EVELYN DE PAULA SOUZA TDAH (TRANSTORNO DE DÉFICIT DE ATENÇÃO E HIPERATIVIDADE): PROBLEMATIZAÇÕES A PARTIR DA ATIVIDADE DE ESTUDO Presidente Prudente – SP 2017 EVELYN DE PAULA SOUZA TDAH (TRANSTORNO DE DÉFICIT DE ATENÇÃO E HIPERATIVIDADE): PROBLEMATIZAÇÕES A PARTIR DA ATIVIDADE DE ESTUDO Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Educação (PPGE) da Faculdade de Ciências e Tecnologia/UNESP, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Educação. Orientadora: Profª Drª Rosiane de Fátima Ponce Bolsa: CAPES Presidente Prudente – SP 2017 Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca da Faculdade de Ciências e Tecnologia, Presidente Prudente. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada 1. Psicologia Histórico-cultural. 2. Pedagogia Histórico-crítica. 3. TDAH. 4. Atividade de estudo. 5. Atividade de ensino. I. Título. Souza, Evelyn de Paula TDAH (TRANSTORNO DE DÉFICIT DE ATENÇÃO E HIPERATIVIDADE): PROBLEMATIZAÇÕES A PARTIR DA ATIVIDADE DE ESTUDO / Evelyn de Paula Souza. -- Presidente Prudente, 2017 125 p. : tabs. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Ciências e Tecnologia, Presidente Prudente Orientadora: Rosiane de Fátima Ponce S729t UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA Câmpus de Presidente Prudente CERTIFICADO DE APROVAÇÃO TÍTULO DA DISSERTAÇÃO: TDAH: TRANSTORNO DE DÉFICIT DE ATENÇÃO E HIPERATIVIDADE - PROBLEMATIZAÇÕES A PARTIR DA ATIVIDADE DE ESTUDO AUTORA: ÉVELYN DE PAULA SOUZA ORIENTADORA: ROSIANE DE FATIMA PONCE Aprovada como parte das exigências para obtenção do Título de Mestra em EDUCAÇÃO, pela Comissão Examinadora: Profa. Dra. ROSIANE DE FATIMA PONCE Departamento de Educação / Faculdade de Ciencias e Tecnologia de Presidente Prudente Prof. Dr. ANGELO ANTONIO ABRANTES Departamento de Psicologia / Faculdade de Ciências de Bauru - UNESP Profa. Dra. SILVANA CALVO TULESKI Departamento de Psicologia / Universidade Estadual de Maringá Presidente Prudente, 30 de outubro de 2017 Como sei pouco, e sou pouco, faço o pouco que me cabe me dando inteiro. Sabendo que não vou ver o homem que quero ser. (Thiago de Mello - Para os que virão) AGRADECIMENTOS O título de mestre foi o objetivo inicial de ontem, mas hoje digo que o trabalho foi o meu motivo e o produto foi o meu próprio processo. Hoje, não mais sou ontem e amanhã, espero não ser mais tão o presente. Diante disso, digo, minha verdadeira titulação está na minha transformação e dentro dela vocês: Obrigada a Deus, minha família e Danilo pelo apoio incalculável de todas as horas, do suporte e base para a continuação dos estudos. Agradeço grandemente pela paciência e dedicação, vocês foram tudo! Obrigada a Profª Rosiane, por confiar em minhas ações, pela paciência e por orientar o caminho da minha mudança, sendo humana e compreensiva durante a atividade de estudo e a pesquisa. Meus agradecimentos aos Grupos GEDHEE e GEIPEE, pela minha constituição dentro de uma formação acadêmica e humana. Aos membros que estão e os que já se foram, vocês estão nesse trabalho. À Profª Juliana Pasqualini, que esteve na qualificação, toda minha admiração pelo exemplo de professora e educadora. O conhecimento é emancipador e, a partir dos seus apontamentos, afirmo que o seu transcende nessa função aos que o transmite. Obrigada. À Profª Silvana C. Tuleski, psicóloga e professora que admiro e de quem me aproprio ricamente desde a minha graduação, minha gratidão. Obrigada pelos caminhos, pelos apontamentos, pela leitura minuciosa e pela luz de suas orientações durante a construção do trabalho. Ao Prof. Ângelo Abrantes meus agradecimentos pela presença na banca de defesa e pelas inúmeras contribuições que moldaram a construção de uma melhor pesquisa, auxiliando em um conhecimento que busca mudanças. Ao Prof. Ricardo Eleutério dos Anjos meus agradecimentos por sua colaboração em aulas, explicações, questionamentos e desconstruções, fatores que enriqueceram meu caminho de pesquisa. Obrigada ao meu time, Giuglianna e Karina, que levei e levo comigo em cada detalhe deste trabalho e deste processo de formação. Entramos juntas, saímos juntas. Vejam-se comigo, pois vocês estão aqui. Obrigada aos amigos Janaína Pereira e Rafael Ferrari pela grandeza de ser quem são e em se disporem sem nenhuma troca. Levo vocês da graduação para a vida. Meus agradecimentos à Camila Rocha e à Camila Becegato, dois corações com inúmeras qualidades, que fizeram dessa caminhada o formato do meu sorriso. Estarei sempre por perto. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. Por fim, obrigada à CAPES pelo apoio financeiro que me deu condição para a efetivação da pesquisa. RESUMO Esta dissertação de mestrado constitui-se como uma pesquisa de cunho teórico sobre o fenômeno social TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade) em relação à atividade de estudo, abordando em suas bases de fundamentação teórico-metodológica autores que compreendem o desenvolvimento humano e a educação escolar com base na Psicologia Histórico-Cultural e Pedagogia Histórico-Crítica. Essa pesquisa objetiva, assim, entender o fenômeno TDAH para além das compreensões hegemônicas (de cunho maturacional e biologizante) ao buscar defender a importância da ‘atividade de estudo’ no desenvolvimento humano. Nesse sentido, são levantadas tais concepções hegemônicas presentes em dissertações e teses publicadas em Programas de Pós-graduação em Educação e Psicologia de três Universidades públicas (UNESP, UFSCAR, USP) e de uma Universidade particular (PUC – São Paulo e Campinas) do Estado de São Paulo, a partir de trabalhos registrados no banco de dados Capes e Parthenon, identificados por meio de uma busca por palavras-chave. Além das produções em banco de dados, realiza-se uma sondagem de concepções do TDAH presentes nos encaminhamentos de crianças ao Centro de Atendimento (Centrinho) de Presidente Prudente/SP. Após esse levantamento de dados, busca-se entender o fenômeno TDAH a partir de estudos sobre a ‘atividade de ensino’ e sobre a ‘atividade de estudos’. A ‘atividade de ensino’ é entendida como processo de mediação das apropriações e dos conhecimentos escolares, por isso abordamos reflexões sobre o desenvolvimento humano na perspectiva da Teoria histórico-cultural de homem (gênero humano). Avaliando e refletindo sobre o processo de formação das funções psicológicas superiores, enquanto estruturas interfuncionais, abordamos a periodização do psiquismo e o conceito de ‘atividade principal’, considerando a organização do ensino a partir da Pedagogia Histórico-Crítica. Quanto aos resultados alcançados nesta pesquisa de Mestrado, destaca-se que ela possibilita considerar que o ensino precário e espontâneo, baseado em conhecimentos fragmentados, pode conduzir a sociedade a análises e características defendidas predominantemente pela visão psicopatológica do TDAH. Compreender a ‘atividade de ensino’ em conjunto com a ‘atividade de estudo’, em uma perspectiva histórico-cultural de desenvolvimento humano, é de suma importância no enfrentamento do TDAH como sendo doença ou psicopatologia, além disso, é uma defesa do TDAH como um fenômeno produzido socialmente. Palavras-Chave: Psicologia Histórico-cultural, Pedagogia Histórico-crítica, TDAH, Atividade de estudo, Atividade de ensino. ABSTRACT This dissertation constitutes a theoretical research on the social phenomenon ADHD (Attention Deficit Disorder and Hyperactivity) in relation to the study activity, addressing in its bases of theoretical-methodological foundation authors that comprise human development and school education based on Historical-Cultural Psychology and Historical-Critical Pedagogy. This research aims to understand the ADHD phenomenon beyond hegemonic (maturational and biologizing) understandings to defend the importance of 'Study Activity' in human development. In this sense, these hegemonic conceptions present in dissertations and theses published in Post-graduate Programs in Education and Psychology of three public universities (UNESP, UFSCAR, USP) and of a private university (PUC - São Paulo and Campinas) of São Paulo, from works registered in the database Capes and Parthenon, identified through a search for keywords. In addition, to database productions, a research of ADHD conceptions is carried out in children's referrals to the Presidente Prudente / SP Care Center (Centrinho). After this collection, we seek to understand the ADHD phenomenon from studies on 'Teaching Activity' and 'Study Activity'. The 'Teaching Activity' is understood as a process of mediation of appropriations about the school knowledge, so we aim reflect on human development from the perspective of the historical-cultural theory. Evaluating and reflecting about the process of formation of higher psychological functions, as inter-functional structures, we discuss the periodization of the psyche and the concept of 'main activity', considering the organization of teaching from Historical-Critical Pedagogy. As the results achieved in this Master's research, it is possible to consider that precarious and spontaneous teaching, based on fragmented knowledge, it can lead society to analyzes and characteristics predominantly defended by the psychopathological view of ADHD. Understanding 'teaching activity' in conjunction with 'study activity', in a historical-cultural perspective of human development, is of paramount importance in coping with ADHD as being disease or psychopathology, moreover, it is a defense of ADHD as a phenomenon produced socially. Keywords: Historical-cultural psychology, Historical-Critical Pedagogy, ADHD, Study activity, Teaching activity. Sumário INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 10 CAPÍTULO I TDAH (TRANSTORNO DE DÉFICIT DE ATENÇÃO E HIPERATIVIDADE): UMA BREVE SÍNTESE ............................................................... 15 1.1. Potencialização da problemática do TDAH no campo acadêmico.................................. 22 1.2. Potencialização da Problemática do TDAH no campo escolar ....................................... 28 CAPÍTULO II ATIVIDADE DE ENSINO: COMPREENDER O DESENVOLVIMENTO HUMANO A PARTIR DA TEORIA HISTÓRICO- CULTURAL .......................................................................................................................... 35 2.1. Concepção histórico-social de homem ............................................................................ 36 2.2. Funções Psicológicas Superiores e sua interfuncionalidade............................................ 41 2.3. Periodização do Psiquismo Humano ............................................................................... 48 2.3.1. Atividade: atividade dominante .................................................................................... 49 2.3.2. Épocas e períodos do desenvolvimento ........................................................................ 55 2.4 O ensino e a formação de conceitos ................................................................................. 62 2.4.1. A organização do ensino a partir da Pedagogia Histórico-Crítica................................ 70 CAPÍTULO III ATIVIDADE DO ESTUDO: EM BUSCA DA COMPREENSÃO DO TDAH COMO FENÔMENO SOCIAL .............................................................................. 77 3.1. Atividade de Estudo ........................................................................................................ 77 3.2. Função Psicológica superior ‘Atenção’ ........................................................................... 83 3.3 Função Psicológica superior ‘Percepção’ ........................................................................ 92 3.4 Função Psicológica superior ‘Linguagem’ ..................................................................... 100 3.5 TDAH: Uma Problemática Social ou uma Psicopatológica? ......................................... 107 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................. 115 REFERÊNCIAS ................................................................................................................. 122 10 INTRODUÇÃO Este trabalho de pesquisa, nível de Mestrado, desenvolvido no Programa de Pós- graduação em Educação da FCT (PPGE/UNESP), tem como objetivo compreender e analisar a atividade de estudo como unidade de análise da formação do psiquismo humano e, assim, identificar seus processos mobilizadores na formação da criança ‘diagnosticada’ com TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade). É importante ressaltar que compreende-se o diagnóstico de TDAH como um fenômeno social e buscamos nos respaldar em estudos da Psicologia Histórico-Cultural para defendermos a hipótese de que a criança diagnosticada com tal transtorno não esteja de fato sendo inserida em atividade de estudo, colaborando, assim, para que comportamentos e/ou situações de “falta de atenção” sejam avaliados por vias de análises psicopatológicas. Assim, procuramos compreender a presente queixa de desatenção dentro dessa atividade guia, impulsionando nossas reflexões por meio do ensino, do desenvolvimento e da aprendizagem da criança em idade escolar, em prol de uma defesa contra a hegemonia da compreensão humana maturacional. As inquietações iniciais sobre a temática central dessa pesquisa – o ‘TDAH’ – ocorreram no curso de graduação, mais especificamente em relação aos ‘diagnósticos’ de TDAH, suas controvérsias históricas e a legitimidade científica dos laudos/diagnósticos. Vale explicar que durante o curso de Licenciatura em Educação Física (FCT/UNESP, campus de Presidente Prudente) pudemos participar do grupo GEIPEE 1 e desenvolver projetos com crianças ‘diagnosticadas’ com ‘TDAH e conhecer seus familiares e alguns de seus professores. É importante registrar que prevaleciam no curso de Educação Física, infelizmente, em suas várias disciplinas, as compreensões biologicistas/orgânicas sobre o desenvolvimento humano, nas quais a ideologia da dissociação corpo e mente se concretizava como hegemônica dentre as demais, ou seja: compreender o ser humano em sua totalidade era difícil ou quase impossível. Na contramão desse cenário, o grupo de estudos GEIPEE 1 Grupo de Estudo, Intervenção e Pesquisa em Educação Escolar, coordenado pelos professores Irineu A. Tuim Viotto Filho e Rosiane de Fátima Ponce. Minha participação no grupo ocorreu até meados de 2016, assim, registro aqui os meus agradecimentos aos membros do GEIPEE com os quais desenvolvi várias ações e efetivei vários projetos, sendo que muitas de minhas aprendizagens foram oportunizadas dentro desse coletivo. 11 possibilita uma nova visão do que é o ser humano e da importância da educação escolar em sua formação de uma maneira não fragmentada, isto, a partir de estudos da Psicologia Histórico-Cultural. Durante nossa participação no grupo de estudos (GEIPEE), ao longo dos quatro anos de graduação, vivenciamos momentos de intervenções que oportunizaram fazer uma reflexão a partir dos conhecimentos em grupo, relacionando-os com a prática junto às crianças ‘diagnosticadas’ com transtornos de aprendizagem. Em muitas de nossas intervenções, as crianças ‘diagnosticadas’ com TDAH tinham comportamentos e atitudes diferentes das características elencadas por seus psicólogos e/ou professores. No decorrer das atividades de jogos e brincadeiras coletivas realizadas naquele período, obtínhamos mudanças qualitativas no comportamento e no aprendizado de algumas crianças, contradizendo, assim, os laudos apresentados pelas escolas no encaminhamento delas. Assim, eu buscava entender a contradição entre as características e os comportamentos que as crianças apresentavam nos projetos em comparação com os ‘laudos’ da escola e com os relatos dos familiares. A elaboração de diferentes atividades pedagógicas e o desenvolvimento da criança em resposta a esses processos de mediação reforçavam nossas inquietações. Diferentemente das abordagens e das práticas desenvolvidas em sala de aula, nos projetos de intervenções com as crianças elaboramos atividades ludo-pedagógicas que consideravam a especificidade de cada indivíduo, as suas motivações, sem deixar de lado nossas intencionalidades de ensinar e propiciar a aprendizagem das crianças. De certa forma, consegui avançar e propiciar o desenvolvimento de várias delas, mas há que se destacar que estávamos em um grupo de estudos que organizava suas ações de intervenções coletivamente e, também, tínhamos no máximo de 06 a 10 crianças por grupo de intervenção. Nos projetos de intervenção com as crianças, eram realizadas entrevistas com os seus responsáveis e, às vezes, com seus professores, sendo que nesses momentos identificávamos contradições sobre o comportamento das crianças em ambiente escolar e familiar, se comparados ao comportamento delas nos projetos. Apesar de a maioria dos professores concordar com os diagnósticos de TDAH e efetivar queixas do fenômeno, havia pais e/ou responsáveis que discordavam dos laudos. Eles afirmavam que seus filhos em casa tinham comportamentos diferentes dos relatados por especialistas, ou seja, que em ambiente familiar a criança obedecia às regras, ouvia as falas da mãe, entre outros comentários. 12 Entretanto, mesmo com essas comparações no tocante ao comportamento da criança em casa e na escola, os pais e/ou responsáveis medicavam as crianças por confiarem no especialista (da área médica) ou por atenderem aos pedidos dos professores (os quais ‘creditavam’ a melhora no desempenho escolar dos estudantes ao uso de medicamento). Ao longo das participações em congressos científicos, houve contato com vários trabalhos e artigos sobre o TDAH, fossem a partir da Teoria Histórico-cultural ou não. Mesmo com uma grande quantidade de trabalhos sobre o fenômeno, identificamos o quanto o assunto ainda é alvo de incertezas por parte de profissionais que assistiam às apresentações. Assim, essa quantidade de trabalhos nos motivou a questionar a originalidade desta pesquisa de mestrado e a verificar se os dados apresentados por outros pesquisadores em congressos e registrados em Anais de eventos, somados aos artigos em vários periódicos, tinham por preocupação atingir níveis mais complexos de entendimento acerca do TDAH. Nosso aprofundamento teórico-científico ocorreu a partir de leituras críticas dos artigos estruturados em concepções hegemônicas sobre o TDAH (para entender a ‘lógica’ das afirmações de que é uma doença e por isso a necessidade de medicamentos para ser tratada), por meio de conhecimentos adquiridos no curso de Especialização em Educação Especial e Inclusiva (área atribuída ao TDAH). Mas, principalmente, são os estudos sistematizados sobre o desenvolvimento humano ao longo de nossa participação nos grupos de estudos 2 (FCT/UNESP) que nos possibilitaram a compreensão do TDAH como um fenômeno social que apontam, ainda, que as crianças que participaram de projetos por nós cordenados não eram portadoras de transtornos (TDAH) e não eram portadoras de ‘necessidades especiais’. Essa pesquisa objetiva compreender, assim, o TDAH na perspectiva de um fenômeno social, por entender o ser humano como uma síntese de suas apropriações histórico-culturais e por conceber a formação e o desenvolvimento das funções psicológicas superiores a partir de um processo de constituição interfuncional. 2 Em meados de 2016, já no curso de Mestrado, participei da elaboração e constituição do grupo GEDHEE (Grupo de Estudos sobre Desenvolvimento Humano e Educação Escolar – Pedagogia Histórico-crítica e Psicologia Histórico-cultural) atuando como um de seus membros. Esse grupo é coordenado pela profa Rosiane de Fátima Ponce e conta com a participação de alunos do Mestrado (PPGE/FCT), da graduação (Pedagogia, Geografia, Química), de profissional externo a UNESP (o professor e doutor Ricardo Eleutério dos Anjos), e a vice coordenadora do GEDHEE é a profa Dra Renata Maria Coimbra. 13 A seguir, destacamos que elaboramos o texto desta dissertação em três capítulos. No Capítulo I – “TDAH – Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade: uma síntese do problema” – apresentamos dados de pesquisas realizadas em programas de pós-graduação (em Educação e Psicologia) e levantamento histórico de atendimento de crianças enviadas para acompanhamento especializado em um centro de atendimento de Presidente Prudente/SP. Objetivamos identificar as principais concepções sobre o tema ‘TDAH’ presentes na área acadêmica e no centro de atendimento de crianças (C.A.A.), as quais nos possibilitam levantar dados do ambiente escolar. Nesse sentido, apresentamos algumas das concepções/visões biológicas sobre o tema TDAH e realizamos uma síntese a respeito dos conhecimentos científicos que dão base à concepção de indivíduo. No capítulo II — “ATIVIDADE DE ENSINO EM PROL DO PROCESSO DE FORMAÇÃO HUMANA” —, tendo por pressuposto que a criança necessita ser inserida em atividade pelo adulto dentro de um processo de mediação, elencamos a atividade de ensino como estrutura base para tal ação. Desta forma, compreendendo o ensino como atividade inseparável do estudo, buscamos primeiramente elencar a concepção de indivíduo ao qual a prática do professor visa formar e como os processos educativos interferem diretamente nessa formação de indivíduo, bem como no desenvolvimento de funções psicológicas superiores. Buscando complementar nossas reflexões, neste capítulo apresentamos a “periodização do ensino”, abordando a temática de atividade principal e compreendendo as interferências/ações do ensino nesse contexto. Apresentamos, também, alguns dos aportes da Pedagogia Histórico-Crítica como base pedagógica orientadora das práticas educativas de ensino, visando às reflexões sobre a formação de conceitos, com base nos conhecimentos científicos, para a formação integral do homem. No capítulo III — “ATIVIDADE DO ESTUDO: em busca da compreensão do TDAH enquanto um fenômeno social” — nosso objetivo é compreender as características apresentadas pela concepção biológica sobre a ‘falta de atenção’ apresentada pela maioria das crianças avaliadas com ‘TDAH’ via análises acerca da ‘atividade de estudo’. Buscamos, primeiramente, compreender a importância da atividade de estudo enquanto estrutura que possibilita a aprendizagem e o desenvolvimento do ser humano durante suas apropriações em espaços escolares. Nesse processo, procuramos refletir sobre os fatores determinantes no desenvolvimento infantil e pretendemos analisar a especificidade de formação individual e coletiva, elencando as funções atenção, percepção e linguagem em defesa da compreensão 14 histórico-social do fenômeno ‘TDAH’. Assim, fazemos uma contraposição com as concepções hegemônicas sobre o tema (TDAH), as quais defendem que é uma dificuldade e/ou um ‘problema’ do indivíduo que ocorre isoladamente, que é uma doença, portanto, deve ser ‘medicada’ para que a criança preste ‘mais atenção’ nas orientações em sala de aula e para que aprenda os conteúdos científicos ensinados pelo professor. Esta pesquisa, então, almeja defender que o TDAH é um fenômeno de ordem histórica e cultural. Para isso, é preciso que professores e gestores escolares compreendam o processo de desenvolvimento humano e qual é o papel da educação escolar nesse processo, para avançarmos no entendimento de que situações de avaliação/diagnóstico de TDAH carecem de ser assumidas como análises dos processos de ensino dos conteúdos escolares, a fim de podermos levantar/estruturar outras formas de elaborar intencionalmente o processo de ensino. O diagnóstico é fundamental, também, para que o processo de aprendizagem seja alcançado pelas crianças e por seu entorno (pais e/ou responsáveis; professores e gestores). 15 CAPÍTULO I TDAH (TRANSTORNO DE DÉFICIT DE ATENÇÃO E HIPERATIVIDADE): UMA BREVE SÍNTESE Como apresentado na Introdução, ressaltamos que a prática de atuação em intervenções ludo-pedagógicas com crianças ‘diagnosticadas’ com TDAH foi muito importante, isso porque proporcionou reflexões que apontavam haver contradições entre o que estava registrado nos documentos de encaminhamento dessas crianças (relatórios escolares; laudos/diagnósticos médicos e/ou de psicólogos) e as ações/atitudes e comportamentos ao longo das atividades lúdicas possibilitadas nas atividades realizadas pelas crianças nos projetos. Uma das várias reflexões desenvolvidas ao longo do nosso trabalho de intervenção com as crianças nos projetos que atuamos, ainda na Graduação, tornou-se central dessa pesquisa: por que crianças ‘diagnosticadas’ com TDAH prestam atenção em atividades ludo-pedagógicas e não na atividade de aprendizagem orientada pela professora na escola? Ou, então, por que as crianças não ficam atentas à atividade de estudo? Se hegemonicamente as compreensões psicopatológicas identificam o TDAH como uma disfunção biológica, como a característica determinante de “falta de atenção” poderia variar de uma atividade para outra? De modo geral, buscamos neste primeiro capítulo compreender as inquietações já apontadas, realizando um levantamento de concepções hegemônicas sobre o TDAH, para que possamos elaborar sínteses dessaes conceitos e, assim, entendermos o fenômeno em sua totalidade histórica. Nesse sentido, explicamos que foram levantados alguns autores e trabalhos que defendem uma visão maturacional de indivíduo e o TDAH como uma disfunção de cunho biológico. Esclarecemos que não compartilhamos dessas concepções, no entanto, avaliamos ser necessário mencionar esses autores/estudos como ponto de partida de nossa pesquisa, visando analisar o que foi sendo efetivado sobre o TDAH no meio acadêmico e científico nos últimos anos e, assim, avançar via estudos teóricos dentro dessa temática com o intuito de superar as visões maturacionais/biologizantes em relação ao TDAH. Atualmente, no DSM-IV (2000), encontramos o TDAH classificado na categoria de Transtornos de Déficit de Atenção e do Comportamento Diruptivo, que possui a classificação dos seguintes tipos: Transtornos de Déficit de Atenção; Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade sem outra especificidade, que é aplicado aos transtornos que 16 apresentam a desatenção e a hiperatividade só que abaixo do número de sintomas sugeridos ao TDAH; Transtorno de Conduta; Transtorno Desafiador Opositivo e, por último, Transtorno do Comportamento Diruptivo (essa última categoria classifica transtornos relacionados diretamente a desvios de condutas tidos como ‘inadequados’ e em suas definições estão elencadas as dificuldades em controlar ações e atividades, encaixando-se em dificuldades de autocontrole). Para essas concepções e classificações, o TDAH é caracterizado pela persistência dos sintomas de desatenção, hiperatividade e impulsividade de maneira severa, que seria encontrado predominantemente em crianças antes dos 12 anos. Entretanto, tal aspecto de idade foi modificado para 07 anos no atual DSM-V, lançado no ano de 2013 pela APA, o que expande o número de crianças com possibilidade de serem diagnosticadas. Cabe explicitar que apesar de o DSM-V estar disponível para consultas/acesso, selecionamos os conceitos sobre TDAH presentes no DSM-IV por compreender que esse manual é mais utilizado como base de apoio para os ‘diagnósticos’, em função do seu tempo de publicação. Porém, para que não comprometêssemos a veracidade atual do fenômeno TDAH, pela via do conceito biológico, comparamos o atual DSM-V com o anterior DSM-IV e identificamos que poucas foram as modificações, assim, as reformulações não alteraram significativamente o conceito de TDAH. Dessa forma, tal como explicita o DSM–IV (2000), o TDAH é caracterizado pela tríade: Desatenção, Hiperatividade e Impulsividade. Esses sintomas, conforme o DSM-IV, podem ser identificados separadamente, tanto na escola, como no meio profissional e social. Conforme dados do manual, nos espaços escolares e sociais a desatenção tende a dificultar a atenção do indivíduo, fazendo com que ele cometa erros, realize ações sem cuidados, não identifique detalhes, realize trabalhos e tarefas de modo confuso, ou seja, o sujeito pode desistir facilmente de suas ações, deixando atividades inacabadas e gerando desorganização naquilo que considera difícil, desinteressante e que exija muito esforço, dedicação e concentração. Já a hiperatividade é encontrada por ações que demonstram inquietação, tais como: corridas excessivas feitas muitas vezes em local não apropriado para tais atos, dificuldade em se manter calmo ou até mesmo em silêncio, falas e movimentos corporais excessivos. Na indicação de Impulsividade estariam classificadas as crianças que apresentam impaciência, realizam ações precipitadamente, não esperam o tempo adequado para sua 17 colocação, interrompem falas, realizam ‘gracinhas’, tocam em objetos proibidos, atitudes que podem causar acidentes e gerar desconforto. Desse modo, de acordo com Círio (2008), o TDAH é um problema de saúde mental que atualmente é encontrado com frequência em crianças e adolescentes do Brasil e do mundo, sendo que esses sujeitos apresentariam dificuldades motoras e de controle sobre os seus impulsos, o que acarretaria a falta de atenção, a hiperatividade e a impulsividade. Por tais dificuldades de autocontrole, os sujeitos manifestam características de claros prejuízos na vida escolar e social, levando a risco de repetências, expulsões, ansiedade, depressão, delinquência, uso precoce de narcóticos, além de relações sociais e familiares tumultuadas. A Associação Brasileira do Déficit de Atenção (ABDA), formada por profissionais que atuam como médicos, psicólogos e fonoaudiólogos, conta com Paulo Ed. L. Mattos e Luís A. Rohde como seus membros, dois importantes nomes nos estudos sobre TDAH. Para a ABDA, o TDAH é um transtorno neurobiológico, reconhecido pela OMS (Órgão Mundial da Saúde) na ordem dos fatores genéticos, com sintomas de desatenção hiperatividade e impulsividade, sendo que, conforme a ABDA, o sujeito portador de TDAH apresenta alterações na região frontal do cérebro e possui deficiência em seus neurotransmissores, os quais transmitem informações de uma célula nervosa a outra. Assim, o TDAH ocorreria em função de fatores hereditários, sofrimento fetal, exposição ao chumbo, substâncias ingeridas na gravidez, problemas familiares, entre outras causas. Condemarín et al (2006, p.47, grifo nosso) afirmam que a avaliação de TDAH é “[...] um diagnóstico clínico, com base em critérios comportamentais, sem um marcador biológico”. Por isso, para que se possa realizar um diagnóstico correto, critérios precisam ser considerados durante o período de avaliação, tais como: a verificação de persistência e o início precoce dos sintomas, conduta inapropriada para a idade e o nível de desenvolvimento, conduta que se apresenta em múltiplas situações, conduta que interfere em outras áreas do desenvolvimento e conduta não explicativa por outros transtornos. Contudo, tal afirmação, que nega a presença de um marcador biológico, se contrapõe à própria concepção de que o fenômeno TDAH tem como base uma disfunção biológica, levando-nos a considerar que o caráter genético apontado por tais compreenssões psicopatológicas se trata apenas de uma suposição e não de um fator cientificamente comprovado. Consideramos importante constatar tais contradições devido ao grau de responsabilidade com o qual estamos lidando dentro das problemáticas referentes ao dito 18 transtorno. Ao termos contato com vidas submetidas a medicamentos tarja preta, não podemos nos abster de conceitos estabelecidos em suposições. No processo de elaboração do diagnóstico, o DSM-IV (2000) estabelece suas avaliações conforme os critérios presentes no Quadro I, a seguir. Quadro 1 – Critérios de diagnóstico avaliativo de TDAH Fonte: DSM-IV (2000) 3 3 Aos interessados, a ABDA disponibiliza o SNAP-IV em seu site, que é um questionário baseado nos critérios de avaliação apresentados no quadro e disponibilizados pelo DSM-IV (2000). Assim, qualquer pessoa/navegador poderá acessar o material e realizar análises que, segundo a ABDA, será um ponto de partida na identificação de sintomas de TDAH. A. (1) ou (2): (1) Seis (ou mais) dos seguintes sintomas de desatenção persistiram pelo período mínimo de 6 meses, em grau mal adaptativo e inconsistente com o nível de desenvolvimento: Desatenção: (a) Frequentemente não presta atenção a detalhes ou comete erros por omissão em atividades escolares, de trabalho ou outras; (b) Com frequência tem dificuldade para manter a atenção em tarefas ou atividades lúdicas; (c) Com frequência parece não ouvir quando lhe dirigem a palavra; (d) Com frequência não segue instruções e não termina seus deveres escolares, tarefas domésticas ou deveres profissionais (não devido a comportamento de oposição ou incapacidade de compreender instruções); (e) Com frequência tem dificuldade para organizar tarefas e atividades; (f) Com frequência evita, demonstra ojeriza ou reluta em envolver-se em tarefas que exijam esforço mental constante (como tarefas escolares ou deveres de casa); (g) Com frequência perde coisas necessárias para tarefas ou atividades (p. ex., brinquedos, tarefas escolares, lápis ou outros materiais); (h) É facilmente distraído por estímulos alheios à tarefa; (i) Com frequência apresenta esquecimento em atividades diárias; (2) Seis (ou mais) dos seguintes sintomas de hiperatividade persistiram pelo período mínimo de 6 meses, em grau mal adaptativo e inconsistente com o nível de desenvolvimento: Hiperatividade: (a) Frequentemente agita as mãos ou os pés ou se remexe na cadeira; (b) Frequentemente abandona sua cadeira na sala de aula ou outras situações nas quais se espera que permaneça sentado; (c) Frequentemente corre ou escala em demasia, em situações impróprias (em adolescentes e adultos pode estar limitado a sensações subjetivas de inquietação); (d) Com frequência tem dificuldade para brincar ou se envolver silenciosamente em atividades de lazer; (e) Está frequentemente “a mil” ou muitas vezes age como se estivesse “a todo vapor”; (f) Frequentemente fala em demasia. Impulsividade: (g) Frequentemente dá respostas precipitadas antes que as perguntas terem sido completamente formuladas; (h) Com frequência tem dificuldade para aguardar sua vez; (i) Frequentemente interrompe ou se intromete em assuntos alheios (p. ex., em conversas ou brincadeiras). B. Alguns sintomas de hiperatividade-impulsividade ou desatenção causadores de comprometimento estavam presentes antes dos 07 anos de idade; C. Algum comprometimento causado pelos sintomas está presente em dois ou mais contextos; D. Deve haver claras evidências de um comprometimento clinicamente importante no funcionamento social, acadêmico ou ocupacional; E. Os sintomas não ocorrem exclusivamente durante o curso de um Transtorno Global do Desenvolvimento, Esquizofrenia ou outro Transtorno Psicótico, nem são explicados por outro transtorno mental 19 De forma geral, analisando os dados acima, destacamos que a compreensão do TDAH é atribuída a partir de seus sintomas (classificação de eixo A), do fator de idade (classificação de eixo B), do contexto (classificação de eixo C), do ambiente de convívio (classificação de eixo D) e da possibilidade de outros problemas (classificação de eixo E). Rohde et al (2004) explicitam que para o tratamento do TDAH são necessários diversos tipos de indicação que variam de acordo com a comorbidade associada ao problema, tais como: transtorno bipolar, transtorno de conduta, retardo mental, etc. Identificamos que o mais indicado está no tratamento multimodal, que se estabelece no uso combinado de medicamentos, seja de antidepressivos com psicoestimulantes ou com antipsicóticos, seja na realização de intervenções psicosociais com professores e responsáveis. Entretanto, o uso do psicoestimulante metilfenidato, conhecido no mercado consumidor por Ritalina, é considerado indispensável quando a patologia ‘diagnosticada’ é o TDAH. Em justificativa às indicações de associações de outros medicamentos (antipsicóticos, antidepressivos, etc) junto aos psicoestimulantes, Rohde et al (2004) afirmam que tal fator deriva das problemáticas sociais as quais essas crianças estão inseridas que, por muitas vezes, influenciam na intensidade dos determinantes que caracterizam o TDAH. Portanto, essa união de medicamentos, segundo os autores, trata-se de um reforço na melhora da condição do indivíduo. 20 Buscando compreender como seria a proposta de tratamento farmacológico para o TDAH, elaboramos a tabela de medicamentos indicados pela ABDA no Quadro 2: Quadro 2 – Medicamentos indicados ABDA MEDICAMENTOS RECOMENDADOS EM CONSENSOS DE ESPECIALISTAS NOME QUÍMICO NOME COMERCIAL DOSAGEM DURAÇÃO DO EFEITO PRIMEIRA ESCOLHA: ESTIMULANTES (em ordem alfabética) Lis-dexanfetamina Venvanse 30, 50 ou 70mg pela manhã 12 horas Metilfenidato (ação curta) Ritalina 5 a 20mg de 2 a 3 vezes ao dia 3 a 5 horas Metilfenidato (ação prolongada) Concerta Ritalina LA 18, 36 ou 54mg pela manhã 20, 30 ou 40mg pela manhã 12 horas 8 horas SEGUNDA ESCOLHA: se o primeiro estimulante não obteve resultado, deve-se tentar o segundo estimulante TERCEIRA ESCOLHA Atomoxetina (1) Strattera 10,18,25,40 e 60mg 1 vez ao dia 24 horas QUARTA ESCOLHA: antidepressivos Imipramina (antidepressivo) Tofranil 2,5 a 5mg por kg de peso divididos em 2 doses Nortriptilina (antidepressivo) Pamelor 1 a 2,5mg por kg de peso divididos em 2 doses Bupropiona (antidepressivo) Wellbutrin SR 150mg 2 vezes ao dia QUINTA ESCOLHA: se o primeiro antidepressivo não obteve o resultado, deve-se tentar o segundo antidepressivo SEXTA ESCOLHA: alfa-agonistas Clonidina (medicamento anti-hipertensivo) (2) Atensina 0,05mg ao deitar ou 2 vezes ao dia 12 a 24 horas OUTROS MEDICAMENTOS Modafinila (medicamento distúrbio do sono) Stavigile 100 a 200mg por dia, no café Fonte: ABDA (http://www.tdah.org.br) Destacamos a preocupação que pessoas leigas no assunto podem apresentar após analisar conteúdos que estão disponíveis no site da ABDA sobre o TDAH, considerando que essas ‘informações’ prejudicariam a compreensão do fenômeno principalmente por parte de pessoas leigas no assunto (em geral, pais e/ou responsáveis) e que buscam com certo “desespero” as justificativas para os ditos ‘maus comportamentos’ e para o ‘déficit de atenção’ das crianças e dos adolescentes. Outra questão a ser considerada é se, talvez, a indicação de medicamentos (ou as prescrições de tratamento presentes no site) não auxiliaria pais e/ou responsáveis, muitas vezes movidos pela emoção, medicarem as crianças de forma autônoma, sem nenhum procedimento de consulta aos profissionais da área da educação, da psicologia e/ou da medicina. Além disso, é importante problematizar que, além de indicar informações de dosagens e de utilização de remédios, o site baseia-se no que ele chama de “consenso de especialistas”, contudo, questionamos: de que consenso? Ainda, de que especialistas? A http://www.tdah.org.br/ 21 página também não esclarece, tampouco nem define em quais especialistas se apoiam para fornecer os dados. É importante dar destaque a esse fator, visto que a utilização genérica do termo “consenso de especialistas”, sem a explicitação de quem são, pode induzir o leitor ao pensamento de que não há discordância de conhecimentos, o que não seria verídico. Enfim, compreendemos que, apesar de essas Associações afirmarem que o fornecimento de informações se faz no intuito de auxiliar os familiares de sujeitos com TDAH, estamos diante de vidas em formação e todo cuidado é necessário quando lidamos com ‘patologias’ que analisam comportamentos humanos, aspectos sociais e de aprendizagens escolares. É preciso entender e combater os processos de medicalização da vida e da infância, os quais foram implementados nas últimas décadas mundialmente, com o forte apoio de profissionais da área da medicina, da psicologia, da psiquiatria e da indústria farmacêutica. Eidt (2004) e Meira (2011) permitem-nos refletir que não podemos negar que haja algumas semelhanças entre os comportamentos tidos como indisciplinados e as características do ‘fenômeno TDAH’ que são, geralmente, atribuídas às crianças em idade escolar. Assim, consideramos que estamos diante de patologias clínicas de alto grau de definição e de ‘possível’ tratamento, mas partindo de análises de comportamentos que são divididos por uma tênue linha que coloca o ser humano entre o que é normal e o que não é ‘normal’. Corremos o risco, desse modo, de estarmos transpondo análises de ordem natural/biológica para situações de caráter social e didático-pedagógico (de processos de ensinagem dos conteúdos escolares). Moysés e Collares (2013) explicam que o processo de medicalização da vida humana, ou seja, de atribuição da ciência social à ciência médica, vem ocorrendo de forma expansiva dentro dos ambientes escolares desde meados da década de 1990, sendo que o TDAH se configura como um dos principais problemas relacionados a esse fator, exatamente por enquadrar comportamentos humanos que se diferenciam do que a sociedade almeja. Entretanto, além de colocar vidas em risco, ao indicar medicação, esta perspectiva acoberta problemas coletivos de caráter político e econômico que historicamente caracterizam as desigualdades sociais em nosso país. Nas análises biologizantes do fenômeno do TDAH, é comum que retirem do aluno a sua individualidade, desconsiderando a sua constituição histórico-social e acobertam-se déficits da sociedade e da educação, colocando no próprio 22 sujeito, em seu organismo, a culpabilização do não aprender os conteúdos transmitidos no interior da sala de aula. Desse modo, recusamo-nos a analisar tais indivíduos apenas em seu aspecto orgânico e a desconsiderar o importante papel da educação escolar na sua constituição. Moýses e Collares (2013, p. 46), sobre as queixas de desatenção dos escolares, enfatizam que: Um ponto é fundamental: toda criança, todo adolescente que não presta atenção está atento em outra coisa. Mesmo os que vivem no mundo da lua, estão atentos ao mundo da lua! Não há possibilidade de não atender a nada, trata-se de claro equívoco do avaliador por sua posição autoritária de pretender que a atenção certa, correta, melhor, é a voltada para o que ele decide ser digno de atenção. Nesse sentido, consideramos limitada a compreensão do TDAH como sendo um déficit do indivíduo e como uma patologia porque a criança não demonstra atenção ao ensino proposto, de acordo com as queixas de professores sobre a ação da criança em sala de aula. Se a atenção da criança está voltada para outro lugar ou para outros interesses, então consideramos avaliá-la não enquanto funcionalidade humana isolada e inerente às condições sociais, mas enquanto unidade interfuncional dentro de uma atividade que possa direcioná- la, ou seja, dentro da atividade do estudo organizada intencionalmente pelo professor (par mais desenvolvido) visando à aprendizagem da criança conforme sua zona iminente de desenvolvimento, como nos apontam os pressupostos da Teoria Histórico-Cultural. 1.1. Potencialização da problemática do TDAH no campo acadêmico Um aspecto que consideramos importante em nossos estudos é o de aproximar a pesquisa do cenário atual de compreensões do suposto diagnóstico de TDAH tanto no campo de produção de trabalhos acadêmicos quanto em nossas escolas. Nesse sentido, realizamos pesquisas em Programas de Pós-graduação para levantar a produção existente acerca do tema TDAH e para mapear as compreensões de TDAH que estão expressas em trabalhos de teses e dissertações publicadas, identificando, também, dados quantitativos que expressem o fenômeno em pesquisas na área acadêmica. Nossas buscas foram, primeiramente, nos Programas de Pós-graduação em Educação e em Psicologia. Delimitamos nossa investigação no período de produção de 2005 a 2015 e verificamos ano a ano em cada programa e instituição os estudos efetivados. Os programas 23 selecionados correspondem a quatro Universidades públicas (UNESP, UFSCAR, USP) e a uma Universidade particular (PUC – São Paulo e Campinas). Explicamos que nem todas as Universidades tinham os dois Programas (em Educação e em Psicologia), assim, em cada Universidade, levantamos os dados dos Programas existentes. Para este trabalho, primeiramente foram identificados dados quantitativos e depois feita uma análise qualitativa a respeito das pesquisas. Assim, esclarecemos que para a realização e para a criação de categorias, realizamos subdivisões a partir da leitura de seus resumos, sendo lidos na íntegra apenas os que se autodenominavam pertencentes a uma análise Histórico-cultural. Destacamos que nos Programas de Pós-graduação em Educação foram encontradas 19 (dezenove) pesquisas e nos Programas em Psicologia foram encontradas 33 (trinta e três) pesquisas, totalizando, pois, o número de 52 (cinquenta e dois) pesquisas entre 2005 e 2015, com maior produção em Programas de Psicologia. Os descritores utilizados para a pesquisa se mantiveram no fenômeno TDAH e em temáticas secundárias que envolveram o fenômeno. Além disso, definimos como temáticas secundárias aquelas que explicitam o TDAH atrelado não somente ao dito transtorno. Quadro 1 – Mapeamento de Temáticas (dissertações e teses) Temáticas Área da Educação Área da Psicologia Teses Dissertações Subtotal Fracasso Escolar 8 2 4 6 10 Dificuldade de Aprendizagem 6 9 7 8 15 TDAH 3 12 3 12 15 Medicalização 1 2 --- 3 3 Demais temáticas (discalculia, exclusão) 1 8 1 8 9 Subtotal: 15 Subtotal: 37 Total: 52 Fonte: elaboração da autora-pesquisadora A maioria das produções levantadas (de 2005 a 2015) foi de pesquisas desenvolvidas no mestrado, num total de trinta e sete. Dos trabalhos de doutorado obtivemos apenas quinze produções/pesquisas. Avaliamos que, talvez, alguns dos mestrandos não continuaram suas 24 pesquisas no doutorado, o que qualitativamente poderia se efetivar em uma maior contribuição para a temática. Ao todo, encontramos quinze trabalhos que analisaram o fenômeno TDAH, sendo doze na área da Psicologia e três da Educação. As temáticas discutidas nas produções sobre o TDAH foram organizadas em tabelas para depois realizarmos uma análise. Durante a leitura desses textos selecionados, realizamos uma classificação para poder compreender as ideias defendidas, sendo que classificamos estudos do TDAH com base em “análises patológicas” aqueles que atribuíam ao fenômeno algumas compreensões médicas e da área da neurociência, a partir da explicação do fenômeno como resultado de uma desordem genética. Nem todos os trabalhos tinham como objeto de suas pesquisas, crianças diagnosticadas, entretanto, o tema deixa implícita a posição diante a determinação do TDAH, ou seja, a criança é o foco dos estudos do fenômeno , porém não defendiam uma caracterização oposta aos determinantes médicos. Outros trabalhos selecionados foram classificados como sendo “análise de discurso” / representação social por serem trabalhos que avaliaram os discursos atribuídos ao diagnóstico de TDAH. Classificamos como “análise social” os trabalhos que defenderam a crítica à sociedade frente ao diagnóstico médico, assim como aqueles que discutiram a importância das relações sociais no desenvolvimento do indivíduo. Entretanto, não foram classificados em estudos da Teoria Histórico-cultural por não utilizarem como base teórica a produção de autores que se aportam nessa perspectiva e por não compreenderem o ser humano (concepção) em sua constituição histórico-cultural. Por último, classificamos como “análise Histórico-cultural” as produções que compreenderam o homem enquanto ser social, provido de suas apropriações histórico-culturais, discutindo o TDAH como fenômeno social. Desses trabalhos sobre o TDAH e de análises do diagnóstico, criamos o quadro a seguir: 25 Quadro 2 – Identificação dos trabalhos selecionados conforme referências utilizadas Trabalhos Classificação do TDAH Programa de pós- graduação / Autor Transtorno do déficit de atenção com hiperatividade: um caso clínico ou invenção pedagógica? Análise Social Educação / Warley Carlos de Souza Aquilo pelo que se luta nos discursos sobre TDAH dirigidos a professores e pais Análise de Discurso Educação / Nathaly Dironze Galhardo A teia de significados das práticas escolares: transtorno de déficit de atenção/hiperatividade (TDAH) e formação de professores Análise Patológica Educação / Maria das Graças Faustino A vigilância punitiva: a postura dos educadores no processo de patologização e medicalização da infância Análise Histório-social Psicologia / Fabiola Colombani Luengo A criança hiperativa, a família, o discurso científico e a psicanálise Análise Patológica Psicologia / Milena da Silva Mano Efeitos de um programa pedagógico-comportamental sobre TDAH para professores do ensino fundamental Análise Patológica Psicologia / Liene Regina Rossi Indicadores de estresse e estratégias de enfrentamento de meninos com sinais preditivos para o TDAH Análise Patológica Psicologia / Cássia Amélia Gomes O professor e a inclusão do aluno com déficit de atenção e hiperatividade Análise Patológica Psicologia / Vilma Bastos Machado Caracterização do perfil psicomotor de crianças com transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (TDA/H) Análise Patológica Psicologia / Fabio Porto Di Nucci Stress e estilo parental materno no transtorno de déficit de atenção e hiperatividade Análise Patológica Psicologia / Joseana Azevedo e Bargas Crianças com transtorno do déficit de atenção e hiperatividade: um olhar sobre o cuidador primário Análise Patológica Psicologia / Ana Maria Del Bianco Crianças com transtorno de déficit de atenção / hiperatividade: um estudo dos aspectos psicodinâmicos a partir do teste de percepção infantil - CAT Análise Patológica Psicologia / Edyleine Bellini PeroniBenczik Desenvolvimento psicológico e transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH): a construção do pensamento operatório Análise Patológica Psicologia / Camila Tarif Ferreira Folquitto Desenvolvimento psicológico e estratégias de intervenção em crianças com Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) Análise Patológica Psicologia / Camila Tarif Ferreira Folquitto Escolarização em diagnóstico: crianças em concreto Análise Histórico-Cultural Psicologia / Ana MaríaTejada Mendoza Fonte: elaboração da autora-pesquisadora Do total desses 15 (quinze) trabalhos, destacamos que 11 (onze) deles realizaram a compreensão do TDAH por meio de uma visão patológica, 01 (um) dos trabalhos foi feito por uma perspectiva social, 01 (um) realizou análise de Discurso e 01 (um) desenvolveu estudo a partir da Teoria Histórico-Cultural. Um destaque importante sobre o levantamento de teses e dissertações é o da existência da hegemonia das classificações médicas dentre as produções acadêmicas. Vale ressaltar também que a área da Psicologia apresenta maior número de estudos sobre o TDAH nessa perspectiva. Assim, inferimos que esse resultado é preocupante por revelar um cenário de pesquisadores da educação que, talvez, não tenham interesse por esse fato, mas que, contraditoriamente, o TDAH é um dos fenômenos mais presentes nas preocupações de professores, gestores escolares, pais ou responsáveis ao relatarem suas queixas a respeito das 26 crianças e dos adolescentes em espaços educativos. Ainda, é provável que não reconheçam a temática como sendo de especificidade de sua área de atuação, qual seja: a educação escolar. Além disso, mostra que apesar de existirem pesquisadores da área da Psicologia que compreendam o TDAH como fenômeno histórico-social, ainda existem números maiores que defendem uma concepção psicopatológica, visto que é socialmente compreendida como conhecimento de seu campo de atuação. Vale ressaltar que nossas buscas em bancos de dados de Programas de Pós-graduação em Educação e em Psicologia foram delimitadas em uma Universidade particular (PUC – São Paulo e Campinas) e em Programas de quatro Universidades Públicas de São Paulo (UNESP, UFSCAR, UNICAMP, USP), portanto, não poderíamos, diante desses dados, inferir que a situação permaneça da mesma forma em âmbito nacional. Destacamos, com isso, que a realidade das produções de 2005 a 2015 sobre o TDAH nessa pesquisa ficou limitada ao Estado de São de Paulo (em um total de cinco Universidades). Outro destaque de nossa primeira etapa de buscas por produções em Programas de Pós-graduação é o trabalho acadêmico que foi realizado com fundamentação na Teoria histórico-cultural. Esse trabalho foi desenvolvido no curso de Mestrado do Programa de Pós- graduação em Psicologia (USP-SP), defendido em 2014, cuja metodologia de pesquisa foi o estudo de caso. Com o objetivo de ampliar a pesquisa em bancos de dados de Universidades do Estado de São Paulo e buscando diminuir o risco de erros, preocupamo-nos em realizar uma segunda etapa de levantamento de produções acadêmicas. Assim, rastreamos teses e dissertação do período de 2005 a 2015, nas bases Capes e Parthenon, a partir das seguintes palavras-chave: Dificuldade de Aprendizagem, TDAH, Transtorno de Aprendizagem e Medicalização. Para que não houvesse o erro de mapearmos duas produções iguais, considerando as levantadas na primeira fase de busca, realizamos uma tabela de títulos que foram revisados cautelosamente a fim de eliminar esta situação de duplicidade. Assim, de toda a produção encontrada em ambas as etapas, descartamos uma delas quando se tratava do mesmo trabalho e registramos a pesquisa na fase de busca que o encontramos. Ressaltamos que o total de trabalhos encontrados a partir da palavra-chave “TDAH” nas duas bases de buscas (Capes e Parthenon) foram 32 (trinta e dois), sendo que apenas 01 (um) deles indicou como fundamento a Teoria Histórico-Cultural. Trata-se de uma 27 dissertação defendida na UNICAMP, no Programa de Pós-graduação em “Saúde da Criança e do Adolescente” (2010). Tendo como palavra-chave “Medicalização”, encontramos 11 (onze) trabalhos voltados aos estudos da área social e médica. Na busca pelo termo “Dificuldade de Aprendizagem”, levantamos um total de 30 (trinta) investigações e nenhuma delas tinha como aporte a Teoria Histórico-Cultural. Com a última palavra-chave do levantamento, “Transtorno de Aprendizagem”, foi possível identificar 32 (trinta e duas) produções, sendo dois trabalhos sobre o TDAH a partir da Teoria Histórico-Cultural. Um desses defendido na Universidade de Brasília no Programa de Pós-graduação em Educação (2011) e outro na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, também em Programa de Pós-graduação em Educação (2007), sendo os dois trabalhos de mestrado. Ao juntarmos todos os resultados obtidos de cada palavra-chave, obtivemos, então, o total de 102 (cento e dois) trabalhos acadêmicos, sendo que mais da metade deles realizavam alguma analogia, direta ou indireta, com a temática do TDAH, e apenas 03 (três) das produções tinham como aporte a Teoria Histórico-Cultural. As informações que obtivemos com pesquisas em bancos de dados de Programas de Pós-graduação em Educação e em Psicologia (de cinco Universidades do Estado de São Paulo) e as buscas nas duas bases (Capes e Parthenon, a partir de palavras-chave), ainda que de maneira sintetizada 4 nesse texto de dissertação de mestrado, visto que não se configura como atividade principal dessa pesquisa, foram muito importantes para compreendermos que o fenômeno do TDAH, dentro do campo de produção de pesquisas acadêmicas, não está distante das compreensões psicopatológicas difundidas de forma geral em nossa sociedade. Muito pelo contrário, o que verificamos foi a reprodução de uma visão psicopatologizante, tão presente na maioria dos discursos sobre o TDAH, na elaboração de pesquisas no campo cientí0fico e o quanto essa temática vem sendo defendida em maior escala na área de psicologia. Desta maneira, esses dados reforçam a necessidade de termos mais pesquisas que analisem o fenômeno do TDAH no campo da Educação, apoiadas por aportes da Psicologia, 4 Realizamos várias tabelas para aglutinar todas as produções levantadas e poder realizar a leitura e análise das mesmas, um processo longo e árduo necessário e formado da maioria dos pesquisadores, que, infelizmente, na escrita final do texto não é registrado, pois se configura como atividade necessária e preparatória da dissertação, muitas vezes não sendo possível o registro do volume de material levantado dada a limitação de páginas do texto final. Registro aqui a necessidade de pesquisarmos em bancos de dados, por ser importante na formação do pesquisador e conferir maior qualidade do trabalho final. 28 mas dentro da perspectiva histórico-cultural e com a compreensão de homem (gênero humano) para além de determinações maturacionais. Assim, entendemos que esta pesquisa, além de defender o TDAH como um fenômeno Histórico Cultural, pode contribuir para a formação de professores e para a atuação de professores em espaços escolares. 1.2. Potencialização da Problemática do TDAH no campo escolar Visando ampliar a nossa compreensão a respeito da temática principal desta pesquisa – o TDAH – com a realidade encontrada em salas de aula, efetivamos buscas em documentos de encaminhamentos de crianças que apresentam queixas escolares com diagnósticos de TDAH e que são atendidas pela equipe multidisciplinar do Centro de Avaliação e Acompanhamento (C.A.A), o qual faz parte da estrutura da Secretaria Municipal de Educação de Presidente Prudente. Essa equipe do C.A.A. conta com a atuação de Psicólogos, Fonoaudiólogos, Assistente Social, Terapeuta Ocupacional e Psicopedagogo. Vale ressaltar que a escolha por levantar dados no C.A.A. foi em função de o Centro ser a única referência de atendimento público de crianças que são encaminhadas por gestores e professores de escolas municipais por queixas escolares ou por serem avaliadas com ‘transtornos’ e/ou ‘distúrbios’. Esclarecemos que assim como no campo acadêmico, a busca por dados no campo escolar objetivou explicitar a temática que nos disponibilizamos entender nesta pesquisa e compreender se há uma visão hegemônica de sua compreensão também na realidade escolar de Presidente Prudente. Desta forma, realizamos um recorte de dados de uma pesquisa maior, desenvolvida pelo grupo GEDHEE, do qual participamos que fez um mapeamento do número de indivíduos com queixas escolares e de indivíduos medicalizados no município de Presidente Prudente, encaminhados à avaliação no Centro de Avaliação e Acompanhamento. Buscando levantar dados sobre as crianças com diagnósticos de TDAH, utilizamos as contribuições de Idades, Diagnósticos e Medicamentos extraídos do material pesquisado pelo GEDHEE. Das crianças encaminhadas entre 2010 e 2015, período de tempo em que efetivamos as buscas nos registros, identificamos que a série com maior número de crianças encaminhadas com dificuldades escolares, consequentemente, com maior fluxo de queixas, concentra-se no ensino fundamental I, no terceiro ano. Em seguida, as séries com crianças encaminhadas por queixas escolares ao Centrinho foram daquelas que frequentavam o segundo e o quarto ano. 29 Em geral, há consonância entre a idade e a série das crianças atendidas, sendo que as mais encaminhadas estão com 08 (oito) anos, seguidas daquelas com 07 (sete) anos e, por fim, daquelas de 09 (nove) anos. Gráfico 1 – Idades das encaminhadas (de 2010 a 2015) Fonte: elaboração da autora-pesquisadora Sobre os dados do gráfico acima, levantamos em diálogos informais com membros da equipe do C.A.A. como avaliarmos a questão da idade e da série com maior número de encaminhamentos. Assim, foi possível perceber que, segundo análises de membros da equipe do C.A.A., há um número maior de crianças encaminhadas do terceiro ano (segunda série) em função de ser o ano após o final do período de alfabetização (sendo que o ciclo I é entendido como sendo a primeira e a segunda série), momento em que as professoras identificam que as crianças não dominam o código escrito e não conseguem realizar leituras com desenvoltura, o que ocasionariam as inúmeras ‘queixas escolares’ por parte de professores e de gestores escolares, seja quanto ao nível de aprendizagem e/ou seja q uanto a comportamentos sociais das crianças em sala de aula. Para os docentes, a criança não conseguiu se alfabetizar — processo que deveria ser acompanhado ao longo do primeiro e do segundo ano escolar com o objetivo de implementar esforços coletivos para a aprendizagem efetiva dos estudantes, pois, sozinha, a criança não se alfabetiza. Ela necessita do acompanhamento de um par mais desenvolvido, no caso, do professor, que organize o ensino para que a criança tenha êxito no processo de aprendizagem. De forma geral, constatamos que no período de 2010 até 2015 foram atendidas 648 crianças, com e/ou sem diagnóstico de TDAH. Vale ressaltar que, por alguns anos, o C.A.A. de Presidente Prudente se constituiu não apenas como instituição de acompanhamento de 30 crianças em idade escolar, mas como um espaço de avaliação, o que nos permite compreender que essas crianças, apesar de não serem encaminhadas com laudos de especialistas, poderiam ser direcionadas com o objetivo de receberem ‘laudos/diagnósticos’ da equipe do Centrinho e, talvez, em função de queixas escolares que atribuíam como sendo do transtorno de TDAH. Das crianças encaminhadas com laudos ao Centrinho, percebemos que o diagnóstico com maior indicação durante o período pesquisado (2010 a 2015) foi o de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade – TDAH. De um total de 192 laudos, 85 referiam-se ao TDAH, ou seja, quase a metade do total. Para chegarmos a esse resultado, tivemos dois procedimentos: um, vimos nos prontuários as crianças que “Não apresentavam diagnóstico, mas eram medicadas” (que era atribuído às crianças que apresentava em seu encaminhamento o uso do medicamento Ritalina®, mas sem laudo e/ou diagnóstico médico); e as crianças que “Não apresentam diagnóstico” (que era atribuída aos encaminhamentos de crianças que os professores e/ou responsáveis relatavam que havia um diagnóstico, porém, não denominavam qual era a ‘doença’ e não havia uso de medicação das crianças). Gráfico 2 – Diagnósticos mais apresentados Fonte: elaboração da autora-pesquisadora Identificar a existência de crianças medicadas sem diagnósticos nos prontuários foi necessário para conhecermos a realidade sobre a quantidade de crianças medicadas com 31 psicotrópicos (enquanto tratamento) sem justificativas para o uso dessa medicação. Assim, pudemos entender que vários motivos, conforme conversamos informalmente com membros da equipe do Centrinho, levavam algumas crianças a não terem nos prontuários os laudos médicos, entretanto, que seria possível que esses laudos existissem, uma vez que para comprar a medicação os responsáveis necessitam de receitas médicas. Reconhecer quais e quantas crianças são medicadas é importante por considerarmos o cenário escolar de psicopatologização do indivíduo e das queixas escolares, que tem como ideia central uma compreensão médica e biológica que, em geral, são na verdade situações de cunho social ou escolar. Contudo, preocupamo-nos com a quantidade de indivíduos em atendimento que não apresentavam, em seus dados, diagnósticos, levando-nos a questionar o que aconteceria e quem se responsabilizaria, caso houvesse problemas referentes aos efeitos colaterais em aula. É importante pontuar tal questão, no sentido de enfatizarmos a relevância em se questionar e em ter acesso a informações que levam a criança a tomar medicamentos ou, até mesmo, que desencadeiem o simples fator de conhecer as determinações de sua condição atual. A coleta de dados dos diagnósticos levou-nos a identificar quais eram os medicamentos utilizados pelas famílias/responsáveis no processo de medicação das crianças (com ou sem laudos/diagnósticos). No documento do encaminhamento das crianças, infelizmente, não há um item específico para verificar se há situações de medicação da criança, portanto, os dados obtidos foram retirados do processo de atendimento da equipe do Centrinho com as crianças e dos momentos de registros de entrevistas com os familiares ao longo dos atendimentos. Assim, compreendemos que o número de crianças medicadas seja ainda maior do que os registrados. Visando levantar os medicamentos utilizados pelos familiares e/ou responsáveis junto às crianças, elaboramos um quadro (3), elencando esses medicamentos conforme relatado pela equipe do Centrinho, e identificamos esses medicamentos. 32 Gráfico 3 – Consumo de medicamentos crianças atendidas no C.A.A. Fonte: elaboração da autora-pesquisadora Os três medicamentos mais consumidos, portanto, foram: em primeiro lugar, com 108 indicações, a Ritalina® (quimicamente é o Metilfenidato, estimulante cerebral indicado para o tratamento de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade/TDAH); em segundo lugar, com 40 indicações, a Risperidona (um antipsicótico indicado para indivíduos adultos com transtornos mentais, demência; não é indicado para menores de 15 anos); em terceiro lugar, com 22 indicações, o Carbamazepina (medicamento anticonvulsivante, indicado para epiléticos). Os dados indicativos de uso de cada medicamento são disponibilizados pela ANVISA em bula, fator que nos faz refletir a respeito do “consenso de especialistas” que indicam o uso de Risperidona a crianças menores de 15 anos. Para tratamento exclusivo ou multimodal do TDAH, a ANVISA não está entre eles, visto que a agência fornece explicitações de sua faixa etária como indicativa de prevenção contra efeitos colaterais. Desta maneira, é preocupante a forma como especialistas, profissionais e sociedade, banalizam o uso de psicotrópicos por parte de crianças ainda em desenvolvimento, enquanto que, na contramão, vemos o ganho da indústria farmacêutica e também de profissionais da área da saúde nesse processo de negligência e de contradição de conhecimentos. Esses dados não são exclusivos e representativos apenas das crianças atendidas no C.A.A. de Presidente Prudente, pois eles são concomitantes com as informações de pesquisas realizadas, por exemplo, por Colaço (2016) e Lucena (2016) ao perceberem o retrato de medicalização no Estado do Paraná. Ambas as pesquisas apontam que o diagnóstico mais realizado, tanto na educação infantil como no ensino fundamental, é o de TDAH. Além disso, os medicamentos mais indicados para tratamento são: Ritalina® e Risperidona. Nossos dados, desse modo, não fogem da realidade na qual convivem nossas 33 crianças no cenário da medicalização escolar, nem, tampouco do hegemônico diagnóstico estabelecido nas escolas, infelizmente, de outros Estados do nosso país. A quantidade de crianças diagnosticadas com TDAH e muitas delas medicadas sem haver uma prescrição via estudos/análises de equipes multidisciplinares (sem laudos), em conjunto com a diversidade de remédios para cada tipo de comportamento (tido como sendo “anormal”) e a facilidade em que esses índices se proliferam em nossa sociedade, é alarmante. Concordamos com Moysés e Collares ao afirmarem que enfrentamos a era dos transtornos: [...] toda criança ou adolescente que apresente modos de aprender, de agir e reagir, de se comportar e de não se comportar, que escapem de padrões mais ou menos rígidos a depender do observador/avaliador, corre o risco de ser rotulado como portador de um transtorno neuropsiquiátrico que demanda longos e caros tratamentos, envolvendo vários profissionais e drogas psicoativas. (2013, p.44) Não desconsideramos que existam pessoas que necessitem de avaliações da área da medicina e demais áreas/especialidades e que desses estudos seja indicado, talvez, o uso de medicamentos, no entanto, não são a respeito desses indivíduos que falamos. O nível de consumo de medicamentos baseia-se no que os números têm demonstrado, o que chamamos a atenção é sobre ‘os métodos’ utilizados para se chegar ao ‘diagnóstico’ e à indicação da medicação, os quais, no nosso entender, são muito discutíveis, isto, tomando como exemplo a quantidade de crianças que recebem queixas sobre seus comportamentos e queixas de não desenvolverem aprendizagens escolares, sendo que em geral são encaminhadas à avaliação médica, em uma consulta na qual o profissional realiza perguntas sobre a ‘rotina’ da criança no ambiente familiar e escolar. Não há, por parte da maioria dos indivíduos que cuida das crianças dentro do espaço familiar e escolar, a inquietação e/ou questionamento quanto aos diagnósticos médicos e, mais ainda, quanto aos efeitos dos medicamentos no organismo humano. Esses sujeitos não se inquietam diante das reais dificuldades enfrentadas pelas crianças e aceitam passivamente o processo imposto de patologização por ser uma criança “diferente” das outras. Buscamos neste capítulo apresentar dados para refletirmos sobre a era dos ‘transtornos’ que a maioria das crianças em idade escolar está sendo rotulada, uma vez que o “não aprender” da criança está alicerçado em avaliações psicopatologizantes e clínicas. 34 Além disso, objetivamos apresentar a concepção hegemônica acerca do TDAH, tanto no âmbito acadêmico quanto no escolar, a qual, infelizmente, é de determinações e compreensões psicopatológicas elaboradas em nossa sociedade por médicos, psicólogos, neurologistas e outros especialistas da área da saúde, o que reafirma o campo de educação escolar sendo invadido por laudos / conceitos médicos que ignoram a especificidade dos processos de ensino e aprendizagem e, mais ainda, não consideram as condições de ordem histórica e cultural no desenvolvimento de nossas crianças. Concluímos, assim, buscando elencar e explicitar no Capítulo I o surgimento do fenômeno TDAH e como suas características são compreendidas no sistema escolar e acadêmico, da mesma forma com que com suas influências atuam na realidade da criança diagnosticada. Porém, na tentativa de problematizar seus ditos determinantes biológicos dentro dos aspectos psicológicos e pedagógicos, discutiremos nos Capítulos 2 e 3, conhecimentos teóricos que fazem reflexões histórico-criticas acerca do TDAH na Atividade de Ensino e Estudo. 35 CAPÍTULO II ATIVIDADE DE ENSINO: COMPREENDER O DESENVOLVIMENTO HUMANO A PARTIR DA TEORIA HISTÓRICO-CULTURAL Após compreender a concepção biológica do fenômeno TDAH e suas concepções de conceito psicopatológico na área científica e escolar, propomos neste capítulo refletir sobre a ‘Atividade de Estudo’ por reconhecê-la enquanto uma atividade promotora de aprendizagem e desenvolvimento, além de uma condição para o enfrentamento de situações de crianças diagnosticadas com o TDAH. Considerando que as características apontadas do TDAH estão fortemente marcadas no âmbito escolar, preocupamo-nos em não desvincular do comportamento humano desses indivíduos as interferências educacionais em sua constituição histórica. Como identificamos anteriormente, no âmbito social, científico e escolar estão presentes a concepção que atribui ao próprio indivíduo a causalidade de suas dificuldades no processo de aprendizagem escolar. Em contraposição dessa defesa psicopatológica, disponibilizamo-nos em identificar no ensino, mais especificamente na ‘atividade do estudo’, a suposta causalidade da epidemia de diagnósticos de TDAH, avançando em justificativas para as características determinantes de seu conceito puramente biológico. Tomando por objetivo desenvolver reflexões que possam nos auxiliar sobre os motivos de a criança ‘diagnosticada’ com TDAH não prestar atenção na atividade de estudo, que é uma queixa indicada pela maioria dos professores, questionamo-nos se não deveríamos pesquisar as situações engendradas dentro de nossas escolas e salas de aulas e se dentro desses espaços é que encontraremos de fato a problemática do fenômeno TDAH. Para tanto: não estaria nos espaços escolares a causa geradora dos supostos transtornos? Assim, buscamos neste segundo capítulo desenvolver reflexões teóricas sobre a ‘atividade de estudo’ com destaque à ‘atividade de ensino’, isso porque, apesar de analisadas em pesquisa de maneira separada, essas atividades não podem ser fragmentadas uma da outra, pois as consideramos como categorias fundantes e interligadas na formação integral do ser humano. Martins (2013) explicita, devido aos múltiplos entendimentos direcionados à educação escolar, que é importante estabelecermos qual compreensão iremos discutir a temática de ensino e estudo, visto que estamos diante de um cenário educacional que tem variadas interpretações advindas de concepções pedagógicas divergentes. Por conta disso, 36 explicitamos que nesta pesquisa adotamos como referencial teórico de nossas discussões as contribuições da Pedagogia Histórico-Crítica, uma vez estão fundamentadas nos pressupostos do materialismo histórico-dialético, visando explorar a intrínseca relação entre a Pedagogia Histórico-Crítica e Psicologia Histórico-Cultural. Com a intencionalidade de refletirmos sobre a natureza/função da educação escolar e a atividade de ensino, nos colocamos a refletir sobre a concepção de homem (destinatário) que o ensino almeja desenvolver/formar, nesse sentido, consideramos que discutir o ato pedagógico é primordial na constituição humana e na formação do psiquismo. Por fim, as discussões elaboradas nos subitens de concepção histórico-social de homem, funções psicológicas superiores e periodização são importantes para compreendermos o conceito de destinatário ao qual nossa defesa de atividade de ensino se direciona. Da mesma forma, essas concepções nos auxiliam na compreensão de mudanças, crises e transformações comportamentais das crianças durante o período de seu desenvolvimento, não nos permitindo realizar uma compreensão espontânea sobre suas ações. 2.1. Concepção histórico-social de homem Ao refletirmos sobre o ato pedagógico de ensinar, entendemos como fundamental a compreensão e a visualização da concepção de homem que nos guia e que pretendemos alcançar ao fim de nosso trabalho educativo. Consideramos que se ensinamos, ensinamos alguém e que este, sendo o produto final de nossas ações, precisa necessariamente ser pensado dentro da atividade pedagógica do professor, para que ações, conteúdos e procedimentos sejam direcionados a esee ideal de indivíduo. Da mesma maneira, que esesas práticas não se tornem atos “soltos” e desconexos de seu objetivo de ensinar e de seus propósitos de desenvolver as futuras gerações. Saviani (2003, p.13) afirma que o trabalho educativo é “[...] o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade produzida historicamente pelo conjunto dos homens”. Em defesa dessa concepção, Saviani parte do entendimento histórico-social de homem, ou seja, do entendimento de uma natureza de formação baseada no processo de apropriação e objetivação da cultura humana, constituída no resultado da atividade histórica de transformação da realidade. Essa concepção é contrária àquelas que 37 identificam no próprio aparato orgânico a formação do homem por si só, que nos remetem a idealizações de especificidades tipicamente humanas garantidas pela carga genética. Leontiev (2004) afirma que não nascemos formados no gênero humano, pois nossas aptidões, categorias e especificidades que nos tornam homens devem ser aprendidas. É por meio da apropriação do que foi alcançado historicamente pelo coletivo de homens que garantimos nossa existência. Desse modo, nosso repertório especificamente humano não é transmitido geneticamente, pois, como indivíduos criativos, elaboramos condições de transmitir a cada nova geração a nossa genericidade acumulada pelos séculos, portanto, nos formamos socialmente. Quando citamos a compreensão de um trabalho educativo tendo como base o homem em sua natureza histórico-social, referimo-nos ao indivíduo que é identificado como produto do desenvolvimento histórico e cultural, que carrega em sua constituição elaborações coletivas advindas de gerações anteriores, transmitidas a partir da atividade humana. Dessa forma, para que o indivíduo se aproprie de suas especificidades enquanto gênero, é necessário que ele seja inserido na história, que aprenda e interiorize as objetivações engendradas no produto ou no conhecimento elaborado historicamente pela humanidade, levando-o a se objetivar em novas criações, em sua exteriorização do que foi aprendido (DUARTE, 1999). Em síntese, sobre o processo de desenvolvimento humano, destacamos que: O homem, ao produzir os meios para a satisfação de suas necessidades básicas de existência, ao produzir uma realidade humanizada pela sua atividade, humaniza a si próprio, na medida em que a transformação objetiva requer dele uma transformação subjetiva. Cria, portanto, uma realidade humanizada tanto objetiva quanto subjetivamente. Ao se apropriar da natureza, transformando-a para satisfazer suas necessidades, objetiva-se nessa transformação. Por sua vez, essa atividade objetivada passa a ser ela também objeto de apropriação pelo homem, isto é, ele deve se apropria daquilo que de humano ele criou. Tal apropriação gera nele necessidades humanas de novo tipo, que exigem nova atividade, num processo sem fim, “um ato de nascimento que se supera”. (DUARTE, 1999, p.31, grifos do autor) Entretanto, é importante destacar que tais objetivações estão postas em nossa sociedade por vias da atividade humana histórica, são, portanto, sua síntese. Assim, ao ser inserido nessa estrutura de apropriação e objetivação, o indivíduo também está em atividade humana, mesmo que de maneira inconsciente. Duarte (1999), apoiado nos pressupostos de 38 Marx, afirma que a atividade humana é além de ser aquela que assegura a existência, garantindo uma relação entre o homem e a natureza. Essa atividade é, também, a que transmite sua genericidade, é a história a ser apropriada e a que cria o sujeito para gerações posteriores. Leontiev (2004) salienta que a garantia da relação entre indivíduo e natureza não somente propiciou em desenvolvimento humano à satisfação de suas necessidades e à criação de novas objetivações, como promoveu transformações psíquicas no homem. Para modificar a objetividade, o real, o homem precisou alterar sua subjetividade, ou seja, ao mesmo tempo em que alterava a natureza para atender a seus propósitos, o homem se modificava em suas funções psíquicas, promovendo a consciência humana, denominada de reflexo psíquico da realidade: “Destarte, afirmar unidade entre atividade e consciência implica conceber o psiquismo como uma formação na qual a atividade condiciona a consciência – e esta, por seu turno, a regula” (MARTINS, 2013b, p.131). Isso nos permite compreender que, para que a consciência se desenvolva, a atividade se faz fundamental não só como princípio base, mas como função reguladora do desenvolvimento. Portanto, estar em atividade é um processo que se vive em construção, que nos conduz gradativamente a um maior nível de aprendizagem e de desenvolvimento da consciência, a partir de nossas apropriações. Apesar de ser na atividade que ocorre a formação da consciência humana, é, porém, fundamental salientar que a criança não se insere por si mesma nesse processo, uma vez que é decisiva em sua formação as relações e as condições que lhes são oportunizadas: [...] Essa relação se efetiva sempre no interior de relações concretas com outros indivíduos, que atuam como mediadores entre ele e o mundo humano, o mundo da atividade humana objetivada. A formação do indivíduo é, portanto, sempre um processo educativo, mesmo quando essa educação se realiza de forma espontânea, isto é, quando não há uma relação consciente (tanto de parte de quem se educa, quanto de parte de quem age como mediador) com o processo educativo que está se efetivando no interior de uma determinada prática social. (DUARTE, 1999, p.48) A presença do outro exerce função primordial na constituição do reflexo psíquico da realidade, pois ele atua como mediador das apropriações e das objetivações proporcionadas ao indivíduo que está sendo ensinado. Assim, enquanto a educação exerce a funcionalidade de socializar e oportunizar os conhecimentos científicos sistematizados e de enriquecimento 39 significativo para a estruturação da consciência humana, o ensino/conhecimento exerce o papel de mediar e produzir em seu aluno o desenvolvimento das funcionalidades constituintes desse reflexo psíquico (MARTINS, 2013). Por conta disso, consideramos que o desenvolvimento da criança, no que tange à estruturação da consciência com aporte na atividade, necessita do outro (ser humano mais desenvolvido) enquanto condição de ensino para se apropriar de conhecimentos objetivos (sistematizados) e desenvolver-se qualitativamente, o que torna indispensável, então, a ação do professor no processo/movimento dialético (de apropriação e objetivação) de constituição humana. Compreendemos que reconhecer essa lógica de composição do ser humano, além de se objetivar nessa prática educacional, não nos distancia das problemáticas de aprendizagem e de comportamento encontradas nos espaços escolares. É importante que o professor identifique-se como promotor de aprendizagem e de desenvolvimento e não como simples auxiliar no processo ‘espontâneo’ das funções humanas. Ainda em discussões baseadas na atividade e em seus componentes de formação, Duarte (1999) afirma que a atividade humana em sua originalidade tem como base o coletivo, ou seja, o trabalho grupal engendrado no cerne das relações sociais, reafirmando a importância do outro dentro de qualquer atividade. Porém, outra especificidade se instala quando dialogamos sobre a coletividade, que seria a necessidade de comunicação, fundamental para a elaboração de meios (linguagens) de expressão, o que denota não somente a mediação das relações sociais existentes, como também de processos simbólicos, signos e instrumentos, elaborados para a comunicação entre os homens e para a transformação da natureza. Vygotski (1997), em estudos sobre o comportamento humano e sobre as funções psicológicas superiores, enfatiza a importância dos signos como instrumento psicológico mediador do homem. Enquanto os instrumentos de transformação da natureza, por exemplo, um machado, carregam funções e objetivações históricas, por servir de elemento mediador externo e transformador de objetos, o signo, por usa vez, exerce funcionalidade inversa, apesar de não se diferenciar como elo mediador homem-natureza, diferencia-se ao promover modificações no próprio sujeito, ou seja, alterações internas. Com a origem do ato mediado pelos signos, decorre que “[...] no indivíduo surgem representações mentais que substituem os objetos do mundo real. Os signos internalizados são, como as marcas exteriores, elementos que representam objetos, eventos, situações” (OLIVEIRA, 2010, p.38). 40 Desta forma, o homem consegue realizar representações mentais sem que para isso precise do ato concreto com os objetos externos, havendo, assim, uma interposição de elemento (signo) entre o sujeito e o estímulo do meio, acarretando mudanças psíquicas e comportamentais. O signo mediado estabelece relação entre homem-natureza e as funcionalidades psíquicas humanas espontâneas (atenção, percepção, memória, entre outras) foram transformadas em estruturas volitivas. Essa nova estruturação psíquica humana, gerada pela mediação simbólica, liberta o indivíduo de ações e operações imediatistas de caráter biológico, levando-o ao controle de seu comportamento (VYGOTSKI, 1997). Assim, afirmamos que nosso controle comportamental, nossa atenção direcionada e nossa consciência não são habilidades inatas e desenvolvidas simplesmente por vias de experiências cotidianas e assimilações espontâneas. São compreensões iguais a essas que esperam do aluno (ainda em ensino escolar básico) o controle integral de seus atos frente às atividades pedagógicas e até mesmo frente ao surgimento do interesse em aprender. Ferracioli e Tuleski (2013) apontam que não podemos deixar de considerar que o controle sobre suas funções, como a atenção em da sala de aula, é uma especificidade de categoria apreendida em segundo nível, de ordem consciente, que é diferente da atenção espontânea que a criança transmite em ações cotidianas. Tendo a educação o papel de transmitir conteúdos escolares que promovam a formação do psiquismo humano, sua consciência, questionamo-nos: como seria possível cobrar, dentro da escola, no ensino básico, a conduta de segunda ordem que ela deveria estar promovendo? Em resposta, consideramos que estamos diante de compreensões exclusivamente orgânicas de indivíduo e que a formação do psiquismo humano dentro da atividade de ensino, portanto em processos pedagógicos, são desconhecidas. É importante salientar que apesar de apontarmos limitações no trabalho pedagógico, não temos a intenção de culpabilizar o professor. Ao apontarmos tais processos, temos a intencionalidade de refletir a respeito da atividade de ensino e das correntes pedagógicas presentes nas práticas escolares. Diante da luta contra a patologização de indivíduos e da medicalização da vida humana, consideramos o professor o sujeito fundamental nesse processo. É necessário entender suas condições de trabalho e suas limitações dentro de um sistema educacional que impõe e influencia diretamente suas ações. Nossas críticas não são sobre a classe trabalhadora, uma profissão, mas ao sistema político-educacional que delimita e reproduz um sistema de opressão e controle sobre os indivíduos que permanecem 41 subjugados ao poder. Assim, é preciso que nos reconheçamos como sujeitos ativos na aprendizagem e no desenvolvimento histórico-social dos alunos, estando inseridos em um coletivo que busque a superação do sistema dominante, pois: O desenvolvimento parcial, fragmentado ou insuficiente de quaisquer funções psicológicas não é fruto de transtornos neurobiológicos, mas expressão da alienação desumanizadora das relações de exploração de classe e da apropriação privada do patrimônio humano-genérico. Se tais dificuldades são sociais, originadas nas condições de (re)produção da vida social no nosso momento histórico, isso significa dizer que podem ser transformadas. (FERRACIOLI; TULESKI, 2013, p. 65) 2.2. Funções Psicológicas Superiores e sua interfuncionalidade Refletindo sobre a formação do indivíduo, compreendemos a estrutura e a formação das funções psicológicas superiores no processo de desenvolvimento humano, analisando historicamente sua filogênese, o que nos possibilita compreender o homem atual e as práticas de ensino na educação escolar. As discussões para este subitem estão exatamente voltadas ao objetivo de aproximar ainda mais o trabalho educativo do professor às transformações psicológicas de seu aluno, assim como do processo de desmistificação de concepções que subentendem o desenvolvimento psíquico da criança dissociado do trabalho educacional. Como já abordamos, foi através da atividade, mais especificamente do trabalho, que o homem desenvolveu suas capacidades psíquicas, ou seja, a partir delas, o homem não somente realiza ações concretas como também produz transformações na materialidade do real, modificando sua subjetividade a partir das mudanças que ocorrem em seu psiquismo. Assim, nessa lógica de movimento homem/natureza é que tivemos a origem das estruturas psíquicas e comportamentais superiores às do animal, não mais submetidas a relações imediatas, mas de ordem consciente de suas vontades. O psiquismo humano ultrapassou os limites do biológico, dos reflexos e das reações estereotipadas, deixando para trás funções/comportamentos elementares, em função de elementos de mediação (signos e instrumentos). Vygotski (2007), em estudos sobre a identidade dos elementos de mediação, afirma que apesar de signos e instrumentos estarem em uma mesma categoria de mediação, na atividade psicológica, os mesmos se distinguem quanto ao controle do comportamento. Isso 42 porque os signos atuam orientando o homem internamente, instrumentos que seguem a mesma função e influem no comportamento de reflexo externo do homem. Porém, ainda há um terceiro ponto que os coloca em elo, é o ligamento que passa a existir entre o controle da natureza e o controle do comportamento porque, ao transformar o meio externo, transformações internas são também movidas: O uso de meios artificiais – a transição para a atividade mediada – muda, fundamentalmente, todas as operações psicológicas, assim como o uso de instrumentos amplia a forma ilimitada a gama de atividades em cujo interior as novas funções psicológicas podem operar. Nesse contexto, podemos usar o termo função psicológica superior ou comportamento superior com referência à combinação entre o instrumento e o signo na atividade psicológica. (VYGOTSKI, 2007, p.56) Dessa forma, a atividade do homem ligada ao uso de instrumentos e signos, projeta internalizações, reconstruções internas de ações objetivas, possibilitando ao homem mudanças estruturais, que partem de funções elementares básicas para o desenvolvimento de funções psíquicas superiores. Vigostki (2000), em estudos sobre a estrutura das funções psíquicas, definiu como elementares as primeiras estruturas tidas pelo homem, de formação estritamente biológica e de caráter imediato, como, por exemplo, o reflexo. Tal estrutura elementar não passa pela ordem cultural, pois não utilizamos processos de internalizações simbólicas para adquiri-las. Elas simplesmente estão ali, dadas ao homem, porém, concedem-nos base para nossas formações funcionais e comportamentais superiores, as quais só conseguimos atingir quando entramos em contato com apropriações culturais humanas. Dessa maneira, funções psicológicas denominadas superiores permitem-nos avançar frente às estruturas elementares, uma vez que são produtos da apropriação histórica do homem e possibilitadas no ensino por meio de sua transmissão de conteúdos. São, assim, especificidades conquistadas pelo homem por sua transformação social que lhe possibilita o controle voluntário de suas ações. Entretanto, é importante salientar que não estamos nos referindo a qualquer conteúdo escolar como forma primordial de apropriação do homem para a transformação de suas funções psíquicas. Nossa defesa está nos conceitos de ensino elaborados por Saviani (2003): [...] trata-se de distinguir entre o essencial e o acidental, o principal e o secundário, o fundamental e o acessório. Aqui me parece de grande importância, em pedagogia, a noção de “clássico”. O clássico não se 43 confunde com o tradicional e também não se opõe, necessariamente, ao moderno e muito menos ao atual. O clássico é aquilo que se firmou como fundamental, como essencial. Pode, pois, constituir-se num critério útil para a seleção dos conteúdos do trabalho pedagógico. (SAVIANI, 2003, p.13) Compreendemos, portanto, que o clássico são os conceitos científicos de acúmulo histórico, que perpassa por gerações e ainda se constitui como conhecimento fundamental para a formação do homem. Conhecimentos produzidos e que carregam em si demandas das necessidades evolutivas da humanidade transportam a objetividade necessária para a base motora do ciclo de apropriação e objetivação do homem. Dessa forma, a qualidade do que é transmitido ao aluno também interfere na formação do sujeito, o que denota mais uma vez a incidência do ensino na psique human-a e nos coloca em ponderação sobre aquilo que é transmitido em nossas escolas. Os conteúdos clássicos cabem, portanto, nas compreensões de apropriação dos resultados das atividades humanas e no processo de ensino em conjunto com a concepção de reprodução da humanidade engendrada nesses conhecimentos. Isto, falando de um sentido dialético de reprodução, que não carrega em seus preceitos o favorecimento de ensino conteudista voltado ao mercado de trabalho, nem tampouco se pauta em técnicas de como educar um sujeito, mas sim se preocupa em reproduzir o princípio da contradição em preservar o que existe e, ao mesmo tempo, transformá-la em algo diferente. Possibilitar por vias da reprodução de conteúdos apropriações significativas: “[...] traz novamente à vida a atividade humana acumulada na cultura” (DUARTE, 2016, p.54). Vigotsky e Luria (1996) afirmam que o processo cultural de formação das funções e dos comportamentos superiores pode ser visto em prática durante o desenvolvimento da criança em dois estágios. Em um primeiro momento, a criança percebe o mundo dos objetos de maneira estranha, diferente a ela, não reconhecendo esses instrumentos como parte integrante de seu mundo. Gradativamente, a criança vai se aproximando desse novo campo objetal, chegando a adquirir controle sobre eles e utilizá-los como instrumentos de uma atividade. Para os autores, a criança neste estágio começa a utilizar os instrumentos como forma de apoio a alguma necessidade ou a algum movimento natural, porém ao passo de seu uso, ela também forma recursos novos de comportamento que possibilitam utilizá-los e agir com auxilio deles. 44 O segundo estágio é definido pela origem de operações mediadas na atividade e no comportamento da criança. Faz uso de signos como ferramentas de estímulo. Além disso, a criança reconstrói comportamentos e funções elementares básicas ligadas a reflexos condicionados, desenvolvendo novas funcionalidades, aptidões, sendo essas, especificidades tipicamente humanas, construídas pelo coletivo histórico de homens. Esperamos ter explicitado nossa compreensão sobre a importância dos processos de apropriação do conhecimento cultural criado pelo homem. Essa estrutura é crucial para o desenvolvimento de capacidades tipicamente humanas, assim como para a regulação de nosso comportamento. Compreendemos que esse conhecimento nos convence “ [...] de que é absolutamente impossível reduzir o desenvolvimento da criança ao mero crescimento e maturação de qualidades inatas” (VYGOTSKY; LURIA, 1996, p.214). Portanto, entendemos que se uma criança enfrenta, durante seu desenvolvimento, problemáticas relacionadas a dificuldades comportamentais e até mesmo funcionais, em um primeiro momento devemos compreendê-la como ser social, síntese de suas determinações para, assim, analisar seus processos históricos de mediação e apropriação, antes mesmo de classificá-la a condições psicopatológicas. Não podemos deixar de considerar que, como indivíduos que precisam se apropriar de sua genericidade, e que, por isso, precisam de uma educação de qualidade, corremos o risco de não estarmos fornecendo a esses indivíduos condições humanas de formação. Quando dizemos nós, não estamos nos referindo a professores ou a atuantes em áreas da educação, mas sim à sociedade como um todo, pois não limitamos nossos estudos na intencionalidade de julgar profissionais e sim temos o objetivo de transformar posicionamentos e, acima de tudo, auxiliar as nossas crianças. Este trabalho não é uma crítica direta ao trabalho pedagógico e sim uma reflexão sobre ele e ao constante avanço da medicalização na vida de indivíduos ainda dentro da escola. Acreditamos que somente uma concepção histórico-social de homem pode nos fazer refletir sobre as aparentes queixas e sobre os ditos sintomas que a criança transparece em suas ações e em seus comportamentos. Compreender o psiquismo humano como produto de conquistas históricas e compreender como essas aquisições interferem no comportamento humano nos ajudam a entender que comportamentos e funcionalidades prejudicadas, como falta de atenção e memória, podem estar vinculados às dificuldades produzidas no ciclo de apropriação e objetivação da criança. 45 No conceito de TDAH, como identificamos no primeiro capítulo, é presente a dicotomia entre as características de desatenção e de comportamentos com as funcionalidades psíquicas da criança, até mesmo o direcionamento da causa a parâmetros apenas fisiológicos. Nesse sentido, consideramos importante os pressupostos da Teoria Histórico-Cultural sobre os estudos das interfuncionalidades psíquicas e como a análise de função (no caso do TDAH, a atenção) atribuída a um local e como a unidade dissociada do todo se tornam frágeis perto das explicações dessa teoria. Para refletirmos sobre os aspectos cognitivos considerando-os processos funcionais e não limitados a localizações cere