UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS CAMPUS DE MARÍLIA JOYCE APARECIDA PIRES Como mulheres e religiosas: a vida no cenóbio e a contribuição pela filantropia Marília Agosto de 2018. JOYCE APARECIDA PIRES Como mulheres e religiosas: a vida no cenóbio e a contribuição pela filantropia Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia e Ciências, da Universidade Estadual Paulista – UNESP – Campus de Marília, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais. Orientador: Professor Antônio Mendes da Costa Braga Marília Agosto de 2018. Pires, Joyce Aparecida. P667c Como mulheres e religiosas: a vida no cenóbio e a contribuição pela filantropia / Joyce Aparecida Pires. – Marília, 2018. 159 f. ; 30 cm. Orientador: Antônio Mendes da Costas Braga. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Filosofia e Ciências, 2018. Bibliografia: f. 150-158 1. Vida monástica e religiosa. 2. Conventos. 3. Assistência social. I. Título. CDD 248.89432 Elaboração: André Sávio Craveiro Bueno CRB 8/8211 Unesp – Faculdade de Filosofia e Ciências JOYCE APARECIDA PIRES Como mulheres e religiosas: a vida no cenóbio e a contribuição pela filantropia Dissertação apresentada a Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como parte das exigências para a obtenção do título de mestre. Marília, 23 de agosto de 2018. BANCA EXAMINADORA ________________________________________ Prof. Antônio Mendes da Costa Braga Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, (UNESP, Marília). _________________________________________ Prof. Sílvia Regina Alves Fernandes Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). _________________________________________ Prof. Christina de Resende Rubim Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, (UNESP, Marília). AGRADECIMENTOS Às freiras e formandas responsáveis pela congregação Pobres Filhas de São Caetano, pela corajosa acolhida deste trabalho. Sempre me acompanharão. Às funcionárias e funcionários que trabalham na obra da congregação, pela intensa convivência ao longo das visitas e entrevistas e pela confiança. Ao orientador Antônio Mendes da Costa Braga, por sua disponibilidade analítica, sinceridade e interesse em acompanhar-me na realização desta pesquisa e trajetória, desde a graduação. Muito obrigada! À professora Dra. Christina de Resende Rubim que, como coorientadora participou e trabalhou comigo, ensinando-me a fazer pesquisa. Abriu sua casa e seu coração me acolheu. Levo comigo seu grande exemplo. À banca de exame de qualificação. Aos queridos professores, Sérgio Augusto Domingues (in memoriam), Silvia Regina Alves Fernandes, Lídia Maria Vianna Possas junto ao LIEG, Rosângela de Lima Vieira, Maria Valéria Barbosa, Brenda Maribel Carranza Dávila, Larissa Maués Pelúcio Silva, Marina Gusmão Mendonça, Sílvio José Benelli, Zélia Lopes da Silva, e tantos outros que passaram por minha vida e aos colegas do curso de graduação e pós-graduação da Unesp de Marília. Agradeço muito às funcionárias e funcionário da Universidade Estadual Paulista, campus de Marília e Assis, Pós-graduação e bibliotecas das Unesp (s) pela competência e cumprimento do dever e a prestatividade. À minha família, pela paciência com a filha, pelo carinho e incentivo que sempre souberam oferecer, acompanhando discreta e humildemente meus passos, alegrando-se com as etapas vencidas. À CAPES, pelo financiamento desta pesquisa. Finalmente, um agradecimento especial a meus alunos, que me permitiram o diálogo gratificante para a necessária troca de experiências nos momentos de atividades didáticas. “O trabalho de passadeira obrigava mamãe a esse encerramento, ao que se prestava por outro lado de bom grado, comprazida no paraíso aparente, porque não era uma mulher que visse mais além das aparências. Eu me atirava como um vampiro sobre a ilusão: vivia do sangue do paraíso fantasmal.” AIRA, p. 82, 2013. Como eu me tornei freira RESUMO O presente estudo aborda a vida religiosa feminina na Igreja Católica Apostólica Romana e busca, na particularidade da vida cotidiana dos agentes envolvidos, uma compreensão da vida cenobítica contemporânea em interface com a filantropia. Com o intuito de obter dados sobre a temática, o trabalho empírico foi desenvolvido junto a um instituto religioso de freiras inseridas em obras filantrópicas, do interior do estado de São Paulo, Brasil. Entrevistas, observações e visitas foram realizadas por meio de contatos estabelecidos com o grupo de freiras. A pesquisa revela como através do tempo e espaço cenobítico, são produzidas experiências com o sagrado e os contextos sociais para a inserção dessas mulheres no trabalho de assistência social saúde e educação, importantes à população local. Abre-se uma oportunidade para refletir como as mulheres agem a partir de uma posição feminina eclesial subalterna e, ao se doarem para os serviços religiosos, produzem agenciamentos, conferindo sentido à vida consagrada. Além disso, o estudo aponta para a necessidade de novas investigações que versem sobre os diferentes aspectos da vida religiosa cenobítica e a relação dessas mulheres com a sociedade. Palavras-chave: Feminino. Religião. Cenóbio. Cotidiano. ABSTRACT The following study approaches the religious female life in the Roman Catholic Church and seeks, within the private daily life of the subjects involved, a comprehension between the contemporary cenobitic life facing the philanthropy. To obtain data about the theme, the empirical work was developed in partnership with a religious institute of nuns inserted in philanthropic work from the countryside of Sao Paulo State, Brazil. Interviews, observations and visits were made since the contact to the group of nuns was established. This research reveals how, by the cenobitic time and space, are produced experiences with the sacred and the social contexts to insert these women in the social work, health care and education, essential to the locals. That is an opportunity to consider how women act in face a feminine ecclesial position and, giving themselves to the religious service, produce meaning to the consecrated life. Thus, the present study pointed out the need for further research on different aspects of the cenobitic religious life and the relationship of these women to society. Keywords: Female. Religion. Monastery. Daily. LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS CPFSC: Congregação Pobres Filhas de São Caetano EF: Entidade Filantrópica ILPI: Instituto de Longa Permanência para Idosos IPFSC: Instituto Pobres Filhas de São Caetano PFSC: Pobres Filhas de São Caetano SUMÁRIO INTRODUÇÃO...............................................................................................................9 CAPÍTULO I I.1 Caminhos metodológicos: o campo de pesquisa.........................................................13 I.2 Um contexto religioso.................................................................................................33 I.3 Uma perspectiva de gênero para compreender o contexto social onde estão inseridas as mulheres católicas consagradas...................................................................................44 CAPÍTULO II II.1 As religiosas católicas chegam ao Brasil...................................................................51 II.2 Uma congregação para o exercício da filantropia......................................................80 CAPÍTULO III III.1 Compreendendo as “Pobres Filhas de São Caetano”: vida religiosa feminina no Brasil contemporâneo......................................................................................................93 III.2 Sujeitas de uma relação de subalternidade?............................................................136 CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................145 REFERÊNCIAS..........................................................................................................150 ANEXO.........................................................................................................................159 9 INTRODUÇÃO Os dados apresentados ao longo desta dissertação convidam à reflexão sobre os apelos socioculturais que estão associados a uma percepção de feminilidade de mulheres consagradas para a dedicação exclusiva dos serviços caritativos em obras filantrópicas na Igreja Católica Apostólica Romana. Os três capítulos desse trabalho foram escritos a partir do contato com o grupo de freiras da cidade de Cândido Mota, interior do estado de São Paulo, Brasil. Refletem preocupações conhecidas dos cientistas sociais: compreender o funcionamento das instituições totais, discutir os estudos de gênero e suas expressões no cotidiano, no imaginário, na linguagem mítica e ainda, compreender as formas de expressão das religiosidades e dos modelos alternativos de vida social que foge à lógica previsível do consumo dirigido (LEFÈBVRE, 1991) da sociedade moderna. Os dados apresentados não falam por si mesmos, são moldados por minhas interpretações que envolvem as problemáticas pertinentes ao campo acadêmico: desigualdade social e de gênero, religiosidade e vida cotidiana. Os fragmentos retirados do diário de campo dão lugar a enredos e encenações montados explicitamente para dialogar com ideias existentes, tanto no senso comum como na comunidade acadêmica, que ocorrem nos espaços onde transitam pessoas, símbolos religiosos, ritos, cuidados aos idosos e às crianças. E, ainda, a justaposição de dois mundos, intra e extra conventual na vida cotidiana de mulheres consagradas pela Igreja na contemporaneidade. Na ordem dos sacramentos da Igreja (CÓDIGO DE DIREITO CANÔNICO, 1983) é explicitado o poder institucional – marcador social de desigualdades e diferenças –, que orienta e regula a inserção das mulheres e seus trabalhos na Igreja e nos espaços públicos, restando a elas posições subalternas em relação à realização e participação dos sacramentos e tomada de decisões no campo religioso.Foi elaborado um processo de pesquisa a partir do contexto geral de uma instituição normativa eclesiástica existente denominada e direcionada ao feminino na Igreja. 10 Busquei compreender a particularidade deste fenômeno religioso, por meio do trabalho de campo onde as freiras da congregação Pobres Filhas de São Caetano (PFSC)1, estão inseridas. Essa instituição religiosa congrega mulheres de estatuto sócio econômico baixo, desprovidas de recursos de todo o tipo, que vivem em um instituto conventual para uma vida cenobítica, contribuindo pela filantropia em contextos relacionados a saúde e educação. O que pretendi foi construir etnografia que tivesse como interface a religião e o feminino, em dois tipos de instituição cenobítica e filantrópica, e que versasse sobre a vida religiosa feminina católica por meio da aproximação das discussões do campo da antropologia, da religião e dos estudos de gênero. Neste percurso, encontrei indícios dos fundamentos teológicos, filosóficos e políticos da constituição do cenóbio (espaço da vida comum) em relação ao grupo das Pobres Filhas. Portanto, pretendo contribuir, entre outras coisas, para pensar os contextos da vida religiosa, sua gênese e processo, a partir de um movimento interpretativo que parte do geral para o particular e do particular para o geral. O grupo de freiras pertence à Igreja Católica e possui sua sede, como sua origem, em Turim, na Itália. As religiosas são orientadas e formadas na busca cotidiana de uma vida mais santificada, incorporada aos moldes institucionais/sacramentais da Igreja Católica Apostólica Romana. Neste sentido, a pesquisa não pretendeu problematizar a prática dos leigos na Igreja, mas, os agentes sociais que tentam se aproximar mais fielmente aos sacramentos institucionais católicos e litúrgicos, a partir de uma rotina histórica e sacralizada pela instituição religiosa católica tradicional. Esse ideal de vida é construído e conquistado no cotidiano prático da vida das PFSC. No esmaecer de suas vivências, é produzida uma sensação de que seus ideais estão sendo realizados e praticados a partir de uma rotinização cotidiana da vida cenobítica2, por meio da experiência religiosa que o contexto conventual contemporâneo proporciona: rituais, orações, autoflagelações, oferendas, profissionalização e assistencialismo, oferecendo, assim, sentidos às suas vidas. 1 Para referir-me ao grupo das Pobres Filhas de São Caetano usarei as iniciais PFSC. Também usarei: freira, irmã, irmãs de São Caetano, Pobres Filhas e a abreviatura Ir, pois é comum as religiosas e leigos usarem essas denominações nos espaços públicos onde as freiras se inserem e no próprio espaço religioso conventual. Em dicionários da língua portuguesa, é comum encontrar o significado da palavra freira como irmã de Caridade ou religiosa. 2 A vida cenobítica se caracteriza pelo uso comum da vida e das coisas. 11 Em relação aos métodos da pesquisa, propus como chave metodológica a apreensão da vida cotidiana, a fim de compreender as questões relativas ao universo das PFSC na contemporaneidade. Foi possível identificar e expor uma rotina de suas vidas, a qual afirmo ser forjada e possível de ser praticada somente a partir das regras rotinizadas que impõem horários para todas as atividades. É neste contexto que essas mulheres podem realizar o serviço religioso no qual dialogam e se relacionam com atividades extra conventuais que caracterizam o serviço filantrópico dessas freiras inseridas. Clifford Geertz afirma: “A cultura de um povo é um conjunto de textos, eles mesmos conjuntos, que o antropólogo tenta ler sobre os ombros daqueles a quem eles pertencem.” (GEERTZ, 1989, p. 321). A descrição metafórica do trabalho do antropólogo como uma leitura por cima dos ombros dos nativos reflete a preocupação do autor em suspender os próprios valores para apreender as perspectivas locais acerca dos sentidos e significados em jogo nas práticas culturais. Do ponto de vista antropológico, o recurso metodológico do profissional em se colocar no lugar do outro, ou a de tentar compreender sua realidade, é um esforço intelectual constante. No que diz respeito às comparações realizadas entre diferentes contextos históricos e conjunturais da vida religiosa no Brasil, os trabalhos de Maria José Rosado- Nunes (1985; 1992; 2011; 2015) e de Silvia Regina Alves Fernandes (1996; 2006; 2010), foram fundamentais para entender as conjunturas políticas e históricas mais amplas, contribuindo para análises mais sólidas sobre a vida religiosa feminina no Brasil, desde a colonização até o caso específico deste estudo. A cerca do grupo das PFSC em Cândido Mota, busquei compreender os aspetos gerais enquanto uma instituição forjada por um ideal transcendente, ou seja, Deus. Nesse caminho a dissertação foi dividida em três capítulo, dentre os quais no primeiro realizei uma discussão inicial sobre a metodologia da pesquisa e o campo empírico. No capítulo I.1, propus uma discussão sobre o contexto religioso contemporâneo, em seguida, no capítulo I.2, uma discussão sobre gênero e suas articulações com os estudos sobre religião. Nos capítulos subsequentes, II.1 e II.2, respectivamente, insiro verso sobre a vinda de mulheres católicas consagradas ao Brasil e a emergência de conventos no país. No capítulo conseguinte reescrevo a história da fundação da CPFSC para compreender qual o seu lugar no campo religioso da Igreja Católica e a condição das mulheres inseridas nesses espaços. 12 No último capítulo, apresento minhas observações sobre o cotidiano do tempo cenobítico das freiras. Busquei me aproximar das particularidades da vida dessas mulheres consagradas inseridas. Com a técnica da etnografia, vivenciei as experiências dessas freiras no instituto religioso, bem como suas ações nos espaços públicos da cidade: bairros e distritos rurais por onde socializavam. Pormenorizei aspectos no que diz respeito ao trabalho não assalariado com o cuidado aos idosos e crianças que utilizam os serviços dos estabelecimentos de assistência social e educação: o ritmo das horas e cotidiano nesses espaços em interface com os processos de socialização e adesão para vida religiosa. Em seguida, por meio dos dados etnográficos, problematizei as ações caritativas e de assistência social dos agentes da pesquisa, além da legitimação dos movimentos renovadores de socialização das freiras inseridas em contextos sociais específicos. Convido o (a) leitor (a) a conhecer este universo complexo da vida religiosa feminina no Brasil, no qual construí uma trajetória de pesquisa. Nos próximos capítulos, apresento injustiças históricas, modos alternativos de se viver a vida e de enfrentamento dos medos e inseguranças, mas sobretudo, de luta e desejo por justiça social. Aproximem- se. 13 CAPÍTULO I I.1 Caminhos metodológicos: o campo de pesquisa É importante ser destacado o uso do conceito de campo trabalhado por Pierre Bourdieu (2004) nesta pesquisa. Campo religioso, segundo o autor, é um microcosmo no qual estão imersos os agentes sociais e as instituições produtoras, reprodutoras e transmissoras dos saberes, práticas e modos de pensar sujeitos a organizações sociais próprias, possuindo relativa autonomia em relação ao macrocosmo mas, não obstante, sofrendo suas imposições. Portanto, a pesquisa sobre o cotidiano das freiras de Cândido Mota foi realizada buscando fazer a análise em uma dupla perspectiva: a do campo religioso (que envolve a relação dessas freiras com a hierarquia e com a própria Igreja Católica) e a da cidade de Cândido Mota como um campo onde, efetivamente, elas realizam as suas vidas como católicas consagradas inseridas. Desse modo, interpreto as redes de relações travadas pelas religiosas em diferentes espaços, contextos e temporalidades, como um microcosmo no qual existe uma espiritualidade de vida consagrada feminina em sintonia com o que acontece no campo social mais amplo: religioso, político e econômico da cidade, no qual produzem e reproduzem saberes e práticas. Atualmente, a cidade de Cândido Mota tem uma população estimada em 29.884 habitantes, segundo o último Censo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2010. A fundação da cidade ocorreu com a formação de uma caravana de homens formada para o empreendimento de reconhecer, ocupar e colonizar uma vasta área do sul do estado de São Paulo, em 1890. Era chefe dessa expedição o Coronel Valêncio Carneiro de Castro que, em 1892, comprou a fazenda Macuco e distribuiu as terras entre seus herdeiros. Para iniciar a urbanização, vendeu terras a preços baixos a quem desejasse se estabelecer. Em 1907, chegaram os trilhos da estrada de ferro Sorocabana, facilitando o escoamento da produção cafeeira, e também o progresso e, consequentemente, a valorização das terras. De 1914 a 1920, a população cresceu verticalmente, chegando moradores de várias origens, credo e nacionalidade que compravam as terras para o plantio. Durante essa época, o povoado era conhecido pelos nomes de Posto Jacu, Parada do Jacu ou Chave. 14 Em 1920, o povoado passa à categoria de Vila de Cândido Mota em homenagem ao Secretário de Agricultura do Estado de São Paulo, Cândido Mota. Em 24 de dezembro de 1921, pela Lei Estadual 1831/21, no governo de Washington Luiz Pereira de Souza, foi criado o Distrito de Cândido Mota. Já em 28 de dezembro de 1923, pela Lei Estadual 1956/23, o distrito foi elevado à categoria de Município, cuja instalação foi estabelecida no dia 13 de março de 1924. A partir dessa data, a história política candido-motense se inicia com a instalação da Câmara Municipal e a eleição do primeiro Prefeito, Antônio da Silva Vieira. Na Rua São Caetano, esquina com a Rua Sebastião Leite, exatamente na via central que atravessa de ponta a ponta a cidade, está localizado o Instituto Pobres Filhas de São Caetano (IPFSC), com CNPJ: 46.846.515/0001-08. Nessa mesma via, também se localiza a Igreja Matriz Nossa Senhora das Dores, o Fórum Municipal e a escola estadual conhecida como Grupão, destinada a crianças do primeiro ciclo do Ensino Fundamental. Esta mesma via inicia-se com a construção que abriga a Organização Não Governamental (ONG) chamada Centro Vocacional Da Criança E Do Adolescente De Cândido Mota, com CNPJ: 44491694000182. Também popularmente conhecida como Centro Vocacional “Frei Paulino”, inaugurada em 1973 por um diriginte e idealizador chamado Reverendo Frei Paulino Roveri. Essa ONG tinha como finalidade ensinar apenas meninos em regime de semi-internato, contribuindo para o aumento de mão de obra especializada e fontes empregatícias. Atualmente, a instituição atende crianças e jovens, meninos e meninas, oferecendo serviços de assistência social, apoio à permanência escolar, atividades complementares à escola e educação profissionalizante. Segundo o Código Civil Brasileiro, atualmente, são pessoas jurídicas de direito privado as organizações prestadoras de serviços ou chamadas do terceiro setor. De acordo com o Art. 44 do Novo Código Civil (Lei 10.406 de 2002): as associações, as sociedades, as fundações, as organizações religiosas (acrescentado pelo art. 02, da Lei 10.825/03) e os partidos políticos. 15 No caso das obras filantrópicas nas quais as freiras se inserem, o trabalho é dedicado à saúde, administração do Instituto de Longa Permanencia para Idosos (ILPI)3 Sociedade São Vicente de Paulo e Nossa Senhora das Dores e possui o CNPJ: 46.846.507/0001-61 e da creche Casa da Criança Nossa Senhora das Dores, com CNPJ: 46846523000154, ambos edificios localizados ao lado do instituto religioso, apresentados na imagem 1. Imagem 1 - Localização dos estabelecimentos dirigidos pelas religiosas PFSC, no interior do estado de São Paulo. Fonte: imagem produzida pela autora e adaptada com os recursos do Google maps. Essas instituições foram criadas por iniciativa de algumas famílias do município e custeadas com recursos públicos e da própria congregação italiana, entre outras da Europa. Nessa cidade, o instituto é especialmente direcionado à formação internacional de candidatas à vida religiosa consagrada no Brasil. As religiosas recebem candidatas e outras moças que estão passando pelo período de formação, oriundas principalmente das regiões de Togo, Equador, Minas Gerais e Paraná. 3 Utilizei ambas denominações, asilo e ILPI ao longo deste trabalho. 16 Nos dois estabelecimentos – creche e asilo – trabalham, juntamente com as freiras, outros funcionários e funcionárias assalariados. Inclusive outras pertenças religiosas foram observadas durante o trabalho de campo, o que estabelece entre os agentes sociais, alguns demarcadores sociais de diferenças. Todos os dias, às 17h, reza-se o terço e os idosos acompanham em suas cadeiras e poltronas dispostas no corredor próximo aos quartos e que possibilita acesso à varanda. Com o uso de um microfone por uma formanda ou freira do instituto – na ausência dessas religiosas, uma jovem funcionária católica –, os idosos acompanham o momento de oração; outras funcionárias, em sua maioria evangélicas, em diferentes ocasiões, escutam os hinos de suas igrejas, através de video clipe no celular. A preocupação maior, segundo a assistente social da instituição, é manter a qualidade do serviço. A entidade possui uma Diretoria com mandato de três anos, sendo que a atual teve início em 2017. A prefeitura de Cândido Mota contribui com uma verba mensal no valor de 28.000,00, utilizada para o pagamento dos salários dos funcionários e manutenção do estabelecimento. No asilo, 106 idosos residem atualmente. A prefeitura de Tarumã também contribui uma vez ao ano com cerca de sete mil reais, pois, atualmente, residem na instituição dois idosos procedentes dessa cidade. Apesar de existirem alguns idosos oriundos de Assis, não é destinado nenhum recurso, porque a cidade comporta dois asilos a mais que Cândido Mota. A instituição conta, portanto, com setenta por cento da aposentadoria dos idosos residentes, essa contribuição chama-se Benefício do idoso. Existe o recurso federal no valor de mil quatrocentos e sessenta reais, e o estadual, ofertado mensalmente, no valor de dois mil setecentos e oitenta e quatro reais e cinquenta centavos. No entanto, esses recursos atrasam, afirmou a assistente social. Por isso a entidade precisa se manter também por meio de doações provenientes de associações, da população em geral, festas e almoços. A assistente social afirma que, apesar de a instituição receber o benefício do idoso e o convênio dos governos, sempre existe o déficit financeiro. Por isso é realizada a Campanha do Milho e da Soja, que ocorre uma vez ao ano. 17 Esse recurso, segundo a assistente social, é o que consegue sustentar financeiramente, principalmente os gastos necessários com a alimentação, o asilo e a creche dirigidos pelas freiras, e ainda mais outra creche da cidade que se chama: Associação de Proteção à Maternidade e à Infância Creche Menino Jesus, com CNPJ: 44.492.825/0001-46. Na creche, Ir. Ana, 51 anos de idade, é quem possui o cargo de direção, atualmente, é a Animadora de Comunidade. Atua como mestre das formandas no instituto de Cândido Mota, e é também a responsável pelas casas de missões no Brasil, por tanto designada como Superiora Regional. Conversando com a coordenadora da creche, pude compreender que a Campanha do Milho e da Soja é significante para o funcionamento dessas instituições. Tanto o asilo como a creche são favorecidos pelos recursos que a campanha promove pela manutenção e garantia de alimentos necessários às duas instituições. Por isso, o asilo possui um caminhão de pequeno porte e, todo ano, no período de safra, algumas pessoas que fazem parte da diretoria da creche e do asilo – em sua maioria agricultores e advogados locais – passam nos sítios próximos da cidade pedindo as doações. Explicou-me que a creche possui particularidades em relação ao asilo, é uma instituição educacional de natureza governamental privada, sem fins lucrativos, possui seu Projeto Político-Pedagógico e a Proposta Pedagógica: planos de ação, estatuto, regimento interno e relatórios circunstanciais. Segundo a coordenadora, além de receber mensalmente o recurso procedente do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB), o qual não pode ser gasto com alimentação, a verba total não equivale a todos os gastos necessários e, portanto, a instituição também precisa receber doações. As doações eventuais são oriundas da Casa di Conti4, hortifrutigranjeiros e, inclusive ,dos pais das crianças da creche. Atualmente, na creche, existem 111 crianças com faixa etária de quatro meses a três anos e onze meses de idade, que estão distribuídas em treze salas com suas rotinas específicas, contando com três professores para cada sala. O FUNDEB destina 344,15 reais por mês como recursos direcionadas à instituição equivalente a cada criança. Por isso, é realizada uma estimativa do valor total anual necessário aos gastos. Para o ano de 2018, por exemplo, a estimativa é o total de 846.609,00 reais. O valor é informado para a prefeitura, esta repassa os recursos do FUNDEB para a instituição, parcelados em doze vezes. Para pagar os alimentos e algumas despesas com funcionários, estimam o gasto de 124.918,51 reais que serão realizados por meio da Campanha do Milho e da Soja. 18 Além do trabalho de campo, a textualização é o momento em que os diversos elementos da pesquisa devem passar à forma escrita. Organizar todas as dimensões observadas e vivenciadas foi um desafio na produção deste trabalho. Quando a antropóloga sai de campo para construção do texto, com suas regras e dificuldades tão particulares, é um dos momentos em que os problemas costumam aparecer e se multiplicar. (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2000). Autores como Clifford Geertz (1989), Mariza Peirano (1995) e Roberto Cardoso de Oliveira (2000), ao chamarem a atenção para a centralidade da etnografia na produção do conhecimento antropológico, colocam o trabalho de campo como fonte principal de informações e como fator potencial de impasses e dificuldades. Neste sentido, o trabalho de campo que o antropólogo constrói, os denominados fatos etnográficos, será posteriormente utilizado para produzir uma interpretação do grupo estudado. Tais procedimentos comportam riscos que podem ser minimizados pela antropologia e pelos recursos acumulados nessa área. Ao estabelecer relação com o quê e com quem pesquisei, insisto no caráter relativo da noção de estranho familiar em nossa sociedade, como sugere Gilberto Velho no texto Observando o familiar (1981, p. 123-132). Apesar de ser oriunda de uma família católica praticante, ter nascido na cidade onde se localiza o instituto desde 1964, não tinha conhecimento sobre as freiras ou, se tinha algum, esse conhecimento não era mais aprofundado que o da grande parte da comunidade cândido-motense. O que eu conhecia sobre as freiras não ia além dos comentários mais ouvidos e conhecidos do senso comum sobre a figura representativa de uma religiosa consagrada: o hábito e a ideia de santidade feminina viva, por serem mulheres escolhidas, imersas ou mais próximas ao sagrado. As freiras eram, ao mesmo tempo, algo próximo e distante de mim. Além do questionamento sobre a relação entre um objeto que é próximo e distante ao mesmo tempo, a possibilidade de continuar a pesquisa com as Irmãs de São Caetano durante o mestrado permitiu-me também, quando a ação foi colocada em um contexto de significados particulares, compreender seus valores, suas crenças, suas motivações e seus sentimentos. 19 Faço referência à minha situação enquanto pesquisadora: sou uma observadora situada, pensando a partir de uma representação coletiva (CARDOSO DE OLVIVEIRA, 2000, p. 26) e dos meus valores, sendo, por isso, necessário distanciar-me para enxergar com mais nitidez os valores daqueles que chamamos de outro. Meu fazer etnográfico foi se encaminhando para a preocupação em perceber a mudança social, não apenas das grandes transformações históricas, mas também como resultado acumulado e progressivo de decisões e interações cotidianas (VELHO, 1981). O cenário conventual está configurado por uma conjunção de espaços físicos destinados a cumprir funções diversas. Cada espaço é associado a determinadas atividades sociais e religiosas específicas. No contexto de cada religiosa, existe um espaço de atividade social que lhe confere sentido e pertencimento à instituição, estabelecendo, assim, uma diferenciação entre vários espaços como um marco de atividades religiosas próprias da vida cenobítica. Existe, por outro lado, uma característica significativa que pode ser comprovada tanto no convento como em outros institutos e mosteiros femininos. É o fato de os estabelecimentos mencionados revestirem-se de uma diferença qualitativa, quanto à acessibilidade das pessoas externas aos espaços reservados às religiosas. Deste modo, existe no convento espaços acessíveis a todos e espaços reservados exclusivamente as mulheres consagradas. Estes últimos referem-se ao que as irmãs denominam como clausura, o qual se constitui em uma das características mais preponderantes da espacialidade monástica. Segundo as irmãs, compreende-se a instituição conventual como uma casa para a vivência da espiritualidade de mulheres consagradas na Igreja Católica. Existem conventos e instituições religiosas variadas reconhecidas pela Igreja. Mas, de forma geral, pode-se classificar as instituições de freiras em dois tipos: de vida ativa ou de vida contemplativa. Esta última também é conhecida como vida religiosa em clausura e nela não é constante a relação social com pessoas que se situam no mundo externo. Após o Concílio Vaticano II, as instituições declaradas conventuais – incluindo as sub denominações congregação e ordem – passaram a ser reconhecidas como Institutos Religiosos. As freiras de vida ativa, por sua vez, estabelecem vínculos sociais com pessoas, grupos e outras instituições para poderem também sustentar a organização da própria vida religiosa e das obras que realizam. Estas não são, portanto, consideradas enclausuradas. 20 Atualmente, além dos institutos religiosos, existem outras denominações de grupos recentes que participam da Igreja. Segundo Brenda Carranza e Cecília Mariz (2009), existe uma clara diferenciação entre os novos movimentos católicos e as novas comunidades católicas. O primeiro se assemelha ao conservadorismo da instituição, tendo grande influência do clero. Mas a intenção dos novos movimentos é a inclusão do laicato na vivência fraterna do carisma proposto pelo respectivo fundador que, por sua vez, destaca-se como uma figura carismática. É preciso explicar o que é o carisma desta instituição religiosa e a sua particularidade. O significado de carisma é definido como uma inspiração do Espírito Santo. Inicia-se com o fundador (a) da instituição religiosa e, através dele (a), chega aos demais membros que o desenvolvem nas circunstâncias em que atuam. Na congregação das PFSC o carisma fundante é voltado à prática de uma vida simples e de dedicação às pessoas desamparadas, encontrado no capítulo 6 de Mateus, Preocupações exageradas, versículo 25-34 (BÍBLIA SAGRADA, 2000, p. 1290-1291) e traduzido no discurso das freiras em: “Amar e Servir Jesus nos pobres, anunciando o Reino de Deus, vivendo abandonadas à Divina Providência”. Essa frase é encontrada nos emblemas da instituição e em objetos variados. Outros discursos são restituídos de formas váriadas, como por exemplo, aplicados no jardim próximo ao portão que dá acesso a instituição. Imagem 2 – Frases produzidas pelas religiosas, segundo os fundadores da CPFSC, em destaque no ILPI. 21 Fonte: fotografias produzidas pela autora, 2017. Já nas novas comunidades, a proposta é um pouco semelhante, mas se distancia no que refere à relação com a instituição. De certa maneira, as novas comunidades assumem um papel de maior autonomia frente à Cúria Romana, apesar de não estarem definidas no Código de Direito Canônico da Igreja, isso não impedindo elas serem reconhecidas pelos bispos locais. 22 No Trabalho de Conclusão de Curso intitulado: Pobres Filhas de São Caetano: um estudo sobre vocação religiosa feminina e trajetórias de vidas em um convento no interior de São Paulo (PIRES, 2015), busquei compreender as trajetórias de vida das freiras inseridas no instituto de vida religiosa em Cândido Mota, o denominado “chamado religioso”, presente nos discursos das freiras, para ingresso na instituição e as modalidades de vocações existentes entre as freiras entrevistadas. A perspectiva de desenvolvimento da pesquisa a nível de mestrado foi a de buscar uma interpretação de identidade de gênero no que diz respeito ao plano institucional cenobítico e filantrópico em relação à vida cotidiana dos agentes envolvidos. O tema do presente estudo tem relativo apelo também para o campo dos estudos históricos, porque contribui para a compreensão do processo de constituição de estilos de vida e religiosidades femininas institucionais. Durante a realização da pesquisa de Iniciação Científica, com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP, processo 2013/24692-9, 2014 e 2015), busquei bibliografias que tratassem da temática por mim abordada sobre as religiosas católicas consagradas, e elaborei a descrição das bibliografias de pesquisas elaboradas no Brasil no campo das Ciências Sociais, incluídos nos meus relatórios de pesquisa e Monografia (PIRES, 2015). No que se refere à bibliografia, Riolando Azzi (1979), por exemplo, elaborou extensos trabalhos que permitiram contextualizar a história dos conventos femininos no Brasil. No campo dos estudos da História, outro trabalho importante foi realizado por Leila Mezan Algranti, Honradas e devotas: mulheres da colônia (1993), que identifica o longo processo jurídico de institucionalização de conventos e recolhimentos no Brasil aos moldes da metrópole. A autora constata que as instituições femininas, acolheram, portanto, o produto das representações sobre o feminino do contexto colonial: beatas, santas, meninas para serem educadas nos princípios morais da época, viúvas virtuosas, mulheres desonradas e prostitutas. Porém, quando considerando os aspectos sociológico e antropológico, o referido tema de estudo, as religiosas consagradas católicas, foi e ainda é frequentemente desprezado como objeto de investigação, possivelmente porque as mesmas não compõem a hierarquia institucional e oficial da Igreja, como sugere a socióloga Sílvia Fernandes (2010). 23 Maria José F. Rosado-Nunes (1985) produziu uma dissertação de mestrado intitulada Vida Religiosa nos meios populares, inaugurando esse tipo de análise ao investigar a modernização da vida religiosa feminina catalisada por um determinado estilo de opção religiosa: freiras nos meios populares. A autora fez uma análise institucional sob o ponto de vista das mulheres freiras, revelando de modo crítico uma intrincada teia de relações, em que o discurso das freiras inseridas em bairros pobres e no campo aproxima-se do discurso das Ciências Sociais e da Teologia da Libertação. A pesquisa realizada pela antropóloga Mirian Grossi (1990) abordou as formas de construção da identidade de freiras residentes em conventos da região Sul do Brasil, provenientes de famílias camponesas. A estudiosa e freira Maria Valéria Rezende (1999), em sua dissertação de mestrado A vida rompendo muros: carisma e instituição, analisou comunidades de religiosas inseridas nos meios populares na região nordeste do Brasil. A autora trabalhou com a abordagem weberiana das conexões de sentido como motivadora para o ingresso na vida religiosa, defendendo a existência de uma tensão entre carisma e instituição. Existe ainda um olhar nativo realizado por Tereza Venturim (2001), religiosa preocupada com a problemática da formação cidadã das freiras na atualidade, discutindo as suas aposentadorias e outras questões do mundo profano. A dissertação de mestrado realizada por Débora Diniz Rodrigues, intitulada Reino da Solidão: uma etnografia da vida em clausura das monjas Carmelitas Descalças (1996), retoma o estudo sobre mulheres enclausuradas na contemporaneidade. A socióloga Silvia Regina Alves Fernandes (2010) em sua obra intitulada Jovens religiosos e o catolicismo: escolhas, desafios e subjetividades, procurou revelar as crises e as motivações de jovens freiras e seminaristas para a vivência da opção pela vida religiosa no Rio de Janeiro, observando as diversas modalidades de conjugação entre tradição e modernidade. O fenômeno da vida em clausura é também tema da pesquisa feita por Miriam Verri Garcia, Liberdade em Clausura (2006), orientada por Maria J. R. Nunes. A clausura também foi objeto de pesquisa de Vanessa Faria Berto (2015) e Patrícia Cristina O. Rosa (2016), vinculadas ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UNESP de Marília, ambas se utilizando de minha pesquisa na Iniciação Científica, reunidas na minha monografia de bacharelado (PIRES, 2015), como fonte de contribuição para a análises da vida religiosa de mulheres católicas consagradas. 24 Existe ainda a recente tese de doutorado em História Social (UFSC) de Jaqueline Cubas (2014), Do hábito ao ato: vida religiosa feminina ativa no Brasil, que analisa a participação política de freiras de vida ativa durante o período do regime ditatorial no Brasil. Todos esses trabalhos foram escritos a partir do campo de estudos da religião. Na antropologia, o estudo da religião constitui uma temática comparável a outras, em importância, como parentesco ou estruturas sociais, abrangendo uma complexidade temática em suas fronteiras. Refere-se, para a antropologia, ao conjunto da dimensão social dos agrupamentos humanos ou ainda à complexidade da espécie humana, sendo a religião um dos componentes constituidores de ambas. Foi preciso chegar ao século XIX e pensar que a religião tinha uma dimensão da obra humana para que pudesse ser pensada como tema das ciências sociais (GUERRIERO, 2013). Os interesses dos primeiros antropólogos da religião se desenvolveram em três direções principais: primeiro, interessaram-se pela religião dos povos primitivos, tentando compreender as origens do mundo civilizado, havendo uma concepção de que, da religião, havia saído todas as ouras instituições sociais, como também a filosofia, a arte, as ciências etc. Como segundo caminho, os antropólogos analisaram a religião como forma de conhecimento e raciocínio de interpretação do mundo que seria anterior ao pensamento científico. Em uma terceira opção, havia o interesse nas formas de organização religiosa e social. Assim, o campo dos estudos da religião na antropologia é constituído e marcado, segundo Silas Guerriero (2013), pelas formas mais primitivas de religião, pelas relações entre religião e cognição e pelas relações entre religião e organização social. Um bom exemplo do debate sociológico e antropológico da constituição das ciências sociais encontra-se em As formas elementares da vida religiosa de Emile Durkheim (1983). Nesse texto, o sociólogo mantêm, em sua conclusão, duas vias abertas para justificar os interesses dos cientistas sociais pela religião: sua importância na manutenção do vínculo social em relação à forma de organização dos grupos; e sua importância na instauração de uma oposição entre sagrado e profano, princípio classificador fundamental para instauração de categorias de pensamento. Partindo do campo das Ciências Sociais, seria necessário, agora, explicitar mais detalhadamente os critérios com os quais analisei o fenômeno vida religiosa de mulheres consagradas inseridas. 25 O esforço para construção de uma metodologia para o estudo da religião no contexto da sociedade contemporânea levou-me a dedicar horas de trabalho e leituras, sobretudo dos autores clássicos – Karl Marx, Max Weber e Émile Durkheim entre outros –, visando construir um aporte teórico e metodológico que atendesse às particularidades da presente pesquisa, além de contribuir para a minha formação intelectual. Partindo da formação acadêmica em ciências sociais e da minha sensibilidade para tratar os eventos inusitados e as relações pessoais constrangedoras, sentia ainda que precisava fortalecer-me profissionalmente, através da prática docente e, principalmente, do aporte teórico de leituras de diferentes etnografias em contato com problemas éticos da pesquisa de campo. Em decorrência disso, em vários estudos, encontrei autores dedicados em desvendar os aspectos ideológicos da religião, sua função social e a incidência de seus esquemas mentais nas condutas das pessoas. Esses foram recursos que utilizei para discernir e compreender meu propósito específico. Nesse processo, compreendi, por exemplo, que a instituição asilar e a creche, administradas pelas religiosas, contribuíram na reflexão sociológica e antropológica a que me propunha, ou seja, as experiências de vida cotidiana dessas freiras. Em decorrência disso, a análise institucional e as longas visitas, por vezes curtas, com inesperados encontros e convites, tornavam-se momentos de observação e de trabalho etnográfico que me acompanhavam no meu retorno à casa e em situações variadas. Eu sentia um estranhamento entre a minha realidade e a realidade daquelas mulheres consagradas. Durante o primeiro ano de mestrado, em 2016, até o primeiro semestre de 2017, busquei preparar-me teoricamente para o estudo deste fenômeno social, por meio de encontros científicos, seminários, realização das disciplinas do programa de mestrado e, ainda, duas disciplinas que escolhi na UNESP, campus de Assis: Modos de Produção dos Dispositivos Institucionais na Saúde Mental Coletiva, ministrada pelos professores, Dr. Silvio José Benelli – autor de Pescadores de homens: estudo psicossocial de um seminário católico (2006) – e Dr. Abílio da Costa-Rosa. A outra disciplina escolhida foi Tópicos Especiais: História oral e memória: seus métodos e questões teóricas na construção da narrativa histórica, ministrada pela professora Dra. Zélia Lopes da Silva. A opção por fazer uma disciplina com o professor Silvio Benelli deveu-se, entre outros motivos, à oportunidade para trocarmos experiências sobre a pesquisa em instituições católicas para a formação de clérigos e freiras. 26 Iniciei o contato com o campo de pesquisa no terceiro ano de graduação, e retomei o trabalho de campo em 2016 a 2017, no mestrado. Somados cinco anos de pesquisa de campo, visitas ao IPFSC e à sede da congregação em Turim na Itália, tive disponibilidade e aceitação por parte do grupo e das funcionárias das obras asilar e creche. Pude realizar diferentes observações sobre a concreticidade dos eventos simbólicos que caracterizam as várias faces da experiência religiosa feminina católica como algo realmente vivido pelas mulheres e jovens do sexo feminino e que, como tais, são performadoras de suas atitudes e de suas ações no mundo. No texto, substituí nomes verdadeiros ou de vida religiosa dos agentes que participaram da pesquisa e entrevistas, atribuindo nomes fictícios para resguardá-los. A investigação foi conduzida pelo estudo do cotidiano, sendo que esta perspectiva pode revelar aquilo que a religião institucional esconde. Seu acesso requer problematizar aspectos como os sentimentos, os desejos, sonhos e contradições. Tratando-se de acompanhar as vivências das religiosas, podemos, portanto, “[...]caracterizar a sociedade em que vivemos, que gera a cotidianidade (e a modernidade) [...]” (HENRI LEFÈBVRE, 1991, p. 35). Henri Lefèbvre (1991) denomina a sociedade moderna de sociedade burocrática de consumo dirigido. Sua crítica revela como o processo de consumo vem sendo intensificado nos dias atuais. Segundo o autor, o modo de vida urbano se estabelece na sociedade e acaba criando condições para que a mídia desenvolva formas de estimular o consumo, com isso, uma sistemática onda de produtos, o consumo desenfreado, os supérfluos e os descartáveis foram sendo introduzidos no cotidiano dos indivíduos. Henri Lefèbvre (1991, p. 39) destaca que apreender o cotidiano é atentar para resíduos e repetições, possibilitando assim compreender a sociedade em sua globalidade: [...] o estudo sobre a vida cotidiana fica subentendido, de um lado, que [...] a cultura não é uma vã efervescência, mas é ativa e específica, ligada a um modo de vida; de outro lado, que os interesses de classe (ligados estruturalmente às relações de produção e de consumo) não bastam para assegurar o funcionamento da sociedade em sua globalidade durante o tempo em que ela funcionar. 27 Seguindo os ensinamentos de Lefèbvre, considerei ainda o conceito de cotidianidade, atribuído por Agnes Heller como fio condutor para conhecer o grupo religioso. Segundo Heller, toda vida cotidiana, abstraída de seus determinantes sociais, é heterogênea e hierárquica, quanto ao conteúdo e à importância atribuída às atividades; espontânea, no sentido de que, nela, as ações se dão automática e irrefletidamente; e econômica, uma vez que, nela, pensamento e ação manifestam-se e funcionam somente na medida em que são indispensáveis à continuação da cotidianidade, portanto, as ideias necessárias à cotidianidade jamais se elevam ao nível da teoria, assim como a ação cotidiana não é práxis, é baseada em juízos provisórios e recorre à ultrageneralização e à imitação. É nesse marco que a autora teoriza sobre o pensamento e o trabalho, a ciência e a arte, os contatos interpessoais e a personalidade (HELLER, 1972, 1975). A convivência e o funcionamento sociais, segundo Heller, requerem imitação e sistemas habituais relativamente estereotipados, e não podem prescindir do plano de relações mecânicas constituídas pelos papéis, a autora passa a considerar seu exercício nas condições sociais de manipulação e alienação. Nessas circunstâncias, o homem vai-se fragmentando em seus papéis, pode ser devorado neles e por eles, e viver de forma limitadora da individualidade. Quando isso ocorre, orienta-se, na cotidianidade, mediante o simples cumprimento adequado desses papéis, assimilando mudamente as normas dominantes e vivendo de maneira que caracteriza o conformismo. Nesses casos, a particularidade suplanta a individualidade. Engolido pelos papéis e pela imitação, o indivíduo vive de estereotipias. A grande maioria dos homens modernos não é, portanto, individualidade, na medida em que acaba por tornar-se uma unidade vital de particularidade e genericidade5. Percebe-se que o desejo pela vida consagrada relaciona-se com o contato mais próximo entre as freiras e as aspirantes no contexto da cidade de origem destas últimas, em sua grande parte, oriundas do norte do estado de Minas Gerais6, Equador e África. Posteriormente, isso continua quando passam a compartilhar as regras cenobíticas entre elas, exercitando as Horas e as Regras na cotidianidade, onde são instituídas e promovidas no convento legitimado pela Igreja. Nesta etapa, elas podem sentir a dignidade de ser uma religiosa, e ainda testemunhar que foram as escolhidas por Deus. 5 A individualidade para a autora, apresenta a aliança da particularidade com a genericidade, por meio de explicitação das possibilidades de liberdade e de fazer escolhas moralmente orientadas na condução da vida. 6 Onde existe uma casa de religiosas em Janaúba (MG), Equador e Togo. 28 Isso que elas chamam dignidade se expressa não necessariamente apenas em aspectos de status social religioso, mas é notado e também testemunhado por outras pessoas e leigas. A partir de práticas rotinizadas e até prestigiadas pela Igreja, podem experimentar o verdadeiro sentido – próximo a uma dignidade ontológica dessas mulheres no mundo – para suas vidas de inserção na comunidade católica mais ampla. Inserem-se nos bairros mais carentes da cidade, porém, mais próximas ainda do cotidiano dos estabelecimentos de assistência e saúde, em postos de direção e exercício de poder de comando. No entanto, essa dignidade, via de regra, possui consequências concretas na vida profissional, intelectual, nas relações de gênero, na autoestima. A memória do sagrado define, estrutura e recria, não a vida dos deuses, mas a trajetória de vida das mulheres portadoras dessa memória. Neste sentido, a memória é, portanto, muito mais uma memória circunscrita ao tempo biográfico das freiras que viveram a vida consagrada nesta congregação, ao cotidiano vivido pelas mulheres da experiência religiosa. Mas não é tão somente uma memória externa nem ligada a acontecimentos primordiais, mistificados e arquetípicos, ainda que o discurso institucional imbuído de acontecimentos mistificados seja reproduzido por elas. A memória, como fonte de análise, também foi um recurso útil na busca de uma compressão da lógica interna da experiência religiosa e para perscrutar seus códigos de sentido e os significados dessa experiência para aqueles que a vivenciam. Em diálogo com irmã Rita, 32 anos, freira de votos perpétuos7, em um momento em que caminhávamos pela saída interna da creche e entrávamos no convento por um portão de ligação entre os dois estabelecimentos, ela declarou, olhando-me nos olhos: “Queremos viver como os apóstolos de cristo, mesmo nos dias atuais, assim, como seguidoras de Jesus e do estilo de vida que eles viviam”. O tema da vida comum para Giorgio Agamben (2014), no que a religiosa concorda, tem seu paradigma no capítulo 2 de Atos dos Apóstolos, Primeiras conversões, versículo 44-46: “Todos os que creram estavam no mesmo lugar e tinham todas as coisas em comum[...]”, a “ [...] multidão dos crentes tinha um só coração e uma só alma; ninguém considerava exclusivamente sua nem uma das coisas que possuía, tudo, porém, lhes era comum” (BÍBLIA SAGRADA, 2000, p. 1416). 29 A perspectiva proposta por Agamben é entender que o agente contemporâneo é levado a agir por dispositivos de controle governamental, tal é o modelo do governo dos outros, já analisado por Michel Foucault (1979; 2008). Para repensar a situação política do Ocidente, o filósofo italiano buscou nas origens do monacato cristão e sua experiência dos cenóbios e a vida em comum, cujo maior objetivo era viver fora do direito e da propriedade, criando uma vida que desse, a si própria, a sua norma, resistindo à tentativa institucionalizante de capturar a vida cristã pelo império romano – naquele caso. É nessa perspectiva que a investigação também se confronta, sobretudo, com o problema da relação entre regra e vida, que define o dispositivo pelo qual os monges tentaram realizar seu ideal de uma forma-de-vida comum. O estudo realizado por Agamben permite uma aproximação com a gênese e processo da vida religiosa feminina na contemporaneidade, em sua forma-de-vida comum. Ao refletir sobre a teorização da memória social por meio da obra de Maurice Halbwachs (1990), pude realizar uma interpretação do depoimento de Ir. Rita em relação ao longo tempo de duração desta congregação de religiosas direcionada ao feminino na Igreja. Seriam as mulheres religiosas as responsáveis pela manutenção da tradição cenobítica do grupo? Entendo que elas elaboram o sentido da continuidade do grupo também através das descontinuidades históricas, e tentam mostrar isso publicamente. Quando narram, provam a si mesmas que o grupo segue sendo o mesmo e, por isso, pode e é bom continuar existindo. Outra possibilidade de aproximação da memória religiosa foi a opção pelo aspecto biográfico da memória narrada (KOFES, 2001), enfocando a religião enquanto experiência e noção de algo realmente vivido pelos agentes. O contato com a memória pessoal possibilitou-me compreender, no cotidiano experienciado que a relação com o mito fundante não é exterior ao agente, mas situa-se na relação do agente com eventos fundantes de sua identidade que não é apenas religiosa, mas também pessoal. Considerei esse um caminho viável para evidenciar os processos de elaboração de códigos de sentido observados no grupo de mulheres, dos conteúdos simbólicos que definem a identidade do grupo com a congregação e seu carisma e a maneira como correntes culturais se recriam em meio a processos de transformações históricas. 30 A referência ao sagrado aparece para algumas religiosas e formandas, como um fundamento, ou seja, um divisor entre o antes e o depois do ingresso na instituição, como um caminho que as conduzem da morte para a vida eterna com Deus Pai. Porém, foi mais comum ouvir que “sempre estiveram na Igreja”, pois o catolicismo já era a religião praticada por suas famílias, principalmente pelos seus pais e, desse modo, seguiram os ensinamentos de suas famílias e comunidade local, formando-se no catolicismo desde crianças. Não raro, as decorrentes experiências com o sagrado, presentes nas trajetórias de vida das freiras, são lembradas como acontecimentos que desencadearam um processo de humanização “maior” em relação ao que viam acontecer nas trajetórias das pessoas com quem conviviam em suas escolas, família, e mesmo na Igreja entre os grupos de jovens católicos. Para esta memória em estudo, a referência tanto é um tempo mítico, ancestral, quanto presente. É no tempo presente que se realiza a mitificação de eventos fundantes em suas biografias, como a profissão dos votos e as orações determinadas pelas horas do dia e da noite, as quais guardam relação com o sagrado. Acessam e compartilham, nesses exercícios diários, portanto, um imaginário que é objeto de reflexividades cotidianas, passíveis de reelaborações e reinterpretações no dia a dia, constituindo, assim, as suas identidades de freiras católicas na contemporaneidade. Essa memória em construção inscreve-se no grupo de religiosas, onde é recriada a partir de redes de significados. Interessa, nesta pesquisa, não o julgamento das práticas e das posturas dessas mulheres religiosas, a partir de um referencial previamente elaborado, que se alça à condição de critério normativo; mas sim a visualização das pluralidades de suas relações com o sagrado, seus códigos de sentido, suas redes de significados e suas constantes reelaborações nos espaços cotidianos compartilhados por outras pessoas leigas e familiares, que também partilham da experiência religiosa e rituais com as freiras. A memória não se restringe à lembrança do passado; a memória é recriada a partir de perguntas e referenciais da atualidade. Quem lembra, reconstrói-se a partir dos códigos e das referências com os quais se identifica no momento presente. Assim, o relato oral é composto pela história do depoente, pela expectativa do pesquisador e de uma série de mediações que se interpõem entre os dois ou mais participantes da pesquisa (FERREIRA, 2002). 31 Portanto, para valer-me de fontes orais, primeiro, cuidei de construir uma confiança e reciprocidade na pesquisa de campo e fora do campo. Moro na mesma cidade da instituição religiosa, o que implicou que, enquanto pesquisadora, participasse do cenário e das irrupções de acontecimentos estenografados, por vezes inesperados, nesta pesquisa. Com o passar do tempo, encontrar as freiras caminhando pelas calçadas que dão acesso aos estabelecimentos de inserção das religiosas, ou andando de bicicleta ou de carro à caminho da Igreja tornou-me mais familiar ainda. Cumprimentos e convites: “Ah, Joyce, não esquece da gente, como está a mãezinha? Venha visitar a gente.”, tornaram- se comuns. Conduzi o olhar para as familiaridades dos códigos de linguagem e suas redes de sentidos, pessoas e objetos envolvidos. Neste ponto, o distanciamento necessário na investigação de meus sujeitos de pesquisa não foi um dado estanque. Ademais, questões como os ritmos da narrativa, as variações emocionais de quem relembra e relata suas lembranças, as figuras de linguagem e os códigos de sentido subjacentes aos detalhes lembrados, são aspectos importante para o estudo sobre a religião. Precisava enfatizar não somente o que era dito, mas a maneira como as palavras eram usadas, a linguagem gestual e corporal. Também os silêncios e esquecimentos que faziam parte daquilo que devia ser observado, vivenciado, compartilhado e que foram elucidativos para compreender a forma como um determinado evento incidiu sobre o cotidiano das religiosas (FERREIRA; FREITAS, 2002). Esses foram detalhes que ofereceram indícios sobre a relação entre os grandes relatos da memória religiosa institucionalizada e sistematizada em saberes normativos, além de sua apropriação e reelaboração nos espaços e micro processos articuladores da vida religiosa no IPFSC. Cabe agora introduzir, precisamente, o campo teórico da pesquisa, indicar os traços dessa produção e mostrar o olhar investigativo aplicado (RAGO, 1999). Por meio dos estudos de gênero e religião construí uma compreensão sobre as práticas do grupo de mulheres consagradas a partir de uma posição de subalternidade que, por sua vez, sustenta ainda um status ambíguo entre cultura e natureza (ORTNER, 1979). No sistema simbólico do cristianismo, a mulher está designada como significado polarizado e contraditório. A forma institucional da Igreja Católica lembra essa situação. 32 Neste momento, é necessário esclarecer o contexto do mundo religioso contemporâneo. Para tanto, propus, no capítulo subsequente, uma análise contextual da religiosidade e, sobre este aspecto, evidencio a particularidade do campo de pesquisa com mulheres consagradas. 33 I.2 Um contexto religioso A universalidade do religioso insere-se na escolha do conceito utilizado. Uma acepção clássica de religião, como aquela utilizada nos primórdios da Antropologia, incorreria no risco da impossibilidade de transpor o conceito para além do Ocidente e dos monoteísmos. A palavra religião guarda fortes aspectos políticos e ideológicos por se tratar de uma concepção Ocidental colocada à força por sobre outros povos; porém, longe de rejeitar o conceito, ou negar sua existência, reconheço que é preciso sempre levar em consideração o que se entende por religião no campo onde a pesquisa foi realizada. Nos estudos sobre religião produzidos no âmbito das ciências sociais, as mulheres consagradas, conhecidas pelos nomes de freiras e monjas, foram diretamente vinculadas ao ascetismo, enquanto que o monasticismo8 foi considerado, geralmente, como uma forma de vida religiosa sui generis por autores como Émile Durkheim (1983), Erving Goffman (1974), Michel Foucault (2008) e Giorgio Agamben (2014). Em seus estudos sobre o "espírito" do capitalismo, Max Weber (2004) desenvolveu o conceito de ascetismo com maior profundidade, distinguindo-o do misticismo contemplativo. O ascetismo mundano e intramundano é uma concepção de comportamento social em que os seguidores das doutrinas religiosas protestantes se dedicavam à aplicação profissional, sem se importar pelos prazeres que o acúmulo de riquezas poderia trazer. Em contrapartida, o ascetismo ultramundano ou negador do mundo, não é outro senão o que o mesmo autor denomina de ascetismo monacal (WEBER, 2004 apud PIRES, 2015). O norte americano Clifford Geertz contribui para a compreensão da religião no campo de pesquisa com mulheres católicas consagradas. Isso porque em seus estudos, ainda dos anos 1960, estabelece uma definição de religião considerada como clássica nos dias atuais. Religião para o autor é um sistema de símbolos, e a possibilidade de estudo constrói-se a partir da via do historicismo e da hermenêutica. Geertz procura focar no que a religião representa para seus atores e como ela estabelece a própria noção de realidade para as pessoas que a vivenciam. Para o autor, religião é 8 Entende-se monasticismo (no grego monachos, significa uma pessoa solitária) como a prática da abdicação dos objetivos comuns dos homens e mulheres em prol da prática religiosa. 34 Um sistema de símbolos que atua para estabelecer poderosas, penetrantes e duradouras disposições e motivações nos homens através da formulação de conceitos de uma ordem de existência geral e vestindo essas concepções com tal aura de fatualidade que as disposições e motivações pareçam singularmente realistas (GEERTZ, 1989, p. 104- 105). Clifford Geertz atribui o poder da religião ao fato desse sistema simbólico realizar a junção entre o ethos, a maneira de ser e de sentir de um determinado grupo, com a sua visão de mundo e a formulação da ordem geral das coisas elaboradas por esse mesmo grupo. A junção dessas duas dimensões tem o poder de formular uma imagem geral da estrutura do mundo e um programa de conduta humana em que, um e outro, reforçam-se mutuamente. Wouter Hanegraaff (1999 apud GUERRIERO, 2013) estabelece uma revisão crítica do conceito elaborado por Geertz de maneira a poder analisar aquilo que chamou de religião secular. Sem fugir do dilema imposto pelos próprios antropólogos de se discutir religião em termos amplos, procura abarcar tanto a dimensão singular, aqui entendida como religião no singular, e qualquer sistema simbólico que influencia as ações humanas pela oferta de formas ritualizadas de contato entre o mundo cotidiano e um quadro meta empírico mais geral de significados. Essa formulação responde, segundo o autor, pela noção de religião em geral, mas deve ser desdobrada para podermos compreender as formas que efetivamente se manifestam socialmente. Para tanto, o autor se utiliza de duas subcategorias: religiões no plural/religiosidade e espiritualidades. A diferença entre essas duas subcategorias está no fato de que, na religiosidade, o sistema simbólico é representado por alguma instituição social em especial; enquanto que a espiritualidade não precisa ser institucionalizada. Portanto, toda religiosidade é também uma espiritualidade. Mas nem toda espiritualidade é uma religiosidade. Assim, a religião necessita, inevitavelmente, de um grupo articulado em torno de um conjunto de mitos, com hierarquia e papéis definidos, e de uma doutrina que manifeste ou demonstre um conhecimento sistematizado. Ao mesmo tempo, essa definição permite englobar sistemas de crenças que não tratam explicitamente de aspectos sobrenaturais, de seres espirituais ou de distinção entre sagrado e profano. Essa ampliação conceitual permite compreender uma série de novas manifestações espiritualizadas da nossa sociedade, como a Nova Era, e que não são englobadas pelos conceitos mais tradicionais de religião. 35 Tal discussão remete à questão do que é ou não é religioso. Uma vez que a antropologia não parte de um pressuposto da existência de manifestação de um sagrado – que responderia pela substância religiosa de um objeto, de um ato ou de uma ideia, é preciso procurar esses fundamentos em outros terrenos. (HANEGRAAFF, 1999 apud GUERRIERO, 2013). É nessa direção que Talad Asad faz uma contundente definição de religião nos dias atuais e afirma que não é possível separar os símbolos religiosos daqueles que não são religiosos. Segundo o autor, [...] diferentes tipos de prática e discurso são intrínsecos ao campo em que as representações religiosas (como qualquer representação) adquirem sua identidade e sua veracidade. Desta afirmação não se conclui que os signifcados das práticas e enunciações religiosas devam ser procuradas em fenômenos sociais, mas que sua possibilidade e seu status autoritativo devem ser explicados enquanto produtos de forças e disciplinas historicamente específicas (ASAD, 2010, p. 278). É preciso, no entender do antropólogo, ir a fundo no contexto histórico em que se constituíram e se autorizaram esses símbolos religiosos. A questão básica gira em torno da impossibilidade de uma tradução. Qualquer costume ou ideia fora de contexto traduzido perde em poder compreensivo e corre o risco de ser utilizado como forma de dominação por quem o traduz. Esse é o caso do conceito de religião. Fiona Bowie (2006, apud GUERRIERO, 2013) acrescenta que é preciso sempre ter em mente que a construção da categoria religião se baseou em línguas e costumes europeus. Para Asad (2010), o fato está em que os nativos são vistos como locais enquanto que os cristãos são universais. Essa concepção de universalidade acaba, mesmo inconscientemente, justificando a sobreposição do mundo e dos valores ocidentais por sobre os demais povos. Asad procura examinar os caminhos pelos quais a busca teórica por uma essência da religião, trans-histórica, separa a religião da política. Faz isso por meio de uma análise da definição de Geertz. Seu argumento é que não pode haver uma definição universal de religião, não apenas porque seus elementos constitutivos e suas relações são historicamente específicas, mas porque essa definição é, ela mesma, um produto histórico do processo discursivo. 36 Para outros críticos, por se tratar de um conceito ocidental que guarda origem na expansão da sociedade capitalista, servindo muitas vezes como forma de dominação, o termo deveria ser simplesmente abandonado (FITZGERALD, 2000 apud GUERRIERO, 2013). Não poderia ser uma categoria analítica porque não trata de algo transcultural. O argumento central é a da inexistência da religião como fenômeno universal, apesar da tentativa de algumas igrejas em criar uma ortodoxia ou um caminho único para a verdade, como parece ter sido a tarefa da Igreja Católica, desde os seus primeiros séculos. Mais adequado, aliás, seria dizer que aquilo que uma época considera como ortodoxia é o somatório das práticas legitimadas, das normas e dos discursos produzidos dentro de altos círculos da instituição eclesial e que adquirem, portanto, um valor absoluto de verdade e de direito. Quando utilizo Igreja Católica e/ou Igreja, refiro-me à instituição Igreja Católica Apostólica Romana que, após a Reforma Gregoriana, ligada diretamente ao Bispo de Roma ou Papa, buscou se afirmar como ocupante não apenas de um lugar de destaque, mas de comando em relação às outras igrejas cristãs, criando assim uma ortodoxia e ortopráxis9 a partir dos concílios subsequente, do direito canônico, do envio de legados às mais diversas regiões do ocidente, da busca de apoio nos poderes seculares e, paradoxalmente, da oposição a estes10 (FRANK, 1988). A Reforma Gregoriana foi iniciada por Gregório Magno I, que apresentou suas formulações iniciais, e implementada sob o papado de Leão IX, a Reforma Gregoriana estabeleceu a ideia da infalibilidade papal – o pontífice teria poder adequado sobre qualquer ser vivente, estando abaixo apenas de Deus (RUST, 2013). As ideias que prevaleceram na Igreja Cristã do Ocidente foram, em grande parte, concebidas por alguns poucos homens, gigantes da Teologia que, gradualmente, transformaram o pensamento cristão no corpo de ideias complexo e altamente estruturado que dominou o mundo medieval. Esses homens teceram comentários sobre muitos aspectos da vida e do pensamento cristãos, mas nem sempre concordaram entre si, tanto no que diz respeito à doutrina como à prática cristã. 9 Ortopráxis ou ortopraxia é a ênfase na conduta, tanto ética quanto litúrgica, em oposição à fé ou a graça. Difere da ortodoxia (uma fé certa), a ortopráxis pode ser compreendida como um conjunto de técnicas e credos que faz parte de uma determinada tradição, que são passados para seus estudantes e mantidos sem alterações. Nessa perspectiva, o resguardo da identidade doutrinal do cristianismo e da missão apostólica é parte da existência da Igreja. 10 Ressalta-se, contudo, que a universalidade da instituição eclesiástica e seu caráter romano não coexistem, desde o princípio, de forma pacífica e consensual. 37 Portanto, para compreender o contexto religioso no qual foi construída a pesquisa, parto de alguns elementos da teoria weberiana sobre a religião. Max Weber (1864-1920) é, por excelência, o teórico clássico no qual grande parte da sociologia contemporânea apoia-se para estudar as religiões (SOFIATI, 2011). O autor apresenta o processo de modernização a partir da ideia de racionalização do mundo ocidental, que tem como consequência o processo de desencantamento do mundo. O desfecho desse processo leva à secularização da sociedade. O processo de racionalização está centrado na tese de que os indivíduos passaram a agir cada vez mais na perspectiva da ação típica ideal, conhecida como ação racional, sendo produzido em um processo de conexão entre a ação racional com relação a fins, e a ação racional com relação a valores, produzindo uma conduta de vida metódico racional (SOFIATI, 2011). Por isso, como afirma Flávio Pierucci (2003), a sociologia da religião de Weber é uma fonte para a compreensão do processo de racionalização cultural do ocidente, que produz diferenciação, autonomização e institucionalização das diferentes ordens da vida, sendo que, nesse processo, cada esfera de valor justifica-se por si mesma (PIERUCCI, 2003 apud SOFIATI, 2011). De modo geral, a literatura acadêmica sobre o campo religioso brasileiro tem sido desafiada por um curioso paradoxo: o acúmulo de conhecimento sobre as diferentes cosmovisões parecia ter tornado evidente que, do ponto de vista dos ritos, das crenças e da lógica interna de cada universo, os cultos poderiam ser considerados diferentes entre si. Quando se observa o comportamento daqueles que frequentam esses cultos, as fronteiras parecem pouco precisas devido à intensa circulação de pessoas pelas diversas alternativas, além da acentuada interpenetração entre as crenças. No contexto desta pesquisa, a possibilidade da religião presente em estabelecimentos denominados como entidades filantrópicas, que corresponde a uma organização em pessoa jurídica que presta serviços à sociedade, principalmente às pessoas mais carentes, e que não possui como finalidade a obtenção de lucro. Nas entidades estudadas nessa pesquisa, estão presentes fiés e não fiés, mulheres consagradas, leigas, crianças, idosos sob a direção de uma organização religiosa católica, pretende propagar uma ideia de fé e religião. O status autoritativo dos símbolos religiosos e expressões religiosas nesse espaço fundado como associação civil, serão explicados enquanto produtos de nosso passado e futuro legítimos, de uma 38 [...] história particular do conhecimento e do poder (e isso inclui uma compreensão particular acerca de nosso passado e futuro legítimos) a partir da qual o mundo moderno foi construído remetendo o esforço de uma definição antropológica da religião a uma história particular do conhecimento e do poder, a partir da qual o mundo moderno foi construído. (ASAD, 2010, p. 278). Sobre o ponto de vista entre indivíduos e religiões, nota-se que o pertencimento religioso herdado do berço, transmitido pela família ou pela cultura, em que a figura do católico não praticante aparecia como um padrão recorrente no passado, segundo Pierre Sanchis (2001), se transformou porque o trânsito religioso aparece como uma prática comum. Assim, as pesquisas qualitativas têm indicado movimentos de mudança, como de conversão, movimentos de errância ou movimentos de pertencimento difuso, com a máxima: Deus é um só e, portanto, pode ser encontrado em vários lugares. Nota-se ainda o movimento de mesclar elementos de diversas religiões para a construção de uma religião, como uma espécie de bricolagem, auto fabricação religiosa ou o movimento de alguém que diz ter mais espiritualidade do que uma religião. Ou seja, envolvendo pessoas que admiram determinados aspectos éticos, idealísticos, místicos das condutas de grandes figuras da humanidade, nos quais identificam um alto grau de desenvolvimento espiritual, cujos ensinamentos buscam seguir e aplicar no seu cotidiano, mas que não consideram que isso seja uma religião. Ou ainda, o movimento de reinterpretar com um sentido espiritual determinadas explicações científicas sobre o universo, tendendo ligar ciência e espiritualidade (PIERUCCI, 2001, 2006; SANCHIS, 2001). Paralelamente a esses novos movimentos mais fluídos interpretados por Pierucci, quando em relação ao cotidiano das religiosas e suas obras, observei movimentos de retorno à tradição, busca de origens, de fontes mais puras que pressupõem-se ter ficado esquecidas na história. O historiador Eric Hobsbawm (1995), ao investigar o século XX, verifica que, muitas vezes, essas buscas de fontes sejam uma reinvenção de tradições ou criações recentes que assumiriam o formato de prática, idealmente teriam existido no passado (HOSBSBAWM, 1995). 39 O diálogo estabelecido com os estudos do sociólogo Perter Berger (1985), se aproxima mais da interpretação específica que realizo sobre o fenômeno social da vida religiosa feminina católica com o grupo das PFSC. Na condição de sociólogo da religião, Berger estabelece a premissa de que a sociedade humana é um empreendimento de construção do mundo, e que a religião ocupa um lugar de destaque nesse processo. O autor propõe estabelecer a ligação entre religião e construção do mundo a partir da relação dialética que existe entre os seguintes pressupostos: a sociedade como um produto do homem e, ao mesmo tempo, o homem como um produto da sociedade. Esse processo dialético, que apresenta três momentos, é sintetizado pelo autor da seguinte forma: É através da exteriorização que a sociedade é um produto humano. É através da objetivação que a sociedade se torna uma realidade sui generis. É através da interiorização que o homem é um produto da sociedade (BERGER, 1985, p. 16). O ser humano difere de outros animais, nasce em um mundo aberto que deve ser modelado pela própria atividade do homem, ou seja, a existência humana é “[...] um contínuo pôr-se em equilíbrio do homem com seu corpo [...]”, do homem com seu mundo. É nesse processo que o homem produz o mundo (BERGER, 1985, p. 18). A essa construção humana do mundo, Berger chama de cultura. A sociedade ocupa, em sua perspectiva, “[...] uma posição privilegiada entre as formações culturais do homem [...]” (BERGER, 1985, p. 20), e, por isso, ele descreve o processo da objetivação da sociedade e da socialização do ser humano como uma tarefa que “[...] nunca pode ser contemplada, que deve ser um processo contínuo através de toda a existência do indivíduo[...]” (BERGER, 1985, p. 29). Em meu trabalho de campo, a religião aparece claramente como um importante aspecto do fenômeno social em discussão. Nesse caso, a religião, enquanto construção humana “[...] é a cosmificação feita de maneira sagrada [...]” (BERGER, 1985, p. 38). As religiosas no cenóbio formam um ethos como um corpo religioso de habitus e costumes. 40 Pode parecer surpreendente que o ideal monástico, nascido como fuga individual e solitária do mundo, tenha dado origem a um modelo de vida comunitária integral. De qualquer modo, logo depois que Pacômio põe resolutamente de lado o modelo anacorético, o termo monastério passa a equivaler, usualmente, a cenóbio. A etimologia que remete à vida solitária é removida de tal maneira que, na Regra do Mestre, monasterial, pode ser proposta como tradução de cenobita (AGAMBEN, 2014). Teodoro Estudita (apud AGAMBEN, 2014), o cenóbio é comparado a um paraíso, e sair dele equivale ao pecado de Adão que foi expulso do paraíso seduzido pelo conselho da serpente. Em entrevista, Ir. Graça narra que o espaço conventual permite a ela acessar, experimentar uma paz que não encontrava enquanto morava em São Paulo com sua família. Eu queria estar num lugar mais aberto, no sentido de estar mais em sintonia com Deus, mais em silêncio. Foi quando eu soube de uma prima que estava aqui neste convento. Hoje ela não vive mais aqui, ela sofreu de depressão e deixou a vida consagrada. Mas, naquela época, com a entrada da minha prima ao convento, eu passei a conhecer mais as possibilidades que eu tinha para fazer o mesmo. Outra freira identifica o convento como sua casa. Em conversa informal, no pátio do convento, Clara, disse-me: Eu poderia me casar, teria dado certo, mas eu vim aqui pras Irmãs. Depois de um ano eu entrei aqui. Faz quarenta anos de vida religiosa. Aprendi muita coisa com as Irmãs. Aqui é minha casa. Referindo-se a esse ideal é que, em sua regra, Agostinho define como primeiro objetivo da vida monástica “o morar unanimes na mesma casa, com uma só alma e um só coração em Deus” (Agostinho, 1377, apud AGAMBEN, 2014). 41 Berger, ao descrever a fugacidade dos mundos socialmente construídos pelos homens e as constantes ameaças que tais mundos sofrem, menciona a importância dos processos fundamentais da socialização e do controle social como mecanismos que servem para atenuar essas ameaças. Discorre ainda sobre o valor do processo de legitimação “[...] que serve para escoar o oscilante edifício da ordem social [...]” (BERGER, 1985, p. 42). A seguir, o autor descreve o processo de legitimação e mostra o papel da religião nesse empreendimento: [...] a parte historicamente decisiva da religião no processo de legitimação é explicável em termos da capacidade única da religião de ‘situar’ os fenômenos humanos em um quadro cósmico de referência. [...] a legitimidade religiosa pretende relacionar a realidade humanamente definida com a realidade última, universal e sagrada. [...] os nomos humanamente construídos ganham um status cósmico (BERGER, 1985, p. 48-49). As legitimações religiosas, originárias da atividade humana, uma vez cristalizadas em complexos de significados que se tornam parte de uma tradição religiosa, podem atingir certo grau de autonomia em relação a essa atividade. A religião, que normalmente é utilizada como instrumento de legitimação de uma determinada ideologia social, também pode servir como instrumento de subversão e de mudança cultural na sociedade. Sendo a cultura um constructo humano, ela pode ser desconstruída e reconstruída a partir de uma intervenção ativa do próprio ser humano. Segundo Berger, o estudo sobre o campo religioso nas ciências sociais requer um olhar atento para as transformações ocorridas na modernidade. Como já foi dito anteriormente, toda potencialidade de secularização, autonomização, diferenciação, racionalização e institucionalização são elementos que precisam ser incluídos nas análises. Weber (2004) explica que o advento da racionalização ocidental e do processo de hegemonia capitalista foi possível a partir dessa nova perspectiva de visão de mundo dos agentes. O processo de desencantamento do mundo é resultado do processo de racionalização da magia como obstáculo ao desenvolvimento do capitalismo moderno. Sua fonte original está na economia industrial capitalista, ou seja, na proximidade dos processos de produção industrial com o estilo de vida dos indivíduos. 42 Para Berger (1985, p. 119), a secularização é definida a partir de um “[...] processo pelo qual setores da sociedade e da cultura são subtraídos à dominação das instituições e símbolos religiosos [...]”, significando não apenas um processo sócio-estrutural que se manifesta na retirada das Igrejas cristãs das áreas que estavam sob seu controle ou influência. Consiste também na secularização da consciência, na qual existe uma produção crescente de indivíduos que veem o mundo sem recorrer às interpretações religiosas. Porém, o cristianismo manteve o caráter histórico da religião. Segundo Berger (1985, p.119), como nos ensina Weber sobre o desencantamento do mundo, um passo para o processo de secularização começa no Antigo Testamento: Israel produziu uma ruptura com a unidade cósmica de sua teologia dominante, tendo como consequência a negação do universo religioso. São três os traços que caracterizam essa negação, segundo Berger (1985): a) a transcendência quando se assume a postura de que Deus é radicalmente sublime e superior; b) o historicismo quando se assume uma fé histórica e específica, a partir de acontecimentos no mundo; e c) a racionalização da ética quando se assume uma prática ritualística que exclui do culto qualquer elemento mágico. Nesse processo, o indivíduo aparece como ator da história diante de Deus, e ainda, a transcendência de Deus e o desencantamento do mundo estão conectados com as raízes da secularização moderna. Além de manter seu caráter histórico, o cristianismo católico serviu, involuntariamente, ao processo de secularização da modernidade, pois esse tipo de institucionalização concentrou a atividade e os símbolos religiosos, separando-os do resto do mundo. Existe um potencial secularizante nesta perspectiva, pois o mundo, o profano, fica relativamente independente do mundo sagrado. Para o antropólogo Peter van der Veer (2013, p. 7), a espiritualidade é um termo crucial para o entendimento da sociedade atual, não como uma forma marginal de resistência contra a modernidade secular, mas como “[...] um aspecto central do projeto moderno.” Mais do que condicionada pela sociedade, a espiritualidade é um fator que dinamiza as relações neste contexto compondo também o imaginário de uma época específica (CASTORIADIS, 2000). 43 As considerações de Veer ainda avançam no argumento de que a espiritualidade é uma categoria forjada na modernidade e indicam um vínculo com os conceitos de religião e secularização. Para o autor, “[...] o ‘espiritual’ e o ‘secular’ foram produzidos simultaneamente como duas alternativas conectadas à religião institucionalizada na modernidade euro-americana” (VEER, 2013, p. 36). Trata-se, portanto, de reconhecer que, primeiro, embora seja possível identificar raízes históricas do conceito no misticismo, a espiritualidade é, de fato, uma categoria tributária da modernidade ocidental. O argumento não é vulgar e sua demonstração depende de um amplo esforço genealógico, cujo empreendimento se afasta do tema central desta pesquisa. O vínculo que a categoria estabelece com a modernidade revela que a espiritualidade é um conceito historicamente situado, e sua emergência é, ela mesma, o produto histórico de processos discursivos. Nesse contexto religioso católico da pesquisa, transformo as categorias homens e mulheres em perguntas, ao invés de serem tomados como categorias fixas, como assim estão prescritos nos códigos do Direito Canônico (1983). No capítulo subsequente, permito-me esmiuçar as desigualdades e os significados construídos sobre esse universo complexo da vida feminina no cenóbio, por meio das contribuições dos estudos de gênero. 44 I.3 Uma perspectiva de gênero para compreender o contexto social onde estão inseridas as mulheres católicas consagradas Por meio do conceito de gênero, busquei compreender as representações da realidade social, tomando as relações e representações de gênero como ponto de partida. O conhecimento da problemática de gênero ajuda a compreender melhor e de forma mais completa a sociedade, e acrescenta também uma vantagem prática na execução de projetos de investigação e de intervenção social. Os estudos de gênero têm uma existência ainda recente, o que não surpreende, visto que o gênero, como dimensão de compreensão social, foi aceito apenas nos anos setenta do século passado. Até então, reinava o androcentrismo, em que a atenção era quase exclusivamente para o homem e as conclusões a cerca de uma sociedade ou comunidade no seu todo, eram retiradas a partir da vivência masculina. Os novos movimentos sociais emergem paralelamente à eclosão da fase contemporânea do feminismo, especialmente na Europa pós 1968 e nos Estados Unidos. É possível dizer que foi a partir de então que o campo de investigação científico sobre as mulheres se ampliou, evidenciando a forte relação do movimento social com os estudos feministas. Permitiram, assim, uma nova voz a certos grupos sociais antes excluídos da produção do conhecimento acadêmico e intelectual, também conduzindo a novas interpretações da história e das relações sociais no Ocidente e no resto do mundo. Nessa conjuntura, um dos movimentos sociais e culturais mais importantes foi o movimento feminista, que produziu dentro e fora da academia novas interpretações da história e da sociedade, a partir das experiências das mulheres e da problematização do que veio a se chamar relações de gênero (ADELMAN, 2004). Muitas questões colocadas por esta epistemologia devem ser compreendidas em um contexto mais amplo, no processo de transição de paradigmas, fruto das transformações sociais que ocorreram nos anos de 1960. Guerras e movimentos de descolonização trouxeram à tona não só as chamadas minorias: os marginais, as mulheres e os homossexuais, como os habitantes do mundo colonizado, colocando em cena novas vozes coletivas e contribuindo para a desconstrução do sujeito único e universal. 45 A partir de Simone de Beauvoir (1949) autora de O segundo sexo: fatos e mitos, já se avançava o insight de que as mulheres seriam o grande outro da civilização ocidental (BORDO, 1997). Para Beauvoir e Susan Bordo, o simples estabelecimento do feminino como aquilo que contrasta com uma norma racional, tida como masculina, concretiza a associação que se faz entre o feminino e a não razão. Desta maneira, a cultura ocidental constrói seu retrato das mulheres como nunca completamente racionais e sempre afastadas de uma verdadeira essência do ser humano. O movimento feminista, tanto na militância como na academia, conquistou muito, porém ainda existe um longo e árduo caminho a ser percorrido para a conquista de direitos iguais e necessários entre os sexos (SAFFIOTI, 2004). E, por esse motivo, junto a outras pesquisadoras, acredito na importância desta pesquisa com mulheres, em uma perspectiva feminista e com um diálogo com a religião, para que os avanços permaneçam (BIDEGAIN 1996, ROSADO-NUNES 2001, 2005, 2006, 2015; GEBARA 2010). O marco da passagem do feminismo igualitarista, no molde sufragista, para a fase do feminismo centrado na mulher sujeito, teve como substrato material a sociedade urbano industrial moderna, cuja configuração se acelerou justamente nesse período e foi marcada pela entrada das mulheres no mercado de trabalho, ampliando-se progressivamente no decorrer do século XX. Aos poucos, as mulheres passaram a ter uma dupla jornada de trabalho (doméstica e extradoméstica) e, com isto, a nova responsabilidade de conciliar vida profissional com vida familiar. Outro fator importante foi o advento da contracepção química e segura nos anos 1960, possibilitando às mulheres escolherem o número de filho/as que desejavam, rompendo com o determinismo biológico e social da maternidade. As temáticas dos estudos feministas e de gênero estão associadas tanto às grandes fases do feminismo como aos contextos e problemas que lhes suscitaram. O feminismo tem sido delimitado por suas etapas históricas. Três grandes fases são referidas em comum: a universalista ou humanista, ou das lutas igualitárias pela aquisição de direitos civis, políticos e sociais; a diferencialista e/ou essencialista, das lutas pela afirmação das diferenças e da identidade; e uma terceira, denominada de pós moderna, derivada do desconstrucionismo, que apoiou as teorias dos sujeitos múltiplos e/ou nômades (SCAVONE, 2008). 46 É importante lembrar que essas fases correspondem, em grandes linhas temporais, aos séculos XVIII e XIX, à segunda metade e ao final do século XX e ao início do século XXI; entretanto, não é possível circunscrevê-las em uma perspectiva linear. Apesar de estabelecermos a relação temporal com períodos e lutas distintos, essas fases não são fixas, elas dependem da situação social, econômica, cultural e política de cada sociedade. Atento-me ao fato de que, na compreensão do social, não se pode abordar os gêneros como opostos, e que deve ser evitado o a priori de um sistema binário que entende mulher e homem como categorias sociais fixas. Fundamentalmente, o gênero é um sistema de significados e depende, portanto, do contexto social. Segundo Joan Scott (1995) diversos domínios da vida social têm sido associados à natureza e retirados da ação humana, bem como tratados como se fossem únicos, no singular. O esforço de Scott e de outras teóricas tem sido justamente o de tomar o sentido oposto: desnaturalizar esses domínios heteronormativos. A autora retoma as ideias de Michel Foucault ao afirmar que Gênero é a organização social da diferença sexual percebida. O que não significa que gênero reflita ou implemente diferenças físicas e naturais entre homens e mulheres, mas sim que gênero é o saber que estabelece significados para as diferenças corporais (SCOTT, 1994, p. 13). Uma vez que gênero é um saber, e entendendo que saber e poder nunca estão dissociados, gênero tem um sentido eminentemente político. Ao refletir sobre construção de gênero de mulheres consagradas inseridas, considero, como propõe Scott, que (1) gênero é construído sobre a base da percepção da diferença sexual e (2) gênero é uma forma primária de dar sentido às relações de poder (SCOTT, 1995). O conceito de gênero foi sendo construído nos estudos relacionados aos diversos campos do feminismo e, por isso, também de ordem ideológica, política e de lutas (SCOTT, 1990); e, ainda coloca, enfrentamento à uma forma de saber acadêmico (SAFFIOTI, 2004). A historiadora Joyce Salisbury (1995), em sua obra Pais da Igreja, Virgens Independentes, interroga a historiografia existente e o silêncio sobre o protagonismo feminino, revelando um testemunho do poder da Igreja para oprimir e da resistente capacidade das mulheres para superá-los. O celibato, para muitas dessas mulheres, representou uma forma de emancipação e efeitos duradouros das atitudes sexuais no período medieval. 47 O cunho patriarcal dessas religiões até surpreende pela rigidez com que procurou controlar o corpo e a sexualidade das mulheres, como se pode encontrar, principalmente, nos últimos textos do Novo Testamento, em especial no capítulo 2, das Cartas de Timóteo, Dificuldades do ministério, versículos 9-15 (p. 1522) e Pedro capítulo 3, Deveres mútuos dos esposos, versículos 1-6 (p. 1544), textos característicos de uma estrutura social em que valores e mentalidades patriarcais e segregacionistas ainda existem (BÍBLIA SAGRADA, 2000). Uma religião patriarcal, segundo Esperanza Bautista – teóloga feminista –, é aquela que segue o modelo do patriarcado Kyriarcal e as mulheres, nesse tipo de estrutura religiosa como o Catolicismo, são apartadas de todo poder de decisão, não podendo receber nenhum tipo de ministério ordenado. Em resumo, pode-se dizer que seu acesso a Deus é limitado à mediação masculina (BAUTISTA, 1993). Elisabeth Schüssler Fiorenza (1992; 1994) foi quem elaborou esse conceito e propõe uma análise crítico-feminista, que não depende do marco teórico de um dualismo simbólico de gênero, seu enfoque do ângulo da analise de gênero está direcionado a uma análise sistêmica complexa das estruturas multiplicadoras da opressão. A partir da década de 1970, a autora começa a articular uma analítica social em termos históricos, propondo uma redefinição do conceito de patriarcado em referência a uma complexa pirâmide social de dominações e subordinações graduadas. Esta proposta deixa transparecer a presença de uma cultura de matriz religiosa, com raízes patriarcalistas, em sistemas atuais de dominação e exploração. O kyriarcado, portanto, é um marco intelectual e uma ideologia cultural que legitima e é legitimada por estruturas sociais e sistemas de dominação kyriarcais. As forças opressivas do heterossexismo, nesse sentido, são multiplicadas pelo racismo, pela pobreza, pelo imperialismo cultural, pela guerra, pelo colonialismo militarista, pela homofobia e pelo fundamentalismo religioso. A herança cristã compõe-se de diversas visões de sexualidade e continência aplicada às mulheres. Segundo Salisbury (1995), a primeira posição genérica é a dos primeiros padres da Patrística, como Tertuliano, Ambrósio, Jerônimo, Tomás de Aquino e Agostinho de Hipona. 48 A tradição judaico-cristã é conhecida por exercer uma moral sexual rígida, principalmente em relação às mulheres, cuja sexualidade tem sido dirigida ao serviço para o outro e à maternidade como um serviço à humanidade. Embora Michel Foucault (1985, p. 38) tenha chamado a atenção para o fato de que “[...] não há muito sentido em falar de uma moral judaico-cristã, uma vez que se desenvolveram processos muito complexos desde a época helenística até Santo Agostinhom [...]”, a expressão ‘judaico-cristã’, utilizada neste trabalho, tem o objetivo de acentuar a submissão da mulher ao homem como fenômeno cultural de longa duração presente tanto em certas civilizações da Antiguidade, como nas sociedades cristãs. Ana Paula Vosne Martins (2015) afirma que, desde meados do século XVIII e especialmente ao longo do século XIX desenvolveu-se uma concepção espiritual e emocional da maternidade, presente nos mais diferentes discursos, mas também já se configurava nestes discursos uma visão cultural da superioridade dos valores morais e cristãos do Ocidente, sintetizada pela palavra civilização. Linda Nicholson (1999) afirma que o sentido de mulher remete à sua historicidade, isto é, não é encontrado na elucidação de uma característica específica, mas a partir da elaboração de uma complexa rede de características empiricamente descobertas. Por tanto, busco não definir o conceito de mulher, para que pensemos em mulheres em contextos específicos. Isso permite também mapear suas semelhanças, o que, para a autora, não inviabilizaria a prática política (NICHOLSON, 1999). Nas ciências sociais, boa parte das pesquisas sobre religião e gênero têm sido orientadas por dois estereótipos contrários: no primeiro, subestima-se a religião como força cultural, no segundo, é vista como fator principal e único na vida das mulheres11. Nesses anos de pesquisa com mulheres e religião, precisei refletir sobre o meu posicionamento enquanto pesquisadora, mulher e de origem católica, quando apreendo sobre a vida cotidiana de diferentes mulheres que compartilham a vid