PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC-SP PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS SAN TIAGO DANTAS – UNESP, UNICAMP E PUC-SP RAQUEL DE BESSA GONTIJO DE OLIVEIRA Os que querem, os que podem e os que têm: um estudo sobre as forças motrizes da proliferação de armamentos nucleares e mísseis balísticos SÃO PAULO 2018 RAQUEL DE BESSA GONTIJO DE OLIVEIRA Os que querem, os que podem e os que têm: um estudo sobre as forças motrizes da proliferação de armamentos nucleares e mísseis balísticos Tese apresentada ao Programa de Pós- graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), como exigência para obtenção do título de doutor em Relações Internacionais, na área de concentração “Paz, defesa e segurança internacional”, Pensamento Estratégico, Defesa e Política Externa”. Orientador: Reginaldo Mattar Nasser. SÃO PAULO 2018 RAQUEL DE BESSA GONTIJO DE OLIVEIRA Os que querem, os que podem e os que têm: um estudo sobre as forças motrizes da proliferação de armamentos nucleares e mísseis balísticos Tese apresentada ao Programa de Pós- graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), como exigência para obtenção do título de doutor em Relações Internacionais, na área de concentração “Paz, defesa e segurança internacional”, Pensamento Estratégico, Defesa e Política Externa”. Orientador: Reginaldo Mattar Nasser. BANCA EXAMINADORA ______________________________________________ Prof. Dr. Reginaldo Mattar Nasser (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) ______________________________________________ Prof. Dr. Eugenio Pacelli Lazzarotti Diniz Costa (Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais) ______________________________________________ Prof. Dr. Flávio Rocha de Oliveira (Universidade Federal do ABC) ______________________________________________ Prof. Dr. Héctor Luis Saint-Pierre (Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”) ______________________________________________ Prof. Dr. Samuel Alves Soares (Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”) São Paulo, 27 de fevereiro de 2018. Esta pesquisa contou com o apoio financeiro da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), à qual expresso minha gratidão. Para minha família, de duas pernas e de quatro patas. AGRADECIMENTOS Esta tese não teria sido concluída sem a ajuda de muitas pessoas, que contribuíram das mais diversas formas para o resultado final. Em primeiro lugar, agradeço ao incrível grupo de pesquisadores do GEDES, com quem troquei ideias sobre as Relações Internacionais, sobre os infinitos dilemas envolvidos no penoso processo de conceber e conduzir uma pesquisa, e sobre todas as paixões, hilaridades, humilhações, preocupações e vitórias da vida acadêmica e da vida em geral. Em particular, agradeço o apoio, as sugestões e críticas e o companheirismo daqueles com quem tive a sorte de conviver com mais proximidade: Diego Lopes, Bárbara Motta, Lívia Milani, Giovanna Ayres, Luiza Januário, Kimberly Digolin, Ronaldo Canesin, Jonathan de Assis, Tamires Souza, Clarissa Forner, Mayra do Prado, Raphael Camargo, Laura Donadelli, David Succi, Karina Calandrin e Helena Salim. Agradeço também ao Matheus Oliveira, pela inestimável amizade repleta de acaloradas discussões sobre RI, livros, filmes, política, pesquisa e gatos. Manifesto minha profunda gratidão a todos os professores do Programa San Tiago Dantas, sobretudo aos professores Samuel Alves Soares e Héctor Saint-Pierre, com quem pude trocar ideais sobre a Segurança Internacional e o estado atual do nosso mundo, e com aprendi muito sobre RI, sobre ética profissional e sobre vinhos argentinos. Agradeço especialmente ao meu orientador, prof. Reginaldo Nasser, que me deu a liberdade de que eu precisava para explorar e testar minhas ideias em busca do conhecimento. Agradeço ainda aos colegas da PUC-SP, da FAAP e da PUC-MG. Pela fagulha que originou esta tese e por comentários e sugestões extremamente valiosos ao longo do caminho, agradeço ao prof. Eugenio Diniz, por quem tenho inexprimível admiração profissional e pessoal. Por fim, agradeço à minha família, com quem aprendi e compartilho a paixão pela leitura, pela reflexão e pela descoberta. Sem o amor e o apoio dos meus pais, eu nunca teria iniciado esta empreitada. Com particular carinho, agradeço à minha irmã, que me acompanhou na jornada insana de tentar escrever uma tese. The history of mankind is the history of the attainment of external power. Man is the tool-using, fire-making animal. H.G. WELLS (1921, p. 4) RESUMO A proliferação de armamentos nucleares representa um problema ainda não solucionado na agenda de segurança internacional, e está intimamente relacionada à proliferação de mísseis balísticos. A literatura sobre este tópico contém diferentes hipóteses sobre o que causa a proliferação, as quais podem ser distinguidas entre aquelas que se referem à demanda que os Estados têm por esses armamentos e aquelas que enfatizam o papel da oferta, ou seja, da facilidade de acesso à tecnologia sensível através da cooperação civil internacional. Nesta pesquisa, investigamos o papel de diferentes elementos sobre as decisões dos Estados de adquirirem, ou não, armamentos nucleares e mísseis balísticos, contrapondo as forças relacionadas à demanda e à oferta. Através de uma análise quantitativa, identificamos algumas correlações relevantes, com destaque para a importância da insegurança como uma força motriz da proliferação e a aparente irrelevância do acesso à tecnologia através de acordos de cooperação internacional. A partir de nossa análise estatística, selecionamos o caso da não- aquisição canadense como objeto para uma investigação mais detida, em que confirmamos a importância do contexto de segurança e o papel marginal do acesso à tecnologia, além de identificarmos uma influência de aspectos identitários sobre a decisão de não-aquisição. Diante disso, concluímos que os fatores relativos à demanda têm impacto muito superior sobre a proliferação do que fatores relacionados à oferta. Palavras-chave: Proliferação. Armamentos nucleares. Mísseis balísticos. ABSTRACT Nuclear weapons proliferation represents a yet unsolved problem in the international security agenda, and it is intimately related to ballistic missile proliferation. Specialized literature on this topic contains different hypotheses about what causes proliferation, which can be distinguished between those that refer to states’ demand for these weapons, and those that emphasize the role of supply, represented by states’ access to sensitive technology through international civil cooperation. In this research, we investigate the role that different factors play in influencing states’ decision to acquire or relinquish nuclear weapons and ballistic missiles, and we contrapose forces related to demand and supply. Through a quantitative analysis, we identify some relevant correlations, among which the relevance of insecurity as a driving force of proliferation and the apparent irrelevance of access to technology through international cooperation are particularly noteworthy. From our statistical analysis, we select the case of Canadian non-acquisition to be the object of more detained investigation, through which we confirmed the importance of the security context and the marginal role of access to technology, besides identifying an influence of identity aspects on the non-acquisition policy. In light of this, we conclude that factors relating to demand have a far larger impact on proliferation than factors relating to supply. Keywords: Proliferation. Nuclear weapons. Ballistic Missiles. RESUMEN La proliferación de armamentos nucleares representa un problema que todavía no tiene solución en la agenda de seguridad internacional, y que está íntimamente relacionado a la proliferación de mísiles balísticos. La literatura acerca de este tópico contiene distintas hipótesis sobre lo que causa la proliferación, que pueden ser distinguidas entre las que se refieren a la demanda de los Estados por eses armamentos, y las que enfatizan el papel de la oferta, o sea, la facilidad de acceso a tecnología sensible a través de la cooperación civil internacional. En esta pesquisa, investigamos el papel de distintos elementos sobre la decisión de los Estados de adquirieren, o no, los armamentos nucleares y los mísiles balísticos, haciendo un contrapunto entre las fuerzas relacionadas a la demanda e a la oferta. A través de un análisis cuantitativo, identificamos algunas correlaciones relevantes, con destaque para la importancia de la inseguridad como una fuerza motriz de la proliferación y la aparente irrelevancia del acceso a tecnología por acuerdos de cooperación internacional. A partir de nuestro análisis estadístico, seleccionamos el caso de la no-adquisición canadiense como objeto para una investigación más detenida, en la cual confirmamos la importancia el contexto de seguridad y el papel marginal del acceso a la tecnología, además de identificamos una influencia de aspectos identitarios sobre la decisión de no-adquisición. Frente a eso, concluimos que los factores relativos a la demanda tienen un impacto muy superior sobre la proliferación que los factores relativos a la oferta. Palabras clave: Proliferación. Armamentos nucleares. Mísiles balísticos. LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS AIEA Agência Internacional de Energia Atômica CSA Agência Espacial Canadense (Canadian Space Agency) CTBT Tratado Compreensivo de Proibição de Testes nucleares (Comprehensive Test Ban Treaty) CTBTO Organização do Tratado Compreensivo de Proibição de Testes nucleares (Comprehensive Test Ban Treaty Organization) DRB Comitê de Pesquisas de Defesa do Canadá (Defense Research Board) ELDO Organização Europeia para Desenvolvimento de tecnologia de Lançamento (European Launch Development Organization) ESA Agência Espacial Europeia (European Space Agency) ESRO Organização Europeia para Pesquisa Espacial (European Space Research Organization) FMCT Tratado de Interrupção de Material Físsil (Fissile Material Cut-off Treaty) FMT Tratado de Material Físsil (Fissile Material Treaty) HCoC Código de Conduta de Haia (Hague Code of Conduct against Ballistic Missile Proliferation) ICAN Campanha Internacional para Proibição de Armamentos Nucleares ICBM Míssil Balístico Intercontinental (Intercontinental Ballistic Missile) ISS Estação Espacial Internacional (International Space Station) ITAR Regulações de Comércio Internacional de Armamentos dos Estados Unidos (International Traffic in Arms Regulations) MRBM Míssil Balístico de Médio Alcance (Medium Range Ballistic Missile) MTCR Regime de Controle de Tecnologia de Mísses (Missile Technology Control Regime) NASA Administração Nacional de Aeronáutica e Espaço (National Aeronautics and Space Administration) NORAD Comando de Defesa Aeroespacial da América do Norte (North American Aerospace Defence Command) NSG Grupo de Fornecedores Nucleares (Nuclear Suppliers Group) OTAN Organização do Tratado do Atlântico Norte PTBT Tratado de Proibição Parcial de Testes Nucleares (Partial Nuclear Test Ban Treaty) TNP Tratado de Não-Proliferação Nuclear UNAEC Comissão das Nações Unidas para Energia Atômica (United Nations Atomic Energy Comission) ZLAN Zona Livre de Armas Nucleares SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 14 1.1 As hipóteses ....................................................................................................................... 16 1.2 Relevância deste estudo .................................................................................................... 21 1.3 Desenho de pesquisa ......................................................................................................... 27 2 AS CONDIÇÕES PARA A PROLIFERAÇÃO ............................................................... 29 2.1 A demanda: o imperativo de segurança ......................................................................... 31 2.1.1 Uma ressalva ao modelo: a capacidade dissuasória ........................................................ 37 2.2 A demanda: normas e ideias compartilhadas ................................................................ 38 2.3 A demanda: a política doméstica .................................................................................... 44 2.4 A oferta: o imperativo tecnológico .................................................................................. 50 2.5 A proliferação de mísseis balísticos ................................................................................. 57 3 REGIMES DE NÃO-PROLIFERAÇÃO .......................................................................... 64 3.1 Não-proliferação de armamentos nucleares .................................................................. 66 3.1.1 A AIEA e o TNP ............................................................................................................. 67 3.1.2 Mecanismos de controle de difusão da tecnologia .......................................................... 74 3.1.3 Outros mecanismos de não-proliferação nuclear............................................................. 78 3.2 Não-proliferação de mísseis balísticos ............................................................................ 81 3.3 Conclusão .......................................................................................................................... 86 4 A PROLIFERAÇÃO EM NÚMEROS .............................................................................. 87 4.1 As variáveis ....................................................................................................................... 89 4.1.1 As variáveis dependentes................................................................................................. 89 4.1.2 As variáveis independentes ............................................................................................. 91 4.2 Os acordos de cooperação civil ........................................................................................ 94 4.3 As correlações ................................................................................................................... 98 4.3.1 Algumas considerações metodológicas ........................................................................... 99 4.3.2 Correlações .................................................................................................................... 102 4.4 Economia como uma barreira de entrada .................................................................... 104 4.5 Insegurança como uma barreira de entrada ................................................................ 111 4.6 Algumas conclusões ........................................................................................................ 113 5. ESTUDOS DE CASO: DISCUSSÃO METODOLÓGICA .......................................... 117 5.1 A seleção do caso ............................................................................................................. 118 5.2 O método: process tracing .............................................................................................. 122 5.3 Perguntas e hipóteses para o estudo de caso ................................................................ 123 5.3.1 Sobre as rivalidades ....................................................................................................... 124 5.3.2 Sobre as alianças ............................................................................................................ 125 5.3.3 Sobre a cooperação científica internacional .................................................................. 127 5.3.4 Sobre os regimes de não-proliferação ........................................................................... 128 5.3.5 Sobre questões identitárias e normativas ....................................................................... 129 5.3.6 Sobre a produção do armamento ................................................................................... 131 6 O DILEMA DA NÃO-AQUISIÇÃO: O CASO CANADENSE .................................... 132 6.1 Breve histórico ................................................................................................................ 133 6.2 As rivalidades .................................................................................................................. 139 6.3 As alianças ....................................................................................................................... 151 6.4 A cooperação científica .................................................................................................. 156 6.5 Os regimes de não-proliferação ..................................................................................... 163 6.6 Questões identitárias e normativas ............................................................................... 170 6.7 A não-aquisição ............................................................................................................... 175 6.8 Considerações finais ....................................................................................................... 176 7 CONCLUSÃO .................................................................................................................... 178 7.1 Sobre as hipóteses ........................................................................................................... 178 7.2 Últimas considerações .................................................................................................... 181 REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 182 APÊNDICE A – TABELAS DE CONTINGÊNCIA PARA TODOS OS PAÍSES ......... 204 APÊNDICE B – TABELAS DE CONTINGÊNCIA PARA OS PAÍSES ENTRE OS 50% MAIS RICOS NO RANKING DE PIB DE 2015, INCLUINDO ISRAEL, E EXCLUINDO A COREIA DO NORTE ...................................................................................................... 207 APÊNDICE C – TABELAS DE CONTINGÊNCIA PARA OS PAÍSES ENTRE OS 50% MAIS RICOS NO RANKING DE PIB DE 2015, INCLUINDO TANTO ISRAEL QUANTO A COREIA DO NORTE ................................................................................... 210 APÊNDICE D – TABELAS DE CONTINGÊNCIA PARA OS PAÍSES ENTRE OS 50% MAIS RICOS NO RANKING DE PIB DE 2015, EXCLUINDO ISRAEL, E INCLUINDO A COREIA DO NORTE ...................................................................................................... 213 APÊNDICE E – TABELAS DE CONTINGÊNCIA PARA OS PAÍSES ENTRE OS 33% MAIS RICOS NO RANKING DE PIB DE 2015, INCLUINDO ISRAEL ...................... 216 APÊNDICE F – TABELAS DE CONTINGÊNCIA PARA OS PAÍSES ENTRE OS 33% MAIS RICOS NO RANKING DE PIB DE 2015, EXCLUINDO ISRAEL ..................... 219 APÊNDICE G – TABELAS DE CONTINGÊNCIA PARA OS PAÍSES ENTRE OS 25% MAIS RICOS NO RANKING DE PIB DE 2015, INCLUINDO ISRAEL ...................... 222 APÊNDICE H – TABELAS DE CONTINGÊNCIA PARA OS PAÍSES ENTRE OS 25% MAIS RICOS NO RANKING DE PIB DE 2015, EXCLUINDO ISRAEL ..................... 225 APÊNDICE I – TABELAS DE CONTINGÊNCIA CONSIDERANDO APENAS OS PAÍSES QUE POSSUEM RIVALIDADES ....................................................................... 228 APÊNDICE J – CRONOLOGIA DA TRAJETÓRIA CANADENSE ............................ 231 14 1 INTRODUÇÃO O tema da proliferação nuclear tem, desde a segunda metade do século XX, lugar central na agenda internacional. Os anos 2000 viram essa questão ganhar atenção política e midiática com a descoberta da rede ilegal de transferência de tecnologia nuclear, comandada por A.Q. Khan, os avanços no programa nuclear norte-coreano e as sucessivas rodadas de negociação com o Irã, que culminaram na assinatura do Plano de Ação Conjunta (JCPOA), em 2015. Paralelamente, no campo teórico, os últimos anos trouxeram a revitalização do debate acerca das condições que propiciam a proliferação1, com o emprego de metodologias quantitativas que eram de difícil aplicação antes dos avanços recentes nas tecnologias de processamento de dados. Nesse debate, ganharam destaque as análises sobre como a difusão da tecnologia civil pode impactar sobre a proliferação dos armamentos nucleares, através da redução dos custos e riscos envolvidos na condução de um programa nuclear militar. Esse impacto decorre da natureza dual da tecnologia nuclear, que permite que conhecimentos, materiais e instalações adquiridos com finalidade civil sejam aproveitados para fins militares. Essa atenção para o lado da oferta complementa modelos sobre como se forma a demanda dos Estados pela bomba, seja essa demanda fruto de sua insegurança, de seu contexto normativo e ideacional, ou de sua dinâmica política doméstica. A proliferação de armamentos nucleares está associada, historicamente, à difusão de mísseis balísticos. Mísseis2 constituem um dos principais veículos de entrega da bomba, e são particularmente valorizados por sua velocidade e relativa invulnerabilidade aos sistemas de defesa antiaérea3. Assim como os armamentos nucleares, a tecnologia de mísseis é, em larga medida, de uso-dual, estando intimamente associada com o setor espacial civil, sobretudo com o desenvolvimento de veículos de lançamento espacial (que podem ser empregados, por exemplo, para colocar satélites em órbita). Os mísseis ganharam maior visibilidade a partir da década de 1980, quando o aumento de sua difusão para países em desenvolvimento e a necessidade de restrições à sua proliferação ganhou a pauta internacional. A proliferação de mísseis, no entanto, é menos estudada do que 1 Esse debate será mais detidamente apresentado e discutido no capítulo 2. Paralelamente, um dos principais debates da área diz respeito não às causas da proliferação, mas às suas consequências. Este debate opôs otimistas, que percebem na difusão de armamentos nucleares um elemento capaz de promover maior estabilidade no sistema internacional, a pessimistas, para os quais a proliferação tem como consequência o aumento do risco de conflitos nucleares no mundo. Esse debate foi consolidado no livro de Scott Sagan e Kenneth Waltz (2003). 2 A menos que acompanhado de outra classificação (como “mísseis de cruzeiro”), o termo “mísseis” aqui será empregado para se referir a mísseis balísticos. 3 Para uma discussão mais detida sobre as vantagens e desvantagens de mísseis balísticos, ver a seção 1.2. 15 a de armamentos nucleares, e os fatores que determinam seu avanço ainda merecem ser mais sistematicamente analisados. Isso pode ser feito, de forma muito fértil, através da comparação com a proliferação nuclear, uma vez que os dois campos compartilham características importantes4. Ambos esses armamentos envolvem tecnologias de uso-dual, cujas aplicações civis são reivindicadas por alguns Estados como benéfica para seu desenvolvimento econômico, científico e social e, portanto, como um direito de todos os países. Assim, este estudo comparativo tem o potencial de elucidar os vínculos entre a difusão da tecnologia civil e a proliferação de armamentos de alto teor tecnológico. Além disso, dentre os fatores que influenciam a demanda dos Estados por um determinado armamento, há semelhanças importantes entre os dois campos. Ainda que em uma escala distinta, mísseis balísticos são associados à capacidade de dissuasão e, por isso, podem ser valorizados pelos Estados como uma forma de ampliar sua segurança. Eles são, também, armamentos que concedem maior prestígio aos Estados que os possuem, principalmente em decorrência de sua elevada complexidade tecnológica (para mísseis de maior alcance e precisão). Finalmente, as dinâmicas políticas domésticas necessárias para sustentar um programa nuclear são análogas àquelas necessárias para sustentar um programa de mísseis, uma vez que ambos são grandes projetos científicos que demandam amplos recursos materiais e humanos5. Entendemos, então, que um estudo comparativo entre a proliferação de armamentos nucleares e a proliferação de mísseis balísticos pode ser proveitosa para os dois campos. Estudar a proliferação de todos os tipos de mísseis balísticos, no entanto, não seria adequado para os propósitos desta pesquisa, uma vez que mísseis de menor alcance são amplamente difundidos, e muitos países os adquiriram das grandes potências, sem a necessidade de desenvolver internamente a tecnologia. Por consequência, um regime que tentasse controlar a sua dispersão seria extremamente custoso e teria resultados muito limitados (KARP, 1996, p. 204-206). Portanto, consideramos apenas os Estados que detêm mísseis balísticos com alcance acima de 1000 km, cuja complexidade tecnológica permite uma comparação mais adequada aos programas de desenvolvimento nuclear. Essa comparação parece ainda mais acertada quando 4 Este tipo de estudo possibilita ampliar o estudo empírico sobre modelos teóricos, ao transpor sua aplicação para um novo conjunto de dados, que seja similar àquele para o qual o modelo foi originalmente formulado. Assim, o modelo teórico sobre o impacto da difusão tecnológica civil sobre a proliferação de armamentos nucleares pode ser aplicado aos mísseis balísticos, uma vez que ambos esses armamentos têm características similares. Então, se o modelo for corroborado pela análise da proliferação de mísseis, ele terá maior credibilidade, por ser capaz de explicar uma maior gama de eventos (KING; KEOHANE; VERBA, 1994, p. 51-54). 5 A aplicação dos modelos desenvolvidos sobre a proliferação nuclear para a proliferação de mísseis será discutida de forma mais detida na seção 2.5. 16 notamos que os Estados que detêm esses armamentos são, em larga medida, os mesmos (Quadro 1.1). Quadro 1.1 – Estados que possuem armamentos nucleares e mísseis balísticos Estados detentores de armamentos nucleares¹ Estados detentores de mísseis balísticos² Estados Unidos Estados Unidos Rússia Rússia Reino Unido Reino Unido França França China China Índia Índia Paquistão Paquistão Israel Israel Coreia do Norte Coreia do Norte Arábia Saudita Irã Fonte: Quadro produzido pela autora, com base em Kristensen e Norris (2013), Feickert (2005), e Arms Control Association (2012). 1 Dados retirados de KRISTENSEN; NORRIS (2013). Não incluímos aqui os Estados que possuíram armamentos nucleares, mas abriram mão deles, como a África do Sul ou a Ucrânia. 2 Apenas mísseis com alcance superior a 1000 km. Dados retirados de FEICKERT (2005); Arms Control Association (2012). 1.1 As hipóteses Esta pesquisa tem o objetivo de contribuir para a compreensão dos fatores que propiciam a proliferação, respondendo à pergunta: Como a proliferação nuclear e a proliferação de mísseis balísticos são influenciadas, de um lado, pela oferta internacional de tecnologias e conhecimentos e, de outro, pela demanda pelos armamentos? 6 Assim, esta pesquisa busca, através de uma comparação entre os processos de proliferação de armamentos nucleares e de mísseis balísticos, analisar os fatores que influenciam, permitem ou facilitam a proliferação, atentando para os impactos tanto da demanda dos Estados pela bomba ou pelos mísseis quanto da oferta de tecnologias relevantes (eminentemente, tecnologias de uso-dual). Do lado da demanda, englobamos fatores relacionados a três grupos de hipóteses, referentes à insegurança dos Estados, ao contexto normativo e à política doméstica. Esta pesquisa dará maior ênfase ao primeiro dos modelos 6 Ao investigarmos de que forma essa influência opera, é possível que se conclua que ela, de fato, não ocorre. Ou seja, não pressupomos, nesta pesquisa, a correlação entre a oferta de tecnologias ou a demanda por armamentos e os processos de proliferação. 17 sobre a demanda, por ser ele o mais consolidado e mais amplamente estudado, e ao modelo sobre a oferta tecnológica7. Então, com base no que propõe a literatura sobre as forças motrizes da proliferação, identificamos algumas hipóteses que orientam esta pesquisa. Essas hipóteses são divididas em dois grupos: hipóteses centrais, que derivam dos modelos da demanda dos Estados por segurança e da oferta de tecnologia, e hipóteses auxiliares, que se relacionam ao contexto normativo e da política doméstica, e que serão exploradas apenas na parte qualitativa desta pesquisa. Optamos por fazer essa distinção devido às dificuldades que encontramos para operacionalizar as variáveis normativas e domésticas. Alguns analistas tentam incorporar, em estudos quantitativos, variáveis que representem o contexto normativo e os fatores domésticos (EARLY, 2014; HYMANS, 2006b; JO; GARTZKE, 2007, p. 173; KROENIG, 2009b, p. 169; SINGH; WAY, 2004, p. 860), mas os resultados tendem a ser pouco conclusivos ou estatisticamente pouco significativos. Nós acreditamos que uma parte do problema seja a baixa validade conceitual e a operacionalização problemática dos construtos que os analistas desejam apreender. Por exemplo, a tentativa de medir o anseio dos Estados por maior prestígio internacional através de seu desempenho em Jogos Olímpicos (EARLY, 2014) parece ter baixa validade, principalmente porque o tipo de prestígio que se obtém em eventos esportivos é distinto do prestígio associado ao desenvolvimento de programas tecnológicos com intenso potencial militar. Além disso, as organizações domésticas associadas a essas duas áreas podem ser completamente distintas, de modo que sua lógica de funcionamento não é necessariamente análoga8. Assim, entendemos que as considerações normativas que influenciam as decisões dos Estados, bem como sua dinâmica política doméstica podem ser melhor apreendidas através de uma análise qualitativa, de modo que indicamos essas variáveis como auxiliares, para diferenciá-las das variáveis que serão consideradas em todas as etapas da pesquisa. A seguir, discutimos nossas hipóteses9. 7 A ideia para essa pesquisa surgiu justamente a partir de uma curiosidade a respeito do efeito da cooperação civil sobre a proliferação. Inicialmente, tínhamos a hipótese de que a transferência de tecnologias e conhecimentos sensíveis aumentaria o risco da proliferação. Contudo, à medida em que realizamos uma primeira exploração da literatura, essa hipótese pareceu inadequada. Assim, como será discutido adiante, uma de nossas hipóteses de pesquisa sugere que a cooperação civil não é um fator determinante para a proliferação. 8 Não surpreende, portanto, que Early (2014) não encontre uma correlação significativa entre o desenvolvimento de programas espaciais e o desempenho dos Estados nos Jogos Olímpicos. 9 Optamos por apresenta-las aqui, para que o leitor tenha maior clareza do caminho que seguimos nesta pesquisa. Contudo, deve-se notar que a formulação dessas hipóteses, da forma como são apresentadas aqui, ocorreu após a realização da revisão bibliográfica desenvolvida nos capítulos 2 e 3. 18 Hipótese central 1: O acesso a transferências internacionais de tecnologia não é um fator determinante para que um Estado adquira armamentos nucleares ou mísseis balísticos. Apesar de autores como Fuhrmann (2009a) e Kroenig (2009b) apresentarem evidências de que a transferência tecnológica internacional aumenta o risco da proliferação, suas análises são contrapostas por argumentos como os de Montgomery (2013) e Kemp (2014), que entendem que a proliferação ocorre a despeito dessas transferências (e pode mesmo ser negativamente impactada pela assistência internacional). Além disso, a difusão de conhecimentos hoje é de tal sorte que um país com um nível mínimo de condições científicas e industriais poderia desenvolver as tecnologias nuclear e espacial domesticamente (ZIMMERMAN, 1993)10. Paralelamente, o setor espacial e o setor nuclear apresentam abordagens distintas ao problema da proliferação e da transferência de tecnologia e de conhecimentos sensíveis. Por conseguinte, se a cooperação influenciasse de forma significativa o processo de proliferação, poderia se esperar que houvesse um número maior de Estados detentores de armamentos nucleares do que de mísseis balísticos, uma vez que o acesso à tecnologia nuclear é, em princípio, facilitado pelos termos do Tratado de Não-Proliferação (TNP), o que não ocorre com a tecnologia espacial. No entanto, a proliferação em ambos os setores parece seguir padrões similares, como sugerido pela Quadro 1. É possível, no entanto, que os incentivos à difusão tecnológica estabelecidos pelo TNP sejam contrabalançados pela robustez do regime de não- proliferação nuclear, que envolve inúmeros mecanismos de verificação e monitoramento, que não estão presentes no regime de não-proliferação de mísseis.11 Conjecturamos que as conclusões de Fuhrmann (2009a) decorrem de um uso indevido dos dados, com o emprego de uma população (no sentido estatístico) de países inadequada. Conforme a nossa hipótese, a correlação entre acordos de cooperação civil e produção de armamentos nucleares desaparecerá ao se levar em conta que a economia pode agir como uma barreira de entrada, tanto para a produção dos armamentos quanto para a realização da cooperação técnica e científica envolvendo tecnologias sensíveis. Diante dessas considerações, assumimos a hipótese de que a assistência tecnológica internacional e a transferência de tecnologias não são determinantes para o avanço da proliferação. 10 O argumento de Zimmerman (1993) diz respeito, especificamente, ao setor nuclear. Mas sua argumentação pode facilmente ser transposta para o setor espacial: Estados que apresentem um nível de desenvolvimento similar ao que os Estados Unidos possuíam ao final da década de 1950 podem produzir os mísseis em um horizonte temporal relativamente curto. 11 No capítulo 3, discutimos de forma mais detida os regimes de não-proliferação. 19 Hipótese central 2: Um Estado tem maior probabilidade de adquirir armamentos nucleares ou mísseis balísticos quando enfrenta ameaças à sua segurança. Esta hipótese está diretamente relacionada ao cerne do modelo que busca na insegurança dos Estados a explicação para a proliferação. Assim, Estados que se sintam mais inseguros buscam desenvolver ou adquirir armamentos mais avançados, de modo a coibir eventuais ataques que ameacem sua integridade. Armamentos que tenham capacidade de dissuasão, como, alguns autores argumentam, é o caso dos explosivos nucleares e dos mísseis balísticos, têm grande valor para Estados que se sintam ameaçados, uma vez que reduzem a disposição dos inimigos de atacarem, devido ao aumento dos custos potenciais da retaliação. Hipótese central 3: Um Estado tem menor probabilidade de adquirir armamentos nucleares ou mísseis balísticos quando possui um aliado com capacidade nuclear que lhe ofereça garantias de segurança. Se a principal motivação dos Estados para desenvolverem armamentos com capacidade dissuasória é aumentar a sua segurança frente a ameaças externas, o estabelecimento de uma aliança defensiva pode ser suficiente para que o Estado se sinta seguro e não mais acredite que é necessário adquirir um arsenal próprio. Assim, a existência de aliança com uma potência nuclear é uma variável que pode auxiliar na compreensão da proliferação nuclear (JO; GARTZKE, 2007, p. 173; KROENIG, 2009b, p. 169; SINGH; WAY, 2004, p. 860). Seu impacto sobre a proliferação de mísseis balísticos, no entanto, é mais incerto, mas pode-se imaginar que a percepção de segurança que o potencial proliferador12 tenha com um aliado nuclear também terá impacto sobre sua disposição para investir em um programa de mísseis mais sofisticado. Hipótese auxiliar 1: O estabelecimento de regimes de não-proliferação altera o contexto normativo, reduzindo a motivação dos Estados para adquirirem o armamento proscrito13. 12 Utilizamos o termo “Estado proliferador”, em um paralelismo com o termo em inglês proliferator state, para indicar aqueles Estados que buscam adquirir armamentos nucleares ou mísseis balísticos. A tradução é, sem dúvida, problemática, mas não encontramos uma alternativa melhor. 13 Optamos por não incluir uma hipótese específica sobre Estados signatários do TNP ou membros do MTCR. Isso porque os dois regimes têm naturezas muito distintas, o que não permitiria uma comparação adequada entre os resultados. Ser signatário do TNP significa aderir a uma norma de proibição da posse dos armamentos nucleares, enquanto ser membro do MTCR significa apenas aderir a uma política de cautela e de transparência em transações internacionais de tecnologias relevantes para a produção de mísseis. Assim, adesão ao TNP e ao MTCR é contemplada pela pesquisa como uma variável de controle, mas não como uma hipótese. 20 Se o contexto normativo tem impacto sobre as decisões dos Estados e, no caso do setor nuclear, contribuiu para fortalecer um possível “tabu nuclear” (TANNENWALD, 2007), então podemos supor que a difusão de uma percepção de que determinado armamento é ilegítimo reduzirá a disposição dos Estados de produzi-lo ou adquiri-lo. Assim, temos duas hipóteses paralelas e análogas, de que Estados têm menor interesse em desenvolver a bomba atômica após a formulação do TNP (1968), e Estados têm menor interesses em desenvolver mísseis balísticos após a formulação do Regime de Controle de Tecnologias de Mísseis (MTCR) (1987). Hipótese auxiliar 2: Estados que assumem, recorrentemente, uma postura de protagonismo internacional terão maior probabilidade de adquirirem armamentos nucleares e mísseis balísticos. O desejo de maior prestígio é apontado por muitos autores como uma das principais motivações para que os Estados desenvolvam tanto armamentos nucleares quanto mísseis balísticos (BETTS, 1977; CARUS, 1990; CIRINCIONE, 2007; EGELAND, 2016; EPSTEIN, 1977; FETTER, 1991; HULL, 1991; KARP, 1988; NOLAN, 1991; SAGAN, 1996/97). Podemos supor, então, que Estados que buscam assumir, com frequência, uma postura mais ativa na política internacional terão maior interesse em ter seu prestígio reconhecido pelos demais Estados, o que pode se traduzir no desenvolvimento de programas tecnológicos de grande notoriedade. Por outro lado, países que tem um comportamento de maior protagonismo internacional podem ser mais favoráveis à ordem estabelecida, de modo que teriam menos incentivos para adquirir os armamentos. Sob essa perspectiva, países mais isolados (ou seja, menos protagonistas) podem ambicionar estes armamentos em decorrência de sua capacidade dissuasória. Não obstante essa interpretação alternativa, mantemos aqui a hipótese referente à busca por prestígio em sua forma mais recorrente na literatura: a busca por prestígio pode ser um motivador para a proliferação. Hipótese auxiliar 3: Estados adquirem armamentos nucleares ou mísseis balísticos quando há a formação bem-sucedida de uma coalizão interna favorável à aquisição desses armamentos. Para que um programa de grande porte, que requer amplos investimentos e recursos humanos (como é o caso dos programas nucleares e de desenvolvimento de mísseis balísticos) possa ser bem-sucedido, ele deve contar com o apoio de uma coalizão política doméstica que garanta sua sustentação frente a outros projetos que demandam recursos materiais e humanos 21 (FLANK, 1993; SOLINGEN, 1994a, 1994b). Assim, sem a formação dessa coalização interna, os Estados não teriam condições internas para conduzir, ao longo de anos, um programa nuclear ou um programa para a produção de mísseis. A esse respeito, divergimos um pouco da forma mais consolidada na literatura, pois nos parece que, se considerarmos as coalizões domésticas como uma variável independente, incorreremos em um problema metodológico, já que não parece haver uma forma objetiva de mensurar o sucesso dessas coalizões internas favoráveis ao programa militar. Se a medida do sucesso for a aquisição, chegamos a um argumento circular: determinados armamentos são adquiridos quando coalizões domésticas favoráveis à aquisição são bem-sucedidas; e as coalizões domésticas favoráveis à aquisição são bem-sucedidas quando há a aquisição do armamento. Buscando contornar esse problema sem eliminar a contribuição que a literatura sobre política doméstica pode trazer para a compreensão da proliferação, enquadramos as coalizões domésticas não como uma variável independente, mas interveniente. Assim, conjecturamos que determinadas configurações, seja de insegurança, de acesso facilitado a tecnologias, ou de busca por prestígio, levam à mobilização de grupos domésticos favoráveis à aquisição do armamento e criam um contexto propício ao sucesso desses grupos na dinâmica política de um país. 1.2 Relevância deste estudo A ameaça nuclear é um dos grandes desafios que a humanidade enfrenta desde seu surgimento, em 1945. Por esse motivo, o tema nuclear tem grande capacidade de atrair o interesse internacional, e está frequentemente presente na mídia, que relata com ênfase cada novo passo do programa nuclear norte-coreano, as negociações concernentes ao programa nuclear iraniano, e as negociações internacionais para aumento da segurança nuclear e redução do risco de terrorismo nuclear (como o Nuclear Security Summit). Essa atenção dedicada à questão nuclear não é mera veleidade. A capacidade de destruição das bombas nucleares difere dos armamentos convencionais por mais do que apenas sua ordem de grandeza. Thomas Schelling (1966, p. 18-26) argumenta que a principal mudança decorrente do advento da bomba atômica não se refere à dimensão da destruição que pode ser engendrada, mas à sua velocidade. Nesse sentido, tecnologias anteriores a 1945 eram já perfeitamente capazes de causar milhões de mortes e ampla destruição material; mas os arsenais nucleares permitem que essas ações sejam realizadas de forma comparativamente imediata, centralizada e automatizada. Segundo o autor: 22 A diferença não é apenas a quantidade de destruição que pode ser alcançada, mas o papel da destruição no processo de decisão. Armamentos nucleares podem alterar a velocidade dos eventos, o controle dos eventos, a sequência dos eventos, a relação entre vitorioso e derrotado, e a relação entre o território nacional e o front de combate.14 (SHELLING, 1966, p. 23, tradução nossa). Apesar de a capacidade de destruição de uma explosão nuclear, assim como ocorre com explosivos convencionais, ser resultado, principalmente, da explosão e da onda de choque, há algumas características que diferenciam as duas formas de explosivos, e que definem os armamentos nucleares como algo qualitativamente distinto. Primeiro, há a dimensão da explosão, uma vez que a capacidade explosiva de um armamento nuclear pode ser equivalente a milhares (quilotons) ou milhões (megatons) de toneladas de TNT. Segundo, e diretamente relacionado ao primeiro item, os armamentos nucleares apresentam uma relação entre energia da explosão e a massa do explosivo muito mais eficiente do que os explosivos convencionais, de modo que é necessária uma quantidade extremamente menor de material para causar efeitos semelhantes15. Isso tem impacto, principalmente, sobre a capacidade de entrega do explosivo, e o tempo necessário para realizar essa entrega. Terceiro, uma explosão nuclear atinge temperaturas muito mais elevadas do que explosões convencionais, de modo que seu efeito térmico, em termos de queimaduras e incêndios, é maior e atinge distâncias mais amplas. Quarto, a explosão nuclear libera altos níveis de radiação, com elevada capacidade de penetração e efeitos prejudiciais aos seres vivos. Finalmente, as substâncias, partículas e destroços que resultam da explosão nuclear permanecem radioativos após os efeitos imediatos da explosão, e são responsáveis pela emissão de radiação nuclear ao longo de um período de tempo potencialmente longo (GLASSTONE; DOLAN, 1977). Ademais, apesar de ser possível estimar as consequências de futuras explosões nucleares, o risco potencial decorrente do uso dessa tecnologia é muito mais incerto: Nós podemos, talvez, imaginar os efeitos de uma explosão nuclear em uma cidade, extrapolando a partir dos ataques relativamente pequenos a Hiroshima e Nagasaki. Nós podemos adquirir uma estimativa do fallout16 radioativo causado por algumas detonações de armamentos nucleares na atmosfera ao recordarmos a contaminação radioativa de partes dos Estados Unidos durante os testes de armamentos nucleares 14 No original: “The difference is not just in the amount of destruction that can be accomplished but in the role of destruction in the decision process. Nuclear weapons can change the speed of events, the control of events, the sequence of events, the relation of victor to vanquished, and the relation of homeland to fighting front.” 15 Proença Jr. et al (1999) afirmam que os armamentos nucleares representaram uma dissociação entre quantidade e poder de combate. 16 O termo fallout refere-se à difusão de partículas radioativas após uma explosão nuclear. Este termo é, às vezes, traduzido como “chuva radioativa”. Optamos por manter o termo em inglês, por ser o mais difundido. 23 em Nevada. [...] [Mas] a História pode nos ensinar muito pouco sobre o que esperar ao final de uma guerra nuclear17. (TSIPIS, 1983, p. 76, tradução nossa). Isso significa que não se conhecem as potenciais consequências de uma guerra nuclear, em que houvesse a explosão de várias bombas atômicas e termonucleares. Ao longo da Guerra Fria, foram desenvolvidos modelos que buscavam prever as consequências desse evento para o planeta. Essas análises indicaram que, em caso de uma guerra entre superpotências, em que bombas atômicas fossem empregadas sobre cidades, as explosões seriam capazes de reduzir a temperatura do planeta de 10º a 20º, afetar a capacidade de fotossíntese das plantas, liberar substâncias tóxicas e radioativas na atmosfera e causar danos substanciais à camada de ozônio, o que foi chamado de “inverno nuclear” (TURCO et al, 1983; SAGAN; TURCO, 1993). Esse modelo não é consensual entre analistas, mas mesmo aqueles que o criticam reconhecem que os efeitos de uma guerra nuclear não podem ser adequadamente previstos (THOMPSON; SCHNEIDER, 1986). Diante disso, a difusão e o possível uso dos armamentos nucleares constituem um dos grandes dilemas enfrentados pela humanidade, cuja relevância não será eliminada, ao menos em um horizonte temporal que podemos estimar18. Portanto, conhecer os condicionantes da proliferação nuclear é fundamental para que seja possível a formulação de regimes eficazes e eficientes de controle internacional de sua difusão. Já os mísseis balísticos constituem uma ameaça muito distinta, em grau e qualidade, à estabilidade internacional. Sua relevância decorre, principalmente, de seu emprego como um dos mais importantes meios de entrega de armamentos nucleares19. No entanto, mísseis podem também ser empregados munidos unicamente de explosivos convencionais, caso em que sua relevância militar é mais incerta, e ainda gera debates entre analistas. Enquanto mísseis têm algumas vantagens, não está claro se sua relação custo-benefício é vantajosa em relação a outras formas de ataque aéreo, sobretudo com bombardeiros, na ausência de armamentos de destruição em massa. De fato, aeronaves têm maior precisão e maior 17 No original: “We can perhaps imagine the effects of one nuclear explosion on one city by extrapolating from the relatively small-scale attacks on Hiroshima and Nagasaki. We can gain an appreciation of the radioactive fallout caused by a few detonations of nuclear weapons in the atmosphere by recalling the radioactive contamination of parts of the United States during the early tests of nuclear weapons in Nevada. […] [But] History can teach us very little about what we can anticipate at the end of a nuclear war.” 18 Ainda que, em um cenário excepcionalmente otimista, seja possível promover o desarmamento nuclear completo, a tecnologia nuclear continuaria existindo e, portanto, haveria ainda o risco de que alguns países voltassem a se armar quando sua insegurança aumentasse. Portanto, não podemos, no contexto atual, vislumbrar um futuro em que os armamentos nucleares deixem de representar um risco para humanidade. 19 A doutrina nuclear dos Estados Unidos, por exemplo, está amparada em uma tríade nuclear, ou seja, em três meios de entrega: mísseis balísticos intercontinentais, submarinos nucleares e bombardeiros estratégicos. 24 capacidade de carga, além de serem mais versáteis e poderem ser reutilizadas. Em decorrência dessas vantagens, aeronaves podem ser mais indicadas para um grande número de operações, principalmente quando comparadas aos mísseis balísticos normalmente disponíveis em países em desenvolvimento, cujo desempenho tende a ser inferior aos mísseis das grandes potências (CARUS, 1990, p. 30-31; FETTER, 1991, p. 9; KARP, 1996, p. 29-30; METTLER; REITER, 2012, p. 861; NOLAN, p. 63-73). Por outro lado, quando comparados a aeronaves, mísseis têm maior capacidade de penetração em território inimigo, sendo muito mais velozes e menos vulneráveis às defesas inimigas20. Essas qualidades podem permitir que um país alcance os alvos desejados com mísseis, mesmo quando esses alvos seriam inalcançáveis com bombardeiros. Além disso, sua velocidade mais elevada pode permitir que um país destrua a capacidade de retaliação do oponente, antes que este consiga se mobilizar, de modo que mísseis são muito mais propícios a ataques surpresa do que aeronaves. Mísseis têm, ainda, a vantagem de serem não tripulados, de forma que trazem menor risco de perdas humanas em comparação com aeronaves (BARKLEY, 2008, p. 1-2; CARUS, 1990, p. 27-30; METTLER; REITER, 2012, p. 856-858; NOLAN, 1991, p. 63-73). De qualquer forma, a comparação da relevância militar pode ser problemática, uma vez que as vantagens de cada armamento estão intimamente associadas às condições específicas de cada país, região ou conflito, e, ainda que, em condições ideais, mísseis possam ser menos eficientes do que aeronaves, essas condições raramente estão presentes (KARP, 1996, p. 32-36; METTLER; REITER, 2012, p. 856-858; NOLAN, 1991, p. 73). A proliferação de mísseis tem recebido particular atenção, em relação a outros sistemas de armas, desde a década de 1980, quando a difusão da posse e do emprego de mísseis entre países em desenvolvimento ganhou espaço na agenda internacional. Essa atenção se deveu não apenas à associação entre mísseis e armamentos de destruição em massa, mas também ao seu potencial efeito sobre a probabilidade de que conflitos ocorram, escalem, alcancem maior nível de letalidade ou impactem áreas mais amplas do que seria o caso em sua ausência (METTLER; REITER, 2012; NOLAN, 1991, p. 8-9)21. Apesar disso, os condicionantes da proliferação de mísseis são ainda pouco estudados, o que se torna ainda mais evidente quando comparamos essa aérea com a profusão de estudos sobre a proliferação nuclear. 20 Os sistemas de defesa antimísseis, apesar de já serem uma realidade, ainda têm eficiência mais duvidosa do que os sistemas de defesa antiaérea. 21 Simon Mettler e Dan Reiter (2012), por exemplo, demonstram que a presença de mísseis aumenta o risco de que um país inicie um ataque, em situações de tensão internacional. 25 Estudos comparativos sobre os dois setores podem trazer uma série de vantagens. Primeiro, tanto as bombas nucleares quanto os mísseis são armamentos de elevado teor tecnológico, cujo desenvolvimento doméstico envolve um alto aporte de recursos materiais e humanos. Segundo, ambos estão associados a importantes tecnologias de uso dual, de modo que a difusão de tecnologias civis pode impactar sobre a proliferação dos armamentos. Terceiro, apesar de suas semelhanças, os regimes de não-proliferação dos dois setores são muito distintos. Enquanto o regime nuclear é amplo, e envolve a proibição da posse de armamentos nucleares22, incentivos à difusão da tecnologia civil, controle da difusão de tecnologias sensíveis, e mecanismos de fiscalização, o regime de mísseis é constituído por um mecanismo de controle de exportação de tecnologia de mísseis, cuja adesão é voluntária e não é sequer formalizada em tratado. Esse contraste permite uma comparação fértil, uma vez que os armamentos têm elementos semelhantes, mas suas condições de fundo são distintas. De fato, já há algumas análises que apontam no sentido de que um estudo comparativo seria proveitoso. Autores que escrevem sobre a proliferação de mísseis apontam condicionantes muito semelhantes àqueles do setor nuclear. Dinshaw Mistry (2003a, p. 6), por exemplo, identifica cinco motivadores da proliferação de mísseis, todos extraídos da literatura sobre a proliferação nuclear23, mas o autor não se detém sobre este ponto, de modo que não há uma análise mais cautelosa sobre a adequação dessa transposição de um setor para o outro. Em um estudo mais recente, Bryan Early (2014) utiliza a ampla literatura sobre o setor nuclear para embasar parte de sua análise sobre programas espaciais. Portanto, um estudo que explore essa comparação pode contribuir para o debate internacional sobre a proliferação, e pode ter relevância também para outros setores em que há uma interseção entre a tecnologia civil e a militar, como ocorre com armamentos químicos e biológicos, por exemplo, e deve ocorrer com cada vez mais frequência, na medida em que avanços científicos em robótica, nanotecnologia, biotecnologia, etc., impactem o setor militar. Para o Brasil, o debate entre a proliferação pela oferta e pela demanda representa um objeto, conquanto novo e ainda pouco explorado, muito caro aos seus interesses. Com efeito, o Brasil conta com parcerias internacionais tanto no setor nuclear quanto no espacial. O interesse desse debate para o país é ainda aumentado pelo fato de que, no setor espacial, as parcerias estabelecidas pelo Brasil vêm encontrando obstáculos decorrentes dos controles internacionais para transferências de tecnologias (BRITO, 2013; GAIOSKI, 2012). 22 Essa proibição se aplica a todos os Estados membros, com exceção dos cinco países que já haviam testado armamentos nucleares antes de 1968 (Estados Unidos, Rússia, China, França e Reino Unido). 23 Mistry (2003a, p. 202, nota 5) cita especificamente os estudos de Lavoy (1993) e Sagan (1996/97). 26 A despeito desse interesse, entretanto, a literatura existente no Brasil sobre as causas da proliferação, quer de armamentos nucleares, quer de mísseis balísticos, é muito limitada. A produção existente tem como foco, em geral, o programa nuclear brasileiro, a questão da proliferação nas interações regionais e o posicionamento do Brasil frente aos regimes de não proliferação nuclear24 (e.g. JESUS, 2012; MEDEIROS, 2005; OLIVEIRA, 1998; PATTI, 2013; SILVA, 2010; VARGAS, 1997). No que toca a proliferação de mísseis balísticos, há uma lacuna ainda maior nas pesquisas nacionais. É possível encontrar alguns estudos sobre os programas espaciais e a cooperação nesse setor, bem como produções abordando o tema das defesas antimíssil nas alianças entre Estados e no impacto sobre a segurança internacional (BRITO, 2013; CEPIK, 2011; JESUS, 2013; PICCOLLI, 2012; ZAGO, 2008). Mas a produção existente não tem como foco a proliferação de mísseis balísticos, suas causas e sua relação com o desenvolvimento de programas espaciais com fins pacíficos. Diante disso, este estudo pode contribuir para a sistematização dos condicionantes da proliferação. Este tipo de abordagem não é isento de críticas: a tentativa de generalizar e encontrar padrões é, por vezes, percebida como inadequada para a compreensão dos diferentes programas de desenvolvimento de armamentos nucleares ou de mísseis balísticos, uma vez que cada um desses programas tem características muito particulares (KARP, 1996, p. 13-14, 20). No entanto, o excessivo particularismo pode levar à impotência, dado que algum tipo de generalização é necessário para orientar a formulação de políticas de não-proliferação adequadas. Por fim, devemos acrescentar uma nota de cautela. A proliferação de armamentos nucleares e a proliferação de mísseis balísticos são fenômenos interligados, que se reforçam mutuamente (FRANKEL, 1993, p. 40). Por conseguinte, um Estado que ambiciona armamentos nucleares também tem maiores chances de ambicionar os mísseis, como um veículo de entrega para as suas bombas. Este aspecto reforça a utilidade de se realizar um estudo comparativo, mas também traz uma dificuldade analítica na operacionalização da pesquisa, uma vez que esta não compara eventos independentes. Contudo, apesar de essa interação entre os dois setores requerer atenção e cuidado, ela não inviabiliza a pesquisa ou elimina sua relevância. 24 Marcos Valle Machado da Silva (2010) desenvolve um estudo sobre os fatores que levam os Estados a adquirirem armamentos nucleares. Mas sua análise tem como foco o papel da demanda, empregando apenas o modelo desenvolvido por Kenneth Waltz (1995), e não menciona o debate acerca dos impactos da oferta de tecnologia e conhecimentos sensíveis sobre a proliferação. 27 1.3 Desenho de pesquisa Esta pesquisa é composta de três partes. Em primeiro lugar, é realizada uma revisão da bibliografia que ampara a pesquisa. Essa revisão tem dois componentes centrais: uma sistematização das diferentes abordagens sobre os condicionantes da proliferação e uma discussão dos regimes de não-proliferação de armamentos nucleares e de mísseis balísticos. Esses dois componentes são fundamentais para amparar nossas hipóteses de pesquisa e orientar a coleta e a análise dos dados. A segunda etapa da pesquisa constitui uma análise estatística acerca das correlações entre algumas variáveis relevantes. Conforme discutiremos no capítulo 4, optamos por empregar a estatística descritiva, em contraste com outros estudos quantitativos sobre a proliferação (FUHRMANN, 2009a; JO; GARTZKE, 2007a; KROENIG, 2009b; SINGH; WAY, 2004). Com isso, exploramos os condicionantes da proliferação a partir de uma perspectiva distinta daquela que é usualmente empregada, o que nos permite contrastar nossos resultados com aqueles obtidos por outros autores. No capítulo 4, apresentaremos mais detidamente a metodologia empregada em nossa análise quantitativa. Finalmente, a terceira parte desta pesquisa é composta por um estudo de caso, selecionado com base nos resultados da análise quantitativa. Com esta etapa, buscamos obter uma compreensão mais aprofundada dos processos envolvidos na proliferação e da forma como as variáveis se relacionam, para além de uma mera constatação de correlações. Estudos de caso conseguem lidar com algumas das fragilidades dos estudos quantitativos, como a dificuldade de codificar de forma satisfatória as variáveis estudadas (MONTGOMERY; SAGAN, 2009). Optamos por não definir, a priori, o estudo de caso realizado, porque entendemos que uma escolha informada pelos resultados da análise quantitativa pode trazer conclusões mais ricas para a pesquisa. Evitamos, assim, que a pesquisa incorra em um viés de seleção que é comum na literatura sobre a proliferação, em que são selecionados, em geral, os Estados que adquiriram os armamentos estudados25. De fato, selecionamos o caso da não-aquisição canadense para nossa análise qualitativa, por motivos que serão discutidos no capítulo 5. Em nossa conclusão, ressaltamos dois pontos fundamentais. Em primeiro lugar, o estudo comparativo entre a proliferação de armamentos nucleares e de mísseis balísticos nos parece ser extremamente fértil. Com efeito, a literatura sobre proliferação de mísseis é fortemente 25 Sobre o problema do viés de seleção em estudos sobre a proliferação, conferir Singh e Way (2004, p. 860). Sobre métodos de seleção de casos, conferir, por exemplo, Bennett e Elman (2007), Gerring (2007) e Seawright e Gerring (2008). 28 inspirada nas discussões sobre o setor nuclear, mas esse paralelismo não é adequadamente explicitado. Assim, nesta pesquisa, buscamos contribuir com a sistematização da semelhança entre os dois setores. Ademais, notamos que qualquer estudo sobre a proliferação de mísseis que não leve em conta a questão nuclear será inevitavelmente deficiente, uma vez que a correlação entre os dois processos é absolutamente evidente. Em segundo lugar, a partir tanto de nossa análise estatística quanto do estudo de caso sobre a não-aquisição canadense, constatamos que os fatores relacionados à demanda dos Estados pelos armamentos têm impacto incomparavelmente mais intenso sobre a proliferação do que fatores relacionados à oferta de tecnologia e às transferências realizadas através de acordos de cooperação civil. 29 2 AS CONDIÇÕES PARA A PROLIFERAÇÃO26 O século XX trouxe para a história militar um elemento novo, que mudou fundamentalmente a forma como se pensa a guerra entre grandes potências: os armamentos nucleares. Desde 1945, quando os Estados Unidos empregaram pela primeira vez uma bomba atômica, a tecnologia nuclear avançou significativamente e, já no começo da década de 1950, tanto os Estados Unidos quanto a União Soviética testaram suas primeiras bombas de hidrogênio, um salto qualitativo na capacidade nuclear análogo ao salto que ocorreu com o desenvolvimento das primeiras bombas de fissão27 (ARON, 1965, p. 7). Paralelamente, os meios de entrega passaram por avanços igualmente rápidos com o desenvolvimento dos mísseis balísticos, que revolucionaram o tempo de ataque e transformaram em minutos as horas que antes separavam o lançamento do alvo (ARON, 1965, p. 9). No entanto, apesar do significado que a revolução nuclear tem para a estratégia militar e para as relações políticas entre os Estados (FREEDMAN, 2003; JERVIS, 1989), nem sempre é claro por que os países buscam desenvolver a bomba nuclear. Essa incerteza deu origem a um amplo debate sobre as condições que levam à proliferação e as condições que influenciam as decisões dos Estados de adquirirem armamentos nucleares. Paralelamente, apesar de os mísseis balísticos estarem intimamente associados aos armamentos nucleares, e de terem revolucionado a forma de entrega desses armamentos, há uma escassez de análises sistemáticas sobre as condições conducentes à proliferação de mísseis. Diante das semelhanças que os mísseis balísticos compartilham com a bomba nuclear em termos de complexidade tecnológica, do valor que lhes é atribuído e de sua capacidade de estabelecer a dissuasão, uma análise comparativa sobre a proliferação de ambos pode contribuir para preencher a lacuna ainda existente nos estudos sobre mísseis, bem como para ampliar o conhecimento já acumulado sobre as forças motrizes da proliferação. Para isso, é preciso compreender os modelos explicativos sobre as motivações da proliferação nuclear para, em seguida, explorar sua utilidade para os estudos sobre a proliferação de mísseis. Na literatura especializada, encontramos algumas formas diferentes de apresentação dos modelos e de agrupamento das hipóteses existentes sobre a proliferação nuclear. Scott D. Sagan 26 Uma versão inicial da discussão sobre os condicionantes da proliferação nuclear foi publicada em Gontijo (2016a). 27 Bombas de fusão, também chamadas de bombas termonucleares ou de hidrogênio, têm capacidade explosiva muito superior (de duas a três ordens de grandeza) às bombas de fissão (como as empregadas em Hiroshima e Nagasaki). Assim, enquanto a capacidade explosiva das bombas de fissão é usualmente medida em kilotons (equivalente a mil toneladas de TNT), as bombas de fusão têm sua capacidade medida em megatons (equivalente a um milhão de toneladas de TNT). 30 (1996/97), por exemplo, em um dos artigos mais citados da área, apresenta três modelos para a compreensão das forças motrizes da proliferação: o modelo da segurança, o modelo da política doméstica, e o modelo normativo. No entanto, em trabalho posterior, Sagan (2011) propõe uma classificação alternativa, agrupando esses modelos em dois grandes grupos: as causas associadas à oferta, e as causas associadas à demanda. Outras propostas de classificação das motivações da proliferação podem ser encontradas em obras diversas. Richard K. Betts (1977, p. 164-165) e Thomas Graham Jr. e Keith A. Hansen (2009, p. 7-21) apresentam apenas duas motivações para um Estado desejar a bomba, segurança nacional e prestígio. Sonali Singh e Christopher R. Way (2004) derivam suas hipóteses de três grandes modelos sobre as condições conducentes à proliferação: os determinantes tecnológicos, os determinantes externos e os determinantes internos (domésticos). Joseph Cirincione (2007, p. 47-83) propõe cinco categorias de motivadores da proliferação: segurança, prestígio, política doméstica, tecnologia e economia28. Tanya Ogilvie-White (2008) agrupa os modelos sobre a proliferação em modelos das teorias realistas e neo-realistas, modelos de determinantes domésticos e teorias organizacionais, modelos cognitivos e psicológicos e modelos da sociologia histórica. Nas seções que se seguem, apresentaremos um panorama dos modelos sobre as condições que levam à proliferação, com base no debate sobre a proliferação nuclear. Optamos, aqui, por dividir os modelos em quatro grandes grupos, na tentativa de englobar as várias teorias e hipóteses que fazem parte do campo. Três modelos olham para a demanda dos Estados pelos armamentos, com focos distintos na origem dessa demanda: a demanda por segurança, o compartilhamento de normas e ideias, e a política doméstica. Finalmente, o quarto modelo tem como foco a oferta de tecnologia. A classificação dos modelos explicativos que adotamos aqui 28 A inclusão que Cirincione (2007) faz da economia como um fator explicativo da proliferação nuclear nos parece equivocada. Considerações econômicas funcionam, fundamentalmente, como um obstáculo à decisão de um Estado para iniciar um programa nuclear, devido a seus custos muito elevados. Nas palavras do próprio autor: “Nuclear weapons are big ticket items. They and their delivery systems are expensive to make. Economic considerations alone cannot explain a state’s pursuit of nuclear weapons. A country does not launch a nuclear program just because it can afford one. Nor will economic costs have much impact if a state decides nuclear weapons are vital to its national security.” (CIRINCIONE, 2007, p. 76-77). Portanto, optamos aqui por não incorporar o fator econômico como um modelo específico em nosso panorama das causas da proliferação. É importante notar, no entanto, que a capacidade que atores domésticos politicamente bem posicionados venham a ter de convencer os tomadores de decisão de que os custos serão pequenos comparados aos benefícios (e, sobretudo, de subestimar os custos reais do programa) pode ser fundamental para que o programa nuclear seja iniciado. Para uma discussão dos benefícios econômicos que podem estimular os Estados a buscarem a tecnologia nuclear, conferir Epstein (1977, p. 22-24) – mas note-se que o argumento de Epstein se refere, sobretudo, ao uso civil da tecnologia nuclear, e não ao desenvolvimento da bomba. Para uma discussão sobre como as políticas econômicas de um país podem influenciar sua postura nuclear, conferir Solingen (1994a, 1994b). 31 se aproxima intensamente da classificação empregada por Bradley A. Thayer (1995)29, em artigo muito citado sobre as causas da proliferação. No entanto, reconhecemos que qualquer classificação é problemática, uma vez que lidamos com certas nuances de significado que podem se perder ao tentarmos enquadrar tantos autores em um número limitado de categorias. A opção por esse agrupamento em quatro modelos decorre de uma tentativa de incorporar a diversidade do debate em uma sistematização clara, que contribua para a compreensão do encaminhamento desta pesquisa, e da comparação proposta entre a proliferação de armamentos nucleares e de mísseis balísticos. É fundamental, sobretudo, que fique clara a complementariedade dos diversos modelos: não se trata de uma disputa para definir um único modelo que consiga explicar todo o histórico de proliferação nuclear; trata-se da busca coletiva por uma melhor compreensão de um fenômeno que é, necessariamente, complexo e multicausal. As próximas quatro seções apresentam os modelos sobre as condições que levam à proliferação nuclear, sistematizando os principais argumentos de cada um e sintetizando algumas das críticas que eles enfrentam. Em seguida, discutiremos como esse debate tem relevância também para o estudo da proliferação de mísseis balísticos, apresentando as similaridades entre os dois campos e a possibilidade de uma análise comparativa. 2.1 A demanda: o imperativo de segurança Com base em diferentes abordagens associadas à teoria realista de Relações Internacionais, o primeiro modelo da demanda atribui a proliferação nuclear ao anseio dos Estados de aumentarem sua segurança em um ambiente hostil (BETTS, 1977; CIRINCIONE, 2007, p. 51-58; FRANKEL, 1993; GRAHAM Jr; HANSEN, 2009, p. 7-8; JO; GARTZKE, 2007; MAY, 1994; MONTEIRO; DEBS, 2014; OGILVIE-WHITE, 1996, p. 44-48; SAGAN, 1997, p. 57-63, 2011; SINGH; WAY, 2004; THAYER, 1995). Trata-se de um modelo da “demanda” na medida em que a proliferação decorreria do desejo dos Estados por maior segurança, ou seja, de sua demanda por armamentos nucleares como uma garantia de sobrevivência frente às ameaças externas. Este modelo parte de premissas realistas sobre a insegurança do sistema internacional. Assim, uma vez que a anarquia do sistema (ou seja, a ausência de um ente regulador capaz de garantir a segurança de todos os Estados), impõe uma lógica de auto-ajuda ao comportamento 29 As teorias sobre as causas da proliferação, segundo Thayer (1995, p. 468-498), podem ser enquadradas em quatro grupos: prestígio, política burocrática, determinismo tecnológico, e aumento de segurança. 32 dos Estados, cada um é responsável por sua própria segurança. Por conseguinte, em um ambiente em que todos os atores possuem algum nível de capacidade ofensiva, e em que é impossível conhecer as intenções dos demais membros do sistema, um Estado que deseje sobreviver (supõe-se que isso seja verdade para todos, ou quase todos), deverá aumentar seu poder relativo, ou seja, seu poder (sobretudo militar) frente aos demais Estados (MEARSHEIMER, 2001, p. 29-36; THAYER, 1995, p. 482-486; WALTZ, 1979, p. 88-123). Diante desse cenário, a posse de um arsenal nuclear, cuja capacidade destrutiva ofusca todos os outros tipos de armamentos (cf. e.g. ARON, 1965, p. 3-8; HALPERIN, 1963, p. vii; JERVIS, 1989, p. 4-8; SCHELLING, 1966, p. 18-26), pode ser suficiente para garantir a um Estado um poder de dissuasão suficiente para evitar quaisquer ataques externos e desencorajar possíveis ameaças de se concretizarem30. Assim, como argumenta Michael M. May: Nações que tomaram a decisão de ter armamentos nucleares ou perceberam uma ameaça a sua sobrevivência que nenhum outro Estado poderia dissuadir com credibilidade, ou enfrentaram uma situação em que, com a capacidade nuclear, poderiam aumentar significativamente sua voz em assuntos relevantes para sua sobrevivência.31 (MAY, 1994, p. 534, tradução nossa). Em termos mais específicos, o imperativo de segurança sugere que Estados que enfrentem ameaças significativas em seu contexto de segurança serão mais propensos a buscarem um arsenal nuclear. Essas ameaças podem decorrer tanto de inimigos que já detêm capacidade nuclear, quanto de inimigos sem capacidade nuclear, mas com forças convencionais expressivas (BETTS, 1977; CIRINCIONE, 2007, p. 51-52; SAGAN, 1996/97, p. 57-58). Esse aumento da probabilidade de proliferação deriva dos benefícios que um país pode obter de um arsenal nuclear, em termos de sua capacidade de se defender e no enfrentamento de ameaças externas. Assim, segundo William Epstein (1977, p. 18), o desenvolvimento de um arsenal nuclear pode oferecer a um país condições para: • alcançar superioridade militar frente a um oponente (ou potencial oponente); • obter a capacidade de dissuasão contra um oponente nuclear; • alcançar a capacidade nuclear antes de um oponente, evitando, assim, que este oponente ganhe superioridade militar e obtenha uma posição de vantagem na corrida armamentista; 30 Adiante, na seção, 2.1.1, ponderamos este argumento, discutindo algumas ressalvas à percepção de que a posse de um arsenal nuclear basta para conceder a um Estado a capacidade dissuasória. 31 No original: “Nations that have made a positive nuclear-weapons decision have either perceived a threat to the survival of their state that no other state could credibly deter, or faced a security situation where, with a nuclear- weapons capability, they could significantly increase their voice in matters that mattered to survival.” 33 • adquirir maior independência militar, reduzindo a importância de eventuais alianças com potências nucleares na garantia da própria sobrevivência. Portanto, países que enfrentam ameaças à sua sobrevivência podem perceber o desenvolvimento nuclear como uma resposta para seus problemas de segurança. De fato, Richard K. Betts (1977, p. 164-167) identifica três tipos de países com maior probabilidade de buscar a bomba. O primeiro grupo de países são os “pigmeus”, países que enfrentam inimigos maiores e mais poderosos. Este seria o caso do Paquistão, cuja longa rivalidade com a Índia teria explicitado suas deficiências tanto em termos convencionais quanto em termos nucleares (após o teste nuclear indiano de 1974)32. O segundo grupo contém os Estados “paranoicos”, países que, apesar de enfrentarem inimigos menos poderosos do que si próprios, lidam com um grau de provocação e de tensão muito elevado, de modo que sua insegurança é suficiente para justificar a busca por maior poder. O melhor exemplo de um Estado paranoico, segundo Betts (1977, p. 166) seria a Coreia do Sul, que, conquanto detenha capacidade militar superior à de seu principal inimigo, a Coreia do Norte, recebe provocações constantes, que a induzem a manter seu nível de alerta sempre elevado33. Finalmente, o terceiro grupo são os “párias”, países que sofrem com os mesmos problemas dos pigmeus e dos paranoicos e que, além disso, detêm suficiente capacidade econômica e tecnológica para viabilizar seu desenvolvimento de armamento nucleares. Este seria o caso de Israel, que enfrenta inimigos muito numerosos e muito próximos, ainda que estes inimigos não detenham capacidade nuclear. E, mesmo que Israel detenha, hoje, capacidade militar convencional suficiente para lidar com as ameaças regionais, seu programa nuclear foi concebido na década de 1960, quando as relações de poder na região eram mais desfavoráveis ao país (CIRINCIONE, 2007, p. 52-53). Apesar dessa diversidade de cenários que pode levar os Estados a buscarem armamentos nucleares, talvez a explicação mais simples e intuitiva do modelo da demanda seja a constatação de que “a proliferação gera mais proliferação”34 (SHULTZ, 1984, p. 2, tradução nossa). Ou, 32 De fato, quando a Índia oficializou sua postura nuclear, em 1998, e tornou-se um país explicitamente com capacidade nuclear bélica, o Paquistão seguiu rapidamente e realizou seu próprio teste nuclear. 33 Deve-se notar que Betts (1977) escreveu na década de 1970, quando a Coreia do Sul apresentava um risco relativamente alto de se tornar um Estado proliferador. Hoje, apesar de deter a capacidade técnica necessária para o desenvolvimento de armamentos nucleares, e ainda que a Coreia do Norte tenha realizado testes nucleares bem-sucedidos, a Coreia do Sul não é considerada um Estado com alto risco de proliferação, sobretudo devido a sua adesão ao TNP e a sua cooperação com a Agência Internacional de Energia Atômica. 34 No original: “Proliferation begets proliferation”. Essa frase, proferida pelo Secretário de Estado dos Estados Unidos, George Shultz, em 1984, tornou-se um símbolo da visão realista sobre a proliferação como resultado do aumento da insegurança internacional, e pode ser encontrada em algumas revisões do debate sobre as causas da proliferação (CIRINCIONE, 2007, p. 52; SAGAN, 1996/97, p. 57). 34 nas palavras de William Epstein, “[...] a cada vez que um país adquire capacidade nuclear, ele aumenta os incentivos e a pressão para que seus vizinhos, e outros países em situação semelhante, também o façam.”35 (EPSTEIN, 1977, p. 19, tradução nossa). Assim, quanto mais Estados adquirem armamentos nucleares, mesmo que com o único objetivo de garantir sua própria defesa, mais inseguros se sentem seus vizinhos, e, por conseguinte, maiores os incentivos de outros Estados para também buscarem armamentos nucleares. Esta é a essência do dilema de segurança (MEARSHEIMER, 2001, p. 35-36; WALTZ, 1979, p. 186-187). Por ser baseado nas premissas da teoria realista, o modelo do imperativo de segurança recebeu contribuições do Realismo Estrutural que se desenvolveu, principalmente, a partir da publicação do Theory of International Relations, de Kenneth N. Waltz (1979). Assim, com o fim da Guerra Fria, Benjamin Frankel (1993) buscou demonstrar como a mudança na polaridade do sistema teria impacto sobre a proliferação nuclear36. Segundo Frankel (1993), a multipolaridade traz um risco mais elevado de proliferação acelerada do que a bipolaridade. Isso ocorre porque, em um sistema bipolar, as grandes potências oferecem garantias de segurança a seus aliados, reduzindo os incentivos que estes possam ter para adquirir seus próprios arsenais. Contrariamente, em um sistema multipolar, em que cada grande potência deve lidar com um sistema mais complexo e ameaças mais diversas, as garantias de segurança oferecidas aos aliados serão menores e, possivelmente, menos críveis. Assim, uma vez que a principal motivação da proliferação é a insegurança dos Estados, a redução das garantias de segurança oferecidas pelas grandes potências deve levar a um aumento da velocidade da proliferação37. 35 No original: “[...] each time a country goes nuclear, it increases the incentives and pressures for its neighbors and other similarly situated countries to do so.” 36 Segundo o Realismo Estrutural, a polaridade, ou seja, o número de grandes potências, é um dos atributos determinantes do sistema internacional. Os outros atributos determinantes são seu princípio ordenador, a anarquia, e seu nível de diferenciação funcional entre as unidades (os Estados), que no sistema internacional, é negligenciável. Assim, o único atributo deste sistema que muda ao longo do tempo é a polaridade, e dela decorrem alterações fundamentais na lógica de comportamento dos Estados. Para uma discussão detalhada da estrutura do sistema internacional, conferir Waltz (1979, p. 77-101.) 37 Note-se que o artigo de Frankel (1993) foi publicado no início da década de 1990, pouco depois do fim da Guerra Fria. Não se percebe, no entanto, a partir da década de 1990, a aceleração da proliferação profetizada por Frankel. De fato, durante os 45 anos da Guerra Fria, 6 países cruzaram a fronteira nuclear; nos 25 anos desde então, 3 países o fizeram (incluindo aqui a Índia, que já havia detonado uma explosão nuclear pacífica em 1974). Esse resultado contrário às expectativas de Frankel pode, talvez, ser atribuído ao melhor desempenho do regime de salvaguardas conduzido pela Agência Internacional de Energia Atômica a partir da década de 1990. Sobre este regime, conferir o capítulo 3. Frankel (1993, p. 60-64) propõe ainda outro argumento polêmico, segundo o qual a proliferação vertical reduziria os riscos da proliferação horizontal, ou seja, o aumento dos arsenais das atuais potências nucleares contribuiria para que menos países buscassem desenvolver um arsenal próprio. Isso vai contra não apenas o argumento de que a postura das grandes potências de valorização da capacidade nuclear estimula outros países a também valorizarem essa capacidade (EPSTEIN, 1977; PRICE; TANNENWALD, 1996; TANNENWALD, 2007), mas também contra a própria lógica do TNP, que estabelece o desarmamento nuclear como um de seus pilares. 35 O modelo do imperativo de segurança, por resultar de uma longa tradição analítica, tem trazido estudos que buscam análises cada vez mais sistemáticas e claras. Em uma tentativa recente de tornar esse modelo da demanda mais sofisticado, oferecendo hipóteses que podem ser mais facilmente contrastadas com os dados históricos conhecidos, o estudo de Nuno P. Monteiro e Alexandre Debs (2014) delineia a relação entre a proliferação e a interação estratégica entre o Estado proliferador e seus inimigos (e, quando presentes, seus aliados): A probabilidade da proliferação [...] é intensamente determinada pela interação estratégica entre um Estado decidindo se vai ou não adquirir armamentos nucleares e seus adversários. Essa interação é moldada pela habilidade do potencial proliferador de dissuadir um ataque preventivo a seu programa nuclear antes da aquisição da bomba. Essa habilidade, por sua vez, depende do poder relativo do proliferador e de uma eventual proteção por parte de um aliado poderoso.38 (MONTEIRO; DEBS, 2014, p. 9, tradução nossa). Os autores delineiam, então, os mecanismos que levam a presença de ameaças à segurança a conduzirem, ou não, à proliferação nuclear. Suas hipóteses se baseiam em quatro variáveis explicativas: 1) o nível de ameaça à segurança; 2) o poder relativo do Estado proliferador; 3) o custo do programa nuclear; e 4) o nível do comprometimento de um aliado para com a defesa do Estado proliferador (MONTEIRO; DEBS, 2014, p. 12-13). Assim, os autores verificam que o histórico de proliferação é compatível com as expectativas de seu modelo, que parece explicar de forma satisfatória os episódios em que novos Estados adquiriram a bomba. Há uma pluralidade de argumentos associados ao modelo do imperativo de segurança, mas todos os proponentes deste modelo identificam a busca dos Estados por melhores condições de se defenderem contra ameaças a sua sobrevivência como um fator central para a compreensão da proliferação. Neste sentido, Bradley A. Thayer (1995, p. 486) afirma que o imperativo de segurança é o único elemento capaz de explicar todos os casos de proliferação, sendo condição necessária e suficiente para que a proliferação ocorra, e que os demais modelos podem apenas contribuir para a compreensão de casos históricos específicos. Similarmente, Monteiro e Debs (2014) argumentam que a insegurança é condição necessária para a proliferação, uma vez que todos os países que adquiriram armamentos nucleares enfrentavam 38 No original: “The likelihood of proliferation […] is largely determined by the strategic interaction between a state deciding whether to acquire nuclear weapons and its adversaries. This interaction is shaped by the potential proliferator’s ability to deter a preventive strike on its nuclear program prior to acquiring the bomb. This ability, in turn, hinges on the proliferator’s relative power and whether it benefits from the protection of a powerful ally.” 36 ameaças à sua sobrevivência39. No entanto, há outros autores que assumem uma postura menos extrema, identificando o imperativo de segurança como apenas uma das condições que propiciam a proliferação, e não a única (BETTS, 1977; CIRINCIONE, 2007; EPSTEIN, 1977; GRAHAM Jr; HANSEN, 2009; SAGAN, 1996/97). Dois estudos quantitativos oferecem evidências estatísticas de que o imperativo de segurança é, de fato, relevante para a explicação da proliferação (conquanto não seja o único fator significativo). Os estudos de Sonali Singh e Christopher R. Way (2004) e de Dong-Joon Jo e Erik Gartzke (2007) demonstram que Estados engajados em longas rivalidades, ou envolvidos em conflitos militares frequentes têm maior probabilidade de se tornarem proliferadores. Paralelamente, garantias de defesa oferecidas por aliados com capacidade nuclear (comumente chamadas de “guarda-chuva nuclear”) reduzem o risco de proliferação. Inevitavelmente, o modelo do imperativo de segurança é alvo de críticas. Peter R. Lavoy (1993, p. 196) e Etel Solingen (1994b, p. 129-131) argumentam que, ainda que as bases realistas sejam importantes para a compreensão da proliferação – de fato, Lavoy (1993) afirma que, se a segurança for definida em termos amplos, ela pode ser considerada uma condição necessária para a proliferação –, o modelo do imperativo de segurança não oferece elementos suficientes para explicar todo o espectro de Estados proliferadores. Outros autores, como Jacques E. C. Hymans (2006, p. 456-458) e Tanya Ogilvie-White (1996, p. 45) apresentam críticas mais radicais (e, talvez, imerecidas) ao modelo. Segundo Ogilvie-White (1996), a abordagem realista sobre a proliferação padece de um foco militarista excessivamente limitado e de uma redução problemática dos Estados a atores unitários. Paralelamente, Hymans (2006) dialoga com uma versão radical (e pouco comum) do imperativo de segurança, segundo a qual, devido à insegurança inerente ao sistema internacional, todos os Estados que tiverem condições de adquirir a bomba, o farão – assim, seria fácil criticar este modelo por seu péssimo enquadramento à realidade, uma vez que muitos países têm capacidade técnica para desenvolverem um arsenal nuclear, e optam por não o fazer. Scott D. Sagan (1996/97, p. 63), por sua vez, após elogiar o apelo intuitivo deste modelo, oferece dois questionamentos particularmente pertinentes ao imperativo de segurança: 1) os analistas parecem se apoiar muito no discurso oficial de justificação dos programas nucleares, o que gera distorções, na medida em que os governos têm incentivos para alegar uma ameaça a sua sobrevivência como motivação principal; e 2) é possível perceber uma tendência 39 De fato, segundo Monteiro e Debs (2014, p. 21), quase todos os países que exploraram seriamente a possibilidade de adquirir a bomba enfrentavam ameaças sérias a sua segurança, as únicas exceções sendo o Brasil, a Argentina e a Romênia. 37 problemática de construção de análises post hoc, em que os analistas selecionam um Estado proliferador e, em seguida, buscam identificar a ameaça que motivou sua política nuclear. Diante dessas críticas, deve-se considerar que o Realismo, assim como quaisquer modelos analíticos que sejam seus tributários, não tem a pretensão de explicar casos históricos específicos ou decisões políticas de Estados em circunstâncias particulares, mas de identificar padrões recorrentes na política internacional. Segundo a lógica do Realismo, se um Estado se comportar em desacordo com as regras do sistema, ele será punido (ou seja, estará em uma condição de maior insegurança do que se tivesse agido em conformidade com a lógica do sistema). Assim, se for possível identificar uma tendência de que países que enfrentam maiores ameaças buscam mais os armamentos nucleares, essa tendência corroboraria os modelos da demanda, ainda que nem todos os países que busquem a bomba tenham enfrentado grandes ameaças, ou, inversamente, nem todos os países que enfrentem ameaças tenham obtido a bomba.40 Além disso, desenvolvimentos mais recentes do modelo da demanda, como o proposto por Monteiro e Debs (2014), conforme discutido acima, oferecem abordagens mais sofisticadas e hipóteses claras mais facilmente testáveis através de análises históricas. Isso pode ser uma grande contribuição para que o modelo do imperativo de segurança possa responder de forma satisfatória a críticas como as colocadas por Sagan (1996/97). 2.1.1 Uma ressalva ao modelo: a capacidade dissuasória Há uma importante ressalva que deve ser feita ao modelo do imperativo de segurança e que não é adequadamente contemplada pela literatura indicada acima: a posse de um arsenal nuclear não é necessariamente suficiente para que um Estado tenha capacidade dissuasória frente a seus oponentes. Ou seja, possuir alguns explosivos nucleares não significa que um Estado será capaz de se defender contra ameaças externas. Existem, de fato, diversas condições que devem ser satisfeitas para que um Estado detenha uma capacidade dissuasória confiável. A base da dissuasão nuclear é a capacidade de segundo ataque (second strike capability), ou seja, a possibilidade de que um Estado, caso seja atacado, consiga lançar um ataque 40 Observe-se que o modelo encontraria um elevado nível de respaldo caso se observasse que países que enfrentaram graves ameaças e optaram por não se defender (adquirindo um arsenal nuclear) foram punidos pelo sistema. No entanto, esse tipo de análise, por se apoiar em um exercício contrafactual, é muito difícil de ser realizado de forma convincente, uma vez que se ampara em conjecturas do tipo “o Estado X, que sofreu uma derrota frente a um inimigo Y, não teria sofrido esta derrota caso tivesse a seu dispor o poder de dissuasão associado a um arsenal nuclear”. Um caso interessante para tal análise parece ser a Ucrânia, que renunciou ao arsenal herdado da antiga União Soviética, em 1993, e, duas décadas depois, sofreu uma derrota frente à Rússia. 38 retaliatório que cause danos inaceitáveis a seu atacante. Para isso, é necessário que o arsenal do Estado ameaçado esteja em condições de sobreviver a um primeiro ataque41, seja por estar protegido em esconderijos que o oponente desconhece, seja por estar em movimento, de modo que o oponente não consiga rastrear eficientemente sua posição (como é o caso de submarinos). Além disso, o Estado que deseja garantir sua capacidade dissuasória deve investir em mecanismos de alerta, de modo a identificar ataques o mais cedo possível e tomar as medidas necessárias, para resguardar suas forças ou para lançar o ataque retaliatório. Ademais, para que tal ataque seja possível, é preciso que o Estado conte com uma cadeia de comando e controle confiável, que não esteja vulnerável a grandes disrupções em caso de um primeiro ataque. Não é nosso propósito aqui elaborar extensamente as condições que permitem que a dissuasão seja efetiva, tema este que possui uma vasta literatura (cf. e.g. DELPECH, 2010; DINIZ, 2016; LONG; GREEN, 2015; POWELL, 1985; SAGAN, 1994; SHULTZ; DRELL; GOODBY, 2010; WILSON, 2012; ZAGARE, 2006). Basta aqui reconhecer, como apontou Vipin Narang (2012), que nem todos os Estados com capacidade nuclear são equivalentes. Além dos obstáculos nada desprezíveis para que um Estado adquira, de fato, uma capacidade de dissuasão nuclear, vale lembrar também que a posse de um arsenal nuclear aumenta as chances de uma escalada acidental (e.g. POSEN, 1982) e de acidentes nucleares42. Portanto, diante dessas considerações, é importante notarmos que Estados racionais podem ter bons motivos para não ambicionarem armamentos nucleares, a menos que enfrentem ameaças excepcionais e estejam dispostos a dispender recursos muito substanciais para garantir que seu arsenal seja confiável, seguro e, de fato, suficiente para dissuadir potenciais atacantes. Este ponto tem um impacto direto sobre o modelo do imperativo de segurança, mas está, de forma geral, ausente da literatura sobre causas da proliferação. A seguir, discutiremos o segundo modelo da demanda pela bomba, baseado no compartilhamento de normas e ideias entre os Estados. 2.2 A demanda: normas e ideias compartilhadas A segunda forma de compreender a proliferação nuclear a partir da demanda dos Estados pelos armamentos se pauta por uma interpretação normativa das Relações 41 Eugenio Diniz (2016, p. 14-19) realiza uma excelente sistematização das medidas que podem ser empregadas por um Estado para produzir uma capacidade de segundo ataque confiável. 42 Scott Sagan, a convite do William J. Perry Project, realizou uma série de vídeos em que relata episódios históricos que quase resultaram em catástrofes em decorrência de acidentes e falhas (THE WILLIAM J. PERRY PROJECT, 2015). 39 Internacionais. Essa interpretação, fundamentada nas contribuições sociológicas e construtivistas para o campo, enfatiza a importância das normas e ideias compartilhadas para a condução da política internacional e a definição dos cursos de ação adotados pelos atores (estatais ou não). Dentre esses cursos de ação influenciados por fatores ideacionais, estaria a decisão dos Estados de desenvolverem armamentos nucleares, decisão essa que estaria associada a percepções (intersubjetivas) de legitimidade e de poder. Assim, na medida em que os Estados considerarem legítimo o desenvolvimento nuclear, e o associarem às características determinantes de uma grande potência, a escolha de buscar a bomba será mais provável (CHAFETZ; ABRAMSON; GRILLOT, 1996; CIRINCIONE, 2007, p. 58-63; EGELAND, 2016; EPSTEIN, 1977, p. 21-22; GRAHAM Jr; HANSEN, 2008, p. 8-10; HYMANS, 2006b; PRICE; TANNENWALD, 1996; SAGAN, 1996/97, p. 73-85; SUCHMAN; EYRE, 1992; TANNENWALD, 2007). Essa abordagem normativa sobre a proliferação tem ramificações em diferentes níveis de análise, podendo ser empregada tanto a indivíduos, quanto a coletividades, como organizações, burocracias e Estados. Nesta seção, discutiremos apenas a abordagem normativa focada nos Estados; os modelos que têm seu foco na política doméstica (incluindo a influência de ideias e crenças sobre as escolhas individuais) serão apresentados na próxima seção. Não é consensual, entretanto, a aplicação de teorias de identidade e de compartilhamento de normas para a análise do comportamento dos Estados, uma vez que estes são entidades coletivas, dentro das quais coexiste uma multiplicidade de indivíduos com visões, percepções e identidades distintas. Contudo, ainda que não consensual, a análise dos Estados como atores sociais, cujo comportamento emerge de identidades socialmente construídas, já está consolidada no campo de Relações Internacionais (CHAFETZ; ABRAMSON; GRILLOT, 1996, p. 733, WENDT, 1999, p. 193-245). Sob a perspectiva normativa e ideacional, portanto, a história da proliferação nuclear está intimamente associada a noções de prestígio internacional. Estados ambicionam a bomba, portanto, porque percebem a posse de um arsenal nuclear como uma forma de adquirir prestígio frente aos demais atores e de aumentar seu poder político nas interações internacionais (BETTS, 1977, p. 163; CIRINCIONE, 2007, p. 58-63; EGELAND, 2016; EPSTEIN, 1977, p. 21-22; SAGAN, 1996/97, p. 73-85). Assim, no contexto da década de 1960, por exemplo, havia uma percepção difundida de que a posse de um arsenal nuclear permitiria a um Estado fazer parte do seleto grupo de potências internacionais. Isso teria sido fundamental para que países como a França, cuja identidade era historicamente associada a sua posição de potência, e como a 40 Índia, que adotava, já então, uma postura de país emergente, desenvolvessem sua capacidade nuclear. A estrutura normativa, então, impõe determinados tipos de comportamento, através de “escolhas obrigatórias”, definidas a partir da construção social da identidade dos Estados, do contexto em que se inserem e do papel que adotam para lidar com esse contexto (SUCHMAN; EYRE, 1992). Por conseguinte, na medida em que os armamentos nucleares são imbuídos de valor (socialmente definido), eles se tornam atrativos: símbolos de uma nação moderna e civilizada, dotada de capacidade militar e tecnológica de alto nível. Essa visão normativa se opõe a modelos tradicionais, baseados na escolha racional, ou seja, no cálculo material de benefícios que podem ser obtidos através de um arsenal (como o modelo do imperativo de segurança). Segundo o modelo normativo, a definição social de identidades e contextos delimita o espectro de comportamentos possíveis dos Estados, de modo que a “escolha racional”, ou seja, o cálculo custo-benefício, passa a ser meramente ritualística (SUCHMAN; EYRE, 1992, p. 148). No entanto, se armamentos nucleares são imbuídos de valor tão elevado, é preciso também uma explicação normativa para sua lenta difusão. De fato, Nina Tannenwald (2007) argumenta que, ao longo da Guerra Fria, formou-se um tabu relacionado ao uso de armamentos nucleares, o que contribuiu para a ampliação do repúdio à própria posse desses armamentos