UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS PROGRAMA DE POS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS O MOVIMENTO ESTUDANTIL NA “DEMOCRATIZAÇÃO”: CRISE DA ERA COLLOR E NEOLIBERALISMO JORDANA DE SOUZA SANTOS MARILIA – SP, 2018 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS PROGRAMA DE POS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS O MOVIMENTO ESTUDANTIL NA “DEMOCRATIZAÇÃO”: CRISE DA ERA COLLOR E NEOLIBERALISMO JORDANA DE SOUZA SANTOS Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista, campus Marília, para obtenção do título de Doutor(a) em Ciências Sociais. Orientadora: Profª Angélica Lovatto Marília-SP, 2018 Elaborada por Marcos Paulo de Passos - CRB-8/8046 (Dados Internacionais de Catalogação na Publicação – CIP) Catalogação na fonte Santos, Jordana de Souza S237m O movimento estudantil na democratização: crise da Era Collor e neoliberalismo / Jordana Santos de Souza. -- Marília, SP: [s.n.], 2018. 224 f.; 30 cm. Orientador: Prof. Dra. Angélica Lovatto. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista, 2018. 1. Movimento Estudantil. 2. Fora Collor. 3. UNE. 4. UBES I. Lovatto, Angélica (orient.). I. Título. CDD. 371.81 FOLHA DE APROVAÇÃO JORDANADE SOUZA SANTOS O Movimento Estudantil na “democratização”: crise da era Collor e neoliberalismo Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Banca Examinadora Titulares: __________________________________ Prof. Angélica Lovatto (Unesp/Marília) – Presidente __________________________________ Prof. Anderson Deo (Unesp/Marília) __________________________________ Prof. Dr. Marcos Del Roio (Unesp/Marília __________________________________ Prof. Lalo Watanabe Minto. (Unicamp) __________________________________ Prof. Pedro Jorge de Freitas (UEM) Suplentes: ___________________________________ Prof. Ademir Quintilho Lazarini (UEM) ___________________________________ Prof. Jefferson Barbosa (Unesp/Marília) ___________________________________ Prof. Leandro Galastri (Unesp/Marília) À minha família Agradecimentos Há muitas pessoas e momentos a agradecer. Começando por estes últimos, tive momentos de angústia, de solidão, de farra, de recolhimento, de realização, de explosão, enfim, a vida foi bastante emocionante e agitada nesses 4 anos e meio. A dedicação à tese não foi integral. Escolhi viver a vida em sua plenitude, trabalhando, estudando, namorando, casando, chorando, viajando. E muitas vezes deixei a tese de lado. Mas no último instante, quando achava que não tinha mais fôlego para continuar, me surpreendi tirando forças de onde eu nem imaginava que tinha. E eis que depois da tese nascida, descubro que ela sempre esteve dentro de mim e que as ideias que pareciam tão impossíveis de sintetizar na forma de texto, simplesmente fluíram. A tese também era sobre mim mesma e faz todo sentido uma frase que me disseram certa vez: uma tese de Doutorado deve modificar a nós mesmos. Quanto aos agradecimentos às pessoas, espero não esquecer de ninguém. Mas se por ventura acontecer, me desculpo antecipadamente e, se serve de consolo, saiba que o problema não é pessoal, mas é todo meu: eu sempre esqueço de uma porção de coisas... Agradeço aos professores da banca pela dedicação à leitura do texto e por aceitarem o convite. À minha orientadora Angélica Lovatto por ter estado comigo nesta caminhada, pelo esforço contínuo na orientação, muitas vezes à distância e pela paciência com meus momentos de indecisão e procrastinação (risos). Ao professor Marcos Del Roio pelo apoio constante e permanente, pelos cafés na Padaria Buongiorno, será sempre uma grande referência para mim enquanto pesquisadora. Ao professor Jefferson Barbosa pelos livros emprestados e ideias compartilhadas; aos professores Anderson Deo e Jair Pinheiro pelo aprendizado em conversas informais e em eventos; ao professor Valério Arcary pelas preciosas orientações no Exame de Qualificação juntamente com o professor Anderson Deo. Aos funcionários da Biblioteca da FFC e da Seção de Pós-Graduação. Aos entrevistados que se disponibilizaram a participar deste trabalho e que me ajudaram com indicações de contatos e fontes diversas. À equipe da Diretoria de Ensino de Marília, em especial, Valéria, Luci, Onivaldo, Lícia, Cláudia Barbato, Nelson, Adriane, Ivanilde, Cláudia Valença, Roseli Demori, Cido, Nilceia, Bárbara, Mariana, Eliza. Cresci demais pessoal e profissionalmente com vocês. Aos meus alunos e ex-alunos que me incentivam a cada dia. Aos meus melhores amigos que me acompanharam de perto nestes 4 anos e meio: Rafaela, de colega de quarto e de turma à madrinha de casamento; Marcos Sibilino que desde 2003 cumpre suas funções de psicólogo acadêmico, irmão gêmeo e faz comigo um duo inspirador (risos); Joyce Fattori, sempre alegre e divertida; Cristina, pela amizade à distância e pela disposição em ouvir minhas lamentações da tese (risos); Mariana Sabbatini por estar sempre presente e por ser tão acolhedora; Tati Martinelli pela amizade sincera; Paulo Henrique por ser minha referência em Marília; Angélica Paraízo pelos desabafos acadêmicos e ajudas teóricas; Aline Ramos Barbosa por dividir os receios e angústias do Doutorado. Aos amigos de São Manuel: Dani Passos, Lauro, Karina, Amanda, Nino, Juliana Pascotto, Giovani, Celisa, Cíntia, Cássio, Tony, aos cunhados Viviane, Rodrigo, Camila, Tiago, amigos que ganhei nestes 4 anos e que me proporcionaram momentos de descontração e de amparo em situações difíceis. À minha psicóloga Rosiane pelo consolo, pelo espaço cedido onde eu podia desabafar, por ter despertado em mim força e confiança. Aos meus sogros Manoel e Mariza (in memorian) por terem me acolhido na família e me amparado nesta jornada. Aos meus familiares mais próximos: tios, primos, minha avó Neusa. Ao meu irmão Ivan e à minha mãe Cidinha. Que os laços que nos unem nunca se desatem. Que continuemos sendo o apoio um do outro. Ao meu pai Antonio (in memorian) pelo exemplo de homem, cidadão e pai, pelos aprendizados que quando lembrados me enchem de orgulho e de saudade. Que onde você estiver, que esteja vibrando por esta minha conquista. Ao meu amor Rafael, companheiro afetuoso e compreensivo, sempre presente nos momentos mais delicados, responsável em grande medida pela minha perseverança. A todos que indiretamente colaboraram com o processo de pesquisa e de escrita desta tese. Sinceramente, obrigada! MARIELLE, PRESENTE! Quero falar de uma coisa Adivinha onde ela anda Deve estar dentro do peito Ou caminha pelo ar Pode estar aqui do lado Bem mais perto que pensamos A folha da juventude É o nome certo desse amor Já podaram seus momentos Desviaram seu destino Seu sorriso de menino Quantas vezes se escondeu Mas renova-se a esperança Nova aurora a cada dia E há que se cuidar do broto Pra que a vida nos dê Flor, flor e fruto... (Coração de Estudante – Milton Nascimento) Resumo O objeto de estudo desta tese são as manifestações estudantis pelo impeachment do Presidente Fernando Collor de Mello ocorridas em 1992, enfatizando o papel de destaque das entidades estudantis, União Nacional dos Estudantes (UNE) e União Brasileira de Estudantes Secundaristas (UBES). A pergunta que norteou este trabalho foi: por que o Movimento Estudantil (ME) foi a “fagulha” dos protestos “Fora Collor”? Dito de outra maneira, por que o ME “saiu na frente” nestes protestos? Como hipótese geral, consideramos o suposto protagonismo do ME como produto da trajetória de reorganização percorrida pelos estudantes desde a reconstrução da UNE em 1979 e da UBES em 1981 e pelas características definidoras da juventude dos anos 1990, uma geração marcada pela glória das gerações passadas que fizeram história manifestando- se contra a censura e a repressão da Ditadura Militar. Diante das interpretações dos meios de comunicação da época, até mesmo de alguns trabalhos acadêmicos, sobre a característica de espontaneidade das manifestações dos “caras pintadas”, argumentar que o ME passou por um intenso processo de reorganização durante a conturbada década de 1980 significa atribuir às manifestações da juventude uma causalidade histórica, bem como desmistificar a noção de juventude despolitizada. Como hipóteses específicas, consideramos que o ME enquanto movimento social pode se localizar no campo das lutas de resistência ao sistema do capital, restando-nos compreender em que medida (e quando) o ME se manifesta contrária e criticamente à lógica deste sistema. O ME manifestou-se favorável ao impeachment de Collor por considerar que o programa neoliberal do governo ameaçava a democracia, os interesses populares e nacionais e as demandas específicas dos estudantes. Logo, podemos dizer que o protagonismo estudantil no “Fora Collor” também foi consequência dos vínculos estabelecidos entre luta específica e luta geral, resultado de um trabalho partidário, o que propiciou uma conotação política às reivindicações estudantis que antes se referiam, predominantemente, às pautas da educação. O “Fora Collor” foi uma bandeira que unificou setores sociais que estavam mobilizados como os estudantes, por isso, foi um movimento vitorioso no que ele reivindicava de imediato: o impeachment de Collor. Palavras chave: Movimento Estudantil; Fora Collor; UNE; UBES Abstract The object of study of this thesis are the student demonstrations by the impeachment of President Fernando Collor de Mello that occurred in 1992, emphasizing the prominent role of student organizations, National Union of Students (UNE) and Brazilian Union of Secondary Students (UBES). The question that guided this work was: why the Student Movement (ME) was the "spark" of the protests "Fora Collor"? Put another way, why did the ME "get ahead" in these protests? As a general hypothesis, we consider the supposed role of the ME as a product of the reorganization trajectory of the students since the reconstruction of the UNE in 1979 and the UBES in 1981 and the defining characteristics of the youth of the 1990s, a generation marked by the glory of the past generations made history against the censorship and repression of the Military Dictatorship. Towards of interpretations of the media of the time, even of some scholarly works, on the spontaneity characteristic of the manifestations of "painted faces", to argue that the ME underwent an intense reorganization process during the troubled 1980s means to attribute to the manifestations of youth a historical causality, as well as demystify the notion of depoliticized youth. As specific hypotheses, we consider that the ME as a social movement can be located in the field of struggles of resistance to the capital system, and it remains to understand to what extent (and when) the ME manifests itself in opposition to and critically to the logic of this system. The ME was in favor of Collor's impeachment because it considered that the neoliberal government program threatened democracy, popular and national interests, and the specific demands of students. Therefore, we can say that the student protagonism in "Fora Collor" was also a consequence of the bonds established between specific struggle and general struggle, the result of a partisan work, which gave a political connotation to the student demands that previously referred, predominantly, to the guidelines education. The "Fora Collor" was a banner that unified social sectors that were mobilized as students, so it was a victorious move in what he immediately claimed: the impeachment of Collor. Palavras chave: Student Movement; Fora Collor; UNE; UBES SUMÁRIO LISTA DE SIGLAS.............................................................................................13 INTRODUÇÃO...................................................................................................16 1. Apresentação do objeto de pesquisa.........................................................16 2. Hipótese geral e hipóteses específicas......................................................17 3. Referencial teórico.......................................................................................18 4. Procedimentos metodológicos e estrutura da tese...................................25 CAPÍTULO 1: A TRAJETÓRIA RECENTE DO MOVIMENTO ESTUDANTIL BRASILEIRO.....................................................................................................30 1. A importância das entidades na participação política dos estudantes..30 2. O ME nos anos 1970: fase de reorganização.............................................40 3. O auge do ME, da repressão e a reconstrução da UNE e da UBES.........52 4. “A volta do ME”: das lutas gerais às lutas específicas............................65 CAPÍTULO 2: MOVIMENTO ESTUDANTIL E O “FORA COLLOR”.................84 1. As eleições de 1989......................................................................................84 2. A república “Collorida” e a agenda neoliberal...........................................92 3. As manifestações pelo impeachment de Collor: os estudantes saem às ruas.................................................................................................................109 CAPÍTULO 3: AS PRINCIPAIS TESES DO MOVIMENTO ESTUDANTIL NOS ANOS 1990......................................................................................................138 1. Conjuntura Política....................................................................................139 2. Ensino Privado e privatização do ensino................................................144 3. Meia entrada e o passe livre......................................................................158 4. Universidades Públicas.............................................................................161 CAPÍTULO 4: MOVIMENTO ESTUDANTIL E A ESCALADA IDEOLÓGICA DO SISTEMA DO CAPITAL...................................................................................170 1. Por que o ME foi a “fagulha” dos protestos do “Fora Collor”?...........................................................................................................170 1.1. Uma leitura marxista sobre o ME...........................................................174 1.2. A centralidade do trabalho como elemento essencial para as lutas de resistência ao sistema do capital..................................................................181 1.3. O caráter de classe do ME e as formas de manifestação da juventude........................................................................................................188 2. O ME em tempos neoliberais: o que ficou do “Fora Collor......................198 CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................210 REFERÊNCIAS...............................................................................................214 DOCUMENTOS ESTUDANTIS E OUTRAS FONTES....................................220 1. Documentos pesquisados no Arquivo Público do Estado de São Paulo...............................................................................................................221 2. Documentos pesquisados no Centro de Estudos e Memória da Juventude (CEMJ)..........................................................................................221 3. Documentos pesquisados no Arquivo de Memória Operária do Rio de Janeiro (AMORJ)............................................................................................222 4. Jornais........................................................................................................222 5. Depoimentos..............................................................................................223 13 LISTA DE SIGLAS ABI – Associação Brasileira de Imprensa ALN - Aliança Libertadora Nacional AMES – Associação Municipal de Estudantes Secundaristas ANDES - Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior AP – Ação Popular APML – Ação Popular Marxista Leninista BIRD – Banco Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento CA - Centro Acadêmico CCA - Conselho de Centros Acadêmicos CDPP - Comitê de Defesa dos Presos Políticos CF – Constituição Federal CGT – Comando Geral dos Trabalhadores CNBB - Conferências Nacional dos Bispos do Brasil CONEB – Conselho Nacional de Entidades de Bases CONEG – Conselho Nacional de Entidades Gerais CONUNE – Congresso da UNE CPC – Centro Popular de Cultura CPCA - Conselho de Presidente dos Centros Acadêmicos CREDUC – Crédito Educativo CUT – Central Única dos Trabalhadores DCE – Diretório Central dos Estudantes DA – Diretório Acadêmico DI-GB - Dissidência da Guanabara DI-RJ - Dissidência do Rio de Janeiro DI-RS - Dissidências do Rio Grande do Sul DI-SP - Dissidência de São Paulo DOI-CODI – Destacamento de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna DOPS – Departamento de Ordem Política e Social ECA – Escola de Comunicação e Artes ENE – Encontro Nacional de Estudantes 14 FASUBRA – Federação de Sindicatos de Trabalhadores Técnico-administrativos em Instituições de Ensino Superior Públicas do Brasil FIES – Financiamento Estudantil FMI – Fundo Monetário Internacional JUC - Juventude Universitária Católica LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação LSN – Lei de Segurança Nacional MASP – Museu de Arte de São Paulo MDB – Movimento Democrático Brasileiro ME – Movimento Estudantil MEC – Ministério da Educação MR-8 - Movimento Revolucionário 8 de outubro OAB – Ordem dos Advogados do Brasil OSI – Organização Socialista Internacionalista PCB – Partido Comunista Brasileiro PC do B- Partido Comunista do Brasil PCBR - Partido Comunista Brasileiro Revolucionário PDC – Partido Democrata Cristão PDT – Partido Democrático Trabalhista PDS – Partido Democrático Social PEG – Política Educacional do Governo PFL – Partido da Frente Liberal PMDB – Partido Movimento Democrático Brasileiro POLOP - Política Operária PRN – Partido da Reconstrução Nacional PROUNI – Programa Universidade Para Todos PSB – Partido Socialista Brasileiro PSDB – Partido da Social Democracia Brasileira PST – Partido Social Trabalhista PT – Partido dos Trabalhadores PUC – Pontifícia Universidade Católica SBPC – Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência UBES – União Brasileira de Estudantes Secundaristas UDN - União Democrática Nacional 15 UEE- União Estadual de Estudantes UJS – União da Juventude Socialista UMES – União Metropolitana dos Estudantes UNB – Universidade de Brasília UNE – União Nacional dos Estudantes UPES – União Paulista de Estudantes Secundaristas URSS – União das Repúblicas Socialistas Soviéticas USP – Universidade de São Paulo VAR-PALMARES - Vanguarda Armada Revolucionária – Palmares VPR - Vanguarda Popular Revolucionária 16 INTRODUÇÃO 1. Apresentação do objeto de pesquisa O objeto desta pesquisa foram as manifestações estudantis pelo impeachment do Presidente Collor ocorridas no ano de 1992. O interesse pela pesquisa deveu-se à continuação de trabalhos anteriores como Dissertação de Mestrado1 e Monografia de Conclusão de Curso2, bem como aos poucos trabalhos acadêmicos que analisam o Movimento Estudantil (ME) a partir da década de 1990. Vale ressaltar que a maioria dos estudos sobre o ME se concentra no período da Ditadura Militar (1964-1984). Com relação ao referencial teórico, os trabalhos que analisam a participação estudantil no “Fora Collor” ou até mesmo nos anos 1990 em diante, localizam-se, em sua maioria, num campo diverso da teoria marxista e esta pesquisa abordará a questão a partir deste conjunto teórico-metodológico. Além do que, estes trabalhos, na maioria das vezes, são poucos analíticos, estando atentos à simples descrição dos acontecimentos, privilegiando uma interpretação do ME próxima daquela realizada pelos meios de comunicação. O objetivo central desta pesquisa foi refletir sobre as possíveis causas do protagonismo do ME e da forte mobilização política da juventude em torno do impeachment de Collor. Ao contrário da maioria dos trabalhos acadêmicos pesquisados, analisamos o ME como um movimento social inserido na dinâmica da luta de classes, buscando compreender os protestos estudantis enquanto resposta às políticas neoliberais adotadas pelo governo Collor. Desta forma, ao analisarmos os jornais da época que noticiavam as manifestações estudantis como meramente festivas e fragmentadas, assumimos um ponto de vista crítico, pois, ainda que os “caras-pintadas” correspondessem a um aglomerado de jovens, é importante destacar que a liderança dos protestos foi das entidades 1 SANTOS, Jordana de Souza. A atuação das tendências políticas no movimento estudantil da Universidade de São Paulo (USP) no contexto da ditadura militar dos anos 70. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista, Marília, 2010, 112 f. 2 SANTOS, Jordana de Souza. Unidade e diversidade no Movimento Estudantil: a heterogeneidade das esquerdas dentro da UNE (1964-1974). Marília, 2006. 89 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Ciências Sociais) – Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista, Marília, 2006. 17 estudantis, União Nacional dos Estudantes (UNE) e União Brasileira de Estudantes Secundaristas (UBES). Os jornais e revistas da época tachavam os estudantes de antiquados devido aos ideais socialistas defendidos pelas principais lideranças como Lindbergh Farias, ou de despolitizados, ao se referirem aos jovens que não eram militantes e acabaram aderindo às manifestações “por farra”. Também faziam comparações entre a geração dos anos 1990 com as gerações dos anos 1960 e 1970. A referência às gerações passadas atuava no sentido de classificar a geração dos anos 1990 como desinteressada por política e alienada. Mas se estes jovens eram realmente alienados e pouco organizados, como foi possível tomarem as ruas num momento em que a bandeira “Fora Collor” ainda era imprecisa e inicial? A resposta a esta pergunta é o “motor” desta tese. Trata-se não apenas de verificar a importância da organização do ME para o desencadeamento e o sucesso das manifestações estudantis no “Fora Collor”. Mas de compreender, pela perspectiva da teoria marxista, os motivos pelos quais a juventude dos anos 1990 aderiu ao impeachment, provando que a apatia e o desinteresse eram apenas aparentes ou percepções parciais. 2. Hipótese geral e hipóteses específicas. Conforme afirmamos acima, o “motor” desta pesquisa, isto é, a hipótese geral, refere-se à seguinte questão: por que o ME foi a “fagulha” dos protestos do “Fora Collor”? Ao lançarmos esta questão, consideramos que o protagonismo do ME se deu por ser um movimento social que “sai na frente” visto que possui considerável capacidade de mobilização que pode ser atribuída às características específicas da juventude como impetuosidade, radicalidade, desejo de lutar por liberdade de expressão e de comportamento. Estas características norteiam a luta estudantil e colocam os estudantes nas ruas. A hipótese geral da pesquisa se refere à defesa de quais seriam as possíveis causas deste protagonismo do ME: a trajetória de reorganização do ME percorrida pelos estudantes desde a reconstrução da UNE em 1979 e da UBES em 1981; e as características definidoras da juventude dos anos 1990, 18 uma geração marcada pela lembrança das gerações passadas que fizeram história manifestando-se contra a censura e a repressão da Ditadura Militar. Conforme o avanço da pesquisa, surgiram hipóteses específicas que complementam a análise sobre o ME como movimento social e o seu papel nas lutas de resistência ao sistema do capital: o ME manifestou-se favoravelmente ao impeachment de Collor por considerar que o programa neoliberal do governo ameaçava a democracia, os interesses populares e nacionais e as demandas específicas relativas aos estudantes. Se os estudantes estavam se reorganizando e se manifestando desde a década de 1980 com a campanha pelas “Diretas Já!”, pela Constituinte, contra os aumentos abusivos nas mensalidades, a favor do Grêmio Livre etc, mas somente com o “Fora Collor” é que voltaram a ter a credibilidade e a visibilidade do passado, defendemos que isto se deveu ao fato do ME ter assumido uma bandeira política (contra o projeto neoliberal) que unificava a todos (impeachment), e principalmente que extrapolava os muros das universidades e escolas, objetivando uma identificação entre a luta específica estudantil e as lutas gerais. Este movimento foi muito importante, conforme elucida Foracchi (1972), pois a contestação estudantil passou, por assim dizer, do nível contracultural, cuja crítica ao sistema consiste em apenas negá-lo, e assumiu um teor político ao vincular a luta estudantil às lutas gerais, da crise da universidade à crise da sociedade. 3. Referencial teórico Diferentemente da maioria dos trabalhos acadêmicos pesquisados que tratam do ME e que se localizam nas áreas da Educação, História e Psicologia, por exemplo, esta tese pautou-se sobretudo na relação com a centralidade do trabalho e na compreensão da dinâmica da luta de classes num país de capitalismo periférico, recém-saído de uma Ditadura Militar. Como afirmamos, as manifestações estudantis no contexto dos anos 1990 eram vistas como espontâneas e despolitizadas, como se os jovens e estudantes tivessem decidido se unir pelo impeachment de Collor antes por influência da minissérie Anos Rebeldes, transmitida pela Rede Globo em 1992 e ambientada nos anos do regime militar, do que pelo processo de reorganização pelo qual o 19 ME vinha passando. Esta noção de espontaneidade atribuída às manifestações estudantis desconsidera o contexto de efervescência política e social existente em fins dos anos 1980 e início da década seguinte. A “explosão” estudantil no “Fora Collor” fora resultado desta conjuntura real e concreta. Ressaltamos, primeiramente, que ao defendermos a condição de não espontaneidade das manifestações estudantis no “Fora Collor”, utilizamos o método do materialismo histórico-dialético no que diz respeito à concepção da realidade e do indivíduo como frutos de um processo histórico e que está em constante movimento. Por isso, o ME, as formas de manifestação da juventude, só podem ser compreendidas como partes de um processo histórico, partes que tomadas isoladamente, numa abordagem dialética, nos auxiliam a compreender o todo no qual estão constituídas. As manifestações estudantis do “Fora Collor” só podem ser compreendidas quando encaradas como produto da conjuntura dos anos anteriores, de grande mobilização e mudanças políticas em âmbito nacional, mas também especificamente para o ME que acabara de reconstruir suas principais entidades. Em segundo lugar, é importante destacar que o ME possui uma trajetória de lutas pela democracia e contra a repressão e opressões de todo tipo, tendo sido liderado por partidos e grupos políticos de esquerda, majoritariamente. Desta forma, buscamos analisar o papel do ME nas lutas de resistência ao sistema do capital visto que, apesar de ter uma origem policlassista, isto não impede que os estudantes se manifestem contra a lógica do capital dentro dos limites impingidos pela sua classe de origem. Por fim, abordamos brevemente nesta tese o ME depois do “Fora Collor”, buscando compreender as causas do descenso da mobilização estudantil. Defendemos que, entre os fatores que teriam propiciado esta desmobilização, está o avanço das chamadas teorias pós-modernas que criticam a abordagem teórica baseada em meta-narrativas, em especial a concepção marxiana da realidade, principalmente a centralidade do trabalho e os ideais socialistas/comunistas. Este avanço se deu mundialmente a partir dos eventos de “Maio de 1968”, mas chegou ao Brasil com maior força por ocasião dos anos 1980/90. A fim de contestar alguns aspectos destas teorias, enfatizamos a centralidade do trabalho como perspectiva essencial para compreendermos o 20 papel do ME nas lutas de resistência ao capital. Logicamente, o ME não é o sujeito revolucionário, porém, não podemos negar a capacidade de mobilização dos movimentos da juventude que precisam ser norteados pela crítica ao sistema do capital, pelas questões universais, em suma, pela centralidade do trabalho para que possam superar o caráter imediatista e contracultural de suas lutas. Assim, defendemos que é imprescindível que o ME seja liderado por partidos e grupos políticos, pois não é a militância que ocasiona a desmobilização, mas certos ideais que fragmentam as lutas sociais. Diante do exposto, é necessário discorrer sobre os principais conceitos e pressupostos teórico-metodológicos que embasaram teoricamente esta pesquisa. Para a concepção materialista dialética, a história está em constante movimento, portanto, a realidade está sujeita a constantes transformações. A filosofia moderna alemã foi completada por Hegel, no qual, pela primeira vez - esse é o seu grande mérito - se concebe o mundo da natureza, da história e do espírito, como um processo, isto é, como um mundo sujeito à constante mudança, transformações e desenvolvimento constante, procurando também destacar a íntima conexão que preside este processo de desenvolvimento e mudança. Encarada sob este aspecto, a história da humanidade já não se apresentava como um caos áspero de violências absurdas, todas igualmente condenáveis perante o julgamento da razão filosófica madura, apenas interessantes para que as deixasse de lado o mais depressa possível, mas, pelo contrário, se apresentava como o processo de desenvolvimento da própria humanidade, que incumbia ao pensamento a tarefa de seguir em suas etapas graduais e através de todos os desvios, até conseguir descobrir as leis internas, que regem tudo o que à primeira vista se pudesse apresentar como obra do acaso. (ENGELS, 1878)3 Embora Marx e Engels tenham iniciado seus estudos tomando como referência a dialética hegeliana, suas críticas ao idealismo alemão diziam respeito ao fato de que, para esta corrente filosófica, a realidade é produto da mente humana, portanto, o real seria a manifestação externa do pensamento. As representações, os conceitos eram considerados, pelos filósofos idealistas, como os verdadeiros grilhões dos homens. Sendo assim, a realidade poderia ser 3 ENGELS, Fredrich. O antiduring. Disponível em: www.marxists.org. Acesso: junho/2018 http://www.marxists.org/ 21 transformada pelo pensamento, bastando que o homem “adquirisse” uma nova consciência. Uma vez que, segundo sua fantasia, as relações entre os homens, toda sua atividade, seus grilhões e barreiras são produtos de sua consciência, os jovens hegelianos, consequentemente, propõem aos homens o seu postulado moral de trocar sua consciência atual pela consciência humana, crítica ou egoísta e de, por meio disso, remover suas barreiras. Essa exigência de transformar a consciência resulta na exigência de interpretar o existente de outra maneira, quer dizer, de reconhecê-lo por meio de uma outra interpretação. (MARX; ENGELS, 2007, p. 84) O método marxiano considera que a realidade independe da vontade humana para existir e, para conhecê-la, é preciso refletir sobre ela. E para transformá-la é preciso agir, desenvolver uma forma de práxis, e não apenas interpretá-la. Assim, “(...) os homens, ao desenvolverem sua produção e seu intercâmbio de materiais, transformam também, com esta realidade, seu pensar e os produtos de seu pensar. Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência” (MARX; ENGELS, 2007, p. 94). Deste modo, duas questões importantes sobre o método marxiano se apresentam: a noção de totalidade e a relação entre teoria e prática. (...) o conhecimento teórico é o conhecimento do objeto - de sua estrutura e dinâmica - tal como ele é em si mesmo, na sua existência real e efetiva, independentemente dos desejos, das aspirações e das representações do pesquisador. A teoria é, para Marx, a reprodução ideal do movimento real do objeto pelo sujeito que pesquisa: pela teoria, o sujeito reproduz em seu pensamento a estrutura e a dinâmica do objeto que pesquisa. E esta reprodução (que constitui propriamente o conhecimento teórico) será tanto mais correta e verdadeira quanto mais fiel o sujeito for ao objeto. (NETTO, 2011, p. 20-21) A teoria é o meio pelo qual o pesquisador visa conhecer a essência do objeto que possui existência objetiva que independe da consciência do pesquisador. Quando o objeto de estudo é a própria sociedade, no caso de Marx da sociedade burguesa que é produto da ação recíproca dos homens, “a relação sujeito/objeto no processo do conhecimento teórico não é uma relação de externalidade” (NETTO, 2011, p. 23). 22 Em História e Consciência de Classe, Lukács (2003) discorre sobre o método dialético onde aponta que a dialética materialista é, antes de tudo, uma dialética revolucionária. Trata-se aqui da questão da teoria e da prática, e não somente no sentido em que Marx a entendia em sua primeira crítica hegeliana, quando dizia que a “teoria torna-se força material desde que se apodere das massas”. Trata-se, antes, de investigar, tanto na teoria como na maneira como ela penetra nas massas, esses momentos e essas determinações que fazem da teoria, do método dialético, o veículo da revolução; trata-se, por fim, de desenvolver a essência prática da teoria a partir da teoria e da relação que estabelece com seu objeto. Pois, sem isso, esse “apoderar-se das massas” poderia parecer vazio”. (LUKÁCS, 2003, p. 64-65) Para Lukács (2003), a unidade entre teoria e prática resulta da consciência que o indivíduo forma da realidade, sendo que a teoria fornece as bases para a prática de modo que a teoria só se efetiva quando é possível ser posta na forma de prática. Por meio da atividade prática, o homem transforma o mundo ao seu redor, mas essa atividade prática “só se eleva ao nível da práxis quando é atividade humano-genérica consciente” (HELLER, 2000, p. 31-32). O trabalho enquanto categoria fundante do ser social, ato de tornar-se consciente no qual o homem reproduz a natureza e a si próprio (ser genérico), assume, na sociedade capitalista, o caráter de reprodução da vida material, não mais a humanização do homem, a reprodução do ser genérico (Cf. MARX, 2004). O proletariado é o sujeito revolucionário cuja existência preconiza a dissolução da sociedade burguesa e do sistema do capital, este é o sentido da sua existência e a teoria que coloca este papel revolucionário ao proletariado nada mais é do que a expressão pensada do próprio processo revolucionário, portanto, válida a partir do momento que pode ser verificada na prática. Considerar o proletariado enquanto sujeito revolucionário supõe a centralidade do trabalho como necessária para se pensar os processos de mudanças sociais e questionamento da ordem vigente, uma vez que, de acordo com o pensamento marxiano, as relações de produção de toda sociedade formam um conjunto e são a chave do conhecimento histórico das relações sociais (Cf. MARX, 2008). A investigação científica, partindo deste pressuposto, considera o ponto de vista da totalidade e não da predominância das causas 23 econômicas como afirmam as críticas reducionistas de autores ligados a outras perspectivas teóricas. Em Contribuição à crítica da Economia Política, Marx (2008) criticava os economistas do século XVIII por iniciarem as suas análises a partir do todo vivo, real, neste caso, a população seria comumente o ponto de partida destas análises. Diferentemente dos pensadores anteriores, Marx propunha que o ponto de partida dos estudos sobre a sociedade e a economia fossem as relações gerais abstratas determinantes como a divisão do trabalho, o valor de troca, o capital, pois estas evoluem para relações mais complexas. A população é uma abstração se deixo de lado as classes que a compõem. Essas classes são, por sua vez, uma palavra sem sentido se ignoro os elementos sobre os quais repousam, por exemplo: o trabalho assalariado, o capital, etc. Esses supõem a troca, a divisão do trabalho, os preços, etc. O capital, por exemplo, não é nada sem trabalho assalariado, sem valor, dinheiro, preços, etc. Se começasse, portanto, pela população, elaboraria uma representação caótica do todo e, por meio de uma determinação mais estrita, chegaria analiticamente, cada vez mais, a conceitos mais simples; do concreto representado chegaria a abstrações cada vez mais tênues, até alcançar as determinações mais simples (...) Os economistas do século 17, por exemplo, começam sempre pelo todo vivo: a população, a nação, o Estado, vários Estados etc; mas, terminam sempre por descobrir por meio da análise certo número de relações gerais abstratas que são determinantes, tais como a divisão do trabalho, o dinheiro, o valor etc. Esses elementos isolados, uma vez que são mais ou menos fixados e abstraídos, dão origem aos sistemas econômicos, que se elevam do simples, tal como trabalho, divisão do trabalho, necessidade, valor de troca, até o Estado, a troca entre as nações e o mercado universal (MARX, 2008, p. 258). A totalidade concreta como síntese de múltiplas determinações, aparece desta forma no pensamento, não como ponto de partida, embora seja o verdadeiro ponto de partida (Cf. MARX, 2008). Parte-se dos fatos isolados, abstraídos para compreender o concreto. Parte-se de categorias simples como o valor de troca, que pressupõem uma população, determinadas relações de trabalho, para compreender categorias mais complexas como o Estado, o mercado. Como bem enfatiza Lukács (2003), a totalidade não pressupõe o conhecimento de todos os fatos, como afirmam os intelectuais críticos ao 24 pensamento marxiano. A totalidade enquanto síntese de múltiplas determinações significa um todo estruturado, dialético onde os fatos proporcionam o conhecimento da realidade uma vez compreendidos como componentes de um todo dialético, entendidos como partes estruturais do todo. . Esta recíproca conexão e mediação da parte e do todo significam a um só tempo: os fatos isolados são abstrações, são momentos artificiosamente separados do todo, os quais só quando inseridos no todo correspondente adquirem verdade e concreticidade. (KOSIK, 1976, p. 49) A noção de totalidade é determinante para compreender o método marxiano e é o elemento chave da crítica dos chamados autores pós-modernos às metanarrativas que, em linhas gerais, desconsideram a perpectiva histórica na análise do ser social, da realidade. Essas teorias objetivam justificar a acumulação capitalista e naturalizar a exploração da força de trabalho, apelam ao fragmentário, ao efêmero e desqualificam a luta de classes, a revolução social, cumprindo uma função ideológica (Cf. COUTINHO, 2010). O pós-modernismo busca legitimar-se através da rejeição das formas intelectuais modernas, em que algumas categorias – tais como sujeito, razão, ciência, verdade, história, etc. – ocupam uma posição axial. O impulso contestador pós-moderno põe na berlinda a razão e a ciência modernas, em suas pretensões de produzir um conhecimento verdadeiro sobre a realidade que poderia ser apropriado pelo homem, como sujeito individual e/ou coletivo, e dirigido contra todas as modalidades de exploração, dominação e tutela que impedem a sua emancipação, abrindo a possibilidade de objetivação de uma organização social racional na história. (EVANGELISTA, 2006, p. 275) É este pensamento que se expande pela sociedade e pelas universidades que argumentamos ser responsável pela desmobilização dos movimentos sociais, inclusive do ME. Ainda que as reivindicações que mobilizam os estudantes sejam as que estão atreladas à vida cotidiana, à luta específica, não podemos negar que o ME também faz a crítica ao sistema capitalista e que esta crítica é levada ao movimento pelos militantes de partidos e grupos de esquerda. Portanto, argumentamos que estes ideais críticos às relações de exploração estabelecidas no sistema do capital e à lógica mercadológica que abarca todas as esferas da vida social são verdadeiramente responsáveis pela radicalização 25 do movimento, pois, nos termos colocados por Foracchi (1972, p. 75), ainda que o ME não seja capaz de revolucionar a sociedade, os estudantes são afetados pelas contradições sociais e isto pode interferir, positivamente, em suas ações, politizando o ME. Quando o jovem estudante compreende os vínculos entre suas lutas específicas e as lutas gerais atreladas às classes dominadas, a luta estudantil passa a ter uma significação política e o ME adquire um papel central na participação política deste jovem (FORACCHI, 1972). A crise da universidade tem suas raízes na crise da sociedade e, especialmente, do sistema do capital. Esta crítica é de suma importância para que o ME se posicione nas lutas de resistência ao sistema do capital. Outrossim, enfatizamos ainda o aspecto em relação à desmobilização do ME como consequência do avanço da influência teórica e prática das chamadas teorias pós-modernas que é a negação do papel dos partidos políticos na sociedade, atribuindo uma crítica contumaz à chamada partidarização dos movimentos sociais. De fato, para estas teorias, somente os partidos de esquerda seriam os responsáveis pela instrumentalização do ME, isto é, por utilizarem o ME como canal de transmissão dos ideais partidários, por doutrinarem os estudantes. Como dissemos, por influência da concepção leninista de partido, a presença de partidos nos movimentos sociais organizados cumprem uma função de politização e organização revolucionária. O ME deve representar a todos os estudantes que possuem convicções políticas diversas e é justamente esta pluralidade de concepções que possibilitaria o debate e o avanço na sua organização. As fases de descenso pelas quais o ME passa não seriam, necessariamente, consequência da doutrinação dos partidos de esquerda que supostamente afastariam os estudantes, mas da insistência em construir a luta estudantil baseada em lutas fragmentadas que impedem que os estudantes estabeleçam os vínculos entre luta específica e luta geral e atuem apenas para conseguir atendimento às suas demandas no plano institucional. 4. Procedimentos metodológicos e estrutura da tese Para analisar as manifestações estudantis do período assinalado, foram utilizadas as seguintes fontes: documentos das entidades estudantis, 26 principalmente UNE e UBES; reportagens de jornais e revistas; depoimentos. Os documentos estudantis foram pesquisados em visita ao Arquivo Público do Estado de São Paulo, à Fundação Perseu Abramo, ao Centro de Estudos e Memória da Juventude (CEMJ), todos localizados na cidade de São Paulo. Também foram utilizados documentos encontrados no Arquivo de Memória Operária do Rio de Janeiro (AMORJ). Através de pesquisa na internet, encontramos o acervo do Projeto Memória do Movimento Estudantil (PMME) que foi doado no ano de 2017 para o Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. Porém, este acervo ainda não está disponível para consulta. Alguns dos materiais realizados por este Projeto – uma parceria da UNE, da Fundação Roberto Marinho, Petrobrás e Museu da República ocorrida entre os anos de 2004 a 2008 – estavam disponíveis em site que atualmente está fora do ar4. Ainda assim, é possível encontrar na internet alguns trabalhos que são resultados diretos destas pesquisas, como os livros UBES: uma rebeldia consequente, de André Cintra e Raísa Marques e Memórias Estudantis 1937-2007: da fundação da UNE aos nossos dias, de Maria Paula Araújo5; a Revista Juventude.br – dez/2012, publicação do CEMJ, com um artigo organizado pelos pesquisadores Angélica Müller e Felipe Maia com entrevistas de ex-líderes estudantis realizadas pelo PMME6; e outros trabalhos acadêmicos como a dissertação de mestrado Praia do Flamengo 132: memória, reparação e patrimonialização da União Nacional dos Estudantes, de Aline Portilho7. Quanto aos documentos estudantis pesquisados, trata-se de teses apresentadas em congressos da UNE (CONUNE) e congressos de entidades gerais e de base (CONEG, CONEB), panfletos e jornais de outras entidades como UEEs (União Estadual de Estudantes), Diretórios Centrais de Estudantes (DCE) e Centros Acadêmicos (CA), propostas de grupos ou coletivos que atuavam dentro do ME, publicações da UNE como a Revista Movimento, cartazes etc. 4 Tivemos acesso ao site www.mme.org.br, atualmente fora do ar, durante a pesquisa de monografia e de mestrado entre os anos 2005 a 2010. Porém, nestas pesquisas abordamos o movimento estudantil durante as décadas de 1960 e 1970, logo, o material que coletamos não tem serventia. 5 Disponível em www.ubes.org.br, acesso em abril/2018. 6 Disponível em www.cemj.org.br, acesso março/2018. 7 Disponível em http://sistema.bibliotecas.fgv.br, acesso em abril/2018. http://www.mme.org.br/ http://www.ubes.org.br/ http://www.cemj.org.br/ http://sistema.bibliotecas.fgv.br/ 27 Em relação às reportagens de jornais e revistas, consultamos aqueles que tinham (e ainda tem) maior circulação. Portanto, foram pesquisados os acervos digitais dos jornais Folha de São Paulo, Jornal do Brasil e a Revista Veja. Grande parte da pesquisa no acervo dos jornais Folha de São Paulo e Jornal do Brasil foi realizada entre o ano de 2016 e início de 2017. Porém, priorizamos o primeiro, devido à facilidade de pesquisa no acervo, bem como pela ampla cobertura dada aos protestos estudantis. O Jornal do Brasil, pelo que constatamos, não deu tanto destaque às manifestações pelo impeachment como a Folha de São Paulo. Estes aspectos sobre a relação da imprensa com o governo não serão avaliados detalhadamente neste trabalho, mas como a Folha e a Revista Veja acabaram exercendo certa influência na condução do processo de impeachment, alguns apontamentos valem ser destacados, como veremos no decorrer dos capítulos. A pesquisa nestas fontes priorizou as manifestações de estudantes secundaristas e universitários, das entidades UNE e UBES, das escolas públicas e privadas, mas também de professores universitários e da educação básica por serem atingidos pelas políticas do governo cuja concepção de educação estava atrelada ao projeto neoliberal contra o qual o ME estava mobilizado. Por meio deste material, podemos acompanhar a cronologia dos fatos que levaram ao processo de impeachment, ao passo que também serviram de apoio para analisarmos os documentos estudantis e, principalmente, os depoimentos. Os depoimentos/entrevistas inéditos que recolhemos para esta pesquisa foram realizados à distância, utilizando recursos como rede sociais (whatsapp), email ou Skype. As entrevistas realizadas por Skype foram gravadas, sendo que apenas uma foi feita por whatsapp e uma por email. As entrevistas foram realizadas ao final da pesquisa (primeiro semestre de 2018). Consideramos que os ganhos foram maiores do que as dificuldades de contato e agendamento com os entrevistados, devido ao curto espaço de tempo que tínhamos da redação final da tese até a defesa. O tempo escasso também foi um contratempo que não permitiu que entrevistássemos todos os contatos selecionados, além dos impedimentos individuais que implicavam o cancelamento de entrevistas previamente agendadas. Em relação à estrutura da tese, o Primeiro Capítulo corresponde a um resgate da trajetória recente do ME, enfatizando os anos da Ditadura Militar, pois foi neste período que os estudantes tiveram maior participação política, alguns 28 se envolveram em ações de luta armada e foram postos na clandestinidade juntamente com a UNE e a UBES. Também ressaltamos a importância da luta pela reconstrução destas entidades como forma de reorganização do ME na articulação da mobilização estudantil durante as lutas da década de 1980, como as “Diretas Já!” e pela Constituinte. No Segundo Capítulo fizemos a análise das disputas em torno das primeiras eleições diretas para Presidente em 1989 e a implemtação da agenda neoliberal durante o governo Collor, cujo programa era contrário, por assim dizer, aos interesses populares. A insatisfação popular crescia conforme os Planos econômicos de Collor fracassavam e os escândalos de corrupção vinham à tona, constituindo-se em motivo para o pedido de impeachment. Neste capítulo também foram tratadas as manifestações pelo impeachment, enfatizando o protagonismo da juventude e do ME que se tornou um dos principais organizadores dos protestos que ficaram conhecidos como “Fora Collor”. No Terceiro Capítulo, a análise se pauta no destaque às principais reivindicações dos estudantes durante os anos 1990 que versavam sobre o aumento das mensalidades escolares, a falta de infraestrutura nas universidades em geral, a falta de professores tanto nas públicas quanto nas privadas, privatização do ensino, financiamento estudantil etc. A luta estudantil em torno das questões específicas que vinha crescendo desde a década de 1980, demonstrava que o ME estava ativo e atento ao cenário político que se formava. Por isso, a grande adesão de jovens e estudantes aos protestos do “Fora Collor” tinha raízes nas mobilizações que o ME vinha desenvolvendo e que desembocaram numa luta política mais ampla, que era o pedido de impeachment do Presidente e as críticas ao projeto neoliberal em curso. No Quarto Capítulo, fizemos a análise do ME a partir da posição ocupada na dinâmica da luta de classes enquanto movimento social e que é formado por uma categoria social: a juventude. Tendo como referência as manifestações pelo “Fora Collor”, levantamos algumas questões que nos auxiliaram a compreender a importância do ME enquanto movimento social de origem pequeno-burguesa. Além disso, nos preocupamos em definir algumas características gerais do ME após o “Fora Collor” que abarcam a influência de novos paradigmas que exaltam o indivíduo, o fim da história, o antipartidarismo etc. Defendemos que o exame 29 destas influências teóricas pode vir a explicar o atual descenso em que se encontra o ME. 30 CAPÍTULO 1: A TRAJETÓRIA RECENTE DO MOVIMENTO ESTUDANTIL BRASILEIRO 1. A importância das entidades na participação política dos estudantes A UNE somos nós! A UNE é nossa voz!8 A literatura existente9 que retoma e analisa a trajetória da luta estudantil no Brasil, retrata desde o final do século XIX episódios importantes da história do país nos quais os estudantes marcaram presença, ainda que de forma incipiente, como no movimento abolicionista e da Inconfidência Mineira. A partir da Proclamação da República e da crescente abrangência dos ideais liberais republicanos, a participação política estudantil teve altos e baixos. Apesar do contexto político da Primeira e da Segunda República não ser muito amigável em relação à mobilização social, os estudantes estavam atentos às transformações políticas pelas quais o país estava passando, apoiando o Movimento Constitucionalista ou repudiando o Estado Novo de Vargas. Os anos 1930, particularmente, foram anos importantes para os estudantes universitários e secundaristas, pois o Presidente Getúlio Vargas criou o Ministério da Educação e uma série de reformas educacionais foram editadas com o foco na educação pública. O ensino primário passou a ser obrigatório enquanto a organização do ensino secundário avançava. De acordo com depoimentos do livro UBES: uma rebeldia consequente, a primeira forma de manifestação dos secundaristas era 8 “Palavras de ordem” entoadas no 31º Congresso da UNE em 1979, o congresso de refundação, e escritos da faixa estendida no antigo prédio das entidades estudantis na Praia do Flamengo no Rio de Janeiro após a ocupação simbólica em 1979. (ARAÚJO, Maria Paula. Memórias Estudantis (1937-2007): da fundação da UNE aos nossos dias. Rio de Janeiro: Belume Dumará: Fundação Roberto Marinho, 2007. Disponível em www.ubes.org.br/publicacoes. Acesso: janeiro/2016). 9 SANFELICE, José Luís. Movimento estudantil: a UNE na resistência ao golpe de 64. São Paulo: Cortez/Autores Associados, 1986; FÁVERO, Maria de Lourdes de A. UNE em tempos de autoritarismo. Rio de Janeiro: Editora UERJ, 1995; ALBUQUERQUE, J. A. Guilhon. Movimento estudantil e a consciência social na América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977; POERNER, Artur José. O poder jovem: história da participação política dos estudantes brasileiros. 4ª EDIÇÃO. São Paulo: Centro de Memória da Juventude, 1995; etc. http://www.ubes.org.br/publicacoes 31 pelos grêmios estudantis cujos primeiros foram fundados no início do século XX (CINTRA; MARQUES, 2009, p. 23). O Movimento Estudantil atuante na primeira metade do século XX padecia de organização e suas reivindicações, muitas vezes, tinham um caráter de regionalidade; especificamente entre os estudantes do ensino superior, as reivindicações eram mais gerais, isto é, não eram focadas na educação propriamente, campo específico da luta estudantil. Em contrapartida, os secundaristas sempre direcionavam suas reivindicações para o campo educacional, pela democratização do ensino público e contra as taxas de anuidades impostas pelo primeiro Ministro da Educação do governo Vargas, Francisco Campos. Vários fatores estão ligados à percepção dessa importância de mais organização secundarista, mas poucos tiveram tanto impacto quanto a implementação das taxas de anuidades. A campanha contra as taxas mobilizou estudantes pelo Brasil afora. Além de haver poucas escolas que ofereciam o curso colegial e uma pequena oferta de vagas, a anuidade restringiria ainda mais o acesso à escola. “De 1929 para 1930, pela primeira vez, se criou a taxa de matrícula e houve um movimento dos alunos contra o ‘Chico Taxa’”, recorda Talarico, fazendo alusão ao apelido jocoso do ministro Francisco Campos, um dos alvos dos estudantes. Apesar da mobilização, a taxa foi implantada - mas a luta contra seu aumento e até mesmo pela derrubada da anuidade foi permanente para os secundaristas. (CINTRA; MARQUES, 2009 p. 24) Estas manifestações ainda eram incipientes, com pouco alcance político, mas já sinalizavam para a necessária organização dos estudantes nas universidades e escolas para que o ME se firmasse como movimento social em defesa de uma concepção de educação, de instituição escolar, de ensino etc. Neste sentido, a criação de uma entidade que tivesse este papel era fundamental para que a luta estudantil continuasse progredindo, pois a participação política da juventude era evidente, necessitando em primeiro lugar de um órgão que pudesse centralizar e organizar as suas ações. A fundação da União Nacional dos Estudantes (UNE) em 1937 atendia a esta necessidade de unidade da luta estudantil num período bastante turbulento que foi o Estado Novo. Muitas manifestações de estudantes ocorreram neste período contra o governo, principalmente contra o apoio do Brasil à Alemanha 32 nazista na Segunda Guerra Mundial. Este avanço da mobilização estudantil fez com que a UNE se tornasse alvo constante de ações repressivas. A União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES) foi fundada em 1948 seguindo o exemplo da UNE. Enquanto nas primeiras décadas do século XX a criação de uma entidade como a UNE tivesse o propósito de unificar nacionalmente a luta estudantil, constituindo-se como ponto de partida para o ME, a partir de 1968, durante a Ditadura Militar, com a UNE e a UBES em situação de clandestinidade depois da invasão policial ao XXX Congresso da UNE em Ibiúna-SP, a urgência era reconstruir entidades menores como DCEs, UEEs, sendo que a recriação da UNE era o ponto de chegada. A refundação da UNE em 1979 e da UBES em 1981, marco inicial desta pesquisa, deve ser compreendida no bojo dos acontecimentos da década de 1970 em relação ao contexto político e à situação do ME. Compreender o contexto político implica analisar a repressão que se dava por meio de ações policiais e políticas autoritárias direcionadas ao controle de toda oposição ao regime militar. Logo após a edição do AI-5 (Ato Institucional nº 5) em dezembro de 1968, os partidos e organizações políticas que representavam esta oposição foram postos na clandestinidade, o que dificultou as ações contra o regime militar. Deste modo, é importante resgatar alguns dos principais fatos marcantes para o ME na década de 1970 para compreendermos em que circunstâncias se deu a reconstrução das entidades e os reflexos desta reconquista para o ME nos anos seguintes. Para tanto, utilizaremos como referência nossos trabalhos anteriores, a saber, monografia de conclusão de curso10 e dissertação de mestrado11 cujo objeto de pesquisa foi o ME durante entre os anos de 1964 a 1968, na monografia, e durante a década de 1970, na dissertação. No primeiro trabalho procuramos identificar as divergências entre os grupos políticos presentes na UNE e compreender suas influências nas ações dos estudantes. 10 SANTOS, Jordana de Souza. Unidade e diversidade no Movimento Estudantil: a heterogeneidade das esquerdas dentro da UNE (1964-1974). Marília, 2006. 89 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Ciências Sociais) – Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista, Marília, 2006. 11 SANTOS, Jordana de Souza. A atuação das tendências políticas no movimento estudantil da Universidade de São Paulo (USP) no contexto da ditadura militar dos anos 70. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista, Marília, 2010, 112 f. 33 Na dissertação analisamos a atuação das tendências Refazendo, Caminhando e Liberdade e Luta no ME da USP. Estes trabalhos, principalmente a dissertação, ajudam a compreender os fatos marcantes relacionados ao ME no período supramencionado. Há também outros trabalhos acadêmicos em nossas referências que analisam o ME nos anos 1970 e a reconstrução da UNE e da UBES que citaremos ao longo do texto. A bibliografia que retrata a trajetória da UNE e da UBES divide a história das entidades em fases que se destacam segundo a atuação dos vários presidentes que passaram por ambas as Diretorias. Embora as gestões da UNE e da UBES tenham sido, em sua maioria, ligadas à Esquerda, houve períodos em que as entidades estiveram nas mãos de setores conservadores como a UDN (União Democrática Nacional), no caso da UNE, em meados da década de 1950. Neste período, especificamente, a participação política estudantil dos universitários foi reduzida, coincidindo com os ideais da Direção da entidade (ARAÚJO, 2006, p. 53). A partir de 1956 quando os setores progressistas retornaram ao comando da entidade é que se iniciou a fase mais politizada da UNE, ampliando inclusive a atuação do ME junto ao movimento operário com o surgimento da União Operário-Estudantil (ARAÚJO, 2006 p. 54). Em relação à UBES, os secundaristas sofreram um golpe promovido por lideranças estudantis de direita durante o 4º Congresso da entidade em 1951, no Rio de Janeiro, em que foram falsificadas as atas e registradas em cartório. Esta ação dividiu a UBES em duas entidades e recebeu apoio de outras entidades estaduais do Rio de Janeiro que também estavam sob comando da direita. (CINTRA; MARQUES, 2009). A reunificação da UBES iniciou-se em 1956 por iniciativa de aproximação dos presidentes das duas entidades. Neste mesmo ano, houve a Greve dos Bondes no Rio de Janeiro devido ao aumento nas passagens. Este fato gerou diversos protestos com a participação dos estudantes secundaristas e universitários. A questão do transporte sempre foi um fator de mobilização para os estudantes. O ME adentrou a década de 1960 fortalecido politicamente e com muita representatividade. Nos primeiros anos ocorreram várias manifestações e, embora a UBES e a UNE atuassem conjuntamente, a UNE sofria maior perseguição por parte do governo, segundo Cintra e Marques (2009). A UNE desenvolveu ações mais globais como os Centros Populares de Cultura (CPC), 34 a “UNE Volante”, a “Greve do 1/3” etc, que a projetaram como a maior entidade estudantil do país. No entanto, o maior reconhecimento da UNE não inibia a organização da UBES que continuou realizando congressos e formulando propostas e manifestações sobre as questões que abalavam os secundaristas e também esteve à frente dos protestos contra a ditadura, como quando da morte do estudante secundarista Edson Luís em 1968. As duas entidades participaram da Campanha pela Legalidade pela posse de João Goulart na Presidência do país em 1961. Em artigo, a historiadora Célia Maria Leite Costa assinalada que, no governo Jango, “os estudantes estiveram sempre muito presentes no cenário político nacional, participando de campanhas e manifestações populares em prol da resolução de problemas econômicos, políticos e sociais do país, além de lutarem por suas reivindicações específicas”. Segundo Célia, as entidades estudantis “integraram uma ampla frente antilatifúndio e anti-imperialismo, que incluía também a Frente de Mobilização Popular (FMP), a Frente Parlamentar Nacionalista (FPN), o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), as Ligas Camponesas, entre outros”. (CINTRA; MARQUES, 2009 p. 92) A UNE realizou os Seminários pela Reforma Universitária em 1961 onde se delineou um modelo de universidade que passou a ser o objetivo principal da luta estudantil. A massificação da universidade trouxe à instituição mudanças e desafios e os estudantes que chegavam ao ensino superior, influenciados pelas novas tendências, pelas mudanças que o país passava em seu desenvolvimento econômico, questionavam a estrutura arcaica das universidades (MOTTA, 2014). O projeto de Reforma Universitária defendido pelos estudantes nasceu da crítica ao sistema de cátedra vitalícia, à falta de incentivo à pesquisa, à falta de vagas que gerou a crise dos “excedentes”, à própria concepção de universidade que, no caso brasileiro, tratava-se de “uma junção frágil de faculdades virtualmente autônomas” (MOTTA, 2014, p. 67). O Partido Comunista Brasileiro (PCB) era o principal representante da esquerda brasileira e tinha atuação profícua no movimento dos trabalhadores. O PCB também atuava no ME, mas com menos influência, deixando espaço para outros partidos e organizações menores. Assim como havia, no ME, dissidências do PCB, também havia grupos políticos que nasceram dentro do ME como a Juventude Universitária Católica (JUC) e a Ação Popular (AP). Entre as dissidências do PCB, se destacavam o Partido Comunista do Brasil (PCdoB), 35 Aliança Libertadora Nacional (ALN), Movimento Revolucionário 8 de outubro (MR-8), Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR). (SANTOS, 2006, p. 19). Pesquisas de opinião realizadas por agências americanas nos anos 1960 mostram com nitidez o fenômeno da esquerdização dos jovens universitários, revelando que eles compunham o grupo social mais receptivo a ideias radicais e socialistas. Enquetes de vários tipos começaram a ser aplicadas antes de 1964, identificando os tipos de leituras mais influentes entre os jovens e utilizando técnicas de discussão em grupo, para captar seu pensamento e vocabulário. (...) Os resultados desses estudos apenas confirmam algo sabido há muito: os estudantes universitários brasileiros passaram por intensa politização e esquerdização nos anos 1960, processo, aliás, paralelo às tendências semelhantes verificadas em outros países (MOTTA, 2014, p. 63-64) Estas organizações tinham correntes dentro do ME de cada estado como a Dissidência de São Paulo (DI-SP), Dissidência da Guanabara (DI-GB), Dissidências do Rio Grande do Sul (DI-RS), Dissidência do Rio de Janeiro (DI- RJ) que eram as de maior expressão. A ALN e o MR-8 tinham maior influência nos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Guanabara, enquanto que no Sul do país a POLOP tinha maior presença e no Nordeste, o PCBR. (DELLA VECHIA, 2011, p. 54)12. As dissidências comunistas surgiram durante a década de 1960 e formavam a chamada Nova Esquerda que, em linhas gerais, criticavam o stalinismo, as políticas seguidas pelo PCB, aderindo ao maoísmo chinês ou ao foquismo cubano. Algumas dissidências surgidas no final da década como a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e a Vanguarda Armada Revolucionária – Palmares (VAR-Palmares), além de outras já existentes, formavam a Esquerda Revolucionária e assim ficaram conhecidas por praticarem ações de luta armada como guerrilha urbana e rural. Citamos este rol de partidos e organizações para demonstrar o quanto a direção do ME secundarista e universitário era disputada e o quão politizado eram suas ações e propostas que consagraram o ME como grande opositor ao 12 Os trabalhos de Della Vechia (2011) e Araújo (2006) são referências importantes por se tratarem de teses de Doutorado e por analisarem o ME no Rio Grande do Sul e no Ceará, respectivamente, enquanto que em nossa dissertação analisamos o ME paulista. Estes trabalhos nos possibilitam compreender como foi a reorganização do ME em duas regiões opostas, comparando com os acontecimentos em São Paulo. 36 governo, sendo constantemente lembrado por sua atuação neste período. Sevillano (2010) analisou documentos do PC do B e da AP nos anos 1960 e 1970 que mostravam a importância do ME para estes partidos que possuíam grande influência nas entidades estudantis, principalmente para o PC do B que avaliava que os estudantes secundaristas eram bastante propícios a reflexões sobre os anseios populares antes mesmo de outros setores, lançando-se impetuosamente nas lutas. Por isso, o partido deveria formar quadros no ME e direcioná-los para a luta pelo socialismo sem, no entanto, deixar de enfatizar que o proletariado era a classe revolucionária. O PC do B manteve influência e hegemonia no ME secundarista e universitário após o fim do regime militar. A influência dos partidos e organizações de esquerda no ME pode ser sentida pelos vieses adotados no projeto de Reforma Universitária e também nas manifestações culturais desenvolvidas e apoiadas pelos CPCs. Ambas enfatizavam uma educação e arte “popular”, voltada para a conscientização política das classes subalternas. Na perspectiva dos estudantes de esquerda, a universidade deveria ter estrutura mais moderna e ágil, capaz de produzir conhecimento útil ao desenvolvimento, mas deveria colocar-se também ao lado das causas sociais e servir de vanguarda às transformações socialistas. Expressando tais sentimentos, o filósofo e professor Álvaro Vieira Pinto defendeu, em livro publicado na época, uma aliança operário-estudantil-camponesa para viabilizar a reforma. Na sua visão, a verdadeira reforma universitária, seria o ingresso das classes populares nas faculdades, em detrimento das elites sociais tradicionalmente ocupantes das vagas. Daí, a sugestão de que se oferecessem cursos noturnos, ao alcance dos trabalhadores, opção até então inexistente. (MOTTA, 2014, p. 68) Lovatto (2010) detalhou em sua tese a importância dos CPCs na divulgação dos Cadernos do Povo Brasileiro entre 1962 e 1964. Os Cadernos, elaborados por intelectuais interessados em propagar a cultura brasileira, alguns deles vinculados ao Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), traziam textos que se propunham a discutir temas sobre política, arte e cultura, visando atingir as classes subalternas. O que havia em comum entre as duas formas da coleção era a divulgação feita pelo CPC da UNE, que se tornou a grande mola propulsora da incrível inserção dos Cadernos junto à sociedade 37 brasileira, notadamente seus movimentos sociais, sindicais e políticos. Neste sentido, os Centros Populares de Cultura, nos anos 1960, funcionaram de fato como um departamento de agit- prop. (LOVATTO,2010, p. 325). O termo agit-prop - agitação e propaganda -, presente nos Cadernos (LOVATTO, 2010, p. 325), dava a dimensão da importância do CPC e do alcance da UNE. As reformas de base estavam em plena discussão e a reforma universitária era, portanto, levada aos estados através da “UNE Volante”. Como essas discussões eram necessárias, porém áridas, Aldo Arantes13 planejou levar – a cada estado onde a discussão seria feita – o pessoal do CPC, isto é, aquele setor da UNE que estava criando e promovendo peças teatrais, músicas, poemas, enfim, o que ficou conhecido na época como “arte engajada”. A ideia básica era que, ao final das discussões com a direção da UNE, a plateia estudantil pudesse assistir a espetáculos teatrais, musicais e cinematográficos, com o intuito de tornar o encontro mais ameno, com aspectos culturais. E isso, sem deixar de aproveitar a oportunidade para revisar – por assim dizer os temas tratados teoricamente numa postura de maior informalidade e prazer que a arte proporcionava. Esses espetáculos punham em discussão, de maneira artística, os temas políticos e sociais tratados nos debates: “o objetivo básico do CPC era agitar a massa universitária e conscientizá-las dos grandes desafios que tinha diante de si para acordar a nação” (Silveira, 1994 : 9) (...) Como observou Silveira, “mobilizando os estudantes, chegar-se-ia a plateias mais amplas” (Ibid). Essa era a força estratégica do movimento estudantil. (LOVATTO, 2010, p. 327-328). Devido a este engajamento, o ME foi duramente perseguido durante os primeiros anos do regime militar. A sede das entidades, localizada na Praia do Flamengo no Rio de Janeiro, chegou a ser incendiada, logo após a instauração do regime militar em 1964. Os estudantes tornaram-se alvo da repressão, assim como a universidade que passou a ser regida por leis que proibiam manifestações políticas dentro dos campi, perseguiam os professores e apreendiam materiais considerados subversivos. A UnB (Universidade de Brasília) foi a primeira universidade a ser invadida pelos militares. Não por coincidência esta universidade foi a primeira a funcionar como centro de pesquisa, conforme o modelo americano, oposto ao sistema de cátedras. 13 Aldo Arantes foi Presidente da UNE em 1961 pela Ação Popular (AP), grupo que deteve hegemonia no ME durante a década de 1960. 38 Incapaz de impedir a influência dos grupos radicais nos meios estudantis universitários, tampouco de fazer vingar as lideranças “democráticas” que apoiava, e tendo experimentado estratégias que variavam doses diferentes de repressão e cooptação, o regime militar encontrou no problema estudantil um dos principais desafios à sua política universitária. As forças de repressão eram obcecadas com a ideia de que os professores faziam a cabeça dos alunos, levando-os a atitudes radicais e rebeldes. Daí, parte da preocupação em afastar docentes esquerdistas da sala de aula. Grifo nosso (MOTTA, 2014, p. 62) A reforma universitária proposta pelos militares e que ganhou forma no projeto apresentado em 1968, não era apenas parte de uma política de redução dos gastos públicos, influenciada por ideais liberais, mas tinha também o objetivo de impedir a proliferação de ideais contrários ao regime militar, além de “frear” o ME que já tinha dado provas da sua capacidade de mobilização e contestação. Segundo Motta (2014, p. 25), quando da deflagração do golpe militar houve uma “Operação Limpeza” realizada pelos agentes do Estado que “visava afastar do cenário público os agentes recém-derrotados – comunistas, socialistas, trabalhistas e nacionalistas de esquerda, entre outros”. Ainda segundo o autor, entre 1965-1966 houve uma “trégua” na perseguição aos estudantes e professores dentro das universidades e escolas, o que fez com que o ME ocupasse as ruas novamente de maneira intensa, protagonizando episódios marcantes como a “Setembrada” e o “Massacre da Praia Vermelha”14. A nova situação contribuiu para o retorno do movimento estudantil às ruas, assumindo o papel protagonista da oposição. Passada a fase dos grandes expurgos, jovens com ideias de esquerda voltaram a assumir o comando das entidades principais, inclusive da UNE, declarada ilegal pelo governo, mas em funcionamento na clandestinidade. Protestos e passeatas estudantis começaram em 1965 e ficaram mais intensos depois de 1966, o que colocou os estudantes no foco principal das agências de informação e segurança. Grifo nosso. (MOTTA, 2014, p. 62)15 14 A “Setembrada” foi uma série de manifestações estudantis contra o regime militar ocorridas no mês de setembro de 1966. O “Massacre da Praia Vermelha” foi a resposta dos agentes de repressão aos estudantes que ficaram presos na Faculdade de Medicina do Rio sendo agredidos, havendo muitas prisões. (SANTOS, 2006). 15 Interessante observar a ideia de retorno do ME na condição de protagonista da oposição ao regime militar, pois esta mesma ideia também se fez presente no “Fora Collor” como veremos adiante. 39 As entidades estudantis continuavam ativas, (UNE, UBES, DCEs, UEEs, AMES, UMES, etc), embora tivessem sido declaradas ilegais com a promulgação da Lei Suplicy de Lacerda em 196416 e os estudantes realizavam eventos, seminários e congressos para eleição das respectivas diretorias. A extinção das entidades estudantis somente se concretizou em 1968 após o desmantelamento da UNE devido à invasão policial ao sítio em Ibiúna-SP onde se realizava o 30º Congresso. A partir de 1968 a UBES também já não conseguiria mais articular os estudantes, deixando de realizar suas atividades. Com a UNE desarticulada e a intensificação da repressão com a edição do AI-5, que colocou na clandestinidade todos os partidos e organizações políticas listados acima, o ME não tinha meios de manter a mobilização. Além do que, a luta armada passou a ser a única opção possível para quem desejava manter-se ativo na mobilização. Por isso, com o ingresso de muitos estudantes, ações de guerrilha se tornaram frequentes como assaltos a banco, sequestros de autoridades políticas. Apesar das inúmeras ações repressivas contra os estudantes terem abalado a organização do ME, estas ações não foram capazes de exterminá-lo. Em primeiro lugar, porque dentro do próprio regime militar não havia consenso sobre a repressão, os militares “moderados” insistiam na tática de “cooptar” os estudantes, ao menos antes de 1968 (MOTTA, 2014). Em segundo lugar, o ME que se formou nestes anos era composto por jovens radicais, questionadores e o ambiente da universidade propiciava esta radicalização. O ME que se formou nestes anos mostrou sua força e grandiosidade ao permanecer ativo, ainda que de forma precária e restrita, mesmo após o AI-5. Isto foi possível graças aos partidos e organizações políticas que, mesmo na 16 A Lei Suplicy de Lacerda promulgada em 9 de novembro de 1964 proibia manifestações político-partidárias, subordinando os Diretórios Acadêmicos às entidades ligadas ao governo como o Diretório Estadual de Estudantes e o Diretório Nacional de Estudantes e impondo o fechamento da UNE. “Aos estudantes secundaristas, o ministro Suplicy de Lacerda direcionou especialmente um parágrafo da lei: “Nos estabelecimentos de ensino de grau médio, somente poderão constituir-se grêmios com finalidades cívicas, sociais e desportivas, cuja atividade restringiria aos limites estabelecidos no regimento escolar devendo sempre ser assistido por um professor”. O governo Castello Branco criou ainda os “ginásios para o trabalho” e limitava as manifestações culturais”. (CINTRA; MARQUES, 2009 p. 106). Além desta lei, foram promulgados o Decreto nº 228 em 1967 que revogava a lei supracitada, mas mantinha sua essência, regulamentando as entidades estudantis, não reconhecendo aquelas que não se enquadravam no modelo estabelecido, e o Decreto nº 477 em 1969 que punia professores e estudantes por atividade política dentro das universidades. 40 clandestinidade, foram responsáveis por manter o ME ativo ainda que somente dentro das instituições escolares atuando em ações específicas. Ademais, conforme o regime militar dava sinais de esgotamento a partir da segunda metade dos anos 1970, o ME foi se reerguendo gradativamente junto com outros setores da sociedade civil. 2. O ME nos anos 1970: fase de reorganização O ME adentrou a década de 1970 esquecido pelos grupos políticos que disputavam intensamente sua liderança cujas ações estavam concentradas na luta armada17. Porém, algumas organizações ainda mantinham militantes entre os estudantes, como veremos. Estes militantes foram responsáveis por reorganizar o ME, bastante abalado pela repressão e sem as entidades. Neste sentido, os Grupos de Estudos Revolucionários, reuniões secretas ocorridas dentro das universidades, tinham o papel de educar os estudantes para a militância por meio da leitura de textos do marxismo e debates sobre a conjuntura política. Impedidos de saírem às ruas, os estudantes concentravam suas ações dentro das universidades através de manifestações culturais e atividades diversas a fim de não chamar atenção da repressão. Estas ações tinham o objetivo de agregar a massa estudantil e politizá-la ao propor indiretamente a discussão de temas como falta de liberdade, censura, opressão etc. (SANTOS, 2010)18. Em contrapartida, os secundaristas tiveram maior dificuldade em permanecer com alguma mobilização nas escolas e, ainda que mantivessem a UBES na clandestinidade, acabaram ficando na sombra do movimento universitário. No governo Médici, além do mais, o ministro da Educação e Cultura era o coronel Jarbas “às favas com os escrúpulos” Passarinho, que promove uma reforma conservadora do ensino fundamental e médio, por meio da Lei nº 5.692/71 (...) “Como 17 Alguns exemplos de luta armada foram o sequestro do embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick por militantes da ALN e MR-8 em 1969, o sequestro do embaixador suíço Giovanni Bucher em 1970 pela VPR, a Guerrilha do Araguaia deflagrada em 1972 por militantes do PC do B, além de outros sequestros de diplomatas estrangeiros também pela VPR e ALN, bem como, outras tentativas frustradas. Com estes sequestros eram feitas negociações para a soltura de presos políticos. 18 O artigo de Oliveira (2010), ao analisar o ME na Universidade Federal de Minas Gerais, destaca a imprensa estudantil como importante veículo de manifestação política velada, principalmente contra os decretos e leis que visavam estancar a luta estudantil. 41 matérias obrigatórias foram incluídas Educação Física, Educação Moral e Cívica, Educação Artística, Programa de Saúde e Religião (...)”. “Com as alterações curriculares, algumas disciplinas desapareceram ‘por falta de espaço’, como Filosofia, no 2º grau, ou foram aglutinadas, como História e Geografia, que passaram a construir os Estudos Sociais, no 1º grau”. (...) “ao introduzir disciplinas sobre civismo, impunha-se a ideologia da ditadura, reforçada pela extinção da Filosofia e pela diminuição da carga horária de História e Geografia, o que exerceu a mesma função de diminuir o senso crítico e a consciência política da situação. (CINTRA; MARQUES, 2009 p. 159). Em 1971 foi criado na USP o Conselho de Presidentes dos Centros Acadêmicos (CPCA) que, de acordo com Santana (2007, p. 144), realizava tarefas como “imprimir apostilas; projetar filmes; organizar murais, campeonatos esportivos, recepção de calouros; promover discussões sobre cursos e muitas festas”. Na “calourada” promovida pelo CPCA, em 1972, foi organizado um protesto contra a precariedade das instalações da Faculdade de Filosofia, que funcionava provisoriamente, em barracões na Cidade Universitária, após a sua mudança da Rua Maria Antonia. Na verdade, tratava-se de uma anti-solenidade simbólica do lançamento da pedra fundamental do novo prédio, seguida de uma “choppada”. Na ocasião, o CPCA enviou convites a diversos jornais e programas de televisão, que se encontravam sob censura. Estes, por sua vez, acreditando ser uma iniciativa oficial da USP, divulgaram o evento e ainda parabenizaram a universidade. (SANTANA, 2007, p. 144) Apesar do intenso policiamento, a “calourada” atraiu muitos estudantes, transcorrendo num clima de festa. Ainda neste ano, alguns Centros Acadêmicos fizeram denúncias contra as prisões de estudantes da História e da Escola Politécnica. Esta denúncia não foi assinada por todas as entidades que não queriam assumir o risco da repressão e do afastamento dos estudantes (SANTANA, 2007, p. 144). A denúncia causou atritos entre os grupos políticos dentro do ME da USP: PCB e ALN eram contrárias às denúncias, em contrapartida, a AP e PC do B apoiavam o ato e continuaram a realizar denúncias em manifestos, em sala de aula, em panfletos. (SANTANA, 2007, p. 144). Também em 1972, o CPCA foi substituído pelo Conselho de Centros Acadêmicos (CCA) cujas ações tinham um caráter mais político do que as desenvolvidas pelo anterior, tratando de temas sobre educação e universidade. Uma vez que as ações do ME concentravam-se dentro das universidades é 42 compreensível que estivessem voltadas às reivindicações específicas dos estudantes como a luta contra a Política Educacional do Governo chamada de PEG. Enfatizamos este aspecto pois, durante todo o período estudado anteriormente, constatamos que entre as divergências entre os grupos políticos presentes no ME, a primazia ou não da luta específica sobre a luta geral, e vice- versa, era uma constante, assim como, as formas de ação dos estudantes – se deveriam ou não realizar atos públicos ou se posicionarem diretamente contra os militares. Inclusive, trabalhamos com a hipótese de que tais divergências influenciavam negativamente nas ações do ME à medida que criavam um clima de tensão e disputa, deixando transparecer uma possível instrumentalização do ME pelos grupos políticos. Estas divergências acompanhariam o ME em sua evolução e reorganização, isto é, até o congresso de refundação das principais entidades e posteriormente. A Política Educacional do Governo consistia, em linhas gerais, em censurar os conteúdos e disciplinas do ensino superior, bem como, propor a privatização da universidade pública. Em 1972, os estudantes da USP por meio do CCA, realizaram um plebiscito contra o ensino pago e repudiaram a política do então Ministro da Educação Jarbas Passarinho. (SANTOS, 2010, p. 23). Para os estudantes, ao contrário do alegado pelo Ministro, a democratização da universidade ocorreria com a criação das entidades livres, ou seja, livres do controle estatal. Mais do que uma necessidade de organização e unificação, a reconstrução das entidades era uma reivindicação política. A dissertação de mestrado de Santana (2007), “Atuação política do Movimento Estudantil no Brasil: 1964-1984”, enfatiza o ME paulista nos anos 1970 e a partir dele analisa o ME brasileiro. Este trabalho segue um caminho de interpretação do ME brasileiro semelhante ao da nossa dissertação, pois o ME da USP foi pioneiro e São Paulo era o Estado mais mobilizado, ao passo que em outras regiões do país o ME estava contido. Por isso, é importante citarmos, ao longo do capítulo, alguns episódios específicos do ME da USP, mas que esboçam o clima da época e a situação dos estudantes de todo país. Assim, não há como falar do ME sem especificá-lo por Estados, pois a entidade nacional estava clandestina e todo caminho que o ME percorreu regionalmente para se reorganizar fez parte do processo de reconstrução da UNE e também da UBES. 43 A importância da USP, sem dúvida, dava-se pelo seu histórico de resistência, além de ser uma das maiores universidades do país, localizada na maior cidade. Ademais, na USP havia organizações políticas atuantes, mesmo que de maneira velada, algo que em outras universidades não se via até 1975 quando as tendências estudantis “deram as caras”. Isto tudo desencadeou ações repressivas contra os estudantes militantes com vistas a atingir as organizações políticas. Por isso, em 1973, ocorreu uma série de prisões de estudantes da USP, inclusive morte de alguns, como é o caso do estudante Alexandre Vanucchi Leme, militante da ALN19. Houve várias versões da morte de Alexandre contadas pela polícia como suicídio e depois atropelamento. Este desencontro de informações não deixava dúvidas sobre a verdade dos fatos: a tortura seguida de morte do estudante. (SANTANA, 2007, p. 146). Este episódio foi marcante para o ME da USP que retomou a mobilização contra a ditadura, denunciando seus crimes e arbitrariedades a despeito das divergências entre os grupos políticos sobre manter o foco nas reivindicações na luta específica. Apesar das divergências que permeavam as discussões dos militantes estudantis no que tange à resposta a ser dada ao regime pela morte de Alexandre, era ponto pacífico que não deviam radicalizar, já que era nítida a desvantagem do movimento estudantil em relação à força da repressão. Assim, os estudantes procuraram os colegas da Faculdade de Direito e o jornalista Perseu Abramo, não só para angariar apoios mas também para levantar informações e receber orientação sobre como reagir ao episódio. (SANTANA, 2007, p. 147-148). As manifestações estudantis contra a morte de Alexandre foram assembleias, manifestos e cartazes explicando as circunstâncias da morte do estudante e em repúdio às prisões e à repressão. Não era apenas o ME que começava a recuperar o fôlego, mas setores progressistas da sociedade civil ligados à Igreja Católica, OAB, ABI, entre outros, também apareceram no cenário encampando as denúncias das ações repressivas dos militares que feriam os Direitos Humanos20. Inclusive, a missa 19 Muitos outros estudantes foram mortos pelos militares, líderes secundaristas e universitários, durante ações de guerrilha como na região do Araguaia. Os trabalhos acadêmicos citados em nossas referências como o de Janaína Telles (2014) e Cintra; Marques (2009), relembram alguns nomes de estudantes que foram brutalmente assassinados durante “os anos de chumbo”. 20 Sobre as prisões, tortura e morte de militantes, bem como, sobre a atuação de setores da sociedade civil, em especial a CNBB (Conferências Nacional dos Bispos do Brasil), em denunciar 44 pela morte de Alexandre Vanucchi Leme celebrada na Catedral da Sé por Dom Paulo Evaristo Arns só foi possível graças a ação conjunta entre estes setores e o ME. Mesmo com este início de mobilização social, as ações repressivas não cessaram. Os estudantes continuaram a ser perseguidos à procura dos seus líderes como Honestino Guimarães21. Dentro das universidades havia agentes infiltrados que espionavam e controlavam todos os passos do ME, mas os estudantes, apesar dos riscos, continuaram com as manifestações22. A partir de 1974 foi iniciado o processo de abertura política “lenta e gradual” com o General Geisel que propunha maior cautela nas ações repressivas. O regime militar começava a apresentar os primeiros sinais de crise. Os crimes de tortura, prisões arbitrárias, de desrespeito aos Direitos Humanos, repercutiam negativamente fora do país através dos depoimentos de brasileiros exilados; o MDB, único partido de oposição oficial, se fortalecia cada vez mais ao ter sucesso nas eleições legislativas de 1974 e nas municipais de 1976. Além disso, os governos militares não lograram sucesso na economia e na melhoria das condições de vida dos brasileiros, atingindo poucos resultados de modo que o único meio de conter a insatisfação popular era por meio de ações repressivas e neste quesito os militares não desapontaram e o excesso destas ações contribuíram também para o declínio do regime militar. Entre os próprios militares havia discordâncias em relação às políticas do governo. Os militares que faziam parte da “linha dura” do regime eram mais conservadores e rígidos, no que diz respeito às ações repressivas, enquanto o grupos dos “moderados” apostava na abertura “lenta e gradual” e na atenuação das ações repressivas23. O governo estes crimes, ver TELLES, Janaína de Almeida. As denúncias de torturas e torturadores a partir dos cárceres políticos brasileiros. In: In: Intersecções. Vol. 16, nº 1, jun. 2014, p. 31-68. Disponível em: www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/intersecoes/article/download/13459/10273. Acesso em: 24.01.2018. 21 Após as prisões no Congresso de Ibiúna, Jean Marc von der Weid foi eleito Presidente da UNE clandestinamente em 1969. No mesmo ano foi preso, ficando vaga a Presidência da entidade. Diante disso, Honestino Guimarães foi indicado para assumir a Presidência interinamente em 1971. Com o seu desaparecimento, as atividades clandestinas da UNE foram encerradas, voltando à ativa quando da sua refundação em 1979. 22 Para maiores detalhes das manifestações que incluíam organização de shows, peças de teatro, mesmo após serem proibidos, ver Santana (2007) e Santos (2010). Um desses shows foi o de Gilberto Gil, na USP, recém-chegado do exílio, que ao cantar Cálice, canção composta em parceria com Chico Buarque, foi aclamado pelos estudantes. O que os estudantes esperavam com estas atividades era forjar um clima de crítica, mobilização, reflexão. 23 Ver MACIEL, D. A Argamassa da Ordem: da ditadura militar à Nova República (1974-1985) – São Paulo: Xamã, 2004 e MARTINS FILHO, J. R. O Palácio e a Caserna – São Paulo: Edufscar, 1996. http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/intersecoes/article/download/13459/10273 45 Geisel também foi marcado por tentativas de fraudes nas eleições de 1976 e 1978, bem como, por editar medidas de controle dos processos eleitorais. Assim, este governo apresentava ideias liberalizantes em nome da abertura ao mesmo tempo em que não hesitava em reprimir as atividades políticas que ameaçavam a segurança nacional, apesar de ter um discurso de atenuação da repressão24. No ano de 1974, os presos políticos estavam mais articulados, contribuindo para a sistematização das denúncias. O ano iniciou-se com a posse do novo presidente, o General Ernesto Geisel. A estratégia de seu governo envolveu simultaneamente o recrudescimento da repressão à Guerrilha do Araguaia e aos remanescentes da luta armada urbana, assim como aos membros e dirigentes do PCB, da APML e de militantes católicos. (TELLES, 2014, p. 36-37) Em 1974, numa assembleia de estudantes realizada na USP, foi criado o Comitê de Defesa dos Presos Políticos (CDPP) para lutar contra a prisão de estudantes, intelectuais, operários etc25. O CDPP aproximou os estudantes das correntes trotskistas (SANTOS, 2010). A presença dos grupos trotskistas fortaleceu a reorganização do ME cujo próximo ato desencadeado em repúdio à ditadura seria a Greve da ECA (USP) em 1975 e os protestos contra a morte do jornalista Vladimir Herzog (SANTOS, 2010, p. 40). A partir de 1975, o ME ganhou fôlego quando surgiram as tendências estudantis ligadas às organizações clandestinas. Em nossa dissertação, estudamos três das principais tendências presentes no ME da USP: Refazendo (AP), Caminhando (PC do B) e Liberdade e Luta (OSI). Podemos dizer que na USP e também na PUC-SP aconteceu a retomada da mobilização estudantil enquanto que em outros estados o reaparecimento do ME foi tardio. Portanto, como dissemos anteriormente, muitos fatos que dizem respeito ao ME paulista 24 Para saber mais sobre os governos militares ver MACIEL, D. A Argamassa da Ordem: da ditadura militar à Nova República (1974-1985) – São Paulo: Xamã, 2004 e MARTINS FILHO, J. R. O Palácio e a Caserna – São Paulo: Edufscar, 1996. 25 De acordo com o artigo de Telles (2014), a articulação dos presos políticos em São Paulo resultou em uma greve de fome, às vésperas das eleições de 1974, cujo objetivo era obter um presídio exclusivo para presos políticos. “Por meio de sua rede de apoio, fizeram divulgar um manifesto em que destacavam sua condição de prisioneiros políticos e a prática institucionalizada da tortura no Brasil, ambas negadas pelo Estado. (...) Na USP, os estudantes organizaram-se em apoio ao movimento, divulgando o manifesto e os nomes dos presos em greve”. (TELLES, 2014, p. 40-41). Este manifesto também foi enviado para órgãos internacionais como BBC de Londres e Anistia Internacional, inclusive, o Papa Paulo VI manifestou-se pedindo para que todos rezassem pelos prisioneiros políticos em greve de fome no Brasil. (TELLES, 2014, p. 41). 46 serão mencionados e pela análise destes fatos buscaremos compreender o ME em sentido global. Temos, por exemplo, a Greve da ECA (USP) como um acontecimento de grande relevância para o ME e também por ter sido orientado pelas tendências estudantis. Neste sentido, apesar de ter ocorrido na USP, a greve representava um grito contra a opressão que, certamente, estudantes de outras faculdades e de outros estados também sentiam. Além desta greve, há ainda a repercussão pela morte do jornalista Vladimir Herzog cujos protestos também aconteceram na cidade de São Paulo26. Sobre as tendências, podemos citar também o trabalho de Della Vecchia (2011) que analisou as tendências estudantis no ME gaúcho no período de 1977 a 1985, onde outras tendências aparecem além das citadas, como Peleia, Viração, Avançando, Unidade, entre outras. Diversas tendências políticas dos partidos políticos atuavam nos movimentos estudantis. A tendência Refazendo, ligada à APML, dirigia o DCE da USP. A tendência da APML em Minas Gerais chamava-se Liberdade, organizada também por militantes independentes da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Na Bahia, a tendência ligada à APML chamava-se Novação. No Rio, a tendência ligada à APML chamava-se Viração. Alternativa era a tendência que reunia militantes do MEP e da POLOP e a tendência Liberdade e Luta (Libelu) representou as orientações trotskistas. (PAIVA, 2011, p. 57)27 As tendências foram responsáveis pela politização estudantil neste período por incentivar o debate que envolvia tanto a luta específica quanto a luta geral. Quando as tendências ganharam maior visibilidade no ME, voltaram à tona as divergências que mencionamos e que eram tão caras ao ME. Se todas as tendências eram contrárias às posições do PCB que se encontrava isolado nas faculdades, por outro lado, divergiam também entre si sobre as formas de 26 Nos anos 1990 as manifestações pelo “Fora Collor” também se iniciaram na cidade de São Paulo, expandindo para as principais capitais e demais cidades. As manifestações concentraram-se no eixo Rio-São Paulo, pois a UNE e a UBES, além da UPES UMES e AMES, possuíam sede e subsedes nestas cidades. Os jornais pesquisados Folha de São Paulo e Jornal do Brasil, de grande circulação neste período, noticiavam os protestos estudantis destes anos em diversas regiões do país, porém, havia maior atenção aos que aconteciam em São Paulo, certamente pelo grande número de manifestantes, por ser a maior cidade do país e tudo o que acontecia ali despertava a atenção de todos. 27A APML (Ação Popular Marxista Leninista) nasceu da aproximação da AP com o PC do B por conta do maoísmo chinês que era a orientação seguida por ambos. A APML se fundiu de vez ao PC do B quando de deflagração da Guerrilha do Araguaia em 1972. Porém, os militantes que discordavam desta fusão mantiveram a APML ativa que passou a atuar no ME, principalmente. 47 mobilização, sobre as alianças a serem feitas com outros setores da sociedade e sobre a luta armada. Como mencionado acima, a Greve da Escola de Comunicação e Artes (ECA) da USP representou um grande trabalho de massas feito pelo ME e dirigido pelas tendências estudantis contra a gestão do diretor da faculdade Manuel Nunes Dias, português apoiador do regime salazarista que havia sido nomeado interventor na ECA, vindo a praticar atos arbitrários de repressão e censura aos estudantes. A decisão pela greve ocorreu após a reprovação num exame de qualificação de Mestrado do professor Sinval Freitas Medina, do Departamento de Jornalismo, que acabou sendo demitido. Segundo Sevillano (2010), havia divergências dentro da ECA entre o Centro Acadêmico e os estudantes em relação à condução do movimento grevista. O Centro Acadêmico era controlado pelo PCB e o fato deste partido ser contrário à paralisação agravou ain