UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” INSTITUTO DE BIOCIÊNCIAS – RIO CLARO unesp PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO DE MESTRADO PROFISSIONAL EM EDUCAÇÃO FÍSICA EM REDE NACIONAL (PROEF) AS QUESTÕES DE GÊNERO NAS AULAS DE EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR: UMA QUESTÃO (A SER) ABORDADA? JAQUELINE CRISTINA FREIRE SIQUEIRA RIO CLARO-SP 2020 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” INSTITUTO DE BIOCIÊNCIAS – RIO CLARO unesp PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO DE MESTRADO PROFISSIONAL EM EDUCAÇÃO FÍSICA EM REDE NACIONAL (PROEF) AS QUESTÕES DE GÊNERO NAS AULAS DE EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR: UMA QUESTÃO (A SER) ABORDADA? JAQUELINE CRISTINA FREIRE SIQUEIRA Orientadora: Profa. Dra. Luciene Ferreira da Silva Dissertação apresentada ao Instituto de Biociências do Câmpus de Rio Claro, Universidade Estadual Paulista, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Educação Física Escolar. RIO CLARO-SP 2020 S618q Siqueira, Jaqueline Cristina Freire As questões de gênero nas aulas de Educação Física escolar : uma questão (a ser) abordada? / Jaqueline Cristina Freire Siqueira. -- Rio Claro, 2020 209 f. Dissertação (mestrado profissional) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Instituto de Biociências, Rio Claro Orientadora: Luciene Ferreira da Silva 1. Educação. 2. Ensino. 3. Educação física. 4. Questões de gênero. 5. Políticas públicas. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca do Instituto de Biociências, Rio Claro. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. Stamp A todos aqueles de alma inquieta que ainda tem a capacidade de enxergar além do que se vê.... AGRADECIMENTOS Gratidão! À força divina que nos move, que me fez acreditar que era possível, apesar de em vários momentos ficar tentada a desistir... apesar dos percalços, essa força “tava” lá como uma voz insistentemente afirmando que eu era capaz... À minha mãe e ao meu pai (in memoriam), que buscaram sempre e a seu modo, com esforço, mostrar um caminho para que pudéssemos ser pessoas melhores, eu e minhas irmãs. Ao ser que divide comigo bons e maus momentos, que me incentiva sempre, que atura minhas manias e tem uma paciência invejável – definitivamente, não sou uma pessoa fácil... Esse ser é meu amigo, meu parceiro, meu marido e olha que já faz tempo, então só pode ser amor (ou ele tá pagando promessa!)... Emer amoocê e você sabe o quanto... gratidão infinita! Às minhas irmãs, por me ajudarem a ser quem sou hoje, me auxiliando a entender a complexidade das relações humanas (rsrsrs – e põe complexo né gente?!) e em especial à minha irmã Kelly, que fez também o papel de “coorientadora” dessa dissertação – você me salvou em vários momentos e sou muuuito grata por isso. À criançada da família – Eloah, Julia, Renan, Maria Beatriz e Laurinha, sempre iluminando e trazendo leveza e... bagunça, gritaria e lembrando que levar as coisas muito a sério faz a gente emburrecer. Também agradeço toda a família que me incentivou: tios, tias, primos. Às minhas amigas de “baguncinha” (Tê, Nydia e Paty) e seus respectivos(as) companheiros(as) que mesmo nesse momento de “afastamento acadêmico” sempre reafirmaram nossa amizade, nunca me deixando esquecer que quando estamos juntas o que prevalece é a magia do momento. Vocês me fazem mais gente e isso não é pouco! Agradeço em especial minha também amiga de “baguncinha” Michele, que em todos os momentos dessa loucura de mestrado esteve, por meio de suas palavras e gestos, dando força, apoiando e incentivando, sempre com o conselho certo, na hora exata... e diga-se de passagem, com aquela delicadeza que lhe é peculiar. Saiba que considero sua amizade um presente divino. Aqui não poderia deixar de fora o super Miguel e o Alex, respectivamente filho e marido da Mi... obrigada por também serem parte importante da minha vida! Ao meu sogro e minha sogra que sempre se preocupam com nosso bem estar e a toda sua família que me acolheu muito carinhosa e respeitosamente. Também aos meus cunhados e cunhadas, meu muito obrigada. À minha orientadora Prof.ª Dr.ª Luciene Ferreira da Silva que tornou possível a concretização dessa dissertação, sempre de forma carinhosa a incentivar o entendimento do valor do conhecimento científico e das relações humanas. Aos membros da banca examinadora pelas valiosas contribuições: Prof.º Dr. º José Carlos de Almeida Moreno e Prof.º Dr. º Evando Carlos Moreira. À Capes/PROEB – Programa de Educação Básica pelo oferecimento do Programa de Pós-Graduação em Educação Física em Rede Nacional – ProEF. Aos professores do Polo da UNESP – Rio Claro e do Polo da UFSCAR pelos ensinamentos proporcionados durante o curso, à seção de pós graduação de Rio Claro por sua presteza e atenção; e aos corajosos colegas mestrandos (polos Rio Claro e São Carlos), meu muito obrigada pelas experiências, angustias e risos compartilhados, não foi fácil, mas vencemos! Em especial agradeço à Talita e ao Márcio, dois super parceiros que me acrescentaram muito nos quesitos acadêmico e humano e também ao João que me “salvou” no momento angustiante da Plataforma Brasil. Não poderia deixar de mencionar em destaque a Adria, que me auxiliou prontamente em vários momentos de desespero e sei que esse auxílio se estendeu a outros colegas de curso... a forma carinhosa e respeitosa que demonstrou durante o curso por meio de seus pequenos gestos é digna de um ser humano admirável. À Sabrina, mãe, lutadora, mestre, parceira de curso, de trabalho e de viagem, expresso aqui minha admiração e gratidão por tudo o que fez para me ajudar. Sem seu companheirismo teria sido muito difícil continuar... inclusive, agradeço pelas aventuras gratuitas durante os percursos na pista e na cidade de Rio Claro. Momentos impagáveis! Aos professores(as) participantes que colaboraram para que esse estudo pudesse se desenvolver. À direção e coordenação da escola ao qual atuo, pela compreensão sobre as dificuldades em se conciliar mestrado e prática docente. Aos colegas de trabalho, em especial à Marilene que me salvou fazendo parte da revisão gramatical da dissertação e à Taynara que tirou várias dúvidas sobre especificidades do mestrado. Enfim, a todos e todas que direta ou indiretamente influenciaram na construção da pessoa que sou hoje e certamente influenciaram, de alguma forma, no resultado dessa dissertação, pois ela não deixa de ser um pedaço de mim... Gratidão! Se alguém disser pra você não cantar Deixar teu sonho ali pr’uma outra hora Que a segurança exige medo Que quem tem medo Deus adora Se alguém disser pra você não dançar Que nessa festa você tá de fora Que você volte pro rebanho Não acredite, grite, sem demora... Eu quero ser feliz agora Eu quero ser feliz agora Se alguém vier com papo perigoso de dizer que é preciso paciência pra viver Que andando ali quieto Comportado, limitado Só coitado, você não vai se perder Que manso imitando uma boiada, você vai boca fechada pro curral sem merecer Que Deus manda ajuda a quem se ferra, e quando o guarda-chuva emperra certamente vai chover Se joga na primeira ousadia, que tá pra nascer o dia do futuro que te adora E bota o microfone na lapela, olha pra vida e diz pra ela... Eu quero ser feliz agora Eu quero ser feliz agora... (EU..., Oswaldo Montenegro, 2011) SIQUEIRA, J. C. F. As questões de gênero nas aulas de Educação Física escolar: uma questão (a ser) abordada?. 2020. 205f. Dissertação de Mestrado em Educação Física Escolar – Universidade Estadual Paulista, Instituto de Biociências, Rio Claro, 2020. RESUMO A reprodução acrítica de atitudes, conceitos e preconceitos relacionados às questões de gênero, dentro do ambiente escolar, nas aulas de Educação Física, traduzidas em injustiças e desigualdades, tornam-se campo fértil para questionamentos e inquietações, quando ocorre a banalização de um tema associado a própria construção das identidades humanas (ser homem e ser mulher) e ao desenvolvimento humano, de forma geral. Sendo assim, esta pesquisa de caráter qualitativo e exploratório, buscou compreender a seguinte situação problema: como os professores de Educação Física da rede municipal de Mogi Guaçu (SP) abordam as questões de gênero em suas aulas, se estão ou não e, como consideram a influência de políticas públicas educacionais vigentes. Assim, o objetivo geral foi o de analisar e compreender a abordagem relacionada às questões de gênero nas aulas de Educação Física dos professores da rede municipal de Mogi Guaçu (SP). Em campo, para a coleta de dados empíricos, utilizou-se de entrevista semiestruturada, além das pesquisas bibliográfica e documental. Quanto a análise dos dados, debruçou-se os estudos e reflexões na perspectiva do método dialético. Os resultados relevantes comprovaram a hipótese de que há um grande desconhecimento relacionado ao universo das questões de gênero advindo da maioria dos professores entrevistados, podendo ser este fortemente associado a formação inicial e continuada – dentre outros fatores e que estruturas sociais trabalham diariamente para que haja manutenção de um ideário que refute discussões aprofundadas sobre questões que desestabilizem o status quo. Concluiu-se assim que existem políticas públicas educacionais insuficientes relacionadas a abordagem das questões de gênero e que relações de poder aliadas aos interesses de classe, historicamente, corroboram para que haja a permanência do desconhecimento atrelado ao senso comum quando se propõe a inserção da temática no ambiente escolar. Palavras-chave: Educação. Ensino. Educação Física. Questões de Gênero. Políticas Públicas. SIQUEIRA, J. C. F. Gender issues in school Physical Education classes: an issue (to be) addressed ?. 2020. 205f. Master’s Dissertation in School Physical Education – Universidade Estadual Paulista, Institute of Biosciences, Rio Claro, 2020. ABSTRACT The non-critical reproduction of attitudes, concepts and prejudices related to gender issues, in Physical Education classes in the school environment, translated into injustices and inequalities, becomes a fertile ground for questions and concerns, when there is a trivialization of the theme associated with the real construction of human identity (being male and female) and human development in general. Therefore, this qualitative and exploratory research, sought to understand the following problem situation: how are Physical Education teachers from municipal schools in Mogi Guaçu (SP) approach gender issues in their classes, whether they are or not and, as they consider the influence of current public policies. Thus, the main purpose was to analyze and understand the approach related to gender issues in Physical Education classes at municipal schools of Mogi Guaçu (SP). In the field, semi-structured interviews were used to collect empirical data, in addition to bibliographic and documentary research. As for the data analysis, studies and reflections from the perspective of the dialectical method were considered. Relevant results support the hypothesis that there is a great lack of knowledge related to all gender issues arising from the majority of the teachers interviewed, which can be strongly associated with initial and continuing education - among other factors and social structures that work daily to maintain an ideal that refutes in-depth discussions on issues that destabilize the status quo. It was concluded that there are insufficient educational public policies related to addressing gender issues and that power relations linked to class interests, historically, corroborate for further ignorance tied to common sense when the insertion of the theme in the school environment is proposed. Key words: Education. Teaching. Physical education. Gender Issues. Public Policies. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ............................................................................................. 12 2 REVISÃO DE LITERATURA ....................................................................... 17 2.1 Parte I - Educação, Educação Física e Sociedade ...................................... 17 2.2 Educação e Sociedade ................................................................................ 26 2.2.1 Educação contemporânea: um serviço a ser prestado ou um direito adquirido?.................................................................................................................. 31 2.2.2 Conservadorismo na Educação ................................................................... 48 2.3 Parte II – Educação Física, Gênero e Sociedade ........................................ 49 2.3.1 Para além de determinismos biológicos ....................................................... 57 2.3.2 Um breve olhar sobre a formação docente (inicial e continuada) e sua relação com as questões de gênero ......................................................................... 60 2.4 Entendendo as Questões de Gênero – Um campo em constante construção social..........................................................................................................................63 2.4.1 Ideologia de... que? Para quem?! ................................................................ 70 3 TRAJETÓRIA METODOLÓGICA ................................................................ 81 3.1 Instrumento de Coleta de dados e Universo da pesquisa ............................ 81 3.2 Metodologia de Análise de Dados ................................................................ 88 3.3 Garantias Éticas ........................................................................................... 91 3.4 Critérios de Inclusão e Exclusão .................................................................. 92 3.5 Riscos e benefícios envolvidos na execução da pesquisa ............................ 93 4 PESQUISA E ANÁLISE DOCUMENTAL .................................................... 95 4.1 Plano Nacional de Educação (2014-2024) – Conhecendo o Documento .... 95 4.1.1 Analisando e Discutindo...Refletindo ............................................................ 97 4.1.1.1 Fundamentalismo... Educação... Retrocesso ............................................. 104 4.2 Base Nacional Comum Curricular (BNCC) – Conhecendo o Documento .. 108 4.2.1 A Educação Física na BNCC - Analisando e Discutindo... Refletindo ........ 110 4.3 Currículo Paulista – Conhecendo o Documento ........................................ 115 4.3.1 Conhecendo a Educação Física do Currículo Paulista .............................. 118 4.3.2 Analisando e Discutindo... Refletindo ......................................................... 122 4.4 Planejamento Geral de Educação Física da cidade de Mogi Guaçu – Conhecendo o Documento ...................................................................................... 132 4.4.1 Analisando e Discutindo... Refletindo ......................................................... 136 5 RESULTADOS E DISCUSSÃO ................................................................. 143 6 CONSIDERAÇÕES... FINAIS!? ................................................................ 188 REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 194 APÊNDICES ........................................................................................................... 207 APÊNDICE A – Roteiro de questões para Entrevista Semiestruturada .... 207 APÊNDICE B – Produto Educacional: Caderno Pedagógico ................... 209 12 1 INTRODUÇÃO Menino: - Ei pro, essas “menina” são muito mole... elas “precisa” aprender jogar que nem “homi”! Situações semelhantes a essa que permeiam o convívio em sociedade e o ambiente escolar não podem ser consideradas uma ilha isolada, pois os atores imersos nesse contexto são os mesmos que circundam os diferentes espaços socioculturais. Professoras e professores, alunas e alunos, direção e coordenação escolar, funcionários, pais e quem mais estiver envolvido no processo educacional trazem consigo o modo de viver da sociedade em seu consciente ou inconsciente. Mas por que a escola, ou mais especificamente, a Educação Física deve se preocupar com um menino falando para as meninas jogarem como homens? O que tem de diferente ou que se destaque nessa situação corriqueira? Normal? Com atitudes naturais? As atividades cotidianas estão impregnadas de situações, atitudes e (pré) conceitos envoltos em sutilezas que reforçam certas desigualdades e injustiças que foram se consolidando historicamente no seio da sociedade, passando assim despercebidas e suscitando uma percepção de que exista uma natureza que fixa o que pode ser tido como normal ou desviante no comportamento social humano. E como apresentado anteriormente, a escola não está imune a isso. Desta forma, o ambiente escolar tem sido palco para produção e reprodução de formas de tratamento preconceituosas e desiguais entre todas e todos que dela fazem parte. Sendo assim, entende-se que é necessário desconfiar do que é tido como natural; as práticas rotineiras, os gestos, precisam tornar-se alvos de atenção redobrada, problematizar teorias, atentar-se a linguagem utilizada, ao modo como ensinamos e como os estudantes dão sentido a isso (LOURO, 2003). Ainda mais quando o componente curricular Educação Física apresenta uma tendência histórica que contribui para que haja um tratamento desigual entre meninos e meninas, o que se reflete na construção das habilidades motoras e na perpetuação de um ideário que naturaliza situações que hierarquizam e conferem maiores benefícios a uns que a outros. Sendo que os(as) próprios(as) professores(as) ainda estão “presos” a determinados preconceitos, sentindo 13 dificuldades em libertar-se deles, para que assim possa haver igualdade de oportunidades, respeito às diferenças e aos interesses dos(as) alunos(as) (DAOLIO, 2014). Para além, torna-se primordial entender que o ato de ensinar é um ato político por excelência e que as ações docentes tanto podem reforçar como desconstruir conceitos e comportamentos que apenas privilegiam um grupo. Essa compreensão necessita ser levada mais a sério por parte de quem é responsável pela formação de seres humanos, pois “[...] quando não pensamos, somos pensados e dirigidos por outros”, ilustra Luckesi (2011, p. 68). Assim, frisa-se que é fundamental que haja estímulo ao questionamento e a problematização de certas temáticas associadas às relações e ao desenvolvimento humano que, até então, eram tidas como extraescolares ou tratadas a partir do senso comum. São trazidas por meio de vários tipos de discursos e linguagens, aparecendo implícita ou explicitamente nas situações do cotidiano escolar, “carregadas” pelos diversos atores que ali circulam e, também levadas para fora desse contexto, numa relação de constante troca. Desta forma, para este estudo, tomam-se as questões de gênero como fio condutor para as discussões, análises e reflexões. Elas encontram-se relacionadas às aulas de Educação Física e ao ambiente escolar em si, e, é claro, à sociedade. Parte-se do pressuposto de que exista muita desinformação e conceitos equivocados sobre o tema, perpetuando ideias preconcebidas, o que muitas vezes, naturaliza comportamentos e atitudes que estimulam e reforçam tratamentos desiguais e injustos, baseados meramente em aspectos biológicos ou no senso comum. Além do que, tal temática vem ao encontro de desassossegos pessoais, pois o tratamento desigual entre meninos e meninas, homens e mulheres, sempre foi motivo de questionamentos e inquietações, principalmente quando percebia desde criança, que simplesmente por ser menina ou mais tarde, já adulta, sendo mulher, eram (são) imputadas certas proibições e certos comportamentos que reduziam minhas possibilidades de ser e estar no mundo (“menina não faz isso!”, “menina não usa isso”, “isso é só para os meninos!” etc.) e que havia/há aceitação e reprodução passiva por parte de quem mais deveria questionar e se incomodar com essas arbitrariedades. E certamente essa indignação tornou-se maior e mais estruturada quando me tornei docente e constatei, perante minhas vivências e meus estudos, 14 que a escola é um dos canais perpetuadores e inclusive, criadores dessas arbitrariedades relacionadas às questões de gênero. Diante disso, pode-se retomar a situação da aula de Educação Física descrita no início dessas reflexões (epígrafe) e perceber que vários questionamentos se fazem latentes, mas um em especial causa-nos inquietação: de que forma os professores de Educação Física do ensino fundamental abordam as questões de gênero em suas aulas? No caso desse estudo, na rede municipal de Mogi Guaçu, cidade do interior de São Paulo, será que existe algum tipo de abordagem pedagógica ou preocupação com essa temática? Ademais, como hipótese tem-se que a problemática decorra da abordagem equivocada ou da não abordagem das questões de gênero nas aulas, presumindo- se que os professores não estabeleçam relações pedagógicas entre a temática e as práticas corporais, havendo um conhecimento insuficiente que pode estar atrelado à formação inicial e/ou continuada e ao tratamento dado ao tema em políticas públicas educacionais. Desse modo, o objetivo geral apresenta-se da seguinte maneira: Analisar e compreender a abordagem relacionada às questões de gênero nas aulas de Educação Física dos professores da rede municipal de Mogi Guaçu (SP). E como objetivos específicos:  Verificar como são tratadas as questões de gênero em documentos oficiais (federais, estaduais e municipais);  Identificar o conhecimento sobre as questões de gênero por parte dos professores;  Verificar se os professores estabelecem relações pedagógicas entre as questões de gênero e as práticas corporais presentes em suas aulas;  Relacionar o tratamento dado às questões de gênero pelos professores em suas aulas e o tratamento dado às mesmas nos documentos oficiais. O presente estudo encontra-se organizado em seções, com intuito de atender a esses objetivos. A Revisão de Literatura em sua parte I relata, de maneira geral, sobre a identidade da Educação Física dentro do ambiente escolar, sua ligação com a cultura e sua função social; depois, de forma mais abrangente, aborda-se sobre a relação entre a Educação e a sociedade, para que se possa compreender como se origina, historicamente, o descaso com o ensino oferecido a 15 certos grupos sociais e certas temáticas e, por fim, uma breve explanação sobre a influência do conservadorismo no setor educacional. Já na parte II da Revisão encontra-se a temática gênero relacionada à Educação Física, seu vínculo com aspectos biológicos e culturais, e como isso influencia, de forma geral, o componente curricular. Em outro item dessa parte II, procurou-se compreender o universo que permeia as questões de gênero, seus conflitos, contradições e conceitos. Os caminhos metodológicos percorridos centraram-se na pesquisa de abordagem qualitativa, coletando dados por meio da pesquisa bibliográfica, documental e de campo, sendo que a análise dos dados ocorreu baseada no método dialético, na seção seguinte. Portanto, por meio do conhecimento obtido nas pesquisas bibliográfica e documental, mais os dados analisados sobre as formas de abordagem (ou não abordagem) relacionadas às questões de gênero advindos dos professores de Educação Física da rede municipal de Mogi Guaçu (SP), pode-se proporcionar uma compreensão mais aprofundada sobre a temática e seu universo, possibilitando, assim, subsídios que viabilizem um maior entendimento nos processos de ensino, considerando os estudos sobre gênero, tanto para os acadêmicos quanto para os próprios professores da rede de ensino supracitada, pois os resultados são públicos e estão disponíveis para a compreensão de uma realidade sociocultural circunscrita. Assim, os dados obtidos podem ser utilizados para debate e reflexão, buscando uma maior conscientização sobre a importância da presença do trabalho com o tema nas escolas. Além do fato da elaboração de um Caderno Pedagógico (APÊNDICE B) disponibilizado a todos os professores da rede supracitada, contendo informações baseadas nos dados obtidos sobre o (des)conhecimento relacionado à temática advindo dos professores. Dessa forma, a relevância em se realizar um estudo dessa natureza, recai na justificativa de que tal temática vai muito além das aulas de Educação Física ou ainda muito além da escola, pois implica diretamente nas relações humanas e, por conseguinte, nas relações de poder construídas historicamente no meio sociocultural, sendo reproduzidas e perpetuadas acriticamente, inclusive, na própria instituição escolar. 16 Por fim, considerando que uma das finalidades da educação no Brasil, segundo a LDB (BRASIL, 1996), é o pleno desenvolvimento do educando; prepara- lo para uma vida em sociedade, levando em consideração temáticas que influenciem diretamente na construção de identidades, papéis sociais e valores e que problematizem desigualdades e injustiças, torna-se um desafio frente aos diversos interesses que cercam esse conflituoso meio educacional. 17 2 REVISÃO DE LITERATURA 2.1 Parte I - Educação, Educação Física e Sociedade Ei pro, o que vai ter na “Física” hoje? Em seu artigo 26, parágrafo 3º, a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira) assegura que a Educação Física é componente curricular obrigatório e que deve estar integrada à proposta pedagógica da escola (BRASIL, 1996). Sendo assim, a Educação Física pertence ao domínio da educação; portanto, torna-se um produto dele, definindo-se, constituindo-se, realizando-se. Assume o que é específico deste lugar, o que lhe confere “[...] uma identidade fundamental como prática da escola, organizada por professores da escola para a intervenção na formação de crianças, de adolescentes, de jovens e de adultos em sua história escolar” (VAGO, 2009, p. 26). Ainda admite que a responsabilidade da escola está atrelada à perpetuação da experiência humana (cultura), sendo [...] lugar de circular, de reinventar, de estimular, de transmitir, de produzir, de usufruir, enfim, de praticar cultura. Uma instituição peculiar, com suas maneiras próprias de organizar-se e de relacionar-se com outras culturas produzidas e compartilhadas pelos humanos. As experiências culturais que nos constituem como humanos também têm lugar na escola, no protagonismo de seus professores e estudantes. A escola é lugar para o direito de todos às culturas (VAGO, 2009, p. 28). Dessa forma, conclui o autor, o mesmo se espera da Educação Física, que como assinalado anteriormente, está imersa nesse universo. Historicamente, dentro do ambiente escolar, a disciplina tem se atrelado a interesses e objetivos de outras instituições, com um propósito de preparação do corpo e/ou por meio dele, sendo relacionada ao desenvolvimento do caráter e ao exercitar-se para, o que a afasta do que é próprio da escola, não passando assim, de uma mera atividade que acontece em seu interior, um anexo, o que assinala a necessidade de reinventar ou ressignificar o seu espaço, já que a mesma, como um 18 componente curricular, deve subordinar-se a funções sociais da escola (GONZÁLEZ; FENSTERSEIFER, 2010). Assim, para os autores, além de estar relacionada ao fazer, a disciplina é desafiada atualmente a construir um saber com esse fazer, que se desenvolve ao longo dos anos escolares de forma complexa e crítica, pautando-se em um projeto educacional voltado a ideia de “leitura do mundo” e ainda consideram relevante “[...] a ênfase no fato de que tratamos de uma dimensão da cultura e que temos uma responsabilidade com o conhecimento produzido em torno dela, algo, portanto, que vai muito além do ‘exercitar-se’” (GONZÁLEZ; FENSTERSEIFER, 2010, p. 12). Para Daolio (2014), a Educação Física que trabalha cotidianamente com a educação dos alunos por meio de seus corpos, deve atentar-se à importância cultural de sua prática, pois esses mesmos corpos são culturalmente determinados. Ainda considera que “[...] atuar no corpo implica atuar na sociedade em que este corpo está inserido” (DAOLIO, 2014, p. 32). Ademais, pondera-se que atrelar o componente curricular Educação Física ao que é próprio do ambiente escolar e vinculá-lo a uma ótica cultural, não visa desmerecer ou esquecer aspectos biológicos que foram hegemônicos durante muito tempo na área, apenas, entende-se que [...] considerar o corpo reduzido à sua biologia empobrece o olhar que lançamos às crianças, aos adolescentes, aos jovens que participam das aulas de Educação Física. Por ser corpo humano, é também uma realidade cultural. O humano inventa-se ao inventar cultura (s): seu corpo é condição primeira para essa invenção (VAGO, 2009, p. 33, grifo do autor). Logo, a aprendizagem, especificidade da escola, deve ser preocupação central, sendo que, a mesma é atravessada por tudo que é humano, portanto, atravessada pela cultura, “[...] dado que não há humano (corpo/movimento) propriamente fora da cultura” (FENSTERSEIFER; PICH, 2014, p. S284). As práticas corporais, criações humanas, presentes nas aulas de Educação Física e que constituem o conhecimento próprio ao ensino desse componente curricular, revelam aspectos culturais do ser humano, pois, lhes são atribuídos significados diversos e criadas diversas maneiras de prática, expressando sentimentos, valores éticos e estéticos, apropriando-se dos tempos e espaços do viver, sendo patrimônios culturais imateriais da humanidade, constitutivas de sua história (VAGO, 2009). 19 A aprendizagem de tais práticas corporais, por sua vez, deve “[...] possibilitar a releitura crítica e a apropriação dos conhecimentos do campo da cultura que estuda, oportunizando que o aluno reconheça a condição histórica das práticas sociais das quais se ocupa” (GONZÁLEZ; FENSTERSEIFER, 2010, p. 18). Em vista disso, compreende-se que ao se trabalhar com uma prática esportiva, por exemplo, além de se levar em conta aspectos técnicos, táticos, de regras, torna-se necessário, acima de tudo [...] contextualizar essa prática na realidade sociocultural em que ela se encontra. Como essa prática esportiva chegou ao nosso país? Quando foi inventada? A que interesses sociais ela responde? Qual a história de suas técnicas? Como podem ser modificadas? (DAOLIO, 2014, p. 33). A problematização de valores impregnados e de questões éticas envolvidas nessas práticas devem ser preocupação das professoras e professores, que por meio de sua intervenção pedagógica, possibilitam uma formação cultural que poderá ofertar aos alunos o acesso à vasta gama de práticas corporais, compreendendo-as, criticando-as e imprimindo-lhes outros significados quando for o caso (VAGO, 2009), e [...] fazer todo o possível para que o estudante entenda o mundo sociocultural como uma construção (plural, dinâmica, contraditória, conflitante) e que se coloque à altura dos problemas de seu tempo nessa área para, dessa forma, potencializar decisões mais lúcidas para atuar no mundo (GONZÁLEZ; FENSTERSEIFER, 2010, p. 18). Para além, segundo Unbehaum (2010, p. 24), “[...] a Educação Física deve ser pensada como espaço possível para construção de relações humanas mais igualitárias”, contribuindo com a construção de uma nova ética não discriminatória das relações humanas que compreenda a diversidade como sua aliada e o(a) aluno(a) como propagador dessa compreensão. A abordagem das práticas corporais nas aulas, sob a égide da ótica cultural que entende que “a cultura precisa ser compreendida e analisada com base em seu vasto alcance na constituição de todos os aspectos da vida humana” (NEIRA; NUNES, 2009, p. 196) também preconiza que a educação é [...] antes de qualquer coisa, um compromisso com o Outro, com a pessoa, com o ser humano, logo, ninguém dela escapa. Não obstante, sendo ela um 20 compromisso com o Outro, ela não só pode como precisa desempenhar um papel fundamental na construção e no desenvolvimento de uma consciência cidadã [...] (SHÜTZ; FUCHS, 2017, p. 44). Sendo assim, Vago (2009) considera que ao alicerçar suas práticas nesses aspectos, a Educação Física escolar entende que uma de suas responsabilidades enquanto componente curricular, vincula-se a um projeto de sociedade que necessita compreender os graves problemas sociais do país que afetam a formação de crianças, adolescentes e jovens, inclusive dos próprios professores e professoras; a compreensão é condição para o enfrentamento desses problemas e “a ação docente na escola é uma rica possibilidade para essa compreensão” (VAGO, 2009, p. 37). Ainda mais quando se verifica que o próprio ambiente escolar tem sido palco para produção e reprodução de formas de tratamento preconceituosas e desiguais entre todos e todas que dela fazem parte. Segundo Louro (2003), a escola produz diferenças e desigualdades, desde seu início separa, classifica, ordena, hierarquiza e naturaliza, silencia uns e dá voz a outros. Ainda afirma que é necessário desconfiar do que é tido como natural; as práticas rotineiras, os gestos, precisam tornar-se alvos de atenção redobrada, problematizar teorias, atentar-se a linguagem utilizada, ao modo como ensinamos e como os estudantes dão sentido a isso. Ainda para Auad (2018, p. 77) A escola, assim como outras instituições sociais, ressalta e utiliza as diferenças e transforma-as em desigualdades. Ao separar adultos de crianças, ricos de pobres, a escola conhecida por nós fabrica identidades de meninos e meninas, homens e mulheres. Isto posto, tem-se que a escola não é um local apartado da sociedade, portanto, produz e reproduz a realidade social por meio de seus objetivos e práticas, o que gera influências nas formas como nos percebemos e nos relacionamos no mundo, sendo corresponsável pela manutenção ou promoção de valores e comportamentos (OLIVEIRA, 2017). Complementando a reflexão, Neira e Nunes (2009) declaram que a escola ao mesmo tempo em que pode corroborar para manutenção da ideologia vigente, constituindo-se em um espaço de conformação e mesmice e que reforça as relações assimétricas de poder, pode “também proporcionar um espaço de oposição à cultura 21 dominante [...]” (NEIRA; NUNES, 2009, p. 153), contribuindo em maior ou menor grau para que certos comportamentos sejam absorvidos ou internalizados, dando assim suporte a certa visão de ser humano, sociedade e mundo. Desse modo, Num momento em que vivenciamos a crise de valores públicos e privados e da sociedade como um todo, torna-se necessário que os temas de igualdade, liberdade e dignidade humana não estejam apenas inscritos nos documentos/textos legais, mas que ultrapassem barreiras e sejam internalizados por todos aqueles que, de modo formal ou informal, se responsabilizam pelas novas gerações e o mundo comum (SCHÜTZ; FUCHS, 2017, p. 39). Logo, sendo a Educação Física, componente curricular atrelado à proposta pedagógica da escola, que possui como objeto de estudo uma parcela da cultura (corporal de movimento), subordina-se às funções sociais deste âmbito (VAGO, 2009; GONZÁLEZ; FENSTERSEIFER, 2010), então, por conseguinte, deve subordinar-se também às legislações e políticas públicas que o circundam, com o intuito de materializar criticamente os conteúdos das mesmas. Sendo assim, quando se constata que a escola é local de reprodução de desigualdades e injustiças (LOURO, 2003; UNBEHAUM, 2010; OLIVEIRA, 2017; AUAD, 2018), a Educação Física não se isenta de tal fato, reproduzindo em suas práticas, por exemplo, “brincadeiras” e preconceitos, alerta Unbehaum (2010). Por outro lado, a Constituição Federal (CF) brasileira, signatária dos Direitos Humanos, em seu art. 4º (título I, dos princípios fundamentais), inciso II indica a “prevalência dos direitos humanos” e assegura que práticas discriminatórias e preconceituosas, que geram tratamentos desiguais e injustos, devam ser combatidas e rechaçadas (BRASIL, 1988), o que reflete-se em outras leis e documentos voltados à educação (Lei de Diretrizes e Bases, Plano Nacional da Educação, Base Nacional Comum Curricular, Diretrizes Curriculares Nacionais etc.), seguindo os mesmos preceitos. “A CF reconhece a igualdade entre os seres humanos, condenando a discriminação racial, de gênero sob qualquer pretexto” (UNBEHAUM, 2010, p. 26). Já em seu preâmbulo, por exemplo, a CF assegura, dentre outros, “[...] a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos [...]”, e continua em um de seus objetivos presentes no artigo 3º, 22 inciso IV, (título I – dos princípios fundamentais): “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”, também no artigo 5º (título II, dos direitos e garantias fundamentais, capítulo I, dos direitos e deveres individuais e coletivos) garante-se que todos são considerados iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (BRASIL, 1988). Entretanto, apesar das leis e documentos defenderem tais discursos, segundo o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo, sendo que dados “[...] confirmam as disparidades sociais existentes entre os grupos, e evidenciam melhores resultados para brancos, homens e população urbana” (PNUD, 2017, p. 11), destacando-se também que “[...] o Estado Brasileiro tem se caracterizado pela desarticulação e descontinuidade das políticas públicas, marcadas por acesso desigual para boa parte da população brasileira” (UNBEHAUM, 2010, p. 27). O que pode corroborar com as afirmações de Shütz e Fuchs (2017) quando defendem que temas de igualdade, liberdade e dignidade humana necessitam ir além do previsto em leis e documentos, pois “[...] a noção de uma educação que se volte aos DH ainda não é realidade na prática nem no currículo brasileiro” (SHÜTZ; FUCHS, 2017, p. 39). Sendo que para Unbehaum (2010, p. 29), o maior desafio está em se diminuir o abismo entre a legislação constitucional e as ações concretas, “[...] que não dependem somente de iniciativa política, mas também de mudanças de valores e costumes”. Considerando a Educação Física escolar uma das responsáveis por “[...] formar indivíduos dotados de capacidade crítica em condições de agir autonomamente na esfera da cultura corporal de movimento e auxiliar na formação de sujeitos políticos, munindo-os de ferramentas que auxiliem no exercício da cidadania” (GONZÁLEZ; FENSTERSEIFER, 2010, p. 12), entende-se que o trabalho relacionado a temas pertencentes ao respeito a diversidade humana necessitam se fazer presentes em seu cotidiano, quando [...] é o componente curricular no qual as diferenças (que no mundo que vivemos assumem sempre um caráter valorativo, e, portanto, implicam sempre também desigualdades) “saltam aos olhos”, porque marcadas nos corpos. Assim, o trabalho docente nessa área de conhecimento implica um equilíbrio, sempre instável, entre o não apagar das diferenças, mas também não deixar de pensá-las a partir de um horizonte comum, que seja 23 reconhecido como construção humana e, portanto, situado no plano da historicidade em permanente de-vir, e não a partir de uma visão metafísica e coisificante do humano (FENSTERSEIFER; PICH, 2014, p. S295). Assim sendo, Vago (2009) complementa afirmando que ao se trabalhar as práticas corporais, deve-se ter como norte a igualdade de oportunidades, o respeito, a troca solidária, a cooperação, a partilha de afetos e que tensões e conflitos, exclusões, discriminações e preconceitos, podem converter-se em momentos de aprendizagem. Outro ponto importante é trazido por Gomes, Almeida e Bracht (2010), que destacam o papel do diálogo (conversação civilizada) como elemento urgente para o espaço escolar e, por conseguinte, para Educação Física, ambos espaços revestidos de diferenças. Assim, os autores consideram fundamental à escola Dialogar com as “diferenças” que chegam até ela, sem combate-las; procurar entende-las, sem aniquila-las ou descarta-las como mutantes; fortalecer sua própria perspectiva (a do professor, por exemplo) com o livre recurso às experiências alheias (a dos alunos e suas culturas, por que não?) (GOMES; ALMEIDA; BRACHT, 2010, p. 11). Ao dialetizar as manifestações culturais advindas e produzidas pelos diferentes grupos que adentram o ambiente escolar, o professor estará ofertando ferramentas para o desenvolvimento da criticidade, ampliando os horizontes culturais onde antes havia apenas um ponto de vista (o dominante), transformando a aula em espaço de co-construção de conhecimentos, todos estando envolvidos em um processo de troca e de confronto desses conhecimentos, ajudando-se uns aos outros (NEIRA, 2006). Assim, sendo a escola parte integrante de um todo social maior, seus conteúdos são indissociavelmente ligados a sua significação humana e social, portanto, não deve haver privilégio de uma cultura “x” sobre uma cultura “y”, e que se forneça instrumental para alunas e alunos realizarem uma análise crítica de seu meio, auxiliando a ultrapassar ideias preconcebidas da ideologia dominante (LUCKESI, 2011). Desta forma, para Gomes, Almeida e Bracht (2010), não basta apenas assumir o discurso da diferença, mas colocar a própria diferença em discussão, sendo que a escola necessita reconhecer os direitos de propriedade dos mais diversos públicos que nela se adentram. O que exige que os professores de 24 Educação Física sejam bons intérpretes e tradutores das diferenças com as quais se deparam diariamente, situação que “[...] possibilita o desenvolvimento de um trabalho na Educação Física em que a multiplicidade de valores seja contemplada” (GOMES; ALMEIDA; BRACHT, 2010, p. 11). Logo, [...] precisamos ver o humano por detrás das diferenças, do contrário a própria noção de direitos humanos, de democracia, não faz sentido. Devemos lembrar que na condição de professores respondemos pelas leis da república, logo não podemos ser coniventes com atitudes que ferem essas leis (FENSTERSEIFER; PICH, 2014, p. S292). Deve ficar claro, dessa forma, que a preparação para a vida requer um saber ser socioculturalmente desenvolvido nas relações interpessoais nos vários espaços. Aproximar alunas e alunos de situações práticas reais e significativas, que os levem a compreender e interagir criticamente nos vários setores sociais, precisa se tornar algo concreto além de simples discurso pedagógico e legal. Porém, por outro lado, vivemos em um período histórico centrado em valores mercadológicos, puramente econômicos e empresariais neoliberais, enfim. Competitividade, globalização, consumidor, mercado, dentre outros, são os significados privilegiados por esse ideário (NEIRA, 2006). Sendo assim, a educação, sob o ponto de vista neoliberal, deve atender aos preceitos do livre mercado e suas finalidades devem estar a seu serviço, ou seja, mais uma mercadoria para consumo, e esse tipo de educação deve ensinar: [...] nossos jovens a praticar o individualismo e a competição, reforçando na sociedade formas de organização limitadas e injustas – sem falar da ampliação de processos culturais relativos à violência cultural e ao não reconhecimento das diferenças raciais e de gênero (FREITAS, 2018, p. 128). Considerando essa realidade em que a escola e a sociedade apresentam e enaltecem como uma de suas funções a preparação e inserção dos jovens para o mercado de trabalho, segundo Hoffman, Morais e Romaguera (2019, p. 256), exerce-se, dessa forma, um empobrecimento do sujeito humano, sendo que o mesmo é reduzido “[...] a uma humanidade pobre e esvaziada de valores éticos- morais, rareiam-se os laços humanos e as experiências alteritárias legítimas, impossibilitando o acontecer da diferença – eu-outro”, encontrando-se assim o 25 sujeito “[...] desfeito, ou, liquefeito pela ação do mercado na conformação de uma sociabilidade convertida em espaço mercadológico” (p. 254), concluem os autores. Embora esses sejam valores presentes e circundantes na sociedade, González e Fensterseifer (2009) afirmam que não se pode perder de vista o fato de que a educação escolar justifica sua existência também por poder esclarecer e organizar criticamente as informações recebidas de diversas fontes, possibilitando uma ampliação nas formas de olhar e sentir o mundo, que por vezes sofre os estreitamentos próprios de outros espaços institucionais (família, igreja, partido etc.) e, Além disso, a escola tem entre suas funções a de introduzir os alunos no mundo sociocultural que a humanidade tem construído, com o objetivo de que eles possam incluir-se no projeto, sempre renovado, da reconstrução desse mundo. Eles precisam aprender que nesse processo de construção a humanidade tem criado formas de representar o mundo, provisoriamente, mais defensáveis (dado sua universalidade) que outras, e que por isso são privilegiadas no processo de conservação cultural. Também que a humanidade tem promovido formas de convívio social que são mais defensáveis por permitir, entre outras coisas, que as pessoas possam participar/influenciar no processo de tomada de decisão política sobre questões que dizem respeito a todos e, portanto, são mais dignas de serem estimuladas e compreendidas. Finalmente, que a humanidade tem construído maneiras de validar essas formas de conhecer e conviver e, portanto, que precisam ser entendidas para continuar perguntando-se sobre seu valor. Algo como compreender as “regras do jogo” para podermos interrogar sua pertinência (GONZÁLEZ; FENSTERSEIFER, 2009, p. 21-22). Assim sendo, com a compreensão de que a Educação Física é parte integrante desse emaranhado mundo da educação escolar e responsável por conhecimentos específicos, entendendo que a mesma deva ser compromissada com a construção de saberes que levem suas alunas e alunos a compreender as “regras do jogo”, levando em consideração o Outro e as construções históricas/culturais que circundam as relações humanas/sociais – e as relações de poder presentes nelas – vislumbra-se assim uma educação que “[...] está estreitamente vinculada à construção de uma sociedade em que riqueza, os recursos materiais e simbólicos, a ‘boa vida’, sejam mais bem distribuídos” (NEIRA, 2006, p. 76) e que o respeito não seja considerado apenas uma palavra presente no dicionário. O que fica evidente é a necessidade de questionamento e problematização de alguns temas que até então eram tidos como extraescolares ou tratados como 26 senso comum, mas que de forma alguma ficam de fora dos muros escolares. São trazidos através dos vários tipos de discursos e linguagens, aparecendo implícita ou explicitamente nas situações do cotidiano escolar, carregados pelos diversos atores que ali circulam e levados para fora, numa relação de constante troca. Isto posto, torna-se mister, antes de discutir sobre as questões de gênero, aprofundar e refletir sobre como a educação está engendrada na sociedade e como a sociedade, cada vez mais, se afasta da preocupação com os problemas sociais que afetam diretamente o viver e o conviver (as relações humanas) o que refletirá, como veremos adiante, na forma como as questões de gênero são vistas e (não) abordadas pedagogicamente no âmbito escolar, nas políticas públicas e por conseguinte, nas aulas de Educação Física. 2.2 Educação e Sociedade “É a educação que mantém viva a memória de um povo e dá condições para sua sobrevivência material e espiritual. A educação é, portanto, fundamental para a socialização e a humanização, com vistas à autonomia e à emancipação. Trata-se de um processo que dura a vida toda e não se restringe à mera continuidade da tradição, pois supõe a possibilidade de rupturas, pelas quais a cultura se renova e o ser humano faz história.” (Maria Lúcia de Arruda Aranha) Para que haja posterior compreensão sobre a relação entre as questões de gênero, o ambiente escolar e a Educação Física, torna-se necessário e primordial, compreender o cenário da educação, seus problemas e desafios dentro de uma sociedade que ainda não se habituou a sua própria diversidade, a formação plural de ideias e que está longe de se conscientizar sobre o motivo do enraizamento das desigualdades e injustiças (reproduzidas acriticamente) em seu meio. Portanto, ao tratar-se de assuntos que envolvam a educação de seres humanos, trata-se conjuntamente do tema sociedade. Quem educa e é educado, é e está na sociedade. Relação indissociável. E isso não tem apenas a ver com a 27 instituição de ensino escola, a educação acontece de várias formas. A sociedade cria e é criada por meio da educação. Segundo Brandão (2007), a educação ocorre nos diversos ambientes sociais, sofrendo com as mais diversificadas influências culturais, ajudando a pensar e criar tipos de sociedades e homens; é uma fração do modo de vida de cada grupo e existe sob muitas formas e situações. Para Neira e Nunes (2009), a educação ou o ato de educar, existiu desde sempre. Gerações mais velhas eram responsáveis pela transmissão dos conhecimentos necessários para a própria sobrevivência, ritos e práticas sociais às gerações mais novas. Conforme iam se tornando adultos, essas gerações mais novas, também transmitiam o que haviam aprendido, gerando condições que possibilitavam a continuidade de cada sociedade. A educação é uma das “engrenagens” que faz a sociedade se movimentar, se renovar e ao mesmo tempo manter suas tradições e ancestralidades. O que ocorre é uma constante recriação cultural, sendo que o ser humano, apesar de se basear na herança social, exige uma superação dessa mesma herança, o que resulta no embate entre tradição e ruptura, e a educação, que auxilia na transmissão dos conhecimentos adquiridos de uma geração para outra, é tida como o momento em que a herança e a renovação se completam, gerando mudanças que variam de uma sociedade para outra, afirma Aranha (2006). Libâneo (2006), que utiliza a expressão prática educativa para o termo educação e que frisa ser a mesma um fenômeno social, afirma que Não há sociedade sem prática educativa nem prática educativa sem sociedade. A prática educativa não é apenas uma exigência da vida em sociedade, mas também o processo de prover os indivíduos dos conhecimentos e experiencias culturais que os tornam aptos a atuar no meio social e transformá-lo em função das necessidades econômicas, sociais e políticas da coletividade (LIBÂNEO, 2006, p. 17). Assim, a sociedade e suas formas de educar, não se estagnam e a cada momento histórico vivido, carregam o que culturalmente lhes é mais conveniente e aceitável, sem deixar de considerar os interesses dos estratos sociais que dela fazem parte. Constroem na mesma velocidade que desconstroem (ou destroem!) valores, conceitos, formas de agir e pensar, formas de ser e de estar. Aceitando 28 mais uns que outros, tecendo um emaranhado de relações que sempre são determinadas e se determinam em torno de interesses e poder. Com o incremento da complexidade das sociedades, o acúmulo e as novas demandas de conhecimentos, surgiram, desde os primórdios da história, diferentes formas de transmissão dos conhecimentos, ocasionando a especialização e a seleção do que deveria ser ensinado, bem como quem seria privilegiado pelos processos de educação, e por que não dizer, pela “condução e usufruto” dos benefícios do progresso. (NEIRA; NUNES, 2009, p. 23) Com a complexificação das relações sociais e da sociedade, devido à ampliação de sua produção e de sua organização que foi adquirindo a forma de divisão de classes, – um segmento dominante e outro dominado – a educação que não possuía anteriormente uma intencionalidade explícita, começou a não dar mais conta das demandas dessas transformações, então, foi tornando-se necessária uma educação mais estruturada, institucionalizada (LUCKESI, 2011). Quando a produção dos bens ultrapassa o necessário para o consumo imediato, criando excedentes, a estrutura da sociedade sofre alterações, devido à divisão de tarefas, que tendem a acentuar as diferenças sociais. O saber, que na tribo era coletivo, torna-se privilégio do segmento mais rico, como forma de fortalecimento do poder. Surge então a necessidade da escola como instrumento de transmissão do saber acumulado, embora restrito a alguns (ARANHA, 2006, p. 112-113). Segundo Aranha (2006), a partir da Idade Moderna ocorreu uma nova era social, política, econômica, cultural em que figuravam os interesses da burguesia nascente sobre a escola, que reivindicava uma escola realista e adaptada ao mundo moderno, em detrimento da escola medieval de inspiração religiosa e contemplativa. As classes dominantes, segundo Luckesi (2011), entendendo a importância da prática educativa para a sobrevivência, o avanço e a realização de determinados objetivos sociais, se apropriaram de formas de transmissão e assimilação do conhecimento, ditando o que era necessário saber, o que ia ao encontro das expectativas desse estrato social. Assim, a institucionalização da educação se iniciava. Através da pressão pela passagem do modelo econômico e social feudal para o capitalismo burguês, iniciou-se essa institucionalização na Idade Moderna, que “desde sua implantação, com raras exceções, o que predominou foi o elitismo, a 29 exclusão da maior parte da população, que, quando tem acesso à escola, não recebe o mesmo tipo de educação” (ARANHA, 2006, p. 111). Sob o manto do ideário dominante essa educação institucionalizada começou a funcionar, gerando tratamentos desiguais desde seu início, estando a serviço de um grupo privilegiado que visa, até hoje, disseminar o que lhes fará permanecer nesse status quo. Assim, mesmo através de movimentos socialistas ocorridos no final do século XIX, quando os trabalhadores começaram a exercer maior pressão política e conquistaram benefícios, como a expansão da rede escolar, a escolarização ainda se manteve como privilégio para poucos, pois A ampliação da rede escolar não significou a equalização de oportunidades. À medida que o desenvolvimento do comércio e a indústria exigia maior escolarização, as crianças proletárias frequentavam escolas em que tudo diferiam daquelas reservadas às classes dominantes. No modelo da escola dualista, de acordo com a sua origem social os jovens são encaminhados para a formação global, para estrita profissionalização técnica ou, ainda, para a simples iniciação no ler, escrever e contar (ARANHA, 2006, p. 194, grifo do autor). O que ainda é uma realidade, pois esse dualismo escolar persiste em uma educação de baixa qualidade oferecida para aqueles que não são da elite, sendo ainda que inúmeras crianças e jovens abandonam a escola muito cedo para trabalhar e através de relações sociais autoritárias hierárquicas acostumam-se a obedecer, afirma Aranha (2006), o que facilita a continuidade da dominação. Portanto, a educação faz parte da dinâmica das relações sociais, apresentando dessa forma, interesses antagônicos e de toda ordem – sociais, políticos, econômicos, culturais – advindos das diferentes classes sociais e de seus diferentes interesses. Essas relações, a todo momento mudam, pois fazem parte da ação humana em sociedade e podem ser transformadas pelos indivíduos. Assim, tanto os integrantes da classe dominante quanto os da classe dominada, podem pôr em prática seus interesses (LIBÂNEO, 2006). No entanto, as oportunidades para que isso ocorra são ofertadas de forma desigual. Aos integrantes da classe dominada, que não detém o capital, as dificuldades são marcadas pela precariedade nos serviços mais básicos, o que, geralmente, deixa essa população a margem de suas potencialidades enquanto cidadãos, fazendo com que seus interesses sejam silenciados. 30 Em nosso país, a distribuição desigual da riqueza faz com que 70% ou mais da população vivam na pobreza. Nos grandes centros urbanos e na zona rural o povo é obrigado a viver em precárias condições de moradia, alimentação, saúde e educação. As famílias vivem atormentadas pelo desemprego e o salário é um dos menores do mundo [...]. Muitas crianças precisam trabalhar ao invés de irem à escola. A pobreza e as condições adversas de vida das crianças e jovens e de suas famílias, sem dúvida, geram dificuldades para a organização do ensino e aprendizagem dos alunos (LIBÂNEO, 2006, p. 38). Para o autor, que entende que a forma de organização do sistema socioeconômico interfere no trabalho escolar e no rendimento dos alunos, a oferta de um ensino de baixa qualidade, marginaliza socialmente as crianças. O que amplia ainda mais o abismo de desigualdades. Assim sendo a escola, que não possui um ambiente social neutro, que ao mesmo tempo pode formar e transformar, criar, recriar, construir e desconstruir conceitos e preconceitos, identidades, valores, sofre com influências de certos ideais e de certos grupos, mas isso não significa que necessariamente tenha que perpetuar formas de tratamento que desfavoreçam uns e enalteçam outros, que haja silenciamento de um grupo em detrimento de outro. Imaginar que a escola seja um local apolítico, em que são transmitidos conhecimentos objetivos e apartados do mundo das injustiças sociais, é manter uma postura conservadora. Perigosamente conservadora, por contribuir para a manutenção do status quo (ARANHA, 2006, p. 47). Para Aranha (2006, p. 33), a escola não pode ser compreendida a margem da história, não há como separar educação, poder e suas relações com a política e a economia e considera que a educação: “[...] não pode, portanto, ser considerada apenas um simples veículo transmissor de saberes e valores, mas também um instrumento de crítica dessa herança. A educação deve abrir espaço para que seja possível a reflexão crítica da cultura”. Sendo assim, Libâneo (2006) afirma que é através do domínio do saber sistematizado que os alunos possam ter uma compreensão mais ampla da cultura, dos saberes e problemas locais, numa perspectiva nacional e universal, com o intuito de elaborá-los baseados em uma visão mais crítica e que sejam em função dos interesses da maioria da população. Ademais, ao compreender que a escola historicamente vem privilegiando, predominantemente, um certo tipo de educação, que forma um certo tipo de seres 31 humanos e um certo tipo de sociedade, favorecendo mais uns que outros, compreende-se que ela – a escola – ainda está aquém de oferecer a criticidade necessária para que a maioria da população possa minimamente munir-se de ferramentas que auxiliem na desconstrução das desigualdades sociais aceitas e naturalizadas. Assim, é necessário que se compreendam as relações humanas, sociais, culturais, econômicas, históricas, políticas que permeiam a sociedade contemporânea, para que se esboce um panorama educacional mais comprometido com questões que, quando pedagogicamente trabalhadas, façam a diferença na vida das pessoas. 2.2.1 Educação contemporânea: um serviço a ser prestado ou um direito adquirido? A partir de estudos realizados por Bauman (2001; 2009), podemos lançar nossos olhares e elucidar comportamentos que permeiam a sociedade no momento atual. Ela é considerada, segundo o autor, globalizada e sofre influências da lógica neoliberal, que privilegia a competitividade, o individualismo e o livre comércio e ainda é marcada por relações interpessoais que seguem também essa lógica. Segundo Ianni (1999, p. 131), dentro das características sociais atuais supracitadas, ocorre ainda uma reestruturação do Estado, destinada a criar o Estado Mínimo, aquele que investe e patrocina, mas não governa e que é destituído de seus poderes. Dessa forma, a sociedade civil é dissociada desse mesmo Estado e amplos setores, “[...] compreendendo classes e grupos sociais, são alijados, barrados, esquecidos ou desafiados a situarem-se e moverem-se apenas ou principalmente nos espaços do mercado”. E assim, Muitas conquistas sociais de diferentes categorias operárias e outros assalariados já foram ou estão sendo redefinidas, reduzidas ou mesmo eliminadas, sempre a partir de palavras de ordem tais como “mercado”, “produtividade”, “competitividade”, com graves prejuízos para os que são obrigados a vender a sua força de trabalho para viver ou sobreviver (IANNI, 1999, p. 130). 32 Ocorre, para Ianni (1999), um comprometimento por parte do Estado com tudo que é transnacional, mundial ou propriamente global. Devido a essa dissociação com a sociedade civil e conforme preceitos do neoliberalismo, reduz-se seu compromisso social, tornando-se uma anomalia com sérias implicações práticas e teóricas e adquirindo “[...] todas as características de um aparelho administrativo das classes e grupos dominantes, ou dos blocos de poder predominantes em escala mundial” (IANNI, 1999, p. 132). Assim, sob essa premissa, a pessoa é desconsiderada como um elemento social sob a proteção do Estado, passando a ser responsabilizada por suas capacidades e responsabilidades individuais, seu próprio desenvolvimento e progresso, sendo levada ao individualismo, racionalidade e egoísmo, fundamentos característicos da lógica social atual (NETO EISENBACH; CAMPOS, 2017). Desse modo, o momento atual da sociedade, tido por alguns teóricos como pós-moderno e por outros como modernidade tardia, neomodernidade ou hipermodernidade, além das características já citadas, apresenta o questionamento e a crítica aos paradigmas da modernidade e suas consequências como aspectos fundantes. Apresentando um cenário duvidoso, incerto, indeterminado e que desacredita de instituições como o direito, a família, a escola, o sindicato e os regimes políticos que foram elaborados no período da modernidade (NEIRA; NUNES, 2009). Sendo que, O pensamento pós-moderno não nega conhecimentos, incorpora-os, apaga a condição “ou isso, ou aquilo” e cria a condição “e isso, e aquilo”. O pós- modernismo privilegia a mistura, o hibridismo, a mestiçagem – de culturas, de pensamentos, de estéticas, de estilos, de modos de vida (NEIRA; NUNES, 2009, p. 165). No período moderno, aspectos como hierarquização da ciência e do conhecimento (qual pensamento é mais válido que o outro?) por exemplo, a dicotomização (ou isto, ou aquilo), a racionalização, visão mecanicista do universo, visão reducionista e fragmentada de fenômenos complexos, separação do sujeito e suas dimensões afetivas da razão, ideias de ordem, limite e controle, são tidos como características norteadoras (NEIRA; NUNES, 2009). Desta forma, os questionamentos e críticas pós-modernas incorrem sobre esses aspectos. 33 Ademais, Bauman (2001; 2009), que também trata dos aspectos pertencentes a contemporaneidade, define o período histórico atual como modernidade líquida e afirma que a sociedade do século XXI não é menos moderna que a do século passado, porém é moderna de um modo diferente. Assim, declara o autor, a sociedade atual possui características da fluidez, que opera nos diversos setores da sociedade, sendo que nada adquire uma forma definitiva, sólida, nada permanece por muito tempo, o novo torna-se obsoleto com muita rapidez e a vida se precariza e é vivida em condições de constante incerteza, sobretudo para os grupos que não detêm capital e vivem da força de trabalho. Então, relações interpessoais são construídas e baseadas nessa instabilidade, em que se privilegia o que é instantâneo, efêmero, em que valores adquirem a liquidez e as características do consumo, sendo que conceitos e estruturas da sociedade moderna tradicional, enfraquecem-se, dissolvem-se e reformulam-se, conclui o autor. Ademais, estruturas sociais, políticas, econômicas e as próprias relações sociais que no período moderno eram tidas como algo sólido, consideradas duradouras, confiáveis, tornando o mundo previsível e, portanto administrável, não possuem atualmente padrões e configurações dadas, preestabelecidas, elas são muitas e chocam-se entre si, contradizendo-se em seus comandos conflitantes (BAUMAN, 2001). [...] a desintegração social é tanto uma condição quanto um resultado da nova técnica do poder, que tem como ferramentas principais o desengajamento e a arte da fuga. Para que o poder tenha liberdade de fluir, o mundo deve estar livre de cercas, barreiras, fronteiras fortificadas ou barricadas. Qualquer rede densa de laços sociais, e em particular uma que esteja territorialmente enraizada, é um obstáculo a ser eliminado. Os poderes globais se inclinam a desmantelar tais redes em proveito de sua contínua e crescente fluidez, principal fonte de sua força e garantia de sua invencibilidade. E são esse derrocar, a fragilidade, o quebradiço, o imediato dos laços e redes humanos que permitem que esses poderes operem (BAUMAN, 2001, p. 23). A vida contemporânea tornou-se um emaranhado complexo de dúvidas e questionamentos que levam as pessoas a uma compreensão tida como parcial ou rasa de sua própria realidade, o que segundo Bauman (2001, p. 34) “[...] não vai longe o suficiente para alcançar os complexos mecanismos que conectam nossos 34 movimentos com seus resultados e os determinam, e menos ainda as condições que mantém esses mecanismos em ação”. Também essa falta de compreensão pode ser estimulada, por sofrerem influências neoliberais, atreladas ao comércio, pois “[...] à medida que a cultura empresarial começa a dominar a vida pública, torna-se mais difícil para os cidadãos pensar criticamente e agir moralmente” (GIROUX, 2003, p. 55), pois como características definidoras, essa cultura revela a baixa prioridade para com o pensamento crítico e para com a responsabilidade ética. Assim, as pessoas são impingidas a agirem conforme a lógica de mercado que leva a produzir trabalhadores submissos, consumidores despolitizados, gerando cidadãos passivos, que se interessam apenas em realizar seus desejos e obter ganhos materiais (indivíduos competitivos e interessados em si mesmos), que de certo modo, foram construídos pela própria cultura empresarial, tida como um meio de controle, através de um conjunto de forças ideológicas e institucionais (GIROUX, 2003). Portanto, “[...] ao retirar do cidadão, sujeito, a oportunidade de aprender a pensar e imputar-lhe o papel de um ser econômico apenas, ao tempo em que essa convergência não se consubstancia, também retira-lhe da condição de cidadão seus direitos” (NETO EISENBACH; CAMPOS, 2017, p. 10985, grifo nosso). Essa lógica interpenetra as formas de se educar pessoas, transferindo a elas esses princípios e valores, as formas de lidar consigo e com o outro, de ser e estar no mundo. A educação entra nesse jogo, sendo jogada e jogando ao mesmo tempo. Dessa maneira, caminha para ser tratada como mais um produto na prateleira e quando institucionalizada, nesses moldes neoliberais, sucumbe a parâmetros de tratamento empresarial. Como se seu funcionamento se resumisse a uma mera linha de produção. A sociedade pós-moderna globalizada, neoliberal, mutante, consumista tende a ver a educação como mais um negócio que deva ser rentável e que gere resultados imediatos, porém ao tratar a educação como uma mercadoria deixa importantes fatores que fazem a diferença no meio educacional para segundo plano ou, simplesmente, estes nem são levados em conta (FREITAS, 2018). A análise de caráter global desconsidera as particularidades da sala de aula, da vida de seus protagonistas e das condições de trabalho, enquanto a descentraliza, fechada em si mesma, não costuma revelar os 35 determinantes sociais e culturais que constituem qualquer instituição social. O resultado dessa compartimentalização tem acarretado um prejuízo significativo a quem a escola deveria atender, ou seja, à sociedade em geral (NEIRA; NUNES, 2009, p. 16). Freitas (2018), ao tratar a reforma empresarial na educação, afirma que o que ocorre é uma transformação do direito a educação em um serviço a ser adquirido, pois processa-se um incentivo à privatização de bens públicos (como as escolas, por exemplo) e o enfraquecimento dos poderes do Estado, subordinando essas instituições aos interesses empresariais, o que, via de regra, altera e desconfigura o conceito de educação e suas reais finalidades. Seria a lógica de mercado uma lógica a ser seguida em ambiente escolar? Para responder, a ponderação torna-se fundamental. Segundo Giroux (2003, p. 56), é necessário reconhecer que “[...] a educação deve ser tratada como um bem civil e não simplesmente como um local para investimentos comerciais ou para afirmar uma noção de bem privado, baseado exclusivamente no cumprimento de necessidades individuais”. Ao se ter claro de que a educação não se trata de um produto vendável na prateleira e que também suas finalidades não vão ao encontro do ideário mercadológico-empresarial, Aranha (2006) que defende uma perspectiva integradora, vislumbrando um novo projeto de sociedade, acredita que ao se ter consciência da capacidade de pensamento e reflexão do ser humano, um ser criativo, defende que a educação é uma ação recíproca entre o indivíduo – ser histórico cultural – e a sociedade. Que essa educação deva agir como instância mediadora das mudanças de comportamento, sempre compreendendo o caráter social dos processos educativos, abrindo espaço para que seja possível uma reflexão crítica da cultura, pois está inserida dentro de um contexto social concreto (político, econômico e cultural), influenciando e sendo influenciada, portanto seus fins não devem ser exteriores à ação de educar, entendendo que seus fins são a própria vida. Sob esse aspecto, as necessidades humanas devem ser analisadas concretamente, e as prioridades serão diferentes se nos propusermos a educar em uma favela ou em um bairro de elite. Portanto, os fins se baseiam em valores provisórios que se alteram conforme alcançamos os objetivos imediatos propostos e também enquanto muda a realidade vivida (ARANHA, 2006, p. 32). 36 Dessa maneira, a autora assevera que a educação possa ser uma ferramenta ou um instrumento que leve a “[...] conscientização das novas gerações diante dos problemas a serem enfrentados” (ARANHA, 2006, p. 48), vislumbrando melhorias que diminuam desigualdades e tratamentos injustos. No entanto, por outro lado, com uma preocupação maior nos resultados a serem adquiridos; nas médias desejadas que os alunos atingirão em determinado teste padronizado; nas habilidades e competências básicas oficiais; na competitividade; na desvalorização da diversidade; no individualismo e meritocracia; na falta de perspectiva de humanização ou transformação social; na desvalorização do trabalho docente; no enaltecimento de certas disciplinas escolares em detrimento de outras, se estrutura a lógica empresarial na escola, que não se preocupa com a influência de fatores extraescolares no desempenho dos alunos e alunas (FREITAS, 2018). E ademais, “com efeito, o governo, em resposta às influências neoliberais, equipa-se para avaliar o desempenho da educação com instrumentos de avaliação dos produtos, como se fosse possível pensar a educação sob essa equação mercadológica” (NETO EISENBACH; CAMPOS, 2017, p. 10993). Assim, ao se refletir sobre essa forma de pensar a educação, recordamos o filme “Tempos Modernos” com Charles Chaplin no papel de um operário de indústria, em 1930, que se aliena, ao realizar tarefa altamente especializada, padronizada e que o reduz a uma mera engrenagem do sistema que visa a eficiência e os resultados de seus operários já coisificados. No caso da educação nos moldes empresariais, em um comparativo com o filme, o aluno (“o operário”) é mais um número, pois o que importa são resultados quantitativos obtidos através dos testes padronizados e a exclusão se faz presente para aqueles que não se encaixam nesse esquema. Apesar de o filme ter uma forte relação com o período da Idade Moderna e o processo de industrialização, em que o modelo fabril se fazia presente, nota-se que atualmente, apesar desse modelo estar sendo suplantado pela sociedade da tecnologia e da economia globalizada, a produção parcelada e fragmentada do início do século XX ainda exerce fortes influências em diversos setores da sociedade, como a educação ofertada as suas camadas mais pobres. Desumanizando e segregando. 37 A partir dessa lógica, Aranha (2006, p. 78) considera que “[...] a pessoa não é um fim, mas sempre um meio para se atingir qualquer outra coisa que se ache fora dela”, sendo que critérios de eficiência, produtividade e desempenho advindos de uma sociedade mormente administrada pela classe dominante adentram o território da escola, estimulando o comportamento individualista e competitivo e dificultando a construção da solidariedade em nome de interesses empresariais. Carregado de uma visão tecnicista que destoa das necessidades e finalidades da instituição de ensino e baseado em velhas ideias que se julgavam superadas (século passado), o olhar neoliberal sobre a educação se baseia na sobrevivência do mais forte e na busca por resultados, que são obtidos apenas pelo próprio mérito, tendo como finalidades, embora nem sempre explícitas: [...] garantir o domínio de competências e habilidades básicas necessárias para a atividade econômica revolucionada pelas novas tecnologias e processos de trabalho [...], garantir que tal iniciativa se contenha dentro da sua visão de mundo que se traduz em um status quo modernizado (FREITAS, 2018, p. 42). Portanto, as ideias que permeiam e que são valorizadas nessa forma padronizada e homogeneizadora, levam a um tratamento desigual e injusto, ofertando de formas diferenciadas seu ensino e acreditando que a culpa do fracasso é única e exclusiva dos professores e/ou dos próprios alunos. A concepção de uma educação seletiva para os “interessados em aprender”, produto de uma concepção de sociedade baseada na competição e no mérito, se materializa na segregação social dos “indesejáveis”. As condições de vida que criminalizam milhares de jovens são reduzidas a uma única condição pessoal: “não querem aprender” (FREITAS, 2018, p. 117). A escola, ainda é fortemente impregnada com ideias do período moderno e enfrenta desafios inesperados gerados pela pós-modernidade, pois hoje, não pode mais ancorar seus objetivos e práticas nas certezas e deve buscar novas formas de legitimação em uma sociedade em constante mudança, marcada pela desconfiança (NEIRA; NUNES, 2009), porém ao sucumbir aos objetivos neoliberais e empresariais, o que ocorre parece ser um reforço de alguns preceitos conservadores advindos do período moderno, associados à lógica atual de mercado, que precisam ser questionados, problematizados e superados no ambiente escolar. 38 Com isso, nota-se que características como as citadas anteriormente corroboram para a formação de seres humanos que se encontram enfraquecidos no quesito humanidade, sendo levados ao nível de coisas consumíveis e que consomem acriticamente. “Na sociedade dos consumidores, ninguém pode deixar de ser objeto de consumo”, ressalta Bauman (2009, p. 18). Alguns sendo colocados por mais tempo perto do polo das mercadorias e para que esses possam desfrutar da vida de consumo, precisam ser capazes de demonstrar seu próprio valor de uso, conclui o autor. Presume-se então, que ao se coisificar os seres humanos, coisificam-se também, por conseguinte, suas relações. Quando alguns são vistos apenas como meios para se chegar a fins alheios e ligados meramente ao lucro, descartando individualidades em nome do individualismo e da competitividade do pensamento neoliberal são tidos como produtores de resultados, números. Portanto, aqueles que são tratados como mercadoria, tendem a permanecer nesse status, pois, segundo o percurso histórico debatido anteriormente, não lhes são oferecidas oportunidades para que possam mostrar seu próprio valor de uso. Sendo assim as relações permanecem assimétricas e muitas vezes, são percebidas como “naturais”, pela ausência de senso crítico. Segundo Aranha (2006), essa naturalização tem bases ideológicas, que influenciam tanto um estrato quanto o outro da sociedade, pois ambos acreditam que sua situação é orgânica. Assim, a educação baseada nesses preceitos reduz a possibilidade de o indivíduo construir uma personalidade social que o faça enxergar criticamente a situação em que se encontra e que a confronte. Os resultados que estamos presenciando dessa educação, que exige um valor de uso aos objetos de consumo, ou seja, as pessoas, escancara-se nas desigualdades vividas por muitos, nas diversas formas de violência sofridas por outros tantos, nas exclusões e segregações de grupos que não se encaixam nas exigências feitas por aqueles que impõe esse ideário mercadológico; esse grupo sendo formado, em sua maioria, pelos detentores dos bens de consumo. Portanto, um conhecimento limitado nos quesitos éticos e políticos, oferece também noções limitadas (quando oferecem) “[...] de como as escolas deveriam educar os estudantes para combater os limites opressivos da dominação baseada em gênero, raça, classe e idade” (GIROUX, 2003, p. 61), assim, formando uma 39 massa acrítica que apenas reproduz, pois o ideário mercadológico não oferece subsídios pedagógicos “[...] para que os estudantes envolvam-se criticamente com o conhecimento como uma ideologia profundamente comprometida com questões e lutas que dizem respeito à produção de identidades, cultura, poder e história (GIROUX, 2003, p. 61). Para além, através de pesquisas realizadas por Libâneo (2006) e Filho e Araújo (2017), as quais indicam que a educação pública apresenta fracasso escolar, verificado na evasão escolar e na repetência entre outros fatores, como: inadequação de conteúdos, falta de preparo docente, defasagem na aprendizagem, falta de infraestrutura e materiais adequados, desinteresse da família etc., fica nítida a necessidade de uma reorganização estrutural e conceitual da educação que é ofertada à população de forma geral. Educação essa que apenas reforça a forma desigual de divisão da sociedade, com desiguais oportunidades nos diversos setores da vida social e que apresenta resultados que refletem essa situação. Como forma de comprovação, dados divulgados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira e Ministério da Educação (INEP, 2017) revelam que 12,9% e 12,7% dos alunos matriculados na 1ª e 2ª série do Ensino Médio, respectivamente, evadiram da escola de acordo com o Censo Escolar entre os anos de 2014 e 2015. No ensino fundamental, o 9º ano tem a maior taxa de evasão, 7,7% e a repetência na 1ª série do Ensino Médio chega a 15, 3%, sendo o índice alto também no 6°ano do Ensino Fundamental, com taxas de 14,4%, nos anos de 2014 e 2015. Logo, uma relação íntima entre as mudanças econômicas e as mudanças que acontecem na educação de forma geral é notória, a forma como o mercado se comporta influencia a maneira de como se educar as pessoas, o que se torna importante ou deixa de ser é ditado pela lógica do capital. Aqui evidenciam-se o que “serve” e o que “não serve”, o que é aceitável e o que deve ser excluído, esquecido ou silenciado. Neira e Nunes (2009, p. 38) confirmam e ilustram que a forma de ensinar, dança conforme a música do capital, ao declararem que: Se, anteriormente, o sistema de ensino público priorizava a formação de uma força-trabalho disciplinada e confiável, a nova ordem capitalista exige trabalhadores com capacidade de aprender rapidamente, trabalhar em equipe de maneira criativa e confiável, tornando o setor produtivo algo mais 40 dinâmico e adaptado às rápidas transformações e às possíveis novas demandas. Resultados de análise interpretativa dos fenômenos econômicos, políticos, sociais e culturais de Neto Eisenbach e Campos (2017, p. 10985) apontaram “[...] para a universalização do processo de ensino, centralização do processo educacional a uma perspectiva econômica universal, na qual o aluno – cidadão – é considerado um importante fator de produção, portanto, um ser econômico de produção”. Estudantes de nossas escolas são vistos apenas como um projeto de futura mão de obra, sendo assim, corroboramos Neira e Nunes (2009), quando questionam sobre uma contradição que salta aos nossos olhos: por um lado existe a função social da escola contemporânea que preza por formar para inserir no mercado de trabalho, mercado este que se preocupa com o imediatismo das respostas às reinvindicações advindas de diversos setores, sendo obcecado pelo acúmulo de capital. Por outro lado, existe “[...] a formação dos cidadãos voltada para uma inserção crítica na vida pública, de forma a contribuir com a transformação das desigualdades que habitam esta sociedade democrática” (NEIRA; NUNES, 2009, p. 15). Problematiza-se ainda, afirmando que existe um abismo entre os discursos legais e documentos oficiais que regem o meio social e educacional, que controlam e normatizam a educação e a realidade vivida; um abismo entre as intenções e as realizações de fato. Leis e princípios indicativos, porém não resolutivos das questões cotidianas. Leis e princípios que defendem algo que a lógica de nossa sociedade atual faz ficar cada vez mais distante. Como forma de um possível entendimento dessas contradições, verifica-se que a política vigente não se impõe apenas pelas leis no meio educacional, pois o comportamento de alunos e professores é permeado também pelo que se denomina de “currículo oculto”, demonstrando interesses implícitos em sua forma de ação (ARANHA, 2006). Sendo assim, afirma-se que: Para além do currículo oficial, a atividade educativa é permeada por normas, valores e crenças de tal modo entranhados que as pessoas não 41 tomam consciência explicita deles. Por exemplo, o insucesso e a exclusão escolar muitas vezes são atribuídos à incapacidade do aluno, quando na verdade já existe uma divisão na sociedade que impede a melhor distribuição de bens, incluindo aí o saber escolar. Da mesma maneira, preconceitos arraigados no imaginário da sociedade contra negros, pobres, mulheres e gays orientam a postura de pouco interesse ou até hostilidade nas relações em sala de aula (ARANHA, 2006, p. 47). No Brasil, a Constituição Federal (BRASIL, 1988) considerada também como constituição cidadã, em seus objetivos fundamentais (Artigo 3°) consagra metas em que há prevalência da preocupação com os Direitos Humanos, – previstas na maioria de tratados e convenções internacionais – garantindo o estado democrático de direito e justiça social, tanto para o indivíduo quanto para a coletividade. Também, em relação à educação nacional, encontra-se a Lei de Diretrizes e Bases – LDB 9394/96 (BRASIL, 1996), que possui o objetivo de propiciar a todos formação básica para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho, preparando-os para a vida em sociedade. O ensino, segundo a lei (BRASIL, 1996), deve ser ministrado com base em alguns princípios (Artigo 3°) como, por exemplo: igualdade de condições para o acesso e permanência na escola, respeito à liberdade e apreço à tolerância, pluralismo de ideias e concepções pedagógicas, valorização da experiência extraescolar, garantia de padrão de qualidade, consideração com a diversidade étnico-racial, dentre outros. O que deixa clara uma preocupação com uma formação mais humanizada, que visa proporcionar, teoricamente, igualdade de oportunidades perante uma educação de maior qualidade que não tolera discriminações e busca a justiça social. Outro documento que influencia diretamente a área de educação em todo território nacional, previsto pela Constituição (BRASIL, 1988), pela LDB (BRASIL, 1996) e pelo Plano Nacional de Educação (BRASIL 2014) é a Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2017) que visa estabelecer, segundo o próprio documento, “[...] o conjunto de aprendizagens essenciais e indispensáveis a que todos os estudantes, crianças, jovens e adultos, têm direito” (BRASIL, 2017, p. 5). E que [...] expressa o compromisso do Estado Brasileiro com a promoção de uma educação integral voltada ao acolhimento, reconhecimento e desenvolvimento pleno de todos os estudantes, com respeito às diferenças e enfrentamento à discriminação e ao preconceito (BRASIL, 2017, p. 5). 42 Destaca-se, porém, que toda elaboração que advém da consciência humana, assim como o direito, as leis, refletem as condições estruturais da sociedade em um determinado momento histórico e são nutridas pelos interesses daqueles que dominam esse momento, alerta Aranha (2006). E ainda assevera que como as leis são feitas pela elite, consequentemente, ocorre a defesa dos valores desse grupo que já detém privilégios. “Por isso, ao examinar o texto de uma lei, é preciso ler nas entrelinhas, analisar o contexto em que se insere, a fim de descobrir as relações de poder que se acham por trás, no processo de sua gestação” (ARANHA, 2006, p. 83). Sendo assim, nota-se que aparentemente, o que ocorre na atualidade é um modo superficial e, de certa forma, ingênuo (ou mal intencionado!) de se encarar a educação no Brasil (e em certas partes do mundo) o seu ensino institucionalizado, em que se aceita como sendo natural associar-se o desenvolvimento humano aos interesses mercadológicos empresariais. Vendendo a ideia que dessa associação, que preza pela dita “qualidade de ensino” e que em seus discursos rechaça a desigualdade e injustiça, possa brotar uma sociedade mais humanizada e defensora do bem-estar de todos e todas. À primeira vista é possível achar que educação e cidadania convergem no ideal neoliberal que se impõe sobre a educação. Porém, uma leitura mais crítica e aguçada permite inferir que esses documentos enfatizam a importância da educação como ferramenta para o desenvolvimento do mercado de trabalho e o progresso da economia; defendem a qualidade da educação para que os alunos aprendam as competências necessárias para o mercado; clamam pela igualdade visando atingir as metas colocadas pelos próprios órgãos internacionais por meio de resultados obtidos em avaliações globais, mas defendem a meritocracia e o reconhecimento; decorrente disso, continuam falando em criar cada vez mais sistemas de avaliação; discursam sobre autonomia e participação da sociedade, mas não questionam o formato da escola tradicional (NETO EISENBACH; CAMPOS, 2017, p. 10997). Intelectuais, educadores e estudantes criticam a prática da educação em nosso país, afirmando que existe uma distância entre a promessa e a realidade, pois a prática educativa [...] nega no cotidiano o que afirma a lei. Não há liberdade no país e a educação não tem tido papel algum nos últimos anos para sua conquista; não há igualdade entre os brasileiros e a educação consolida a estrutura classista que pesa sobre nós; não há nela nem consciência nem 43 fortalecimento dos nossos verdadeiros valores culturais (BRANDÃO, 2007, p. 56). Um exemplo desse discurso que defende uma educação igualitária e de qualidade está exposto no atual Plano Nacional de Educação (BRASIL, 2014), que é um documento que norteia as políticas públicas do setor, definindo metas e objetivos para todos os níveis de ensino, pelos próximos dez anos. Como destaque verifica-se que diversos segmentos da sociedade participaram de sua elaboração, tanto públicos quanto privados. Sendo um deles o movimento Todos pela Educação, que segundo o próprio PNE, esclareceu que tal movimento [...] reúne como mantenedores institutos e fundações privadas empresariais que se preocupam com a escolaridade da população e a melhoria da qualidade da mão de obra, insatisfatória para as necessidades do mercado (BRASIL, 2014, p. 18). Ao mesmo tempo em que assume a influência dos setores privados empresariais que levam consigo as características tão marcadas do mundo do consumo e interesses de grupo, o documento define e defende em suas diretrizes, no artigo 2º, a necessidade de superação das desigualdades educacionais, melhoria na qualidade da educação, erradicação de todas as formas de discriminação, promoção humanística e dos princípios do respeito aos direitos humanos e à diversidade, dentre outros (BRASIL, 2014). Uma diretriz em especial, desse mesmo artigo 2º, destaca-se, pois preocupa-se justamente com a formação para o trabalho aliada ao desenvolvimento moral e ético do ser humano que vive em sociedade: “V – formação para o trabalho e para cidadania, com ênfase nos valores morais e éticos em que se fundamenta a sociedade; ” (BRASIL, 2014, p. 32). Se a sociedade atual se fundamenta nos valores neoliberais do capital e do livre comércio, valores e princípios esses advindos de uma pequena parcela que dita as normas, é inevitável o questionamento: como é possível concatenar igualdade, justiça social, respeito à diversidade e aos direitos humanos a esses interesses privados e voltados a características que são contraditórias ao que é previsto nessas leis e documentos e na própria finalidade da educação? 44 Libâneo (2006) afirma que a classe dominante detém vários meios de produção que difundem suas ideias, valores e práticas, fazendo-os parecer como sendo representativos de todas as classes sociais (ideologia dominante), o que impulsiona a classe dominada a ficar a serviço dessa concepção dominante de mundo, criando uma ilusão de que nessa concepção estão englobados seus próprios interesses e preocupações. Dessa forma, ofusca-se a visão e um conformismo se instala, as situações de desigualdades e injustiças ficam no campo da normalidade, naturalizando-se e perpetuando-se. [...] a ideologia “naturaliza” a realidade, ao esconder o fato de que a existência só é produzida pelo próprio ser humano e só pode ser alterada por ele: não é “natural” que haja o contraste entre opulência e miséria, que exista a separação entre trabalho intelectual e braçal, nem que alguns estejam destinados ao mando e outros, à obediência. Na sociedade dividida aceita-se que a classe “que sabe pensar” controla as decisões e manda, enquanto a outra que “não sabe pensar” – embora tenha sido impedida de aprender e pensar – executa e obedece (ARANHA, 2006, p. 82, grifo da autora). Assim, assume-se a ideia de que a escola é igual para todos, porém o que ocorre é uma igualdade formal de oportunidades e uma desigualdade de resultados em decorrência de capacidades e esforços individuais, cada um chegando onde suas capacidades e seu trabalho pessoal permitirem. Pode-se considerar que de forma implícita ou explícita, através de seu currículo, a escola transmite e consolida uma ideologia norteada por valores que consistem e defendem o individualismo, a competitividade, a falta de solidariedade (NEIRA; NUNES, 2009), cada um sendo responsabilizado pelo seu próprio sucesso ou insucesso, “[...] o peso da trama dos padrões e responsabilidade pelo fracasso caem principalmente sobre os ombros dos indivíduos” (BAUMAN, 2001, p. 15), assim, não se levando em conta que outros fatores são cruciais e determinantes. O que se percebe, a partir das ponderações descritas, de forma geral, é que a sociedade – a brasileira de baixa renda, em particular – precisa de uma educação de muita profundidade para conseguir refletir e confrontar sua situação de desigualdade e esta educação, propositalmente, não é oferecida para esta classe que apenas aprende a aprender a aprender, o que facilita o trabalho de massificação 45 e homogeneização de ideias e conceitos, tornando-os, por vezes, naturais e inquestionáveis. Gerando um conformismo acrítico. De acordo com Bauman (2001), as pessoas por estarem satisfeitas com a escravidão, sentem-se livres nela e desta forma, não querem experimentar a necessidade de se libertar, perdendo a chance de tornarem-se genuinamente e verdadeiramente livres. E ainda continua, ao sustentar que a Ameaça mais sombria atormentava o coração dos filósofos: que as pessoas pudessem simplesmente não querer ser livres e rejeitassem a perspectiva da libertação pelas dificuldades que o exercício da liberdade pode acarretar (BAUMAN, 2001, p. 27). Presume-se assim que o exercício da liberdade anda de mãos dadas com o ato de pensar e refletir. E pensar, de certa forma, torna-se danoso e ameaçador, pois o simples fato de se questionar ou problematizar o que é tido como “normal” e único, pode desassossegar aqueles que querem manter seu status. Portanto, fica evidente a necessidade de uma educação e de uma escola que tornem realmente acessíveis [...] às novas gerações um conhecimento que as possibilite “sentir-se em casa no mundo”, e esta parece ser a tarefa sociopolítica mais relevante da educação escolar. Conhecer é, enfim, constituir o que chamamos “nosso mundo” (o que nos autoriza a intervir), processo que se realiza no infinito compartilhar de sentidos gerados pelos seres humanos (GONZÁLEZ; FENSTERSEIFER, 2009, p. 14). Porém, por outro lado, a reforma empresarial que vem ocorrendo na educação, segundo Freitas (2018), tem insistido para que as aprendizagens envolvendo habilidades e competências sejam mais focadas nas disciplinas tidas como básicas (usualmente português e matemática – que aparecem em seus testes e medições de desempenho), o que reduz a oferta de conhecimentos, corroborando para ausência de uma consciência crítica e, por conseguinte, reduzindo a possibilidade de o (a) aluno (a) intervir de uma forma mais efetiva e transformadora em sua própria realidade. Para os reformistas ocorre um temor de que processos de trabalho, existentes no mercado, voltados ao uso maior de tecnologias, demandem, provavelmente, mais instrução e conhecimentos que o considerado aceitável, 46 educando demais a mão de obra. Conhecimentos, como foi visto anteriormente, que se destinam a uma camada da sociedade que pertence à elite detentora dos bens de consumo, caso contrário, o nível de conscientização da população se elevaria, colocando em xeque o próprio ideário dominante, constata Freitas (2018). Logo, averígua-se que a educação é um instrumento de manutenção ou transformação social e quando não há reflexão sobre a mesma, ocorre apenas uma reprodução dos meios de produção, baseada em uma “[...] concepção mais ou menos obscura e opaca existente na cultura vivida do dia a dia – e assim se realiza uma ação educativa com baixo nível de consciência”, afirma Luckesi (2011, p. 47). Quanto mais se preocupam com resultados e testes padronizados, como o Saeb (Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica) e o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), desmerecendo o trabalho docente, reduzindo os saberes e dando mais importância apenas às disciplinas que são consideradas como básicas para esse ideário padronizador, assim setores de baixa renda ficam – propositalmente – mais afastados de um nível de consciência que leve a uma maior compreensão crítica do que acontece em nosso entorno. Dessa forma, sem reflexão, ocorre uma alienação, que corrobora para a manutenção do status quo e da passividade perante os acontecimentos, gerando indivíduos manipuláveis e acríticos. Então, “o ser alienado não olha para a realidade com critério pessoal, mas com olhos alheios. Por isso vive uma realidade imaginária e não a sua própria realidade objetiva” (FREIRE, 2018, p. 45). Com essa alienação da sociedade que também se faz presente no ambiente escolar, de certa forma, ocorre apenas um reforço do ideário vigente, que pela falta de problematização, pode ser tido como a forma mais “correta” e única de se fazer educação, tanto pelo senso comum como pelos próprios atores envolvidos no processo institucionalizado de ensino. A mesma educação que ensina, pode deseducar, correndo-se o risco de fazer o contrário do que pensa que faz, “[...] tanto pode ser a mão do artista que guia e ajuda o barro a que se transforme, quanto a forma que iguala e deforma”, segundo Brandão (2007, p. 25). Freitas (2018) em suas considerações declara que a ausência de um pensamento mais crítico e questionador leva a uma redução do real poder educativo e a uma banalização das finalidades da educação, quando 47 Os resultados das avaliações passam a guiar a vida escolar. A elevação da nota da escola é estabelecida como referência de qualidade, o que leva à ocultação do debate sobre as finalidades educativas, favorecendo a captura da ação pedagógica pelo status quo (FREITAS, 2018, p. 82). Assim, segundo essa visão reducionista de educação, o importante a se discutir no ambiente escolar, fica para segundo plano, focando-se apenas nos resultados, pois a maior preocupação recai sobre a reputação e os benefícios que a escola vai ter, ou não, se por acaso, não corresponder aos índices desejáveis na realização desses testes. De acordo com Neira e Nunes (2009), os pressupostos que pertencem ao mundo da economia imp