação ser algo que faz mexer, que faz mudar, que faz balançar as bases, reconstituir perspectivas. E realmente, a inquietação faz mexer, faz rever visões, e até atitudes. A crise faz o homem buscar alguma experiência nova para a sua vida, auxilia nos esforços de mudança. Mas será que há outro jeito de se colocar no mundo se não pela inquietação ou pela angústia? Desde o Ensino Médio nos sentimos incomodados com a desigualdade social, com a indiferença humana, com a crueldade do sistema no qual vivemos. Ao saber que há pessoas passando fome, morrendo sem de verdade terem vivido, e outras (inclusive nós) vivendo como se nada estivesse acontecendo, também sofremos. Mesmo estando longe, mesmo não vendo, sentimos. Muitas vezes este sentimento de raiva acentua em nós a percepção sobre a indiferença dos outros. Entramos em profunda crise com todas estas descobertas a respeito das injustiças presentes no mundo. Encontramos pessoas que julgavam ser estes questionamentos coisa de jovem ou expressões meramente irracionais. Encontramos muitas dificuldades para sermos entendidos em nossas interrogações. E muitas vezes também nos acomodamos diante da dura realidade. Em meio a muitas descobertas vivemos também um percurso de buscas por entender e viver as emoções (as que eram boas, assim como as que nos incomodavam). E esse processo nos ajudou a olhar a vida em outras perspectivas, sem tanta pressa para fazer uma mudança no mundo, ainda que soubéssemos que muitas coisas estavam erradas, fora de lugar, insensatas e desumanas. Houve uma espécie de resignação, porque começamos a viver mais o que estava próximo de 2 Em uma lista ainda inicial podemos enumerar os seguintes nomes: Humberto Maturana, Francisco Varela, Máximo Sandim, 13 nós e muito menos o que estava longe. A sensibilidade se aprofundou em um nível mais pessoal, e o esquecimento pintou todo o resto do quadro. Despertamos de novo para essas questões do mundo da academia. Percebemos o quanto ainda ficávamos incomodados quando discutíamos, quando líamos ou ouvíamos alguma coisa relacionada com estes temas acima apontados. Mas havia certo preconceito com a política (que de certa forma continua um pouco até hoje, apesar de compreender a necessidade de sua existência), por sentir uma falta de sensibilidade de muitos que lutam pelos direitos e pela justiça, a aparente fúria indignada que controla as ações e pensamento de alguma parte dessas pessoas. É certo que refletir sobre o que acontece no mundo e tomar consciência das consequências do sistema (a exclusão, os interesses, as atitudes egoístas e cruéis), enlouquece e faz ferver a cabeça e o corpo de quem se abre para sentir. Mas virar o barco para o extremo oposto (passando de oprimidos a opressores) não parece ser uma saída boa. E é isso que nos incomodava (e ainda incomoda), apesar de saber que a política, em seu sentido mais primordial, em sua essência de compromisso com o mundo, é um fator imprescindível para a convivência humana. Nem sempre podemos expressar livremente o que pensamos. Isso nos fez ter menos disposição ainda para participar de algum grupo que se reunisse, discutisse e propusesse mudanças para os problemas sociais. Chegamos a considerar a possibilidade de fazer o curso de Ciências Sociais ao invés de estudar Biologia nesta nossa etapa de formação acadêmica em um curso superior. O resultado das nossas crises foi que passamos a desacreditar bastante do ser humano como um coletivo, pois sentimos que as pessoas raramente buscam desmascarar os próprios conflitos, e mesmo assim vão em busca de resolver os conflitos nacionais, globais etc. E aqueles que estão lutando por melhores condições talvez inconscientemente acabem gerando uma sociedade muito parecida com a que vivemos, pois não foram além dos limites deste esforço em entender os próprios conflitos, que passam pela culpa, pelo medo, pela rejeição – reflexos da própria sociedade onde vivemos. Não entendemos, por exemplo, por que uma pessoa que luta fortemente pelos direitos dos mais pobres e necessitados pode vir a não conseguir se entender com sua própria família - ou talvez não se permita envolver com alguém e constituir uma família em razão de ter que se dedicar exclusivamente à questão social. Não julgamos que as pessoas têm que ser perfeitas, sem falhas, mas destacamos a insensibilidade e contradições que estão presentes no nível pessoal de grupos que 14 lutam por melhores condições e uma extrema sensibilidade para o que diz respeito à sociedade. Neste percurso de nosso pensamento nós nos lembramos de uma afirmação provocadora da autoria de Freud. Em seu texto “O mal estar na cultura”, o autor inicia sua reflexão com as seguintes palavras: É impossível escapar à impressão de que os seres humanos geralmente empregam critérios equivocados, de que ambicionam poder, sucesso e riqueza para si mesmos e os admiram nos outros enquanto menosprezam os verdadeiros valores da vida. No entanto, ao efetuar qualquer juízo geral desse tipo, corre-se o risco de esquecer a variedade do mundo humano e de sua vida psíquica. Há alguns poucos homens aos quais não é negado o respeito de seus contemporâneos, ainda que a sua grandeza resida em qualidades e realizações inteiramente alheias às metas e aos ideais da multidão. Não será difícil supor, porém, que apenas uma minoria reconheça esses grandes homens, enquanto a grande maioria nada queira saber deles. Mas as coisas podem não ser tão simples assim, graças às discrepâncias entre o pensar e o agir dos seres humanos e à multiplicidade de seus desejos. (Freud: 2013:41). Ainda temos muitas dúvidas sobre a política. Ainda falta maturidade (em nível pessoal e em nível coletivo) para efetuar a busca de solução para tantos conflitos que se mostram na(s) sociedade(s). Como alcançar essa maturidade? Até começamos a pensar que a razão, contando apenas com seus próprios recursos, não dá conta de atender a esta empreitada. Quem percebe os problemas da sociedade hoje se dá conta que há coisas muito óbvias, tal como o consumismo, o uso insustentável dos recursos, as leis feitas para poucos, etc. E se desespera porque as pessoas parecem não “cair na real”, nós parecemos estar dormindo, hipnotizados – pois nos é falado o que está errado, mas poucas pessoas tentam mudar suas vidas e fazer alguma coisa a mais. E quando tentam resolver os problemas de alguma forma, correm riscos grandes, pois começam a olhar e questionar costumes sociais, questionar esse tanto de poder dado a poucas pessoas, a incomodar por estarem tentando construir algo que os outros não entendem. Muitas vezes são vistas como loucas ou perigosas, são perseguidas e depois de mortas são consideradas heroínas. 15 A hipnose em que vivemos se assenta nos argumentos e explicações sobre a sociedade que não tocam de verdade as pessoas. Talvez seja por falta de profundidade no entendimento da população em geral sobre essas questões sociais, que muitas vezes são complexas. Mas é evidente que os fatos estão distantes delas. O sistema hoje se mune de imagens e vídeos para seduzir e conquistar. Os militantes, as pessoas que se importam em lutar por um mundo “mais justo” e “melhor”, estão tentando ganhar as pessoas pela cabeça, mas o capitalismo já ganhou as pessoas pela sensação: “seja feliz comprando!”. E todo mundo vive isso na pele. Sentimos prazer, seja comprando um livro, uma bermuda, um carro, uma casa, um violão – o que for. Somos enganados com uma falsa sensação de prazer – um prazer fugaz que vai ser compensado com outra compra e provavelmente em alguma fase da vida com um antidepressivo. E a vida vai sendo levada desse jeito composto da mais pura superficialidade. Surge para nós uma pergunta: o que fazemos com tudo isso? Somente os argumentos lógicos e racionais são capazes de frear essa vida ao mesmo tempo cômoda e doente? A razão até consegue desmascarar esse sistema, explicar as mazelas e denunciar os crimes, mas para as coisas mudarem vai demorar – talvez muitas décadas, talvez séculos; talvez precise haver uma crise, choques bruscos que façam as pessoas se perguntarem o que de verdade está errado. O que acontece hoje tem uma razão mais profunda do que a própria razão – o ser humano tem emoção, sentimento e isso às vezes (ou quase sempre) é esquecido. Há sensibilidade, empatia, junto com o conhecimento de si e do mundo. Há que romper as fronteiras do desconhecido, se aventurar a criar e mergulhar mais fundo nos acontecimentos. Pois toda uma sociedade vem se tornando refém do medo. Muitos de nós sabemos que a mudança é quase urgente, mas ninguém tem coragem de mudar, seja em nível pessoal ou em nível social. Estamos congelados. E é preciso quebrar esse gelo para viver de verdade, para começar a respirar. Enfim, todo o nosso sofrimento, tão presente em nosso percurso de formação acadêmica, nos impulsiona para uma pesquisa em que seja possível investigar sobre as possibilidades de articular a ciência com a arte. Selecionamos uma bibliografia que promove deslocamentos em relação ao plano de leitura costumeiro em nosso Curso de Ciências Biológicas, isto é, que ultrapassa uma abordagem do corpo dada pelos estudos da Anatomia, da Fisiologia ou outras disciplinas desta área científica. Temos consciência que estamos apenas 16 iniciando uma pesquisa em um campo de compreensão do corpo em sua dimensão política e cultural. No desenvolvimento desta pesquisa começamos os primeiros passos enquanto um esforço para compreender os conceitos “corpo vibrátil”, “corpo paradoxal” e “corpo sem órgãos”. Em parte, o pouco que já compreendemos nos ajudou para articularmos tanto a interpretação dos dados coletados em nosso objeto de estudo, como para desenvolver uma atenção aguda em nossa posição de sujeitos da pesquisa, atentos ao que passa também com o nosso corpo. O manejo destas categorias diretamente referidas para uma abordagem do corpo foi feito com o apoio nos estudos de Suely Rolnik, José Gil e Gilles Deleuze. Foi a partir destas primeiras compreensões que estabelecemos um percurso nos estudos da Biologia. Esses esforços nos permitiram ampliar o contato com obras de diversos autores, do campo das ciências biológicas e da arte, para rastrear nestas leituras as marcas indicativas de um processo de criação de cada cientista. Para o desenvolvimento de nosso estudo formulamos como objetivo geral analisar a relação entre a Biologia e a Arte por meio da leitura de alguns biólogos selecionados. Dentro deste objetivo geral nós dedicamos ao exercício de “cartografar” as marcas de possíveis relações entre a ciência e a arte para conseguirmos estabelecer uma espécie de avaliação sobre a nossa formação de biólogo. Buscamos no contato com os novos cientistas da Biologia o apoio para realizamos um movimento próprio de pensamento, sobretudo para reivindicar um reconhecimento para a nossa criação artística. Delimitamos a metodologia de pesquisa em suas três dimensões. Nós estudamos na primeira, a dimensão da teoria do objeto, o movimento de criação em meio a um contexto social adverso, que se evidencia na captura dos corpos e na interdição do movimento. Aqui enfatizamos que o nosso objeto de estudo é o movimento de sentidos observado no território de fronteira estabelecido entre a Biologia e a Arte. Na segunda, a dimensão da teoria geral do conhecimento, situamos nosso estudo no campo de “filosofia da diferença”, fundamentalmente apoiado na obra de Nietzsche. Aqui experimentamos os primeiros passos de outra prática científica que consiste no embate com a “filosofia da representação” enquanto um paradigma de construção de categorias tão presentes nos estudos realizados no meio acadêmico. 17 Por isso recusamos fazer a análise de conteúdos, bem como o estudo aprisionado nas molduras da representação. E na terceira dimensão, esta que organiza os procedimentos necessários ao estudo, utilizamos a “cartografia” como dispositivo que nos auxilia no desenho dos territórios existenciais, estes lugares que são configurados enquanto suporte para o desenvolvimento de processos de subjetivação. Pelo fato de nos situarmos no âmbito da “filosofia da diferença” e por assumirmos a hipótese do “princípio dionisíaco” como dispositivo de interpretação do fazer científico, nós assumimos um empenho em construirmos nossa metodologia por meio da complementação de aspectos que combinam os procedimentos com a teoria geral do conhecimento. A cartografia, assumida enquanto procedimento de interpretação, será desenvolvida em sua articulação com uma “genealogia” e uma “arqueologia”. Compartilhamos da definição de Suely Rolnik: “Para os geógrafos, a cartografia – diferentemente do mapa, representação de um todo estático – é um desenho que acompanha e se faz ao mesmo tempo que os movimentos de transformação da paisagem. Paisagens psicossociais também são cartografáveis. A cartografia, nesse caso, acompanha e se faz ao mesmo tempo que o desmanchamento de certos mundos – sua perda de sentido – e a formação de outros: mundos que se criam para expressar afetos contemporâneos, em relação aos quais os universos vigentes tornaram-se obsoletos. Sendo tarefa do cartógrafo dar língua para afetos que pedem passagem, dele se espera basicamente que esteja mergulhado nas intensidades de seu tempo e que, atento às linguagens que encontra, devore as que lhe parecerem elementos possíveis para a composição das cartografias que se fazem necessárias. O cartógrafo é antes de tudo um antropófago.” (ROLNIK, 1989: 15-16). Compreendemos a genealogia e a arqueologia como auxílio no esforço de interpretação do cartógrafo. Por meio da genealogia o pesquisador trabalha no regime de visibilidade e expõe as formas, aquelas paisagens configuradas pelos sentidos em movimento. Pela arqueologia, ele opera no regime de invisibilidade, e escava o solo em busca dos sentidos de sustentação daquilo que emerge como figura. Nesta escavação o cartógrafo também busca os indícios de algo que pode se configurar, mesmo sabendo que não há garantias para a sua realização. Houve de 18 nossa parte um esforço para articular a abordagem da micropolítica, que considera o território invisível, com a macropolítica, que observa a visibilidade do movimento dos sentidos. Entendemos que a cartografia pode se enriquecer por meio da explicitação do papel da ciência, da filosofia e da arte, enquanto recursos articulados e disponíveis para o sujeito “atravessar a caótica dos encontros”. Retomamos o texto do Professor Luiz Orlandi para nos auxiliar no esclarecimento desta compreensão sobre as contribuições da arte, da filosofia e da ciência em uma pesquisa, nesta modalidade que pretendemos assumir: Para Deleuze e Guattari, ao lado da arte e da ciência, o pensamento filosófico é uma das ‘três grandes formas’ ou ‘vias’ de pensar. Sem hierarquias, elas são basicamente definidas pela comum tarefa de ‘enfrentar o caos’. Mas cada uma erige seu próprio e distinto plano de exercício do seu modo de pensar. Enquanto a arte pensa ‘por sensações’, traçando um ‘plano de composição’, enquanto a ciência ‘pensa por funções’, traçando um ‘plano de coordenadas’, a filosofia, ao enfrentar a caótica dos encontros, traça um ‘plano de imanência’ que se erige à medida que ela ‘pensa por conceitos’. Portanto, o aprendizado filosófico da complexidade da experiência nos expõe a uma dupla impregnação: a da própria caótica dos encontros seja lá com o que for e a do vai-e-vem vertiginoso, ‘voltiginoso’, que os conceitos exibem nos variados encontros mútuos a que são levados por problemas a que têm de corresponder. (ORLANDI, L., 2009) Quando delimitamos os objetivos específicos de nossa pesquisa, nós nos apoiamos nesta síntese formulada pelo Professor Luiz Orlandi. Pelo fato de nos compreendermos implicados nesta pesquisa, em nossa condição de sujeitos, acrescentamos ao esforço de realizar uma cartografia, a nossa atenção com o “corpo vibrátil” (Suely Rolnik). Em todo este percurso vinculamos a elaboração conceitual com o “corpo paradoxal” (José Gil) e com o “corpo sem órgãos” (Gilles Deleuze). Deste modo, a análise sobre “corpo”, na articulação entre a Biologia e a Arte, nos desafia a conferirmos o que se passa conosco. O desenvolvimento de nosso pensamento foi feito nesta combinação de recursos encontrados em nosso próprio corpo a partir do momento em que acolhemos as orientações dos referidos autores. 19 Analisamos o corpo, em uma fronteira de relação entre a Biologia e a Arte, fazendo uso de um dispositivo de interpretação que combina três quadros teóricos: o primeiro quadro se refere a uma teoria do objeto situando nele o plano de composição, o plano das coordenadas e o plano da imanência. No segundo quadro, fizemos referência a uma teoria geral do conhecimento, em nosso caso, apoiada na “filosofia da diferença”. Depois nos empenhamos em agregar as categorias do “corpo vibrátil” (Suely Rolnik), do “corpo-sem-órgãos” (Gilles Deleuze) e do “corpo paradoxal” (José Gil), para sustentarmos uma atenção aguda diante das implicações deste estudo com a nossa formação enquanto profissionais e pesquisadores. Enfim, no primeiro capítulo cartografamos o movimento de sentidos em nossas inquietações. No segundo capítulo cartografamos o movimento de sentidos em diversas leituras de fundamentação teórica. No terceiro capítulo cartografamos o movimento dos sentidos na arte, iniciando com a apreciação na escultura, e em seguida, expomos nossas poesias. Ao término apresentamos uma síntese retomando as principais perguntas que haviam sido formuladas no início de nossa pesquisa. 20 Primeiro capítulo A cartografia de nossas inquietações Não acreditamos nos políticos, mas um poeta facilmente nos conquista. E encontramos um poeta feito de um misto da sabedoria, forjada nos anos de sua longevidade, combinada com a sua rebeldia de uma juventude perene feita de indignação. Este poeta nos provocou mais ainda a pensar na relação possível entre a política e poesia com as seguintes palavras: “Quanto às funções da poesia... Creio que a principal é a de promover o arejamento das palavras, inventando para elas novos relacionamentos, para que os idiomas não morram a morte por fórmulas, por lugares comuns. Os governos mais sábios deveriam contratar os poetas para esse trabalho de restituir a virgindade a certas palavras ou expressões, que estão morrendo cariadas, corroídas pelo uso em clichês. Só os poetas podem salvar o idioma da esclerose. Além disso a poesia tem a função de pregar a prática da infância entre os homens. A prática do desnecessário e da cambalhota, desenvolvendo em cada um de nós o senso do lúdico. Se a poesia desaparecesse do mundo, todos os homens se transformariam em máquinas, monstros, robôs.”3 É preciso realmente pensar para enxergar o mundo, a vida? Em nossa experiência ainda jovem afirmamos que o sentir é um modo mais belo de chegar perto do coração da existência. E sobre tocar as pessoas, a questão da sutileza (na relação), isso nos toca. Neste modo de pensar sentimos que as pessoas e a natureza necessitam de mais carinho, respeito, sensibilidade. Na sociedade, perdeu- se a sensibilidade, ela está jogada em um canto e de vez em quando alguém vai lá ver o que ela tem pra trazer ao mundo (então nascem poetas, mães amorosas e maduras, pais carinhosos, dançarinos e todas essas pessoas que vêm para fazer pequenas revoluções na alma). Quantos modos há de violência e quantos também há de sutileza. O amor pode ser sutil, mas a violência também pode estar presente em algum lugar de maneira quase imperceptível (como quando um adulto gentilmente convence uma criança sobre alguma falsa verdade, quando a restringe em atos inocentes; ou então quando alguém é “usado” sem saber disso, o que inclui toda nossa sociedade). 3 Encontros, 2010, pág.: 45. 21 Talvez o pior jeito de ser prejudicial seja o ato inconsciente, aquele em que se desconhece o que está fazendo e causando. E quem tem consciência, pode causar mal? Se causa, por que o faz? Hoje, principalmente, mais que em outras épocas, o ser humano precisa de novas maneiras de olhar o mundo. Mais que isso, novas maneiras de habitar o mundo, de criar o mundo, de ocupar os espaços. Mas essas novas maneiras virão para mudar? Ou são mais a repetição do mesmo? Como a sutileza (do toque, da relação, e não da violência) pode estar mais presente na sociedade? Ideias adiantam ou vão ser sempre só ideias? (é eterna a diferença entre real e ideal que Platão trouxe?) É preciso idealizar ou sentir? Esse reinventar do mundo, das palavras, da linguagem que o Manoel de Barros experimenta (e do qual faz parte) percebemos como algo muito interessante. Um criar, um fazer diferente sem fazer sentido comum (o que vai criando outros sentidos, talvez múltiplos). Há nele uma lição para a criatividade, o mundo numa natureza virada de cabeça para baixo. O estranhamento causado pelas inusitadas combinações de ideias, palavras, seres, verbos e coisas traduz/"analogiza” o estranhamento de um mundo novo, tal como o mundo atual, que se renova cada vez mais rápido a cada momento. E o estranhamento diante da própria diversidade humana – culturas, línguas, costumes, gostos, opiniões... Quanta coisa pra estranhar (e pra amar). “Os santos querem ser os vermes de Deus” E a mania da verdade, de superioridade de alguns adeptos a religiões... Trata-se realmente de uma mania do ser humano, com a mesma soberba (às vezes escondida), presente em quase todos nós. A busca do sagrado, do espiritual, representado por um ideal (um jeito de ser, de se portar) pode ser algo que aumenta a infelicidade humana, ou melhor, que sustenta a miséria emocional (e também material) do ser humano e a vai carregando de geração em geração. Gostamos desta perspectiva de vida indicada por experiências milenares de espiritualidade, mas não dos dogmas, das imposições, da hierarquia das instituições. Como o ser humano pode ser visto além de simples matéria sem ter que aceitar regras para a conduta (como certo e errado, sagrado e profano, etc.)? Deve ser um caminhar tênue, muito sutil. 22 Em outro momento nos encontramos com o poeta, político da palavra, nos provocando com o seu modo sapeca de afirmação da vida: “Palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo para ser séria” Habitamos em um mundo que se diz ser sério. A partir de um dado momento em que começamos a “brincar” mais na vida (levando mais coisas na risada, sem tanta tensão), questionamos a seriedade do mundo. Essa nossa mania de levar as coisas “a sério” quase sempre tem tornado a vida seca, tão árida. Sem contemplação, sem o sorriso despropositado, sem a dança do corpo no movimento mais sincero (a liberdade do corpo nos gestos), sem a alegria; sem tudo isso, qual é o sentido (e o sentindo) que a vida ganha? Manoel faz uma grande brincadeira com as palavras. Há em sua poesia uma afirmação da potência do despropósito: “Preciso de atrapalhar as significâncias. O despropósito é mais saudável que o solene.” Manoel de Barros nos faz pensar em outro sentido de leitura de mundo quando promove o confronto da linguagem da poesia com a expressão dos saberes da ciência. “A ciência pode classificar e nomear os órgãos de um sabiá Mas não pode medir seus encantos. A ciência não pode calcular quantos cavalos de força Existem Nos encantos de um sabiá. Quem acumula muita informação perde o condão de adivinhar: divinare. Os sabiás divinam.” Esta poesia provocou em nós a formulação de uma questão em nossa experiência na universidade: até onde a ciência toca na realidade, no mundo? Interessa-nos saber como o entendimento intelectual usado no método científico, na 23 filosofia, no nosso cotidiano, pode nos auxiliar a resolver problemas práticos e do próprio conhecimento, em uma profunda relação com os problemas da vida. Vimos percebendo que raramente nos traz um contato mais profundo com a realidade. Não propomos o fim do pensamento. Mas vemos como o ser humano (principalmente no ocidente) foi perdendo o contato mais silencioso com a vida, o mundo, a existência e, consequentemente, com os outros seres humanos (e com os outros seres). Nós falamos, argumentamos, explicamos, defendemos e não chegamos, não sentimos o gosto da vida. Alguns filósofos dizem que nossa angústia é natural, existencial – mas, apesar de sentir dessa angústia arraigada em nosso peito, resta a pergunta: se essa angústia realmente faz parte, se é para ela estar junto com o ser humano, por que acontecem os suicídios? Por que os homens fazem as guerras? Por que existe a corrupção? Para que serve essa seriedade, esse modo de sociedade que come nossas vidas, nosso tempo, nossas vontades, nossa paixão? Apesar de achar que o ser humano pode, de alguma forma, superar essa angústia que o acompanha, acreditamos também que esse conflito e inquietação internos o fazem sair de onde está acomodado. Pois sob pressão, nas crises, as situações, a natureza, o ser humano, certamente todos se transformam. E a natureza é o que o Manoel afirma. “Os sabiás divinam”, a natureza divina. O contato (profundo, mas de uma sutileza) do ser humano com a natureza com certeza trás alguma coisa. Em todo tempo fazemos trocas com o meio, respirando, transpirando, comendo e excretando, e por aí dá pra sentir que não somos seres totalmente isolados do meio ambiente, mas fazemos parte dele. E talvez esse contato, essa raiz (que tenha sido perdida), se voltar a acontecer possa vir acrescentar algo ao ser humano. Mas não se trata de ficarmos restritos a esta experiência do entender simplesmente. O sentir deve ser parte da experiência e voltar a ser meio ambiente, natureza. Voltamos a lembrar o quanto a angústia vem nos mobilizando em nosso percurso de estudante. Confirmamos o quanto as nossas inquietações nos obrigam a reconstituir perspectivas de leitura de mundo e de presença no mundo. Mais questões nos despertaram a atenção nesse momento e nos fizeram refletir: 1 – Sobre a existência: fenômeno sutil. Difícil vê-la sem nenhum sentido. Como alcançar a liberdade na vida? 24 2 – Sobre a moral, o certo e o errado. Aqui percebemos a nossa incapacidade para definir as concepções de bem e de mal (dependendo que pessoas, religiões ou filosofias o façam por nós). Também fomos imaginando como a moral que se forma em cada geração reprime as crianças, exclui pessoas etc. Na verdade, dá impressão de que a manutenção desse sistema em que vivemos é feita não tanto por forças externas às pessoas, mas por forças interiores a elas (relacionadas com os reais processos de subjetivação) – e talvez a moral seja uma das principais. Afinal, para o modo operante da sociedade se manter, ele tem que, de alguma forma, estar dentro de cada pessoa. 3 – Sobre as contradições da nossa cultura e sociedade. A principal que nos incomoda é a competição, que com certeza contribui para gerar o egoísmo tão presente no nosso modo de viver. E nós veneramos a solidariedade, o ser “bom ao próximo”, ao mesmo tempo que tentamos ser uns melhores que os outros. Como é possível a gente não se dar conta disso e não querer mudar? (insensibilidade diante do presente, como traz Verden-Zöller em “Amar e Brincar”). 4 – Sobre a individualidade e a coletividade. Talvez estejamos em uma época em que a consideração dos valores e desejos individuais tenham certa “supremacia” sobre os coletivos, na vida pessoal. Perdemos o senso de fazermos parte da sociedade – talvez porque, ao mesmo tempo em que carregamos e reproduzimos valores dessa sociedade, sabemos que não concordamos com o que está aí (tentamos ser diferentes, nem sempre sendo bem-sucedidos). Então essa oposição entre o individual e o coletivo fica inevitável, e a nossa convivência se torna frágil e fragmentada. Ainda fica a esperança de que possamos viver melhor juntos. Como traz Verden-Zöller no livro “Amar e Brincar”, em co-autoria com Humberto Maturana (MATURANA; VERDEN-ZÖLLER, 2004), viver sem que sintamos as prioridades coletivas invadindo nosso espaço individual (o indivíduo como parte da coletividade, sem oposição). Como resgatar essa convivência mais harmoniosa e compreensiva? Sentimos um incômodo e estranhamento diante da ideia de que se possa viver bem e com saúde se estamos todo tempo irritados e indignados com a sociedade e as situações de desrespeito e violência. Se, por um lado, esquecemos os problemas, acabamos por negar nossa condição de ser parte integrante da sociedade, nossa responsabilidade diante do coletivo, e ganhamos tranquilidade pela ignorância do que acontece. Se optamos por reagir (ou agir) e nos rebelamos 25 contra os desrespeitos é certo que a raiva e a infelicidade vão acabar por nos invadir. E de que jeito viver de forma saudável com a insatisfação e a revolta pulsando no peito? Parece que para que não estouremos diante dos problemas demais, haverá um modo de escape (como as drogas ou a comida). Fica uma impressão de que em qualquer desses dois casos a vida fica prejudicada de alguma forma. Parece que é necessário estar infeliz para se colocar politicamente no mundo. Ou talvez a infelicidade e insatisfação com o mundo leve à politização. Estamos nos vendo obrigados a traçar um terceiro caminho. Caminho esquivo, de escape, de drible. Nem as filosofias dogmatizadoras nem a resignação apática vão nos dar respostas – e nós não queremos aceitar as respostas que elas dão para as nossas perguntas. A vida que pulsa dentro de nós está reagindo às prisões, não quer ser sugada. É doloroso demais, mas não dá para nos transpor a outro caminho torpe. É preciso ouvir o que nos inquieta: a vida se move à criação e contra as prisões. Mas todo esse conflito está nos comendo e nós temos fagulhas dentro de nós dizendo que o “ser” da vida não é a infelicidade – não tem como ser e dessa ideia não tem como desistirmos – pois ela insiste para nós sem parar. A dor do saber pode ser inevitável, mas a contínua manifestação da beleza no caos da vida também o é. E se a sensibilidade morre é porque há algo de errado. A vida continua querendo pulsar até o último suspiro, até não restar mais possibilidade de existência. É por isso que eu nos vemos obrigados a criar um outro jeito de viver. Precisamos driblar essas desconjunturas. Porque a vida que nos habita quer continuar pulsando. Pensamos também nos momentos em que repudiamos a violência. É muito certo que não dá pra deixar a violência correr solta na sociedade sem uma atitude em relação a ela, mas a atitude de repúdio soa no nosso corpo de modo agressivo também. É como se fosse a violência contra a própria violência. Quando repudiamos algo, negamo-lo sem querer discutir - rejeitamos. E se queremos enxergar o problema e lidar com ele de uma forma diferente, há uma atitude que não seja de rejeição ao que não nos agrada, mas de problematização e entendimento? É claro que vai haver um posicionamento, mas talvez se as questões forem discutidas e articuladas, os movimentos não tenham que usar de emoções extremas para chamar a atenção. Ou é ingenuidade nossa? Linguagem, pensamento e representação. As palavras não têm uma relação direta com o que elas designam, a não ser em um contexto social humano (interação 26 entre pensamento e linguagem). O símbolo que é usado não tem ligação explicita, na maioria das vezes, com o significado que a cultura lhe atribui. A linguagem e a cultura são um mundo (ou vários) e dentro delas cada pessoa cria suas relações, significações e afetos com o mundo e as outras pessoas. Mas resta uma impressão em nós de que a linguagem e o raciocínio lógico não alcançam o mundo sempre, pois não chegam a todas as sensações que as experiências proporcionam – não chegam ao viver. Essa é a nossa crise com a epistemologia do conhecer: em relação às palavras e o pensamento, nós nos vemos tendo uma concepção representacionista, porque percebemos que o nosso modo de conhecer as coisas e de viver subentende-os assim – pelo que vivemos, pensamos e sentimos parece muito natural que as palavras representem as coisas, mas não consigam traduzir tudo o que acontece. Mas ao mesmo lemos sobre as implicações e riscos de se tomar um mundo objetivo concreto e pronto fora do sujeito, considerando que seu modo de interagir com o mundo é representá-lo dentro de si e dar respostas coerentes com essa representação. Essa crítica nos toca, pois vemos muito sentido no raciocínio construído por Maturana e Varela no livro “A Árvore do Conhecimento” – quando nos explicam sobre a construção do mundo a partir das interações da subjetividade com o mundo, a cultura etc. Só percebemos que nosso modo de enxergar as coisas não mudou completamente – há muitos momentos em que a representação faz sentido para nós ainda. Essa visão não quebrou no nosso modo de pensar e viver. É possível conciliar economia com distribuição de renda? A luta política pela igualdade visa a “derrotar” a economia ou a reestruturá-la seguindo outro paradigma? Pois pensamos: não desejamos a exploração e a desigualdade, mas a economia (na forma de empresas e multinacionais, muitas vezes) gera os empregos que as pessoas precisam para sobreviver. Há outro modo de absorver essa mão-de- obra? (Afinal, pelo menos na sociedade em que vivemos, é necessário trabalhar para viver). Deve haver um jeito de movimentar a economia distribuindo renda e oportunidades, com sustentabilidade ambiental. Mas aí talvez tivesse que ser outra economia, já que ouvimos tanto falar que nosso sistema possui uma crise estrutural. E isso tem toda a lógica no raciocínio que considera a acumulação de riquezas e a exploração: quem consome a maior parte do que é produzido, vive com pouco. E, além disso, a história também já mostrou que esse sistema é insustentável a longo 27 prazo – socialmente, economicamente e ambientalmente. Vendo de longe, o capitalismo parece meio tapado. Vendo de perto, chega a ser inacreditável. Que vida é essa que vivemos hoje? De ritmo acelerado, de mudanças velozes, de conexões infinitas, do centramento no individual, do produtivismo e da competição. Que vida é essa? Aonde ela nos leva? Deixamos de sonhar e acreditar por medo. Temos medo de sofrer, medo de tentar. Talvez por isso continuemos sempre na mesmice. O medo poda. Com medo como a gente pode ser intenso? Não tem como se entregar totalmente a uma experiência, parece que está sempre faltando algo. A vida fica pela metade. E assim não dá pra falar que é vida: a vida acontece inteira. Questionando a ideia do utilitarismo, de que tudo tem um objetivo, uma finalidade etc., podemos pensar na gratuidade. A vida é gratuita, a arte é gratuita, a natureza também o é. Elas não têm fim em outro lugar que não elas mesmas: seu fazer se fecha no seu próprio processo. Não se faz arte para, simplesmente se faz arte. E é isso. O que ela vai causar é discutível – a arte tem efeitos no ser humano, na história, na sociedade. Mas pensar em efeitos é diferente de pensar em fins e objetivos para determinado processo. Pensar em um fim para a arte (assim como para a vida e a natureza) é enclausurá-las em sua potência de criação. E infelizmente isso é o que vigora hoje na ciência, na economia, e em qualquer outra atividade (formal ou informal) praticada em nossa cultura. Quer-se achar fim para tudo – sempre estamos querendo chegar a algum lugar. E, pior, quando chegamos lá não acaba a busca – ela vira obstinação, o horizonte caminha cada vez mais para longe. Queremos mais, mais, mais, mais. E o nosso modo de produzir e consumir vai nos consumindo e consumindo o planeta. O consumo consome tudo. Na ciência, só se quer saber de produzir. A quantidade é o que importa, qualidade quase impossível de acompanhar o ritmo. A ciência parece que esqueceu o encanto com o mundo em algum lugar. Perdeu o pé do chão também. Percebemos como na defesa sobre o método científico tem marcas de algum tipo de utilitarismo. Sempre querendo chegar a algum lugar – e o processo fica simplesmente sendo uma ponte. Fica sendo só um protocolo. Falta preencher esse meio de sentido. A arte é puro processo – corre em espiral. Toda a natureza é um esparramar na existência a cada momento. Esse momento que perdemos em algum lugar do caminho. Ele sempre fica para depois. Talvez se a gente se abrir para a constante 28 ressignificação que ocorre na vida, os processos ganhem um pouco mais de chão (ou novos ares). Qual a relação do professor com o conhecimento? Pensamos na questão da abertura, de assumir para si mesmo e para os alunos que não sabe tudo, que às vezes está descobrindo junto com eles. Segurança mesmo diante da incerteza. Como educar para a liberdade? A oposição entre a materialidade e a eternidade das coisas permeia a história humana (talvez até hoje). O homem encara a finitude (de si mesmo). Há problemas com a simplificação. Mas nós tendemos a sintetizar. A construção do conhecimento talvez siga um caminho como Complexificação (problematização)  simplificação (síntese)  Complexificação  Síntese... Esse caminho com certeza não é reto. O conhecimento se erige pelo que se conhece. Construí-lo tem a ver com as relações, associações. A argumentação lógico-racional segue uma base epistemológica (mesmo sem perceber). Mas também segue a emoção humana. Assumir a ignorância é importante no conhecer. Iniciamos em algumas indagações que nos levaram a pensar com o corpo inteiro. E ao pensar sobre as possibilidades de sentir as marcas em nosso corpo, indagamos sobre que papel a ciência cumpre em meio ao viver. Tudo na Evolução é interpretado em função das vantagens individuais na sobrevivência e reprodução – mas e quando olhamos para a evolução das relações ecológicas? Vemos uma sincronia, certa harmonia e equilíbrio em muitas relações – sejam elas (aparentemente) positivas ou negativas para um indivíduo em particular (mutualismo ou predatismo). É a hipótese do macro-organismo. Há como casar a seleção natural com essa manutenção das relações no todo? Vantagens individuais podem ser coletivas e vice-versa no processo evolutivo. Devemos ver cada ser no seu nicho, no seu lugar ecológico. A comparação (“mais adaptado”, “menos adaptado”, “mais eficiente”) oculta a real adaptação: estar integrado(a) a todo ecossistema – sobreviver e interagir. Vemos que o ser humano tenta estudar a natureza buscando fugir de uma visão antropomórfica. Mas isso é muito difícil, talvez impossível, uma vez que só produzimos conhecimento sobre o mundo a partir de nossa condição humana, a partir do que já conhecemos. Não há como fugir de nós mesmos. Mas isso não é ruim e não impossibilita o conhecimento da vida. 29 O que é necessário para ler o mundo? A elaboração na escrita e no pensamento nem sempre casa. A fala também deflagra entendimento. A escola pode ser um lugar de aquisição pelo gosto em fazer ciência? Quais as possibilidades de voltar ao encanto de conhecer? Percebemos tanto nas práticas escolares quanto no modo de fazer ciência uma preocupação em controlar a subjetividade. Por que é tão difícil olhar para nós mesmos sem um olhar pejorativo na ciência? Subjetividade sem que os interesses privados desrespeitem a ética. Podemos pensar um caminho de uma estética vinculada com o conhecimento sensível. Chegar à vida. Vir à moda de ser natural. De um olhar molecular sensível, cada célula é um mundo. A dimensão das moléculas biológicas em relação às moléculas inogânicas é maior e de uma organização físico-química muito peculiar. A vida é vida desde muito pequena. Olhamos para um projeto de pesquisa hoje na universidade. Justificar a importância do tema de conhecimento virou uma maneira de “vender o peixe”. Espécie de propaganda ou marketing exigido para que se consiga o financiamento. Enfim, fizemos a exposição de muitos percursos impulsionados por nossas inquietações. Em todo este trajeto há a linha permanente feita deste esforço em articular pensamento e sentimento, ciência e vida, biologia e arte. 30 Segundo Capítulo Percursos pelos textos e leituras em outro modo de fazer ciência Nesta parte de nosso trabalho apresentamos alguns resultados de diversas leituras de textos de biólogos e pesquisadores da área dos estudos sobre os processos de subjetivação. Em todo este esforço mantivemos a nossa preocupação em rastrear as marcas desta relação entre o pensamento e o sentimento, entre a ciência e a vida, entre a biologia e a arte. 2.1 – Nosso encontro com Humberto Maturana4 O “linguajear” e a conversação têm base no emocionar. “É a emoção que define a ação” (MATURANA; VERDEN-ZÖLLER, 2004, p. 10). O modo como as crianças de uma determinada comunidade ou grupo humano se emocionam forma a cultura, é responsável por sua conservação e dá base para a conversação que surge em seu meio. Assim surgiu o patriarcado. Esse destaque dado para o lado emocional do ser humano nos surpreendeu, pois nesta abordagem, o emocionar é essencial no desenvolvimento e conservação de uma cultura humana. Apesar de já ter uma intuição de que o sentir desempenha um papel vital em todos os campos da vida humana, ainda sim nos causou surpresa ler sobre a sua importância. E é justo na infância que esse processo vai começando a acontecer, sem quase nenhuma consciência. A criança não tem muitas defesas. Ela ri, ela chora, ela sofre com muito mais abertura que os adultos. Quando pequena, dificilmente esconde suas intenções e emoções. E é justamente aí que ela pode estar mais sujeita as influências que as relações trazem para a formação da sua personalidade ou individualidade. É na fragilidade, lugar de potência imensa, que começa a moldagem do corpo (físico, mental e emocional) pela sociedade. E nossa impressão é que, no desenvolver da criança na cultura em que estamos inseridos, essa 4 O nosso contato com o pensamento de Humberto Maturana aconteceu por meio da leitura dos seguintes textos: Emoções e linguagem na educação e na política. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998. Cognição, ciência e vida cotidiana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001. A ontologia da realidade. Editora UFMG, 1997. Fizemos a leitura de outros textos do mesmo biólogo escritos em co-autoria, tais como: MATURANA, H. e VARELA, Francisco J. A árvore do conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana. São Paulo: Palas Athena, 2001. MATURANA, H. e VERDEN-ZOLLER, Gerda. Amar e brincar. Fundamentos esquecidos do humano. São Paulo: Palas Athena, 2004. MATURANA, H. e BLOCH, Susana. Biologia del emocional y Alba Emoting. Chile: Dolmen Ediciones, 1996. 31 potência é retirada quase violentamente do ser humano conforme ele se torna um adulto. E como fazer para mudar tudo isso, como podemos criar uma nova cultura? Como podemos criar um novo jeito de emocionar e relacionar? Não dá para ser um processo planejado. É interessante quando no fim da introdução é afirmado pelos autores que “o respeito forçado nega a si próprio”. Obrigar um ser humano, seja ao que for, talvez seja um dos maiores desrespeitos que existe a condição humana. Que só uma criança que vive em respeito e aceitação pode ser capaz de expressar essas condições em sua vida. Mas aí também nos surge a pergunta: e as crianças que não viveram suas infâncias nesse modo de relacionar? Porque na nossa cultura, essa é a condição mais comum, de viver na obrigação, imposição, hierarquia, rigidez etc. E somos nós mesmos, frutos dessa cultura, os responsáveis por (ou os que sonham em) modificá-la. Algo que julgamos como muito curioso para nós foi o modo como o autor entende a cultura “patriarcal” como sinônimo de “matriarcal” (por isso usa o termo “matrístico”), já que a dominação continua na cultura matriarcal (poder centrado na mulher). Nós já havíamos pensado sobre como seria uma sociedade em que a mulher fosse a figura central – tínhamos uma imagem diferente, de que seria melhor, de que a aceitação e a sensibilidade (mais ligadas à figura da mulher) estariam mais presentes na cultura. Mas essa explicação do Maturana nos fez mudar de perspectiva: a dominação, as imposições, a hierarquia só mudariam de lugar, de posição, de figura. É preciso uma revolução mais nas bases. Talvez tenha sido colocado no livro o termo “matrístico” (e não, por exemplo, “patrístico”) para figurar a imagem de mãe que temos em nossa sociedade: acolhimento, aconchego, aceitação, amor. A figura de pai já passa algo mais autoritário, impositivo, pelas condições culturais em que vivemos. As culturas para Maturana teriam diferentes formas de emocionar, o que daria origem à diversidade cultural do ser humano. E nós refletimos que sempre achamos que as emoções eram as mesmas para todas as culturas (o que, diga-se de passagem, é difícil de confirmar, pois ninguém acessa o interior de outra pessoa). Agora alguém fala que o modo de emocionar é diferente para cada cultura, cada jeito de viver... Que confusão e que fantástico ao mesmo tempo. Isso faz muito sentido no raciocínio de que a força motriz da ação é a emoção. Faz-se, pensa-se, argumenta-se por cima de uma base emocional: são as entranhas, as vísceras, o 32 coração, o pulmão que corporificam esse arranhar do mundo na pele; o toque da existência, das questões e conflitos humanos. Emoção é o que toca, é o que vive dentro do ser. E daí dizer que culturas são diferentes porque têm formas de emocionar diferentes. Mas também surgem perguntas a partir disso: o que é universal do ser humano? O que pode se ver em todas as culturas ou todos os modos de viver humanos? Será que, quando vamos buscar explicações para os fenômenos complexos ou cuja constituição nos traz incerteza (exemplo: a “vida”), usamos termos genéricos ou conceitos amplos (no sentido de não terem um significado específico; a delimitação que o conceito traz não é suficiente para “enquadrar” o fenômeno) justamente para poder facilitar o entendimento e classificação desse objeto? O homem necessita classificar e dar nomes – a linguagem mostra isso. Mas a nossa impressão é de que, às vezes, definições ficam por demais complexas e podem levar a reflexões abstratas, mas que não cheguem em um “ponto”, algo mais concreto (exemplo, a linguagem é um conjunto de “coordenações de coordenações comportamentais”) – a definição fica solta, livre, ela voa. Como mudar o emocionar? A gente pode mudar mesmo o modo de emocionar a partir da reflexão e da reinvenção de um modo de conversação? Porque a nossa impressão é de que é muito difícil que adultos mudem seu modo de ser e estar no mundo, como se o jeito de se emocionar e de conversar (na cultura) tivesse criado raízes na constituição subjetiva de cada um. Achamos que se houver uma mudança intencional de cultura, ela deve ser lenta, gradual, talvez comece por núcleos pequenos de pessoas (como o próprio surgimento da cultura). O modo do emocionar do patriarcado, segundo a teoria proposta pelo Maturana, começou em uma esfera da vida humana (na apropriação das manadas de animais e afugentamento de outros predadores) e se expandiu para outros aspectos da vida do homem (relação do ser humano entre si, com ideias, com outras culturas). É muito significativo isso! É uma expansão de um modo de se relacionar, de uma situação específica para um contexto geral de relação com o mundo e com a vida. Mostra que a vida humana, o modo de estar e ser no mundo, não é dividido, e sim integrado em suas diversas faces. É um todo. O caminho está cheio de névoas. As barreiras de dentro e de fora ora ameaçam se dissolver e se perder em meio ao caos e a incerteza de tudo, ora ameaçam a ficar mais fortes diante do medo de se perder no desconhecido. Afinal, 33 sentimos na carne, no corpo, mas agimos fora, as emoções são ações no campo da convivência (na linguagem). Temos acesso a um mundo de pensamentos e sensações invisíveis a qualquer pessoa, (inacessível a não ser que explicitemo-los através de palavras e gestos), mas nada disso aconteceria se não convivêssemos e aprendêssemos junto ao mundo e outras pessoas. A formação do humano se dá no convívio, ser humano é ser junto. Mas nos deparamos sempre e continuamente com nossa solidão. E é essa confusão viva que vai se incrustando e tomando conta do ser. O amor é apresentado em uma perspectiva de algo natural do ser humano nesta abordagem que considera como fato nuclear a aceitação do outro como “legítimo outro em convivência” (MATURANA; VERDEN-ZÖLLER, 2004). E o ódio, é natural de nós? De natural, natural parece que não temos muito, dado nosso aprendizado flexível e diverso em sua potencialidade. Mas contando que o amor seja um “retorno” às origens e que ele só tenha prevalecido porque é pela aceitação e cooperação mútua que o ser humano conseguiu estabelecer um convívio estruturado e um modo de viver em congruência com a vida, o amor nos perseguiu pela história. Natural talvez possa ser uma forma de ver o que nos persegue: não conseguimos fugir do amor, ele é cotidiano se visto como ação. Mas a violência também nos persegue. E a raiva não está em qualquer mamífero? Por que a raiva não estaria em nossa biologia? A questão é olhar que modos de viver permitem a convivência em aceitação e respeito, sem a expressão dos desejos destrutivos. Eles sempre existirão como a sombra acompanhando a luz, e isso não é problema. O problema é o que fazemos com esse instinto. Isso é vida também. A convivência se dá a partir do desejo. E a democracia se constrói a partir desse querer. Convencemos só quem já está convencido. As opiniões, os argumentos só se justificam em um emocionar. Tomamos certas preferências (premissas) antecipadamente. O que o ser humano acha que pode controlar através da razão na verdade não pode – a teoria do inconsciente de Freud já falava disso de certa maneira (do que nos foge ao controle e é regido muito mais por forças ocultas da mente que pela vontade consciente), mas o fato de que as nossas posições e argumentos se dão por gostos e preferências ajuda a ver que a emoção tem um papel importante na linguagem e na convivência. 34 Não vemos que não vemos. A ilusão só acontece depois. Mas não é defeito – nossa biologia permite o conhecer. E é interessante tomarmos conhecimento de como conhecemos. Ainda lidando com as leituras dos textos de Humberto Maturana, encontramos a sua abordagem científica, o “linguajear” e a conversação têm base no emocionar. “É a emoção que define a ação” (MATURANA; VERDEN-ZÖLLER, 2004, p. 10). O modo como as crianças de uma determinada comunidade ou grupo humano se emocionam forma a cultura, que é responsável por sua conservação e dá a base para a conversação que surge em seu meio. Neste contexto de discussão, o autor insere o tema específico da cultura, o patriarcado. Ao lermos as análises de Humberto Maturana sobre os valores presentes na cultura patriarcal, que ainda hoje é a nossa cultura, tivemos uma percepção sobre o quanto são cruéis e egoístas, mas ao mesmo tempo vivemos com eles e nos relacionamos através deles com certa naturalidade. A competição está arraigada no modo de ser ocidental – queremos ser melhores que os outros, sonhamos em ser famosos, desejamos poder... Enquanto que uma troca sincera e espontânea de uma pessoa com outra parece ser sufocada nesse meio cultural de repressão, autoridade e de sentimentos de superioridade e inferioridade. O contraste do patriarcado com a cultura matrística europeia: a visão da harmonia do mundo natural; a consideração do ser humano como sagrado. Não há espaço para desigualdades. E o que é essa relação de igual para igual, que respeita as diferenças, valoriza a diversidade? O que é igual no humano e o que é diferente? Maturana faz uma relação entre a conservação da vida (deriva natural, sobrevivência pela adaptação) e a conservação da cultura (não por ser mais adequada, mas simplesmente por encontrar meios em um grupo social de ser transmitida e conservada pelas gerações posteriores). “A vida é conservadora” (MATURANA; VERDEN-ZÖLLER, 2004, p. 30). É a mesma fluidez, o mesmo processo acontecendo em duas formas distintas: Vida e Cultura. São fantásticas as inter-relações entre o que diz respeito à vida, de maneira geral, e o que é de domínio exclusivamente humano (como o pensamento, a imaginação, as relações sociais). Este fato nos permite considerar outras possibilidades. Julgamos nossa cultura como apropriadora e dominadora, ou seja, não concordamos com ela inteiramente. Mas só temos essa opinião por ser possível olhá-la de fora, refletir 35 sobre ela e ter noção de suas consequências para quem nela está incluído. Mas somos capazes de mudar essa cultura? Como? Estas leituras de alguns textos do biólogo Humberto Maturana nos confirmaram sobre as possibilidades de efetuarmos um estudo sobre as relações entre a Biologia e a arte. A expressão de sua própria sensibilidade em seu modo de fazer ciência nos instiga nesta busca sobre um modo artista de criação do conhecimento. Neste estudo agregamos textos de outros biólogos, tais como Máximos Sandin, Edward Wilson e Erwin Shrodinger, que mesmo em suas especificidades de investigação, conseguiram aliar a sabedoria com a erudição. No plano daquilo que se apresenta como sabedoria encontramos um ser humano estudando a vida atentos aos seus mais reais movimentos. Como lidavam outras culturas, que não a patriarcal europeia, com a relação entre conhecimento e afetividade? Onde se originou ou se embasou historicamente e filosoficamente a cultura ocidental para afirmar que razão e emoção andam separadas? Percebemos que nós tínhamos uma concepção do modo de conhecer em que razão e emoção estavam irrefutavelmente separadas, que o conhecer só se originava na exclusão da emoção. Nós sentimos um incômodo com isso, com a secura da ciência, com a objetividade pragmática e instrumental das relações no cotidiano. E conforme estudamos alguns textos, percebemos que um dos grandes fatores que contribuem para nossa crise como cultura e como sociedade é justamente essa distinção que fazemos entre afeto e conhecimento (assim como a distinção entre o público e o privado, entre o individual e o coletivo etc.). É uma crise com implicações políticas, que afetam diretamente nossas relações interpessoais. É como se a civilização ocidental tivesse construído sua própria prisão – construído tão bem que as pessoas nem se dão conta de que estão presas (tirando as consequências do modo de vida que levamos – o estresse, a depressão, a ansiedade, que os médicos tratam com medicamentos, quando são sintomas corporificados dos nossos conflitos com o mundo). Mas também não entendemos bem o que é essa prisão. Não sabemos como ela foi construída e não sabemos direito a quem ela serve. Mas a intuição é forte de que caímos numa cilada. E uma das mudanças que pode trazer o ser humano a uma relação de maior equilíbrio em sociedade e com a natureza é resgatar o elo entre o 36 sensível e o racional. Conhecer o mundo afetivamente; sentir o mundo cognitivamente. 2.2 – Nosso encontro com Jean-Didier Vincent5 “O ser humano não é o que é”. Ele cria o que é, ele dá sentido. Coloca-se no lugar do outro. “Liberdade caça jeito”, fala Manoel de Barros. Através de que prisma olhar a liberdade? “O homem está fadado a ser livre”. E sua infelicidade é fugir da liberdade por medo. A liberdade dá chute, ela quer madureza. “A existência precede a essência” e o calo do ser humano é se deparar com sua finitude e a fragilidade de sua existência. Somos breves e quando nos damos conta disso, queremos fazer algo que valha a pena, queremos dar um sentido à vida. A gente luta, briga com o mundo, a vida dá soco no estômago. Mas não tem outro jeito de continuar vivendo senão criar. O ser humano cria a si e cria no exterior. A capacidade de síntese nas novas ideias, nessa fuga constante da morte, é a bela tentativa do homem de resistir, de respirar vida. E, no sistema que nos engole, criar é resistir. Lógico que não qualquer modo de criar, mas o escape passa pela criação – pela reinvenção de si e do mundo. O critério da objetividade na ciência está “numa ‘epistemologia’ sem sujeito”. A objetivação seria encarnar o pensamento em uma impessoalidade. Dar o tom de verdade para o que se constrói de conhecimento. Que razões, motivos ou motivações levam o homem a produzir ciência? Será que os pesquisadores de hoje estão mesmo abertos à refutação de suas teorias e hipóteses? Qual é o status da ética na produção da ciência? Qual é o rigor presente nas ciências duras? A impressão é de que a objetivação congela a vida. Há uma tensão entre a emoção e a razão. A dependência entre as pessoas se mostra evidente na produção da ciência. Desde as influências e a conexão histórica dos conhecimentos até a exposição das hipóteses e teorias ao público, abrindo-as à crítica. As pessoas se ajudam pensando. Deveria haver uma relação entre a produção da ciência e a democracia, mas vemos que a primeira não está isenta das relações de poder presentes na sociedade. Por esta razão, algumas teorias ou hipóteses podem prevalecer pelo 5 Aqui nos referimos a leitura do livro “O que é o ser humano”, escrito em co-autoria com Luc Ferry. 37 interesse econômico envolvido na área (poderíamos procurar exemplos na ciência financiada pela indústria farmacêutica, assim como em estudos sobre agrotóxicos patrocinados por gigantes do agronegócio, e provavelmente em muitas outras áreas), ou alguns conhecimentos produzidos com rigor pela ciência serem utilizados para perpetuar práticas de empresas ou grupos dominantes, mascarando seu efeito nocivo para o meio ambiente ou suas consequências de exclusão social (como os transgênicos). O ser humano, para a biologia e a ciência, nasceu de um acidente. Fusão- enganchamento de um cromossomo, modificações em alguns genes. Tão poucas mudanças entre o homem e o macaco ancestral que lhe deu origem, e efeitos tão bruscos! Surgimento da linguagem, do riso, da consciência, da cultura, da arte. Mas tivemos um “preço” a pagar, pelo menos com nossa consciência: nos deparamos com a morte, a finitude, a fragilidade da vida. Criamos Deus e lutamos agora para matá-lo. A alegria e o sofrimento de existir na condição humana persistem invariavelmente juntos. O incômodo de estarmos vivos, sós, nos aflige profundamente, por mais certezas que possamos afirmar na vida. A necessidade de dar sentidos ao mundo é tão intensa que nos faz (querer) ir ao encontro das fronteiras da nossa existência – passado, futuro. Questionamos nossa própria condição. Contorcemo-nos. Nunca nos achamos: no presente perdemos nossas possibilidades, por inúmeras razões. O incômodo e as provocações são justos, se exercerem tensão na medida certa na “corda do eu”: a tensão que fica entre o rompimento (destruição) e o afrouxamento (acomodação). A inquietação move o ser. Qual é a diferença entre o rigor da ciência tradicional e o rigor dessa ciência que estamos fazendo – que estamos seguindo nessa pesquisa/investigação? O que são as marcas no corpo? É duplo e tensionador (talvez contraditório?) o incômodo que nos assalta. Para nós aparece como sendo muito forçado e estranho o desejo da ciência (ou dos cientistas) de querer tirar ou diminuir ao máximo os efeitos da subjetividade na produção do conhecimento. É como se nossos desejos, emoções, sensibilidades sujassem uma lógica que deveria ser limpa de qualquer influência. Aí se faz um jogo: se a ciência é neutra e ela não é voz de ninguém, então ela pode ser tomada como verdade. Verdade que domina, muitas vezes. Verdade que exclui, fragmenta, mas que seja garantido o seu estatuto de verdade. Verdade que se prende nos muros de 38 seus jargões, conceitos, técnicas, instrumentos. Mas, afinal, a verdade está longe do ser humano, só pode ser aceita. Foge do concreto e não tem chão. A sensibilidade, na nossa visão, resgata a ciência para o real. Corta suas pretensões metafísicas implícitas. A consciência de que é a subjetividade (ou a intersubjetividade) que produz o conhecimento, e de que ele não está pronto nos objetos a serem descobertos, é um passo importante para tornar a ciência mais humana e menos sobrenatural. Entretanto, um segundo incômodo nos acossa. Qual rigor seguir para que as verdades construídas justo às subjetividades não sucumba à tentação de se apropriar somente do que lhe convém? Como o traz Luc Ferry nos exemplos que dá sobre a psicanálise e o marxismo ortodoxos – que incorporam a metafísica do materialismo e se declaram como ciências, quando, na verdade, não deixam falsificar nunca. O homem é o ser das paixões, o ser da consciência. O ser do amor e do ódio. O ser da escolha e da liberdade. Ser que busca. Ser que, a todo momento, se vê em seu fim. Emoção é “por em movimento”. Desejo é ponte. “Antes de tudo o desejo está ligado à falta, à carência” (FERRY; VINCENT, 2010, p. 160). Em latim, desiderare é sentir uma falta. O homem sente falta do que nunca teve. Desejo, prazer e sofrimento. A construção de um organismo pluricelular se faz pela adição e subtração de células. A morte celular é necessária nessa construção. A divisão e crescimento também. 2.3 – Nosso encontro com Michel Maffesoli6 Uma primeira ideia nos surpreendeu nesta leitura sobre a não manipulação na explicação dos fenômenos. A honestidade, a ética e toda a questão do fluir do pensamento a partir das marcas, do que toca e inquieta, sendo ético (verdadeiro com o mundo e consigo mesmo?). “(...) uma ascese de não se fazer o jogo do demiurgo que manipula, ao seu bel-prazer, aquilo que convida a ser visto, em favor daquilo que se desejaria que fosse” (MAFFESOLI, 1998, p. 20). 6 Aqui nos referimos a nossa leitura do livro “Elogio da Razão Sensível”. 39 A atitude racionalista (fragmentadora, utilitarista etc.) se desenvolveu e avançou na história até os dias de hoje através de algum tipo de energia propulsora. É como se esse modo de pensamento tivesse relação com processos cotidianos no padrão começo-meio-fim, dissipação de energia e utilização dela para realização de trabalho. Uma bola quicando no chão plano, uma onda arrebentando na praia, uma fogueira queimando. E é como se essa racionalidade (ou modo de usar a razão) estivesse cada vez mais próxima do esgotamento. Por seu próprio mecanismo de ação, o racionalismo vai se desmontando. Isso se vê pelas consequências ambientais e sociais do modo de vida gerado (ou gerador) do nosso modo de pensar e fazer, que quer controlar. Nosso desejo de controle e poder nos faz rejeitar nossa irracionalidade na cultura ocidental. A razão que busca a Verdade é uma tentativa de subjugar o mundo à nossa volta – de ter controle sobre seus processos. As consequências dessa postura diante da natureza reclamam uma razão aberta, que dê conta da sensibilidade e do respeito. As incertezas nos levam a algum lugar? Será que o mundo é tão sem contornos como Maffesoli afirma? (Considerando o mito da Razão sobre o qual nossa sociedade cresceu, parece que queremos sempre encaixar as coisas em categorias: pensamentos, sentimentos, atitudes, objetos, ações, organizações, acontecimentos...). A economia domina a nossa sensibilidade e os afetos. E é só quando ela consegue controlar o irracional (ou talvez uma parte dele) que ela força as pessoas a defenderem e a se identificar com uma ideologia, modo de vida. “compreender o aspecto criativo da vida fora da dimensão do “fazer”, da ação e, senão, do ativismo”. (MAFFESOLI, 1998, p. 41). Criar é diferente de produzir. “A vida não se deixa enclausurar. Quando muito é possível captar-lhe os contornos, descrever-lhe a forma, levantar suas características essenciais” (MAFFESOLI, 1998, p. 47). A vida é movimento e se constitui em forma de resistência quando opera em liberdade (criativa). Nesse sentido, Rosa Luxemburgo vem ao encontro da vida quando diz que só sente as correntes que prendem aquele que se move. 40 As provocações advindas deste encontro com Michel Maffesoli, neste seu modo de abordar a razão sensível, nos permitiram expor um poema nosso, em que a perspectiva da compreensão da vida se faz de forma dinâmica e ampla: Sem ensaio, A razão vestiu a saia Feita sob medida Justa. Não sobrou nem uma fresta Pra caber paixão. Mas a razão murchou E a saia A saia foi pro chão. O afeto é fato Não tem mais Não tem trato Ele faz. Apunhala o peito do amor Chupa o pinto da dor Arregaça as mangas Pinta, deita, dança Faz de boneco o viver Costura ter sido sofrer Brinca com a escolha Quem não quer, morra! O afeto tem razão E quem acha que não 41 Domá-lo tente, vá! E por ele domado será. Como recebemos a diferença? Como asfalto ou como solo vivo de vegetação? A diferença nos causa enchentes ou nos causa vida? Ou os dois? Enquanto os solos das cidades, das casas continuarem impermeáveis, a nossa alma e pensamento terão barreiras impenetráveis. Começamos a pensar sobre a importância em abrir espaços: para as incertezas, para as dúvidas, para o movimento e, então, para as possibilidades. É possível perceber ou entender esse global ou todo (holos)? Parece-nos que entender um dado fenômeno por si é fragmentar(-se) (d)o mundo e (d)a vivência. Não que essa fragmentação seja ruim e nem que o conhecimento/saber venha só através de um distanciamento do objeto. Esse apartamento de componentes da realidade é simplesmente uma consequência do nosso modo de conhecer/viver. Talvez o holos seja alcançado no próprio ato cotidiano de viver, na experiência. E incorporar os afetos ao modo de conhecer seja um modo de levar o conhecer para mais perto da vida. “Profundidade subterrânea”: a mãe de cada planta é a terra. As raízes fazem toda a conexão. A raiz dos animais é a afetividade. A terra em que vivemos todos os seres vivos e não vivos são as interconexões de dependência, baseadas em relações mútuas que existem como constituintes de um todo ecossistêmico. Quando a política e a ética chegam no corpo e nas ações – faz falta a conexão entre discurso e atitude. Nosso modo de pensar às vezes voa longe de nossas atitudes. Ficamos presos em especulações mentais ou em discursos vazios, uma vez que as ações, a vivência, não vão ao encontro da nossa construção no linguajar. Recuperar essa interconexão entre o pensar e o fazer, entre a teoria e a prática, se apresenta como um desafio sempre presente. Em consonância com essa reconexão do pensamento e da ação, mediante o compromisso com o que se diz, vem a questão de falar sobre o que se vive, do que se sente no corpo. O corpo tem conhecimento também, as memórias dizem da nossa vivência e fazem parte da construção da vida. Então esse conhecimento do corpo, das sensações, das memórias, do sofrimento, das experiências, cabe na construção do pensamento. Não é tanto questão de buscar a verdade – nosso conhecer sempre vai se deparar com a diferença e será desafiado a incorporá-la ou 42 resistir no que conhece. Há um processo dinâmico em todo o nosso esforço pela compreensão da vida. Mas se nós nos abrimos para esta experiência de falar a partir do que o corpo experimenta a conexão do saber e do fazer fica um pouco mais evidente. Uma das pistas para unir o que pensamos com o que sentimos consiste em um exercício de pensar com o corpo e criar (ou crescer) as raízes do pensamento. Não precisamos desprezar sensações, impressões, intuições, sentimentos e emoções. O pensamento caminha no húmus ou na terra seca. Pode voar também e se perder no céu. Em nosso encontro com Michel Maffesoli sentimos algo estranho em sua proposta de descrever o mundo “como ele é” e abster-se da crítica. Aproximar-se do concreto/cotidiano acreditamos ser possível, mas há já nisso uma fusão com o mundo no intelecto, na linguagem? Não ficou claro para nós o que Maffesoli quer dizer com a razão sensível ou com o formismo. Seu pensamento parece ser contraditório e pensamos que talvez ele tenha querido sê-lo (a vida nos paradoxos). Para tocar o mundo é preciso passar pela tangente, algo que ocorre semelhante ao estilo de um jogador de futebol pegando chute de trivela. O mundo pede esse tocar pelos cantos, o estar mas não estar (bem na fronteira). Trata-se de um falar que passa rente ao ente que se refere, que passa raspando a coisa, mas não erra! Palavra certeira, mas que não cria redomas, grades, muros, paredes. As conversas são feitas de toques. Toque ligeiro desperta. Sobre ciência e arte: Constantemente ao longo de toda a modernidade, a subjetividade foi, deliberadamente, afastada da progressão científica. Era considerada como um resíduo das pulsões primitivas próprias à infância da humanidade. (...) Um deles [poucos que, na modernidade, atentaram para aproximação entre ciência e arte] foi Guyau (...), ressaltando que havia algo de instintivo e até de inconsciente na marcha do intelecto (...). “A hipótese é um tipo de romance sublime, é o poema do cientista”. (MAFFESOLI, 1998, p. 141). “Simplismo progressista que não vê a salvação da humanidade senão numa perpétua fuga para frente” (MAFFESOLI, 1998, p. 164). 43 “Sábio é aquele que monotoniza a vida, pois o menor incidente adquire então a faculdade de maravilhar”7. A banalidade das coisas tece a vida. Reocupar os espaços do cotidiano. Convite a ver (viver) a vida em forma de arte. A vida é causa e efeito de si. 2.4 – Nosso encontro com Luis Carlos Restrepo8 Imaginamos que a visão da subjetividade como parte integrante da sociedade – como construção social – tenha muito a ver com a noção de “corpo social”. E essa questão se junta à (não) oposição entre o público e o privado, entre o individual e o coletivo. A valorização extrema dos desejos e valores individuais pode nos fazer achar que somos indivíduos isolados vivendo em uma sociedade que tenta anular nossos desejos de vida. Aqui nos recordamos de um modo de vida separado do que acontece nas esferas maiores de poder, dos atos irresponsáveis que acontecem em outros cantos. Mas agora pensamos: estamos ligados as outras pessoas pelas relações – se nós de verdade formamos uma rede interconectada -, nós não somos um pouco responsáveis pelo que acontece no mundo? Vemos os nossos desejos pessoais sempre se opondo às lutas sociais, às ideologias, mas nos abala o entendimento de que não estamos desprendidos do mundo, nem na nossa solidão estamos isolados. E isso nos faz perceber que as decisões políticas normativas vão afetar de algum modo as nossas relações em nível pessoal; e que, em raciocínio inverso, as nossas relações são politizadas, quer percebamos isso ou não. A partir daí, nos sentimos envolvidos, nos sentimos como corresponsáveis pelo mundo. Contudo, exercer essa responsabilidade compartilhada de modo consciente e sem nos render às “fórmulas prontas” que encontramos por aí é uma tarefa que demanda trabalho, jogo de cintura, abertura para a vida. É árdua, sentimos no corpo que é tarefa de tirar o chão repetidas vezes. Mas deve haver jeitos, porque o pulso da vida continua com intensidade. Refletindo sobre o espaço que chamamos de intimidade, pensamos num espaço próximo, onde se manifestam desejos, onde há maior liberdade para o expressar-se ao outro e onde os corpos se aproximam. 7 Fernando Pessoa. Livro do Desassossego. 8 Aqui nos referimos a leitura do seu livro “O direito a ternura”. 44 A frieza no estudo da vida tem raízes na insensibilidade diante do objeto de estudo (“neutralidade de sentimentos” almejada na ciência). Uma ciência fria. Mas será que conseguimos nos ausentar de sentimentos na produção de conhecimento? Será que os nossos desejos não se expressam no que pensamos, mesmo que a construção desse conhecimento seja coletiva e se dê por certa sistematicidade e com rigor? Vê-se que a ciência é feita de combates também. É campo de discussão. E o próprio posicionamento de escolher certos autores para embasar um estudo ou a adoção de um determinado modo de enxergar um assunto já evidencia os sentidos e valores que o pesquisador dá para o mundo. E se os sentidos e valores através dos quais o ser humano se relaciona com o mundo não têm relação com desejos e sentimentos, com o que têm a ver? A emoção posiciona o pesquisador em meio a um conflito científico também, por mais que ele não perceba. O modo de emocionar na razão ocidental não é percebido porque está em uma espécie de ponto cego nosso – nossa educação nos impele a competir, a nos apropriar, a dominar, a excluir, a universalizar e padronizar. Assim, a questão não é tentar entender a emoção para tirar sua influência da ciência. A questão é acolher a emoção no meio científico para não corrermos o risco de acharmos que estamos chegando a uma verdade; para entendermos que mesmo nas chamadas ciências duras ou exatas, há influência histórica, cultural e social na produção do conhecimento (e da produção desse conhecimento); para tornar a ciência mais humana e menos robótica; para não expressarmos desejos pessoais ou interesses de alguns grupos como se fossem verdades universais, mas apenas modos de pensar; para permear a objetividade de subjetividade e a subjetividade de objetividade. Este é um modo de abrir a ciência às brincadeiras da vida, sem perder de vista o rigor e compromisso na construção do conhecimento. “Nós cidadãos ocidentais sofremos uma terrível deformação, um pavoroso empobrecimento histórico que nos levou a um nível jamais conhecido de analfabetismo afetivo” (RESTREPO, 1998, p. 19). A cultura ocidental é conflituosa e contraditória e nós que dela fazemos parte vivemos em uma condição de incompletude diante do potencial que o ser humano pode atingir na sensibilidade das relações. Parece que temos medo de amar e de viver sensivelmente, de modo que o mundo possa nos afetar. Temos medo da dor que uma experiência intensa pode nos trazer, medo dos rótulos que nos poderão dar se demonstrarmos afeto ou 45 sensibilidade. E ficamos no vazio existencial ou na ilusão de tentar achar verdades pelo pensamento. Temos a impressão de que nas culturas mais próximas à natureza e que foram dominadas pelo modo de viver ocidental/patriarcal, em sua maioria, havia uma fluidez maior em seus modos de vida. Que não havia tantas contradições, conflitos e guerras externas e internas como há na cultura ocidental. Muitos males físicos (enfermidades) que nos afligem hoje têm raízes emocionais. Os médicos continuam tratando os sintomas, a indústria continua a produzir novos medicamentos e a luta contra as doenças pode ir ao infinito se o homem não passar a se olhar em outra perspectiva – que considere nossos sentimentos e relações interpessoais. “(...) o amor e o êxito econômico e social parecem andar na contramão” (RESTREPO, 1998, p. 23). Como o ser humano pode restabelecer o vínculo com o planeta e transformar as relação sociais se ele se nega a sensibilidade? Sentir o mundo nos quebra. “(...) as estruturas de pensamento não são mais do que relações entre corpos que se interiorizaram, afeições que, ao se tornarem estáveis, nos impõem certo modelo de fechamento ou de abertura diante do mundo.” (RESTREPO, 1998, p. 33). O pensamento e a emoção devem combinar entre si. A emoção é sensível à pluralidade diversa, já que é capaz de perceber o que é singular. A sensibilidade capta detalhes muitas vezes não alcançados no raciocínio lógico. Mas nossa cultura desvaloriza esse tipo de percepção. Ela simplesmente ignora uma parte do ser humano – ele fica por metade. O saber cotidiano, o conhecimento construído sobre a vida e na vida, nos movimenta. Essas relações mais próximas a nós, que acontecem em um estado de aproximação ou contato com o corpo ou a experiência, tem conexão íntima com nossos desejos. Os desejos movimentam. E esses conhecimentos próximos, concretos, cotidianos e afetivos parecem ser distantes do conhecimento formal produzido na ciência. Esse conhecimento mais árido e prepotente (julgando-se ser válido em qualquer circunstância) é o que chega na escola através do currículo e da relação professor-aluno, sendo, na nossa impressão, um dos maiores contribuintes para o desestímulo que o ensino formal provoca nos educandos. Que saber é esse que é exposto e imposto a eles sem fazer significado no modo de ser e estar deles no 46 mundo? É absurdo, mas parece que o problema ainda não foi evidenciado completamente. Não se aprende sem interesse: se decora, finge-se aprender, mas o conhecimento não cresce nas relações entre os diversos assuntos, no posicionamento diante de conflitos, na consciência reflexiva, nas atitudes cotidianas etc. etc. etc. Formação da sensibilidade. Quando nos propomos a educar visando a despertar outra sensibilidade ou outra estética que não a predominante no mundo contemporâneo corremos o risco de impor uma visão de mundo ao educando. Nas relações todos nós aprendemos – e de algum modo que não sabemos especificar em detalhes ou em processo. Não temos fórmulas pra aprender. Mas algumas coisas podem ser pensadas sobre o ensinar e o aprender: a beleza só pode ser aprendida na experiência com o belo – não tem como impor a valorização da beleza a alguém que não a experimentou. A beleza do meio ambiente, a beleza da arte, a beleza do conhecer, a beleza das relações – outra estética pra vida. É aprender a partir da vivência. E a educação está muito distanciada da vivência cotidiana, parece. Esse é o perigo: falamos de valorizar, mas não aprendemos os valores sem vivê-los – e a escola continua a dar ênfase aos processos puramente cognitivos. Ensinar outros valores, outra estética, outra sensibilidade diante da vida, requer a integração do conhecimento com a vida, com o viver, com a atitude. A política (no sentido ideológico e mais pragmático do termo) é uma espécie de tabu. Viemos pensando que somos manipulados ideologicamente pela mídia e outras instituições para termos certas opiniões políticas que não são sustentadas por argumentos e sim por uma carga emocional muito forte ou manipulação de informações. Este estado emocional muitas vezes vem da família ou da Igreja, determinam o que seria “correto” para as pessoas compreenderem sobre um assunto. As opiniões políticas presentes em uma família podem passar de geração em geração sem ser questionadas ou discutidas e aqueles valores se mantêm pela educação e o modo de emocionar dessa família. Muitas vezes as pessoas se sensibilizam diante da miséria ou da pobreza e se mobilizam a ajudar através de ações ou projetos assistencialistas. É perfeitamente compreensível que para elas aquela atitude seja a correta e que elas acreditam estar fazendo o bem, mas isso demonstra uma incoerência grande em nível político – uma vez que as pessoas desfavorecidas socialmente precisam de muito mais que ganhar somente comida, abrigo ou terem suas necessidades básicas 47 supridas. Mas às vezes tocar no ponto da luta política pode ser traumático a essas pessoas bem intencionadas e até para as que estão em situação de miséria – há preconceito com a política devido a diversos fatores e falar em mudança de visão política implica também em uma mudança de olhar para nossa própria vida e nossas relações, o que nem sempre é fácil. Ouvimos que “política e religião não se discutem”. E se reafirmamos isso acabamos por ceder à dominação política e religiosa que oprime a sociedade. Discutir e argumentar sobre política não significa agredir ninguém. O que talvez queiramos (os que querem discutir política) é maior consciência e sensibilização das pessoas com o mundo. Ficar cada um no seu canto com sua opinião só serve a deixar as pessoas na inércia, o mundo como está indo. E achar que não vamos nos influenciar pelo mundo ou pelas ideias também é uma ilusão, porque toda a informação que recebemos com certeza veio de alguém. A dominação se mantém nas relações e no corpo. O ser humano: “(...) cérebro altamente aberto ao acaso”. A ciência: “(...) o cientista é um artesão do conhecimento”. A carícia: “(...) abrir-se ao mundo e também aos abismos que nos sulcam” (RESTREPO, 1998, p. 52). O ser humano vaga entre os extremos nas relações. “O espírito (...) tem em sua essência a dupla possibilidade da ternura e da destruição” (RESTREPO, 1998, p. 55). O poder se mantém pelo medo. A violência sutil presente no autoritarismo das nossas relações não é enfrentada porque temos medo de nos rebelar. Medo de sermos punidos, reprimidos – uma vez que a força está muitas vezes nas mãos de quem oprime. Mas a mudez compactua com a violência. Não há modo de se opor sem se expor, mas talvez haja modo de unir tantos oprimidos construindo outras formas de relação. É do caos que tiramos sentido. É o chão que o acaso nos tira. Temos medo do caos e não nos vemos no acaso. 2.5 – Nosso encontro com Sueli Rolnik9 9 Aqui nos referimos a leitura do texto “Desentranhado futuros”. 48 Pensar a partir do que Rolnik traz, de que o medo instalado por uma ditadura transcende a geração que a viveu (pelo menos na produção artística), faz pensar nas relações, no invisível que faz parte da nossa vivência. O silenciamento, a opressão que barra o movimento de criação é algo muito forte que vai além da arte: invade a própria vida das pessoas que vivem uma ditadura (e a de seus filhos, talvez netos). É como se o medo contagiasse, se espalhasse silenciosamente. E até a vida recomeçar a pulsar, com força para criar, ousar, leva tempo. O trauma é grande e a tristeza que bate é que essa posição política à qual agrada a ordem, a opressão e submissão, não morreu ainda com todos os traumas que foram vividos – mortes, torturas, censuras. Há pessoas ainda pedindo a ditadura no Brasil, por exemplo (e deve haver em outros países). A questão do medo, do silenciamento e do controle nos lembro