JONATHAN CORDEIRO CAVACA Leitores transmídia: práticas de leitura e a relação entre leitura literária e jogos ASSIS 2021 JONATHAN CORDEIRO CAVACA Leitores transmídia: práticas de leitura e a relação entre leitura literária e jogos Dissertação apresentada à Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, para a obtenção do título de Mestre em Letras (Área de conhecimento: literatura e Vida Social). Orientador: Dr. Sérgio Fabiano Annibal. ASSIS 2021 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Laura Akie Saito Inafuko - CRB 8/9116 C376L Cavaca, Jonathan Cordeiro Leitores transmídia: práticas de leitura e a relação entre leitura literária e jogos / Jonathan Cordeiro Cavaca. Assis, 2021. 216 p. : il. Dissertação de Mestrado - Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis Orientador: Dr. Sérgio Fabiano Annibal 1. Leitura. 2. Transmídia. 3. Jogos. 4. Narratologia. I. Título. CDD 028 Dedicatória Dedico esta pesquisa à única pessoa que ficou do meu lado do início ao fim dela, discutindo ideias e teorias noite adentro: a voz em minha cabeça. Brincadeira, dedico à Grazzielle, que me acompanhou por todo este percurso e, vamos por muitos mais. Agradecimentos Agradeço à minha família, que esteve sempre presente em momentos de necessidade. Ao meu orientador, Sérgio Fabiano Annibal, pelos puxões de orelha e por me guiar o olhar para o caminho certo, e às (os) doutoras (es) Arlete dos Santos Petry, Raquel Lazzari Leite Barbosa e João Luís Cardoso Tápias Ceccantini, cujos pensamentos, críticas, ideias e sugestões tornaram possível a evolução e desenvolvimento desta pesquisa. Em especial aos voluntários que aceitaram dedicar seu próprio tempo para responder ao questionário, e à Ellie, Nami, D. V., ao Vesemir e ao Trinity, por estenderem sua generosidade ao limite, permitindo-me entrevistá-los. Sem vocês, esse trabalho não teria sido possível. Literalmente. Agradeço, também à Priscila, ao Fabiano, ao Matheus e ao Pedro, amigos que se interessaram pela pesquisa e me ajudaram com perguntas e insights. À tríade dos grupos que atuaram como meus gurus: o da pós em Games, como os gurus dos jogos na educação; o Geplenp (UNESP/Assis), como os gurus das práticas de ensino; e o Literatura e Tempo Presente (UFSCar), como os gurus da literatura digital. Por fim, mas não menos importante, agradeço às Entidades e Orixás que me acompanham e me ajudaram a tirar força do Olho de Thundera para conseguir ler Genette às quatro da manhã. CAVACA, Jonathan Cordeiro. Leitores transmídia: práticas de leitura e a relação entre leitura literária e jogos. 2021. 220f. Dissertação (Mestrado Acadêmico em Letras). – Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, 2021. RESUMO Este trabalho visa observar de que modo as práticas de jogar jogos narrativos digitais alteraram as práticas de leitura literária dos leitores-jogadores do curso de Letras da Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho”, Faculdade de Ciências e Letras, campus Assis, envoltos em um modelo de leitura que o permite percorrer certo texto com o auxílio de outras mídias, aqui intitulada leitura transmídia, praticada por leitores que cresceram em uma realidade transmídia, buscando auxílio de outra(s) mídia(s) para percorrer e fruir uma narrativa, denominamo-los leitores transmídia. Segundo a teoria de Jenkins (2009) acerca da transmídia, compreendemos a leitura transmídia como a leitura feita por meio de duas ou mais mídias, de modo que o conteúdo de uma não é o mesmo da outra, adicionando informações mutuamente, mas completas quando isoladas; e por leitores transmídia, leitores que transitam entre as mídias, buscando novas informações e/ou sensações sobre um mesmo tópico, enquanto mantém seu foco e interesse durante o percurso. Visamos investigar as práticas de leitura desses leitores-jogadores por meio de entrevistas e, para que isso nos fosse possível, dedicamos três capítulos anteriores a este momento para o desenvolvimento teórico de três pontos base, e fundamentais, à pesquisa: percorremos os conceitos de Eagleton (1997) e Compagnon (1999) acerca do que é literatura e como suas nuances se desenvolveram pela história, adentrando as vozes de Genette (1998, 1972), Barthes (1972) e Todorov (1972) quanto à narratologia segundo os Formalistas Russos, resgatando-os na averiguação da literariedade presente nos jogos narrativos digitais, de modo a validar o encontro das duas mídias (livro e jogo); em seguida, o desenvolvimento das práticas de leitura na sociedade, nos valendo de Chartier (1997), Cavallo (1997), Manguel (1996) e Fischer (2003) para trafegar entre a leitura declamada, a leitura silenciosa e a leitura fragmentada, culminando no universo transmídia possibilitado pelo ciberespaço, às cores de Lévy (1998, 2010 e 2017), Rheingold (1993), Jenkins (2009) e Roberts (2013), cenário que favorecera o crescimento e desenvolvimento dos leitores transmídia; o último ponto base trata do jogo em si e seus elementos narrativos, como a literatura ergódica de Aarseth (1997), os labirintos narrativos cujos modelos labirínticos foram tratados por Doob (1992), Eco (1983), Hocke (1974) e por mim, e os intensificadores de leitura – o épico, o estado de flow, ações multimídias e a ilusão de incorporação, postas por McGonigal (2010), Chou (2010), Nakamura e Csikszentmihalyi (2009), Zichermann (2010, 2011), Løvlie (2005) – e seus efeitos na fruição da leitura, no contato com a escrita, e no engajamento em ajudar a evoluir o mundo científico, culminando, finalmente, nas práticas de leitura literária dos leitores transmídia. Todo esse percurso nos disponibilizou uma visão mais pontual em relação às entrevistas, onde fora possível observar uma expansão no que se considera fazer parte do universo literário, abrangendo-o a jogos, filmes, músicas e peças; a influência mútua das práticas de jogar e das práticas de leitura, a construção de seu percurso literário pela afinidade entre jogo e livro; e a utilização de práticas transmídia para lidarem com atividades monomídia. Palavras-chave: Práticas de Leitura, Leitores Transmídia, Leitura Transmídia, Práticas de Jogar, Narratologia CAVACA, Jonathan Cordeiro. Transmedia Readers: reading practices and the relation between literature reading and games. 2021. 220f. Dissertation (Masters in Languages). – São Paulo State University (UNESP), School of Sciences, Humanities and Languages, Assis, 2021. ABSTRACT The purpose of this dissertation is to observe the ways of which the digital narrative gaming practices modify the literature reading practices of the reader- players in Languages at São Paulo State University “Julio de Mesquita Filho” (UNESP), School of Sciences, Humanities and Languages, campus Assis, surrounded by a reading model that allows them to go through a given text with the aid of other media, addressed here by transmedia reading, practiced by readers who grew up in a transmedia reality, seeking the aid of other media to course and enjoy a narrative, we denominate them transmedia readers. According to Jenkins’ (2009) theory regards transmedia, we understand transmedia reading as the reading performed with two or more media in a way that the content of one is not the same from the other, mutually adding information, but completes when apart; as for the transmedia readers, readers who transit between two media, seeking new information and/or sensations about the same topic, whilst maintaining the focus and interest along the way. We aim to investigate the reading practices of those reader-players through interviews and, so that could be possible, we have dedicated three chapters prior to that moment for the theoretic development of three base points, therefore fundamentals, to this research: we went through Eagleton’s (1997) and Compagnon’s (1999) concepts of Literature and how its shapes shifted throughout history, getting to the voices of Genette (1998, 1972), Barthes (1972) and Todorov (1972) regarding the narratology according to the Russian Formalists, which were brought back to verify the literacy present in digital narrative games, validating the encounter of the two media (book and game); the development of the reading practices in the society, taking Chartier (1997), Cavallo (1997), Manguel (1996), and Fischer (2003) to travel among reading aloud, silent reading and fragmented reading, culminating at the transmedia universe enabled by the cyberspace versed by Lévy (1998, 2010 e 2017), Rheingold (1993), Jenkins (2009), and Roberts (2013), scenery that supported the transmedia readers growth and development; the last base point is the game itself and its narrative elements, such as Aarseth’s (1997) ergodic literature, the narrative labyrinth whose labyrinthic models were discussed by Doob (1992), Eco (1983), Hocke (1974), and myself, and the reding intensifiers – the epic, the flow state, multimedia actions and the embodiment illusion, brought here by McGonigal (2010), Chou (2010), Nakamura e Csikszentmihalyi (2009), Zichermann (2010, 2011), and Løvlie (2005) – and their effects on reading fruition, on the contact with writing, and on the engagement upon helping to evolve the scientific world, finally culminating at the transmedia readers’ literature reading practices. This whole course has provided us a more punctual vision regarding the interviews, where it was possible to observe an expansion on what is considered to be part of the literary universe, embracing games, movies, music and theatrical plays; the mutual influence of the gaming practices and reading practices, the construction of one’s literary path by the affinity between game and book; and the application of transmedia practices to deal with monomedia activities. Keywords: Reading Practices, Transmedia Readers, Transmedia Reading, Gaming Practices, Narratology. Lista de Figuras Figura 1: ROBERTS, Kevin. Lovemarks, 2013. Figura 2: CAVACA, J. C. Exemplo de labirinto unicursal, 2021. Figura 3: CAVACA, J. C. Exemplos de labirintos multicursais, 2021. Figura 4: CAVACA, J. C. Exemplos de labirintos multifinais, 2021. Lista de Tabelas Tabela 1: ZILBERMAN, Regina. Níveis narrativos e tipos de narrador, 2012. Sumário Introdução ....................................................................................................... 14 Capítulo 01 – Literatura e Narratologia ........................................................ 21 Conceitos e funções da literatura ..................................................... 21 Formalistas Russos e narratologia ................................................... 24 Capítulo 02 – Práticas de Leitura .................................................................. 42 A leitura declamada ......................................................................... 43 A leitura silenciosa ........................................................................... 45 A leitura fragmentada ....................................................................... 47 O germe da leitura transmídia .......................................................... 48 Cibercultura: inteligência coletiva e comunidades virtuais ............... 48 Lovemarks .......................................................................................... 51 Convergência: crossmedia e transmídia .......................................... 56 Capítulo 03 – Tecnologia, mídias e narratologia nos jogos ....................... 61 Medos geracionais ........................................................................... 61 O Labirinto ....................................................................................... 65 A literariedade dos jogos .................................................................. 76 A narratologia aplicada aos jogos ...................................................... 78 Intensificadores de leitura ................................................................ 83 O envolvimento dos fãs para com as narrativas ................................ 87 O conhecimento no universo transmídia ........................................... 98 Jogadores e Leitores ...................................................................... 106 Capítulo 04 – Análise das entrevistas ........................................................ 109 Alguns perfis de leitores-jogadores transmídia .............................. 110 Práticas de Jogar na leitura, ou práticas de leitura no jogar? .......... 117 O Cânone e o Popular ................................................................... 121 Mídias e narrativas ........................................................................... 123 Os limites da literatura ................................................................... 124 O gosto pela leitura .......................................................................... 125 Leitor transmídia ............................................................................ 126 Jogar, ler e assistir ............................................................................ 128 Livro ou Jogo.................................................................................. 130 As Práticas mudaram? ................................................................... 131 Considerações finais ................................................................................... 133 Referências Bibliográficas .......................................................................... 138 Glossário das obras literárias citadas ........................................................ 144 Obras em formato impresso ........................................................... 144 Obras em formato filme e série ...................................................... 147 Obras em formato música .............................................................. 147 Obras em formato jogo .................................................................. 147 ANEXO I - Questionário via internet para triagem de candidatos. ........... 155 ANEXO II - Roteiro de entrevista ................................................................. 157 ANEXO III - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido ....................... 159 ANEXO IV - Respostas do questionário ..................................................... 161 ANEXO V – Entrevistas ................................................................................ 167 ANEXO V. A – Entrevista Ellie ....................................................... 167 ANEXO V. B – Entrevista D. V. ...................................................... 174 ANEXO V. C – Entrevista Vesemir ................................................. 184 ANEXO V. D – Entrevista Nami ..................................................... 197 ANEXO V. E – Entrevista Trinity .................................................... 207 14 Introdução Ao longo da história, as práticas de leitura, assim como os leitores e a leitura literária, sofreram mudanças fundamentais: a leitura declamada (leitura em voz alta) criou espaço para o surgimento da leitura silenciosa, que abriu caminho à leitura fragmentada, permitindo a ascensão da leitura de conteúdos diferentes relacionados a um mesmo tópico em mais de uma mídia sem perdê- lo de foco. Intitularemos essa leitura de leitura transmídia (trataremos das mudanças das práticas de leitura no Capítulo 02 e ao longo do Capítulo 03). Acreditamos que, atualmente, todas as práticas de leitura desenvolvidas e estudadas pelas sociedades podem ser encontradas na mídia dos jogos que apresentam uma trajetória narrativa, como Onimusha1, Final Fantasy2 e A Lenda de Zelda3, tratados aqui por jogos narrativos digitais, sobre os quais recai nossa hipótese de serem eles atrativos à leitura literária – e não repelentes – por meio da leitura transmídia. Johan Huizinga, em seu livro Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura (1938), mostra como os jogos sempre estiveram presentes na cultura humana, desde os jogos de tabuleiro, como o xadrez egípcio, até a dança, como jogos de sedução e rituais de magia tribais. Nas tribos, os jogos eram, por vezes, usados como rituais de passagem, sendo preparatórios para a vida funcional adulta. Antes de os jovens passarem no teste, os jogos comumente não ofereciam grandes riscos de morte, sendo a caça a animais menores, pássaros e assim por diante. Uma vez concluído o ritual, o novo adulto passa a não mais jogar, mas a defender sua tribo e sua vida dos perigos externos. Conforme o tempo avança e, com ele, a humanidade muda, também se transfiguram os 1 Produzida pela Capcom, a série narra a história de guerreiros que tentam derrotar o exército Genma (monstros/demônios) liderado por Oda Nobunaga e (no quarto título da cronologia) Toyotomi Hideyoshi. 2 Desenvolvida pela Square Enix, cada título da série conta uma história completamente diferente entre si, não havendo necessariamente uma ligação entre elas. Atualmente, há 15 títulos que seguem um cânone e mais diversos outros para prequelas, sequelas e spin-offs. 3 Desenvolvida por Nintendo EAD (1986–2013), Capcom (2002–2004), Grezzo (2011– 2019) e Nintendo EPD (2015–presente), a maioria de seus títulos narra a aventura de Link para resgatar a princesa Zelda. 15 jogos: a sobrevivência sai dos entornos da tribo e adentra a própria civilização, fazendo com que o ser humano deixe de se defender de outras raças, para proteger-se de si próprio. O ritual moderno se torna o de ingressão no mercado de trabalho, onde deixa-se de ser criança ao conseguir um emprego relativamente estável. No tocante à leitura, porém, alguns tipos de jogos auxiliaram e foram auxiliados pela evolução tecnológica, mais especificamente o e pelo modelo virtual de Web como um conceito para aplicativos baseados em redes sociais e tecnologia da informação (a Web 2.0). Com a criação e desenvolvimento das redes sociais, plataformas de compartilhamento de vídeos e canais de streaming (forma de difusão de dados digitais), foi-se desenvolvendo uma cultura afetiva e participativa dos clientes, transformando-os de agentes passivos da informação para agentes ativos formadores de opinião, cultura e mudança. Esse modelo de sociedade que começou a surgir com maior força e alcance no fim dos anos 1990 e início dos anos 2000, impulsionou a mídia dos jogos em geral, que, por sua vez, impulsionou de volta a cultura participativa por cada vez mais permitir a escolha de seus jogadores sobre o modo com o qual podem encarar uma narrativa, desenvolvendo um modelo de jogabilidade labiríntico, por onde o leitor-jogador pode caminhar, se perder e encontrar formas nunca testadas de se completar desafios, nos então jogos narrativos digitais. Com essas novas habilidades, os jogadores passaram a se juntar em comunidades virtuais para discutir suas descobertas e auxiliar quem estivesse com dificuldades em algum segmento da narrativa. Por consequência, os fóruns, faqs e wikis se desenvolveram em uns dos maiores espaços de inteligência coletiva acumulada pelos jogadores. Enquanto a internet desenvolveu uma cultura afetiva e (em parceria com os jogos) participativa, os celulares ajudaram a desenvolver a praticidade e velocidade no envio e recepção de informações. Desde os anos 1990, com a primeira tela sensível ao toque do IBM Simon (1994), o acesso à internet do Nokia 9000 Communicator (1996) e a implementação de jogos (Serpente (Snake), popularmente conhecido por “jogo da cobrinha”) nos Nokia 6160 e 5110 (1998), podemos ter um prelúdio do que se veria nos anos 2000: o J-SH04 (2001), com câmera fotográfica, o BlackBerry 5810 (2002), com os primórdios dos 16 aplicativos de celular e o iPhone 2G (2007), que revolucionou todo o conceito de smartphone. Todo e desenvolvimento da tecnologia dos smartphones culminou em uma cultura do envolvimento com a informação: enquanto o controle remoto desenvolveu uma prática de leitura fragmentada, o celular a desenvolveu em uma leitura ainda mais rápida e mais envolvente, devido à sua facilidade e velocidade de se conseguir informações pertinentes ao interesse do leitor. Unindo-se o espaço de atuação provido pela Web 2.0, as práticas de empoderamento e interação dos jogos narrativos digitais e a praticidade e velocidade dos smartphones, o ambiente perfeito para o desenvolvimento de uma nova prática de leitura literária se formou: a convergência. Com a habilidade de encontrar todas as informações e atividades necessárias em um mesmo lugar, as gerações que cresceram nesse universo acostumam-se a transitar rapidamente em diferentes locais informativos ou mídias, para que pudesse se aprofundar em conteúdos e desenvolver seu próprio caminho de raciocínio ou atuação. Assim, acreditamos que os novos leitores, acompanhando desde sempre na prática multimídia e, mais ainda, transmídia, passaram a criar formas de se adaptar à realidade monomídia de um mundo que não acompanhou o próprio ritmo. Portanto, nosso objetivo principal nessa pesquisa é a de compreender as práticas de leitura de alunos de Letras que se considerem jogadores de jogos narrativos digitais e se enquadrem no meio transmídia em quatro pontos: O primeiro deles seria o de entender a representação dos leitores jogadores acerca do que é acolhido sob o termo “literatura”. Para esse fim, dedicamos o primeiro Capítulo dessa pesquisa aos conceitos de Compagnon (1999), Eagleton (1997), Candido (2002) e Tolkien (2008) acerca de literatura e suas funções. Em seguida, discutiremos as questões da narratologia e seus elementos pelos estudos do Formalismo Russo, nas vozes de Genette (1998, 1972), Barthes (1972) e Todorov (1972), devido nosso intuito de relacionar, posteriormente, a narratologia dos textos literários à narratologia dos cibertextos (mais especificamente, dos jogos narrativos digitais). O segundo ponto de destaque se trata da relação entre a formação e desenvolvimento das práticas de jogar desses leitores e suas práticas de leitura. 17 Cobrindo o tema em nosso segundo Capítulo, buscamos as práticas de leitura desenvolvidas pela humanidade ao longo de sua história em autores como Roger Chartier (1997), Guglielmo Cavallo (1997), Alberto Manguel (1996) e Steven Roger Fischer (2003), seguindo à discussão sobre ciberespaço e mídias aos olhos de Pierre Lévy (1998, 2010 e 2017), Howard Rheingold (1993), e Henry Jenkins (2009) e Kevin Roberts (2013) quanto à convergência, crossmedia e transmídia, criando um panorama do cenário estabelecido que favorecera o crescimento dos leitores transmídia. Os motivos que levam o leitor transmídia à leitura literária formam o terceiro e último ponto essencialmente teórico sobre o qual nossa pesquisa versa. Partimos, então, dos elementos literários presentes nos jogos narrativos digitais por meio da literatura ergódica de Espen Aarseth (1997), para os labirintos unicursais, multicursais e em rede de Penelope Reed Doob (1992), Umberto Eco (1983) e Gustave R. Hocke (1974), e trazemos o labirinto multifinal aos modelos narrativos. Ato contínuo, discorremos sobre os elementos encontrados nos jogos narrativos digitais que capturam a atenção, vontade e emoção dos jogadores, como questões de rejogabilidade e releitura, seus elementos narratológicos (em resgate ao Formalismo Russo, do Capítulo 01), o épico (Jane McGonigal (2010) e Yu-kai Chou (2010)), o estado de flow (Jeanne Nakamura e Mihaly Csikszentmihalyi (2009)), ações multimídias (Gabe Zichermann (2010, 2011)), e a ilusão de incorporação (Anders Sundnes Løvlie (2005)) e seus efeitos na fruição da leitura, no contato com a escrita, e no engajamento em missões especiais para ajudar a evoluir o mundo científico, culminando, finalmente, nas práticas de leitura literária dos leitores transmídia. A quarta seção desta dissertação apresenta o desenvolvimento da análise das entrevistas4 e das respostas do questionário virtual realizados com graduandos de Letras da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” de Assis, auxiliando-nos na averiguação ou refutação das ideias postas até então. A fim organizacional, os pontos de observação foram divididos em tópicos em 4 Autorizadas pelo Comitê de Ética por meio do Parecer número 4.367.587 18 uma tentativa de guiar mais facilmente as análises das informações obtidas por meio das respostas. Por nosso foco ser as práticas de leitura literária de jogadores de jogos narrativos digitais num universo transmídia, observando se, de alguma forma, tais práticas se formaram ou foram desenvolvidas a partir de suas práticas de jogar jogos narrativos digitais, assumimos os entrevistados como representantes desses leitores transmídia, tendo neles demonstradas práticas de leitura literária em comum ao grupo. Devido a esse foco, realizaremos uma pesquisa quantitativa em certos momentos e qualitativa em outros, de modo a observarmos como essas práticas de leitura literária se desenvolveram e os percursos de leitura literária que traçaram. Para as entrevistas, resgataremos Pierre Bourdieu em seu texto Compreender (2012), ao demonstrar algumas formas de se diminuir a “dissimetria social” (BOURDIEU, 2012, p. 695) existente em uma entrevista e torná-la não-violenta, entre elas: a aproximação entre entrevistador e entrevistado por pertencerem a um mesmo grupo, classe ou rede de conhecidos. Pelo pesquisador ser um jogador e leitor transmídia, julgamos ser mais fácil a aproximação entre ambos, evitando certos preconceitos e censuras que possam surgir de leitores que desenvolveram práticas diferentes. Faremos, então um levantamento descritivo desse grupo, de modo a responder e compreender os objetivos propostos. Por ser inviável identificarmos e entrevistarmos todos os leitores transmídia que sejam graduandos da UNESP Assis, decidimos utilizar, primeiro, um questionário virtual (ANEXO I) para podermos realizar uma triagem das práticas e percursos que mais foram mencionados e selecionar entrevistados como amostragem (BARDIN, 1977 p. 97) para ilustrar o grupo na próxima etapa da pesquisa, a entrevista (ANEXO II). Nossa proposta é de lançarmos o questionário virtual e enviá-lo para o e-mail dos alunos do curso de Letras da Unesp de Assis – pedindo que o responda os graduandos que se considerem jogadores de jogos narrativos digitais. O questionário está composto por dez questões, sendo três abertas e sete fechadas e, analisados os dados, foram escolhidos 5 dos voluntários de modo a diversificar os tipos de leitores-jogadores apresentados por TUUNANEN 19 & HAMARI (2014), BARTLE (1996) e FORTIM et al (2016), como alguém que seja um jogador ávido movido pela história principal5, mas um leitor casual minerador6; ou um jogador casual explorador7, e leitor casual movido pela história principal; um jogador veterano explorador8 e leitor ávido movido pela história principal. Acreditamos que essa diversidade de leitores-jogadores trará maiores oportunidades de observação das práticas de leitura literária dos leitores transmídia, analisando até que ponto seus modos de jogar influenciam seus contatos com a leitura. Aos selecionados, serão feitos convites via e-mail, e/ou mensagem no aplicativo de mensagens instantâneas “WhatsApp” e/ou “Facebook Messenger”, de acordo com o que o voluntário preencheu na questão 02 do questionário, para participarem de uma entrevista virtual por Skype, devido à situação de isolamento durante a pandemia do COVID-19. Propomos o uso de aplicativos de mensagens instantâneas por nos parecer que o alvo de nossa pesquisa seja mais familiarizado com eles ao uso de e-mail, assim acreditamos conseguir uma comunicação mais rápida com nossos voluntários. Escolhemos atualizar a possibilidade de contato via redes sociais – e não apenas por e-mail –, por apresentarem maior velocidade de contato, porém será mantida a distância profissional acadêmica entre entrevistador e entrevistados, sendo única e exclusivamente utilizadas para fins de comunicação referente à chamada para entrevista, evitando, assim, qualquer possibilidade de inviabilização de pesquisa por tentativa falha de comunicação por utilizar uma rede com a qual os entrevistados não possuam o hábito de interagir. 5 Alguém que joga quase todos os dias sem se preocupar com detalhes e pontas soltas, mas sim com a história principal na narrativa. 6 Alguém que lê de vez em quando, ou em momentos de ócio, buscando falhas ou furos na narrativa, não se importando, necessariamente, com a narrativa em si. 7 Alguém que que joga de vez em quando, ou em momentos de ócio, e busca tantas informações quanto possíveis antes de alcançar o fim da narrativa. 8 Alguém que joga uma ou duas vezes por semana e busca tantas informações quanto possíveis antes de alcançar o fim da narrativa. 20 Nossas entrevistas estão compostas de 11 questões, serão gravadas em áudio e, em seguida, transcritas para análise, mantendo o sigilo e resguardo ético e moral dos entrevistados, segundo o indicado por Bourdieu (2012). Concluída a transcrição, analisaremos as respostas partindo das contribuições dos teóricos já apresentados quanto às representações de literatura e dos jogos. Com as representações em mãos, poderemos nos debruçar sobre a influência das comunidades leitoras e jogadoras (a inteligência coletiva nas comunidades virtuais) para, então, traçar as trajetórias e novas representações geradoras das práticas de leitura literária dos leitores transmídia guiadas pelos jogos. Apesar de essa pesquisa não apresentar riscos aparentes à saúde e se tratar de um processo completamente anônimo, não sendo permitido a divulgação de qualquer informação que possa levar à identificação do (a) participante, eles (as) podem sentir desconforto frente a certa (s) questão (ões). Assim, as perguntas da presente pesquisa estão estruturadas de modo que qualquer desconforto por parte do (a) participante tornar-se-á razão para que o (a) mesmo (a) não necessite respondê-la (s). Com isso, objetivamos nos aproximar das práticas de leitura literária dos jogadores transmídia assim como seus rastros de leitura literária (estratégias usadas na decodificação e compreensão de textos literários) e as influências dos jogos em suas representações. 21 Capítulo 01 – Literatura e Narratologia Conceitos e funções da literatura Conta a lenda que desde muito tempo – milênios –, grandes heróis aventuram-se mundo a fora buscando um tesouro há muito esquecido por nossos ancestrais, sem jamais tê-lo encontrado. Muitos pensaram ter se deparado com tal riqueza, trazendo histórias incríveis e maravilhosas, que seriam confrontadas com as histórias de outros heróis que também acreditavam serem favorecidos com o dom da visão, perpetuando, até os dias de hoje, a lenda da literatura. Com o perdão da breve historinha fantasiosa acima, o conceito do que seria considerado literatura tornou-se uma variante ao longo dos anos. Antoine Compagnon – na obra O demônio da teoria (1999) – resgata algumas dessas visões e as confrontam, expondo as lógicas e incongruências carregadas por certos momentos históricos e culturas. Enquanto, “no sentido mais amplo, literatura é tudo o que é impresso (ou mesmo manuscrito), são todos os livros que a biblioteca contém (incluindo-se aí o que se chama literatura oral)” (COMPAGNON, 1999, p. 31), seu sentido mais restrito expõe as diferenças de conceituação de literatura, uma vez que ela varia conforme o tempo e a cultura (COMPAGNON, 1999, p. 32). Para Aristóteles, por exemplo, os gêneros épico e dramático eram elevados literariamente sobre o gênero lírico, e essa visão perdurou até o século XIX, quando se passou a denominar por literatura as obras compreendidas sob o romance, o teatro e a poesia – e essa, mais tarde diluída nas concepções do verso livre e da prosa poética (COMPAGNON, 1999, p. 32). Acreditando que “o critério de valor que inclui tal texto” no arco literário “não é, em si mesmo, literário nem teórico, mas ético, social e ideológico, de qualquer forma extraliterário” (COMPAGNON, 1999, p. 34), Compagnon vai mais além e diz que definir literatura sempre se baseia em um preconceito elevado a um conceito universal (COMPAGNON, 1999, p. 44), e, partindo de princípios, deixa sua célebre máxima “literatura é literatura, aquela que as autoridades (os professores, os editores) incluem na literatura” (COMPAGNON, 1999, p. 46). 22 Terry Eagleton – em sua obra Teoria da literatura (1983) – realiza um trabalho de resgate parecido ao escolhido por Compagnon, mas caminha em uma direção paralela: apesar de ambos partirem do mesmo ponto de que a definição de literatura é subjetiva, Eagleton verte à visão de que ela “fica dependendo da maneira pela qual alguém resolve ler, e não da natureza daquilo que é lido” (EAGLETON, 1997, p. 11), de modo que se as pessoas estabelecerem que certo texto “se trata de literatura, então, ao que parece, o texto será literatura, a despeito do que o seu autor tenha pensado” (EAGLETON, 1997, p. 12). Algo como o que ocorre à palavra “mato”, que não se relaciona a um tipo específico de planta, mas a qualquer uma que não seja as o jardineiro almeja em seu jardim – “literatura” não se refere a um tipo de escrita, mas a todos que apresentam uma ou outra razão de serem valorizados (ELLIS, John M., 1974 apud EAGLETON, 1997, p. 12-13). Parece-nos que, se o modo de ler algo o define como literatura, a opinião acaba por se tornar grande influência sobre o que é literário e o que não é. A expressão “belas letras”, como Eagleton sugere, já evoca o conceito subjetivo do “belo”, apesar de estar menos ligada ao estilo de uma obra e mais a seu tipo (EAGLETON, 1997, p. 14), justificando a exclusão das histórias em quadrinhos, filmes e jogos da literatura. A fim de identificarmos as práticas de leitura literária dos que aqui serão chamados de leitores transmídia, ou seja, leitores capazes de buscar conteúdo relacionado a um mesmo tópico em mais de uma mídia, sem perder seu foco, achamos necessário, antes, discorrer sobre o tipo de literatura considerado para a organização dessa dissertação. Por ser-nos necessário afunilar o tipo de texto literário que acreditamos estar presente nas leituras dos jogadores transmídia, adicionaremos à definição de Compagnon de que “literatura é literatura” (1999, p. 46), as funções da literatura, observadas por Tzvetan Todorov, J. R. R. Tolkien e Antonio Candido. De Todorov (2007), acataremos o alvará de que a literatura não precisa ser autotélica. “Ela pode nos estender a mão quando estamos profundamente deprimidos, nos tornar mais próximos dos outros seres humanos que nos cercam, nos fazer compreender melhor o mundo e nos ajudar a viver” (TODOROV, 2014, p.76). 23 À vista disso, entendemos, como Candido, em sua obra A literatura e a Formação do Homem (1972), que a arte e a literatura são o uso da linguagem para transpor o real ao ilusório, em uma combinação de elementos da realidade com elementos técnicos. Ele também trará que a literatura possui três funções que, juntas, formam o que ele denomina função humanizadora (CANDIDO, 2002, p. 77). A primeira é a função psicológica, que trata da necessidade do ser humano em criar fantasias, independentemente de seu grau de escolaridade, idade ou gênero, como pode ser visto nas lendas, mitos, folclore, adivinhas, música, entre outros; a segunda função é a formadora, a qual traz a ideia de que, apesar de ser fantasia, as histórias são pautadas na realidade e, por isso, possuem um caráter educador (não pedagógico), uma vez que age e educa tão forte quanto a vida, mesmo sobre o que a ideologia dominante busque acobertar; a terceira das funções é a social, a capacidade do leitor de transportar a sua própria realidade para o meio ficcional e vice-versa, podendo incorporar as experiências da obra às suas próprias (CANDIDO, 2002). Tolkien, em seu ensaio On Fairy-Stories (1947), também considera três funções que a literatura – no caso, o conto de fantasia (Faërie stories) – abrange. A primeira função da literatura, para ele, é a de restauração (recovery), que consiste em ver o mundo por outro ângulo: “com a criação do Pégaso”, por exemplo, “os cavalos foram enobrecidos” (“by the making of Pegasus horses were ennobled”) (TOLKIEN, 2008, p.68); a segunda função é a do escapismo (escape), cujo teor é o de que a literatura é consumida como fuga da realidade e/ou condição (como fome, pobreza e dor), mantendo uma sensação de satisfação; e a terceira função é o consolo (consolation), do final feliz, o qual alivia a angústia das tragédias e desencontros, mas tal alívio vem de uma força miraculosa, de forma que nunca mais possa se repetir (TOLKIEN, 2008). Mesmo que tais conceitos restrinjam a quantidade de obras que acreditamos fazer parte da leitura literária dos leitores transmídia, ainda estamos lidando com uma quantidade grande demais de títulos, muitos dos quais consideramos não ser foco de nossa pesquisa, ou seja, seu auxílio na aproximação das práticas de leitura literária do leitor transmídia não seriam tão 24 significativas quanto às que julgamos mais condizentes às suas práticas de leitura literária. Por exemplo: O Livro de Cain (2011), da série Diablo, poderia muito bem se encaixar nas definições acima descritas. Trata-se de uma narrativa episódica, como um compêndio de narrativas acerca da criação do universo e do mundo de Santuário (onde a série se passa), porém, não acreditamos que este seja um livro que será muito citado pelos leitores transmídia em seus percursos literários. O oposto se dá com os livros da série Wiedźmin (1992 – 2013), que dará origem à série de jogos The Witcher (2007 – 2018) e à série de mesmo nome produzida pela Netflix em 2019. Por isso, decidimos entrevistar leitores transmídia e não-transmídia para que possamos analisar suas práticas a partir das obras literárias consumidas por eles e que se enquadrem nas especificações acima. Formalistas Russos e narratologia Acreditamos, assim, que embora uma definição de literatura ainda não exista de forma consensual, são mais estáveis os aspectos presentes em uma estrutura que as qualificam como tal. O narrador, as personagens, o tempo e o espaço são alguns dos elementos presentes na composição literária e tornaram- se alvo de observações e análises críticas na busca de uma evolução à compreensão literária. Cabe-nos, aqui, uma alusão ao que foi uma das correntes reconhecidas por se voltar a esses mecanismos narratológicos: o formalismo russo. O movimento, que já existia antes da revolução bolchevista de 1917, ganhou destaque na década de 1920 e, perseguidos durante o governo de Stalin, foram silenciados em meados da década de 1930. Os formalistas russos defendiam a separação da literatura de outras áreas do conhecimento, insistindo que ela é feita de seus próprios mecanismos e não se tratava de expressão, opinião ou pensamento do próprio autor, tampouco deveria ter seu conteúdo literário relacionado à psicologia, sociologia ou religião. Era preciso analisar a literatura a partir de si mesma (EAGLETON, 1997, p. 3-4). 25 Preocupados, assim, com a forma da obra, quer dizer, com a estrutura da escrita, observações sobre “o que a obra quer dizer” eram irrelevantes aos formalistas (entre eles: Viktor Borisovich Chklovski 9 – ainda Shklovskii ou Shklovsky –, Roman Osipovich Jakobson10, Boris Mikhailovich Eikhenbaum11, Vladimir Propp12 e Yuri Tynianov13), uma vez que a relação da literatura com a realidade social se encontra fora do escopo da crítica (EAGLETON, 1997, p. 3- 4). Saber que a ditadura de Salazar de Portugal foi tratada em Harry Potter (1997 – 2007) importa menos que como fora tratada14. Nessa visão, como observa Genette (1998), uma obra literária é um conjunto de funções que se ligam em um sistema de níveis textuais, de modo que o literário despertaria na “desfamiliarização”, ou “estranhamento” (CHKLOVSKI, 1917) do mundo por meio da linguagem. Segundo os formalistas russos, então, Talvez a literatura seja definível não pelo fato de ser ficcional ou “imaginativa”, mas porque emprega a linguagem de forma peculiar. Segundo essa teoria, a literatura é a escrita que, nas palavras do crítico russo Roman Jackobson, representa uma “violência organizada contra a fala comum” (EAGLETON, 1997, p. 2). 9 Cf.: Chklovski, Viktor. Arte como procedimento. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/2544975/mod_resource/content/1/A%20arte%20como %20procedimento.pdf. Acesso em 10 jan. 2020. 10 Cf.: JAKOBSON, Roman. Linguística e comunicação. Disponível em: https://moodle.ufsc.br/pluginfile.php/1277893/mod_forum/attachment/309034/Jakobson%20-%2 0Lingu%C3%ADstica%20e%20comunica%C3%A7%C3%A3o.pdf. Acesso em: 19 nov. 2019. 11 Cf.: EIKHENBAUM, Boris. A Teoria do “Método Formal”. In: OLIVEIRA TOLEDO, D. (Org.). Teoria da literatura. Formalistas russos. Tradução A. M. Ribeiro et al. Porto Alegre: Editora Globo, 1971. p.3-38. 12 Cf.: PROPP, Vladimir. Morfologia do Conto Maravilhoso. Disponível em: https://monoskop.org/images/3/3d/Propp_Vladimir_Morfologia_do_conto_maravilhoso.pdf. Acesso em: 13 ago. 2019. 13 Cf.: TYNIANOV, Yuri. Da evolução literária. In: TOLEDO, D. de O. (Org.). Teoria da literatura: formalistas russos. Tradução Ana Maria Filipouski et al. 2. ed. Porto Alegre: Globo, 1976. p. 105-118; TYNIANOV, Yuri. O problema da linguagem poética I: o ritmo como elemento construtivo do verso. Tradução Maria José Azevedo Pereira e Caterina Barone. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975; TYNIANOV, Yuri. O problema da linguagem poética II: o sentido da palavra poética. Tradução Maria José Azevedo Pereira e Caterina Barone. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975. 14 Todas as relações deste Capítulo entre o formalismo russo a obras da cultura popular foram feitas por mim, e não pelos autores. Acredito que a atualização das referências seria fortuita aos possíveis pesquisadores da área. 26 Assim, frases como “Deixa de ser gado!” estaria fora da esfera literária por sua associação instantânea ao modo de falar cotidiano, enquanto “e tu, ó desprezível presidente” faria parte do universo literário pelo trabalho com a língua para distanciá-lo do uso comum e, dessa forma, desautomatizar a reação cotidiana, destacando, assim, o objeto literário. Lemos o bilhete escrito por um amigo, sem prestarmos muita atenção à sua estrutura narrativa; mas se uma história se interrompe e recomeça, passa constantemente de um nível narrativo para outro, e retarda o clímax ara nos manter em suspense, adquirimos então a consciência de como ela é construída, ao mesmo tempo em que nosso interesse por ela pode se intensificar. (EAGLETON, 1997, p. 5). A título de justiça, os formalistas não buscavam exatamente definir literatura, mas o que faz com que um texto se torne literário. Eles buscavam identificar a literariedade de um texto por meio de certos elementos: “Sentimos através de cada obra que não existe apenas a fala (parole), que existe também uma língua (langue) da qual ela não é mais que uma das realizações. Nossa tarefa é estudar precisamente esta língua” (TODOROV, 1972, p. 241). Por essa razão, voltaremos nossa análise, em grade parte, ao levantado no campo da Narratologia, o qual nos permitirá focar em elementos mais concretos da narrativa, possibilitando-nos estabelecer uma relação mais contundente entre as práticas de leitura literária que veremos mais adiante. Decidimos seguir pelo caminho da narratologia, por acreditarmos, assim como Barthes (1972), de que há, em primeiro lugar, uma variedade prodigiosa de gêneros, distribuídos entre substâncias diferentes (...): a narrativa pode ser sustentada pela linguagem articulada, oral ou escrita, pela imagem, fixa ou móvel, pelo gesto ou pela mistura ordenada de todas essas substâncias; está presente no mito, na lenda, na fábula, no conto, na novela, na epopeia, na história, na tragédia, no drama, na comédia, na pantomima, na pintura (...), no vitral, no cinema, nas histórias em quadrinhos, no fait divers, na conversação. Além disto, sob estas formas quase infinitas, a narrativa está presente em todos os tempos, em todos os lugares, em todas as sociedades. A narrativa começa com a própria história da humanidade (BARTHES, 1972, p. 19). Tal visão de narrativa expande o primeiro sentido que Genette propõe ao termo, o qual todo enunciado narrativo (acontecimentos, em série ou isolados, 27 apresentados por meio da oralidade ou escrita) designa-se narrativa. Outros dois sentidos seriam carregados pelo termo: sendo o primeiro dos três já sido exposto, o segundo refere-se às relações entre esses acontecimentos, e o terceiro sentido trata-se do próprio ato de narrar (GENETTE, 1998, p. 23-24). E é justamente nesse segundo que recai as observações de Genette (1998), Barthes (1972) e Todorov (1972) por nele se basear a “análise da narrativa”. Em sua obra Discurso da Narrativa (1979), Genette trata de cinco modalidades presentes em qualquer narrativa. A primeira – a ordem – aborda da organização temporal das unidades narrativas. Segundo Barthes (1972), denomina-se unidade mínima narrativa um segmento da história que se correlaciona com uma evolução de si mesmo: seja em um mesmo nível, ou em outro (BARTHES, 1972, p. 28-29): quando o narrador de Harry Potter e a Pedra Filosofal (1997) apresenta o “Espelho de Ojesed” como mais um elemento mágico do universo de Hogwarts, na verdade está expondo ao leitor um elemento chave no desfecho da trama, ou seja, sua enunciação carrega uma função, tornando-se uma unidade narrativa. Assim, Genette apresenta diversas formas de anacronia propositalmente aplicadas pelos narradores para criar certos efeitos no narratário e no leitor. Entre suas diversas formas, há a interrupção de uma sequência cronológica narrativa pela inserção de eventos ocorridos anteriormente (GENETTE, 1998, p. 38) (analepse) e a previsão de algo ainda não conhecido ou ocorrido (GENETTE, 1998, p. 38), (prolepse). Além das estratégias anacrônicas, o autor nos apresenta, também, aos segmentos narrativos sem qualquer localização de tempo, nem ligação situacional a outros momentos da narrativa, de modo a ser impossível sua colocação em um local exato na linearidade narrativa (GENETTE, 1998, p. 81-82) (acronia), mantendo sempre em mente que essas relações de tempo constituem sempre um alcance e uma amplitude, ou seja, uma distância entre a cena lembrada/prevista da cena no tempo presente da história (uma lembrança pode revelar algo com um alcance de dezenas de anos) (GENETTE, 1998, p.46) e um tempo decorrido dentro da lembrança/previsão. Uma analepse com alcance de 20 anos pode apresentar uma amplitude de cinco dias, por exemplo (GENETTE, 1998, p.46) A segunda modalidade – a duração – desenvolverá o ritmo de uma narrativa. Para isso, Genette se debruçará na ideia de que o tempo narrativo é 28 diferente do tempo da história, fenômeno denominado anisocronia. Quatro elementos ditariam o ritmo narrativo: a pausa descritiva apresentaria a lentidão máxima, pois quando o narrador, por exemplo, descreve ou divaga, a história é congelada, retornando apenas com o fim desse segmento narrativo; no extremo oposto, as elipses carregariam velocidade máxima em relação ao tempo da história, uma vez que um segmento ocultado pode abarcar qualquer quantidade de tempo; entre ambos, o sumário aborda uma forma menos radical de acelerar o tempo de história, resumindo-a ao invés de suprimi-la; o último dos elementos, e o que mais se aproxima de quando o tempo narrativo se torna igual ao tempo da história (isocronia), é a cena, geralmente tratada por diálogos, por apresentar pouca ou nenhuma intervenção do narrador, que pode até se fingir ausente (GENETTE, 1998, p. 93-112). Ainda sobre a pausa descritiva, em outro momento, Genette (1972) discorre sobre a relação entre a narração e a descrição. A narração (representação de ações e acontecimentos) desenvolve quase uma relação de dependência com a descrição (representação de objetos e personagens), mas o contrário não é verdadeiro. A frase “o gato é preto com manchas brancas, olhos verdes-amarelados e pesa cinco quilos” não apresenta narração, porém a frase “A mulher lançou o jarro à amiga” é uma narrativa que comporta elementos descritivos, se considerarmos a diferença descritiva da mesma cena ao alterarmos “à” para “na”, ou “lançou” por “atirou”, além do substantivo “mulher” descrever o gênero da actante (GENETTE, 1972, p. 272-273). A descrição apresenta duas funções diegéticas na “tradição literária ‘clássica’ (de Homero ao fim do século XIX)” (GENETTE, 1972, p. 274): uma com função de ordem decorativa, agindo como uma pausa na narrativa, de papel puramente estético (descrição ornamental) e uma de função de ordem explicativa e simbólica, de modo que, agindo como signo sobre as personagens, revelam e/ou justificam a suas psicologias (descrição significativa) (GENETTE, 1972, p. 274). A frequência com as quais certos acontecimentos (história) e enunciados (narrativa) são apresentados formam a terceira modalidade narrativa, podendo ser um trecho singulativo (único), ou iterativo (repetido) (GENETTE, 1998, p. 113-114, 124). Genette trata de quatro fórmulas para tratar a modalidade: contar 29 uma vez aquilo que se passou uma vez (1N/1H): denominada por narrativa singulativa, ou cena singulativa, onde a singularidade do enunciado narrativo equivale à singularidade do acontecimento narrado (GENETTE, 1998, p. 114); contar uma (ou em uma única) vez aquilo que se passou n vezes (1N/nH): intitulado de narrativa iterativa por vários acontecimentos serem sintetizados em um único exemplo para que, a partir dele, sejam imaginados os demais (GENETTE, 1998, p. 116); contar n vezes aquilo que se passou uma vez (nN/1H): quando há repetição de um acontecimento independente de ser uma repetição ipsis litteris, ou com estilos narrativos diferentes, ou a partir de diferentes pontos de vista. Foi denominada por narrativa repetitiva devido ao fato de a recorrência enunciativa não ser correlata à recorrência dos acontecimentos (GENETTE, 1998, p. 115); contar n vezes aquilo que se passou n vezes (nN/nH): também considerada singulativa pelo número de repetições de acontecimentos e enunciados serem iguais. “Segunda-feira deitei-me cedo, terça-feira deitei-me cedo, quarta-feira deitei-me cedo, etc” (GENETTE, 1998, p. 115). O modo narrativo compõe a quarta modalidade posta por Genette e vários elementos o influenciam: a distância entre o narrador e a narração pode nos presentear com uma narrativa pura, quando não há preocupação em mostrar que não é o narrador que está falando, ou mimética, quando o narrador tenta mostrar que não é ele quem fala, mas sim uma personagem (GENETTE, 1998, p. 160-161). Posta nas falas, podemos encontrar sua forma mais distante: um discurso narrativizado, ou contado, que tenta resumir a fala em um acontecimento; sua forma mais próxima: o discurso direto, denominado de discurso relatado, ou reportado, quando a personagem aparentemente tem controle do próprio discurso; o discurso indireto, ou discurso transposto, onde não há credibilidade quanto à fidelidade e veracidade do que é dito, uma vez que o narrador toma a voz da personagem; e uma “forma extrema da mimese de discurso, em que o autor ‘imita’ a sua personagem” por meio do discurso “estilizado” (GENETTE, 1998, p. 169-170, 182). Talvez nos seja prudente uma distinção dos termos discurso e narrativa antes de prosseguirmos. Segundo Émile Benveniste, discurso, sendo subjetivo, utiliza a primeira pessoa (e, implicitamente, a segunda), aos moldes que 30 Aristóteles intitula “imitação direta” (BENVENISTE, Émile apud. GENETTE, 1972, p. 278), sendo essencial a fonte à sua compreensão e apreciação (BENVENISTE, Émile apud. GENETTE, 1972, p. 280); a narrativa, por sua vez, por ser objetiva, utiliza exclusivamente a terceira pessoa (BENVENISTE, Émile apud. GENETTE, 1972, p. 278), não sendo importante a fonte para sua compreensão ou apreciação (BENVENISTE, Émile apud. GENETTE, 1972, p. 280). A narrativa inserida no discurso se transforma em elemento do discurso, o discurso inserido na narrativa permanece discurso e forma uma espécie de quisto muito fácil de reconhecer e localizar. A pureza da narrativa, dir-se-ia, é mais fácil de preservar do que a do discurso (GENETTE, 1972, p. 282). Além da distância, a perspectiva altera o modo narrativo pela movimentação do ponto de vista narrativo (GENETTE, 1998, p. 183). Franz Karl Stanzel (1955 apud. GENETTE, 1998, p. 185), identifica três “situações narrativas romanescas”15: o narrador onisciente (auktoriale Erzählsuation), como em O Senhor dos Anéis (1954); o narrador como uma das personagens (Ich Erzählsuation), como em Um Estudo em Vermelho (1888); e um narrador que acompanha certa personagem durante o decorrer da narrativa (personale Erzählsuation), como em Harry Potter, onde a narrativa segue o protagonista, deixando que o leitor acompanhe seu desenrolar junto a ele. (GENETTE, 1998, p. 185). Pouco depois, Bertil Romberg (1962 apud. GENETTE, 1998, p. 186), coloca uma quarta situação narrativa às três postas por Stanzel: a narrativa em primeira pessoa (GENETTE, 1998, p. 186), como em Dom Casmurro (1899). A perspectiva costuma reger certa focalização narrativa, que pode se dar como a personagem não sendo descrita ou designada pelo exterior, tampouco suas ações, pensamentos e percepções “analisados objetivamente pelo narrador” (GENETTE, 1998, p. 190), em uma focalização interna; como os sentimentos e pensamentos da personagem devendo ser “esquecidas”, em uma focalização externa; ou uma Narrativa não-focalizada, ou de focalização zero, 15 Apesar de os exemplos aqui não serem, necessariamente, parte da cultura pop, todos foram postos por mim, com exceção de quando Genette utiliza o exemplo de Sherlock Holmes, em outro momento. 31 comum à narrativa clássica (GENETTE, 1998, p. 187-190). Alterações de focalização podem ser feitas conscientes pelo narrador para um que possibilite a entrega de menos informações que o foco atual, a fim de omitir detalhes importantes (paralipses), e para um que possibilite a entrega de mais informações que o foco atual, a fim de mostrar detalhes que poderiam passar despercebidos (paralepses) (GENETTE, 1998, p. 193-194). A voz é a última das modalidades narrativas de Genette, cuidando do narrador em si. Em algumas histórias, pode haver mudança de narradores, quando outro personagem que não o narrador primário assume a narrativa para contar algo que vira, ou fizera, por exemplo (GENETTE, 1998, p. 213). A posição do narrador em relação ao momento narrativo nos permite quatro modelos de narração: a narração do que já aconteceu em relação ao presente narrativo, ou seja, narração no passado (narração ulterior); a narração daquilo que vai acontecer em relação ao presente narrativo, ou seja, narração no futuro (narração anterior); a narração do que está acontecendo naquele exato momento, ou seja, narração no presente (narração simultânea); e a narração que varia entre os momentos narrativos, comum em narrativas de diário ou cartas, onde a narração do dia é ulterior, e é substituída pela simultânea ao tratar da noite (narração intercalada) (GENETTE, 1998, p. 216- 217). Outra forma de posicionamento do narrador se dá em relação ao nível narrativo, permitindo-nos uma narração extradiegética, com o narrador se mantido fora do evento narrado; intradiegética, com o narrador contando sua própria história; e metadiegética, onde há narração dentro de uma narração, como quando o narrador introduz uma história secundária dentro da principal (GENETTE, 1998, p. 227-228). Todas essas vozes partem de três tipos de narrador: o heterodiegético, “narrador ausente da história que conta” (GENETTE, 1998, p. 244) (Musashi (1935), obra de Eiji Yoshikawa que narra a história do espadachim Shinmen Takezō (depois Miyamoto Musashi), em sua jornada de autoconhecimento e iluminação), o homodiegético, narrador que faz parte da história, mas conta sobre outra personagem (Sherlock Holmes (1887 – 1927)) e o narrador autodiegético, que faz parte da história, contando o que aconteceu consigo mesmo (Os Sofrimentos do Jovem Werther (1774)) (GENETTE, 1998, p. 244). 32 Os níveis narrativos e os tipos de narrador podem se relacionar de modo a formarem quatro tipos de narração, às quais Regina Zilberman, em sua obra Teoria da literatura I (2012) expõe na seguinte tabela: Nível Posição Extradiegético Intradiegético Heterodiegético Ilíada Homero D. Quixote das Crianças, Monteiro Lobato Homodiegético Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis Grande Sertão: Veredas Guimarães Rosa Fonte: ZILBERMAN, Regina. Teoria da literatura I. Curitiba: IESDE Brasil, 2012. p. 120. Assim, são formados os tipos: extradiegético-heterodiegético (narrador ausente conta uma história da qual está ausente), extradiegético-homodiegético (narrador ausente conta a sua própria história), intradiegético-heterodiegético (narrador presente conta histórias das quais está geralmente ausente) e intradiegético-homodiegético (narrador presente conta a sua própria história) (GENETTE, 1998, p. 247). Apresentados, Genette dirá que o narrador pode apresentar cinco funções, segundo aspectos da narrativa com os quais se relacionam. A primeira delas é a função narrativa: pautada no aspecto da história, trata-se do ato de narrar propriamente; a segunda se trata da função de regência: baseada no aspecto do texto, se mostra quando o narrador assume uma postura metanarrativa para marcar as relações textuais do seu discurso e se refere à organização interna do texto narrativo em si. As três funções restantes dizem respeito ao narrador e narratário (a quem a narrativa se dirige (interlocutor do discurso), não sendo confundido com o leitor da mesma forma que o narrador não se confunde com o autor) e se relacionam à situação narrativa. Desse modo, a terceira função do narrador seria a função de comunicação: quando há relação ou diálogo entre o narrador e narratário; a quarta, função testemunhal, ou função de atestação: presente no momento em 33 que o narrador chama a atenção para si, revelando sua relação com a história (a fonte das informações que possui, sentimentos despertados por certo episódio etc.); e, por fim, a função ideológica: quando o narrador faz comentários ou opiniões de cunho ideológico. Essa última função é a única entre elas que não está ligada exclusivamente ao narrador, pois personagens podem, também, apresentar função ideológica (GENETTE, 1998, p. 254-257). Por sua vez, Barthes (1972) adicionará à discussão a existência de três níveis de descrição de uma narrativa: o nível das funções, das ações e da narração, sendo uma dependente da outra para produzir significação: “uma função não tem sentido se não tiver lugar na ação geral de um actante; e a própria ação recebe sua significação última pelo fato de ser narrada, confiada a um discurso que tem seu próprio código” (BARTHES, 1972, p. 25-28). Essas relações podem ocorrer dentro de um mesmo nível (distribucionais), ou entre níveis diferentes (integrativas). Ao primeiro nível, pertencerão as funções das unidades narrativas. O que transforma um enunciado em uma unidade funcional não é como é dito, mas “o que se quer dizer” (BARTHES, 1972, p. 30), correlacionando-o a um “ato complementar e consequente” (BARTHES, 1972, p. 32). Há, aqui, duas classes de unidade: a das funções e a dos índices. A classe das funções compreende dois tipos de unidades: as funções cardinais (ou núcleos) são unidades consecutivas e consequentes que abrem, mantêm ou fecham uma alternativa para que a história continue a avançar, por exemplo: se alguém ouve batidas à porta, pode atender o visitante, ou não. Cada possibilidade levaria a história a caminhos distintos, mesmo que muito brevemente (BARTHES, 1972, p. 33). Surgem em pontos de tensão narrativa, onde uma tomada de decisão pode mudar o rumo da história. “Menos importantes” que as cardinais, são as catálises, unidades consecutivas que “apenas” preenchem o espaço entre os núcleos (BARTHES, 1972, p. 33): entre ouvir o som da batida e atender, ou não, à porta, o espaço entre os núcleos pode ser preenchido pelo caminhar até a mesma. Do outro lado, na classe dos índices, estão os índices: unidades integrativas implícitas que remetem a um sentimento, ou atmosfera, como descrever o clima para ilustrar o estado de espírito de uma passagem, ou personagem (BARTHES, 1972, p. 32, 35); e os informantes (informações): 34 unidades integrativas explícitas que remetem a informações situacionais de tempo e espaço e autenticam a realidade do narratário a fim de “enraizar a ficção no real”, como quando se apresenta “a idade precisa de uma personagem” nova à história (BARTHES, 1972, p. 32, 35-36). Ao agrupamento de núcleos, Barthes denomina sequência. Quando um núcleo não possui antecedente narrativo direto, abre-se uma sequência, que perdura até um núcleo que não tenha consequente narrativo direto. Estender a mão, apertar, chacoalhar e soltar são núcleos constituintes de uma sequência que podemos intitular “saudação”, por exemplo (BARTHES, 1972, p. 40, 42). O segundo nível narrativo classifica as personagens a partir de suas ações, que são classificáveis, daí seu nome de Nível das Ações (BARTHES, 1972, p. 46). Três autores discorrem sobre esse ponto: para Bremond, há uma perspectiva diferente sobre a mesma sequência para cada personagem envolvida nela: “o que é fraude para um, é logro para outro”; para Todorov, os predicados de base – como amor, comunicação e ajuda – qualificam a personagem; para A. J. Greimas, as personagens são classificadas segundo o que fazem, denominando-os actantes, que participam de três eixos semânticos: a comunicação, o desejo (ou busca) e a prova (ou luta) (BARTHES, 1972, p. 45- 46). O último nível, o nível da narração, trata da narrativa em si. A narrativa utiliza seu código em dois sistemas: pessoal (o que Genette denomina “narrador homodiegético”) e apessoal (“narrador heterodiegético”, segundo Genette) (BARTHES, 1972, p. 50). Esses sistemas de signos podem aparecer propositalmente trocados, com trechos, ou capítulos escritos na terceira pessoa, quando, na verdade, sua instância é em primeira pessoa: “ele percebeu um homem de uns cinquenta anos, de porte ainda jovem, etc.”, é perfeitamente pessoal, a despeito do ele (“Eu, James Bond, percebi, etc.”), mas o enunciado narrativo “o tilintar do gelo contra o vidro pareceu dar a Bond uma brusca inspiração” não pode ser pessoal por causa do verbo “parecer”, que se torna signo apessoal (e não o ele) (BARTHES, 1972, p. 51). Assim como Todorov e Genette, Barthes também volta seus estudos para a decodificação da língua narrativa. Para este, ela pode ser definida por 35 dois processos fundamentais: a articulação, ou seja, a forma, produz unidades (segmentação) e a integração, ou seja, o sentido, “recolhe estas unidades em unidade de um nível superior” (BARTHES, 1972, p. 55) (BARTHES, 1972, p. 55). Charles Bally (BALLY apud. BARTHES, 1972, p. 56-57) traz dois tipos de estruturas linguísticas presentes no francês e alemão que são comparáveis a estruturas narrativas: a língua sintética e a língua analítica. A língua sintética apresenta a predominância de distorção na forma de distaxia, quando os significantes de um mesmo signo são separados por outro(s) signo(s), quebrando a linearidade lógica da narrativa (“por exemplo, a negação ne jamais e o verbo a pardonné em: ele ne nous a jamais pardonné”) (BARTHES, 1972, p. 56-57), e expansão, ao inserir signos entre significantes de outro signo (BARTHES, 1972, p. 56). Narratologicamente, a distaxia se mostra presente na separação de dois núcleos (funções cardinais) consequentes diretos, e a expansão nas catálises, índices, informantes e até mesmo outros núcleos de uma nova sequência postos entre eles: entre os núcleos “ouvir batidas à porta” e “abrir a porta”, pode-se inserir uma série de outras informações e ações, como a descrição da sombra do visitante, e/ou da sequência de interrupção da lavagem da louça. A expansão em uma distaxia pode seguir ad eternum. Por essa razão, a narrativa se configura como uma língua sintética (BARTHES, 1972, p. 56-57). Já, na língua analítica, predomina-se a sequência mimética à linearidade lógica dos núcleos (BARTHES, 1972, p. 57). Essa configuração sintática da narrativa conduz o tempo da história de forma lógica, não real (BARTHES, 1972, p. 57). “A ‘realidade’ de uma sequência não está na continuação ‘natural’ das ações que a compõem, mas na lógica que aí se expõe” (BARTHES, 1972, p. 62). Acima do nível narracional encontram-se outras substâncias do mundo, como comportamentos, fatos históricos etc., não podendo significar narração (BARTHES, 1972, p. 54). Todorov (1972) define duas noções para separar os elementos literários de uma obra dos elementos psicológicos e históricos: a noção de sentido (função), que existe pela possibilidade de se correlacionar um elemento a outros de uma mesma obra, e com a obra toda; e a de interpretação, 36 que existe segundo o leitor, sua personalidade, sua ideologia, seu período de vida e sua bagagem literária (TODOROV, 1972, p. 219). O fato de cada elemento de uma obra ter um sentido por integrarem um sistema, no caso a obra, pode nos levar à ilusão de que a obra em si seria a maior unidade literária, não podendo ser incluída em um sistema superior, portanto sem sentido. A obra, na verdade, faz parte de um universo literário das obras já existentes com as quais se relaciona. “O sentido de Madame Bovary é o de se opor à literatura romântica” (TODOROV, 1972, p. 220). A obra literária apresentaria, então, dois aspectos: História (o que se narra) e Discurso (como se narra) (TODOROV, 1972, p. 220-221). A história existe por convenção, e não “no nível dos próprios acontecimentos” (TODOROV, 1972, p. 222): um romance policial segue certa convenção, como a de ignorar certos detalhes importantes para desenvolver o suspense, trazendo-o à luz próximo ao clímax. Ela seria, então, uma abstração, não narra a si mesma: é preciso sempre ser narrada por alguém (TODOROV, 1972, p. 222). Dois níveis fazem a história: o primeiro, da lógica das ações, diz respeito à relação entre duas ou mais ações, independentemente de sua natureza (TODOROV, 1972, p. 225), formadas por meio de repetições, muitas vezes com o mesmo nome de figuras retóricas, como a antítese; gradação, as diferenças que surgem aos poucos em meio às repetições, a fim de quebrar a monotonia; e paralelismo, constituída por pelo menos duas sequências que apresentem semelhanças e diferenças, assim, como a língua funciona por meio das diferenças, elas se destacam ante as semelhanças (TODOROV, 1972, p. 223). Deste nível surgem dois modelos: o Modelo Triádico, concebido por Claude Bremond, concebe a narrativa como construída pelo encadeamento de micronarrativas, sendo cada uma composta por três, e às vezes dois, elementos obrigatórios (TODOROV, 1972, p. 225-226). Todas as narrativas seriam, então, combinações de diversas micronarrativas que apresentam uma estrutura padrão, equivalente a algumas situações essenciais na vida, como “trapaça”, “contrato” ou “proteção” (TODOROV, 1972, p. 226); e o Modelo Homológico, proposto por Lévi-Strauss, onde “a narrativa representa a projeção sintagmática de uma rede de relações paradigmáticas” (TODOROV, 1972, p. 227). No eixo paradigmático se encontraria as opções, ou melhor, as variações apresentadas de certa ação 37 em uma obra. Por exemplo: uma personagem tentou agradar, declarar ou seduzir outra personagem. No sintagmático está o desenrolar das ações, a resposta ao primeiro movimento: aceitar, recusar, fingir, ignorar. Para cada novo elemento sintagmático, é possível apresentar novos elementos paradigmáticos, desde que presentes na obra (TODOROV, 1972, p. 227-228). O segundo nível é o das personagens e suas relações. Todas as ações realizadas pelas personagens de uma narrativa podem ser resumidas em alguns poucos predicados de base. No exemplo apresentado por Todorov, temos desejo (ou amor), comunicação (ou confidência) e participação (ou ajuda). Esses poucos predicados aos quais se podem refinar as relações entre as personagens podem agregar diversas outras formas derivadas de si mesmas, existentes através de duas regras de derivação: regra de oposição (no caso: ódio, exposição e impedir) e regra do passivo (passagem da voz ativa à voz passiva: ama e é amado, odeia e é odiado, confidencia e é confidenciado, ajuda e é ajudado) (TODOROV, 1972, p. 231-233). Outros predicados postos por Todorov são o ser e parecer, quando a personagem percebe que sua relação que acreditava ter com outra personagem não é verdadeira, e a transformação pessoal, quando um desejo de possessão que, satisfeito, transforma-se em indiferença, por exemplo (TODOROV, 1972, p. 234-235). Em relação ao movimento dessas relações – portanto, da narrativa –, cada obra possui sua própria série de regras de ação, como esta posta por Todorov referente ao desejo: “Sejam A e B dois agentes (aqui entendido como quem age e quem recebe), e que A ama B. Então, A age de maneira que a transformação passiva deste predicado (isto é a proposição ‘A é amado por B’) se realiza também” (TODOROV, 1972, p. 236). O discurso, por sua vez, dispõe de procedimentos que podem ser postos em três grupos: tempo da narrativa, aspectos da narrativa e modos da narrativa. Quanto ao tempo, Todorov versará ao encontro de Genette quanto haver uma discrepância entre o tempo da história e o tempo do discurso16. Enquanto este é linear (para enunciar algo, o narrador precisa sequenciar os elementos, 16 Tempo narrativo, para Genette. 38 relacionando-os, pelo menos, a uma noção de ordem), aquele não segue tal restrição. Vários elementos sequenciais do discurso podem ocupar o mesmo tempo da história – como a descrição de um susto, onde o discurso ordenaria a mudança de expressão facial, mudança de postura, a reação (um grito e/ou um pulo, ou um golpe reflexo), mas tudo isso aconteceria simultaneamente no âmbito da história (TODOROV, 1972, p. 242). Para burlar essa restrição do discurso, opta-se pela deformação temporal a fim de atingir certos efeitos. O medias rés, adotado largamente para o efeito de suspense, cria uma deformação temporal que permite o discurso narrar o fim de uma história primeiro, para depois voltar no tempo e recomeçar a narrativa segundo a cronologia linear do discurso em si (TODOROV, 1972, p. 242-243). Em obras com mais de um foco narrativo (que contam mais de uma história), os encadeamentos, alternâncias e encaixamentos surgem à questão temporal do discurso: o encadeamento sugere que assim que uma história termina, outra começa, sem a possibilidade de voltar à anterior, como em “Os Três Porquinhos”17 (1890): ao terminar de contar o que o primeiro irmão fez, narra-se o segundo, depois o terceiro; quando o Lobo chega, narra-se o ocorrido ao primeiro, depois ao segundo, e, por fim, ao terceiro, nunca voltando à história que já fora narrada (TODOROV, 1972, p. 244). O encaixamento apresenta uma história durante o desenrolar de outra, como em “As Mil e Uma Noites” [3--?], onde várias histórias são postas dentro da própria aventura de Sherazade. As histórias secundárias (ora paralelas à principal, ora com o intuito de expandir o conhecimento do narratário acerca de um evento, ou personagem) também são “menos integradas ao conjunto da narrativa que às histórias principais, e nós as sentimos como ‘encaixadas’” (TODOROV, 1972, p. 244-245). A alternância carrega o ir e vir de histórias incompletas, como em “As Crônicas de Gelo e Fogo”18 (1996 – 2011), onde a narrativa abandona certa personagem no fim de um capítulo para narrar o que está acontecendo com outra personagem 19 , 17 Exemplo nosso, não de Todorov. 18 Exemplo nosso, não de Todorov. 19 Geralmente durante o mesmo tempo de história do capítulo anterior ou seguinte, de modo a justificar o que se passará em capítulos futuros. 39 voltando à primeira, mais tarde, para lhe dar continuidade (TODOROV, 1972, p. 244). Além dessas questões temporais, há também a relação entre o tempo da escritura (ou tempo da enunciação) e o tempo de leitura (ou tempo da percepção). O tempo da escritura só existe quando o tempo que o narrador tem para escrever ou contar certa narrativa é dado pelo próprio narrador, como em O último dia de um condenado (1829), de Victor Hugo, onde o narrador nos diz que fora condenado à morte; já o tempo de leitura, quando certas ações estão sendo realizadas, como em certas narrativas de ação e aventura, suspense, ou diário em que o narrador mostra intervalos de tempo entre ações: horas, dias, meses, anos (TODOROV, 1972, p. 245-246). O segundo procedimento do discurso, quanto aos aspectos da narrativa, é a maneira de percepção do narrador em relação àquilo que narra. Assim, Todorov resgata Jean Pouillon no tocante a três tipos de percepção (TODOROV, 1972, p. 246): Quando o narrador se mostra onisciente, ou seja, conhecedor de tudo o que é dito e do que não é dito ou mostrado por qualquer personagem, temos a fórmula Narrador > Personagem (visão “por trás”), muito comum na narrativa clássica (TODOROV, 1972, p. 246-247)20. Quando o narrador caminha junto a certas personagens, seja incorporando-as (eu) ou acompanhando-as (ele), percebendo a narrativa exatamente segundo as visões, pensamentos e emoções de seu eu/acompanhante, e nada mais que isso, apresenta-se a fórmula do Narrador = Personagem (visão “com”)21, como em O Assassinato de Roger Ackroyd (1926), de Agatha Christie. Esse aspecto narrativo permite colorir as possibilidades na utilização de certos predicados de base, como o ser e parecer, uma vez que ao apresentar a percepção de várias personagens sobre um mesmo acontecimento, o narrador cria uma espécie de “visão estereoscópica”, possibilitando, digamos, certa “brincadeira” entre o que é e o que parece. (TODOROV, 1972, p. 247-248). O último aspecto de percepção posto por Pouillon é mais como uma convenção, um modelo: Narrador < 20 O equivalente ao narrador onisciente, de Genette. 21 O equivalente ao narrador como uma das personagens, de Genette (Ich Erzählsuation, de Stanzel) 40 Personagem (visão “de fora”), ou seja, um narrador menor que as personagens, sem acesso a qualquer informação interna das mesmas, como pensamentos e intenções (TODOROV, 1972, p. 247-248). Esses aspectos da narrativa foram mudando ao longo dos séculos. O século XVIII demandou o ser em seus romances, em detrimento do parecer, sendo sucedido, no século XIX, pelo oposto: narrar através da consciência das personagens se popularizou nesse período – com romances focados no parecer, não exigindo estabelecer um ser – e se tornou obrigatório no século XX, após sua sistematização, por Henry James (TODOROV, 1972, p. 250). Os modos da narrativa fazem parte do último procedimento do discurso e são as formas pelas quais o narrador apresenta uma narrativa, se ele “mostra” ou “diz”. Os dois modos principais são a representação e a narração, correspondente ao discurso e à história, respectivamente. Isso se dá por suas origens: o drama (representação) – pela história se desenrolar mediante falas, e não por narração – e o conto (narração) – por seu vínculo ao gênero histórico (TODOROV, 1972, p. 250-251). Normalmente, o discurso direto está ligado ao modo performativo (subjetivo) do discurso, por ser-nos apresentado pela fala de uma personagem (TODOROV, 1972, p. 253-254), como em “Então não importa o caminho que você vai tomar”22, enquanto a fala do narrador liga-se ao modo constatativo (objetivo) do discurso, exceto quando utiliza figuras retóricas, como a comparação (TODOROV, 1972, p. 253-254). O próprio conceito de narrador (emissor) cria naturalmente o de leitor (receptor). Como posto por Todorov (1972), história, tempo e narrativa são imaginários, existem por convenções, assim como o papel do leitor. Assume-se tal papel quando há acordo, por exemplo, em se ler uma obra do início ao fim tal qual é apresentada pelo narrador, e não ziguezagueando pela narração, ou quando aceita-se que dada obra é um romance, não uma bula. Em momento algum deve-se confundir a imagem do leitor com a pessoa que está, de fato, lendo, da mesma forma que não se deve confundir um narrador com o autor. A imagem do leitor existe simplesmente pela existência de uma imagem de 22 CARROLL, Lewis. Alice no País das Maravilhas. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2007. p. 84 41 narrador, numa dependência mútua que “confirma a lei semiológica geral segundo a qual ‘eu’ e ‘tu’, o emissor e receptor de um enunciado, aparecem sempre juntos” (TODOROV, 1972, p. 255-257). A observação dos conceitos do termo “literatura”, aceitando-o como termo ainda não conceituável, tampouco nos atrevendo a atribuir-lhe um, assim como suas funções tão caras Candido e Tolkien, e dos da narratologia trazidos pelos Formalistas Russos, nos será ímpar para que alcancemos nosso primeiro objetivo dessa pesquisa: a compreensão dos limites e fronteiras estabelecidas pelos leitores transmídia acerca do que se considera literatura e, se possível, se alguma outra mídia a extrapola e/ou “supera”, no sentido de atribuir-lhe novas características. Não entraremos em discussões, desnecessárias, a respeito de juízo de valor. Para que isso seja possível, precisaremos voltar nosso foco ao conceito de mídia, presente no ciberespaço graças à convergência e como as diferentes mídias afetaram as práticas de leitura de seus usufruidores. 42 Capítulo 02 – Práticas de Leitura Se a imagem de um narrador evoca a de um leitor, segue-se a lógica de que, do mesmo modo que as práticas narrativas foram se alterando, mesclando e evoluindo, também o foram as práticas de leitura, termo que busca abordar a leitura segundo seus diversos elementos influenciadores em certo contexto histórico e social (BATISTA, 2020) e difundido no Brasil a partir de pesquisadores franceses como o historiador Roger Chartier e o sociólogo Pierre Bourdieu. Assim, o estudo das práticas de leitura nos interessa por tomar a leitura como fenômeno social, então mutável pelos momentos históricos e grupos sociais. Como não poderia se diferir em uma pesquisa dessa natureza, esse campo zela pelos processos que as modificam, influenciando a maneira como certos leitores atribuem sentido ao texto, na ampliação ou redução do público leitor e na organização do texto em si e seus suportes. Por leitura, dedicamo-nos à sua acepção de que A leitura é uma ação, um trabalho do leitor no texto. Que sem dúvida envolve a recuperação da lógica posta pelo seu autor da história contada, do argumento alinhavado, da ideia defendida [...]. Nesse mergulho o leitor traz para o texto outros textos, outras histórias, que nele estão escondidas. Faz o vaivém entre a sua vida e a vida contada no texto, a sua interpretação e a interpretação já sancionada para o texto (SILVA, 1985, p. 20, grifos do autor). Desse modo, não se pode haver compreensão literária sem leitura, uma vez que se configura interior ao sujeito, portanto vária. Não estando, a leitura, no texto em si, é concebida de acordo com o desejo do leitor de entender e é transformada ao mesmo tempo em que muda a forma como o leitor organiza seu conhecimento. Com isso, o processo de leitura atingiria seu ápice quando esta transforma o pensamento e o ato de pensar do leitor (ROSA, 2014, p. 53). A fim de tratarmos de outras hipóteses e expectativas em relação à pesquisa, achamos necessária a contextualização dos conceitos e mudanças das práticas de leitura – como a declamada e silenciosa – e dos leitores ao longo da história. A compreensão das formas de leitura nos serão caras à percepção dos motivos por trás das escolhas e caminhos percorridos pelos leitores literários 43 transmídia. Para tanto, buscamos em Roger Chartier (1997), Guglielmo Cavallo (1997), Alberto Manguel (1996) e Steven Roger Fischer (2003) as informações necessárias. A leitura declamada Antes da escrita23, o homem de Neandertal lia sinais, em ossos, que lhe era significativo, como pontuação em jogos, e dias passados. A arte rupestre era lida como magia ou aviso (FISCHER, 2006). As histórias eram transmitidas oralmente entre as gerações, incumbindo à memória o dever da perpetuação narrativa, destacando os sons, gestos e expressões naturais como primordiais à narração, estando presente em todas as etapas humanas e nunca deixando seu posto essencial ao desenvolvimento. Mesmo com o surgimento da escrita, ambos passaram a dividir a mesma posição, embora haja, hoje, certa ilusão e até mistificação em relação à escrita sobre a fala – herança, talvez, dos hebreus, cristãos e islamitas, ao usar a palavra escrita como sinal de autoridade (FISCHER, 2006, p.36). A leitura declamada nunca deixou de existir, e está longe de se tornar uma forma de leitura secundária. Em ambientes virtuais, ainda nos dias de hoje, a leitura declamada é ativamente usada. A escrita como fala parece ter se tornado um pensamento comum. Em aplicativos de mensagens instantâneas, como o WhatsApp (desenvolvido pela WhatsApp Inc., em 2009), não é difícil encontrar sujeitos escrevendo que estão dizendo/falando – ou tentando dizer/falar – algo. A opção de enviar arquivo de voz no meio de uma conversa escrita, ou de estabelecer um diálogo apenas com arquivos de voz fora de uma chamada telefônica é comum. Até franquias de jogos eletrônicos, como A Lenda de Zelda (1986 – 2017), Kingdom Hearts (2002 – 2019) e Final Fantasy (1987 – 2020), estão quebrando o padrão de seus títulos para trazer a leitura declamada onde, antes, tinha-se apenas a escrita. O desenvolvimento da escrita pelos egípcios e sumérios, não retirou a necessidade vocal da leitura. Aos gregos, a leitura trazia o conceito do recitar, 23 Aqui entendida como um conjunto de sinais gráficos artificiais correspondente a sons, ou ideogramas de modo a transmitir mensagens completas ou parciais (FISCHER, 2009). 44 noção que persistiu entre os romanos, mas em lenta retração, dando espaço à expansão da leitura silenciosa, já observada na cultura grega do século V a.C. (CAVALLO, CHARTIER, 1998). Manguel (1996), nos dá alguns exemplos de leitura silenciosa através da história: No século V a.C., duas peças mostram personagens lendo no palco: no Hipólito, de Eurípedes, Teseu lê em silêncio uma carta presa na mão da esposa morta; em Os cavaleiros, de Aristóteles, Demóstenes olha para uma tabuleta mandada por um oráculo e, sem dizer em voz alta o que contém, parece ficar surpreso com o que leu. Segundo Plutarco, Alexandre, o Grande, leu em silêncio uma carta de sua mãe no século IV a.C., para espanto de seus soldados; Cláudio Ptolomeu, no século II d.C., observou em Sobre o Critério [...] que às vezes as pessoas leem em silêncio quando estão se concentrando muito, porque dizer as palavras em voz alta distrai o pensamento (MANGUEL, 1997, p.59). Porém, também nos mostra que a leitura silenciosa não era a forma padrão de leitura, ao comentar sobre a relação entre Agostinho de Hipona (354 – 430) e a leitura silenciosa de Aurélio Ambrósio (337 – 397), mencionando que “essa maneira de ler parecia suficientemente estranha para que ele a registrasse em suas Confissões” (MANGUEL, 1997, p.59), ou quando São Cirilo de Jerusalém, em 349, pede às mulheres que leiam em silêncio enquanto aguardam as cerimônias. Mesmo na época em que a leitura declamada era dominante e disseminada, a leitura era lenta – salvo profissionais ou leitores muito hábeis. Como posto por Cavallo e Chartier (1998), a leitura dependia da caligrafia do copista, que ora utilizava uma “livreira”, ora semicursiva, ora “cursiva e rica em ligações” (CAVALLO, CHARTIER, 1998, p. 81), de modo que um leitor familiarizado com uma das formas gráficas poderia apresentar dificuldades em ler, ou até em decifrar, outra(s). Outro ponto era que até o século I d.C., os romanos utilizavam pontos entre as palavras, indiciando suas separações (interpuncta) e, no final do mesmo século, adotaram o sistema de escrita onde não há espaços ou divisores entre palavras ou sentenças, já vigente entre os gregos (scriptio continua), tornando a prática da leitura declamada um auxílio necessário. 45 De muitas formas, ela carrega características da narração pré-escrita: antes da escrita, não sabemos quem era autor, quem era ouvinte. Não se sabe quem foi o autor da mitologia tupi, xintoísta ou cristã. As narrativas já existiam muito antes de seus escribas. Da mesma forma, na pós-escrita, a declamação chega a seus ouvintes, que a transmitem de acordo com sua memorização (contando com reinterpretações de detalhes, ou cenas, que não lhes são, mais, tão nítidas) a algum conhecido que não esteve presente. Essa é uma das razões pelas quais os estudos sobre os leitores costumam ser baseados na leitura silenciosa, não na declamada, pois, nesta, os leitores não são apenas os que declamam, também o são quem escuta. Os ouvintes não são, necessariamente, letrados, tampouco aparecem nos registros, dissolvendo os rastros antes mesmo de se formarem. Um mesmo ouvinte poderia participar da declamação de diversas obras ou nenhuma e, estando no público, os olhos não se voltariam a ele, sendo impossível traçá-lo com qualquer precisão (CAVALLO, CHARTIER, 1998). O rastro da leitura silenciosa torna-se muito menos difícil de se seguir. Para se ter uma leitura assim, é preciso possuir o texto em mãos. Registros de empréstimos, ou posse de obras criam uma teia de leitura impossível em uma leitura declamada. A questão de alteração de conteúdo ao se transmitir uma narrativa também não seria um problema, uma vez que o contato do leitor é com o próprio texto, não com a lembrança. A leitura silenciosa Ainda que a leitura silenciosa tenha caminhado por tanto tempo junto à leitura declamada, apenas se tornou usual, no ocidente, no século X (MANGUEL, 1997, p.59). Vários fatores auxiliaram essa latência: segundo Fischer (2006), durante a maior parte da história escrita, o conceito de “ler” estava condicionado ao de “declamar”, ao ponto de leitura e escrita serem “complementos ao discurso oral”, de modo que “literatura” era comumente entendida como o que “poderia ser decorado” (FISCHER, 2006, p.14-15); aos dramaturgos, o drama era feito para ser declamado. Ler silenciosamente romperia com o intuito da obra, a tiraria de sua função e espaço; o analfabetismo também agia como incentivo à 46 permanência da leitura declamada em ambiente social (há até poucas décadas, a leitura de romances de folhetins era feita em voz alta em praças e dentro de casa). Hoje, continuamos com a presença da leitura declamada, por exemplo, em lançamentos de obras literárias, onde é pedido ao autor que leia trechos de sua obra ao público ali presente. Ser usual não significa, necessariamente, ser bem vista. Na Espanha dos séculos XVI e XVII, várias interdições e proibições à publicação, exportação, venda e posse de obras de ficção deram-se pelo temor referente a uma prática de leitura que leva o leitor a confundir real e imaginário, faculdade comprometida devido à popularização da leitura silenciosa, como posto por Roger Chartier: Por anular a distância entre o mundo do texto e o mundo do leitor, sempre manifesta na leitura em voz alta, por dar uma força de persuasão inédita às fabulas dos textos de ficção, a leitura silenciosa é um encantamento perigoso. O vocabulário a qualifica por meio de verbos do encantamento: encantar, maravillar, embelesar. Os autores a representavam como mais apta que a palavra viva, recitante ou leitora, a tornar crível o incrível (CAVALLO, CHARTIER, 1999, p. 125). No século XVIII, como posto por Reinhard Wittmann (in. CAVALLO, CHARTIER, 1999), Inglaterra e França apresentavam a leitura distribuída por todo seu território: Em Paris, todos leem [...]. Todos – principalmente as mulheres – têm um livro consigo. Lê-se no bonde, nos calçadões, nos intervalos do teatro, nos cafés, no banho. Nas lojas leem mulheres, crianças, aprendizes, praticantes (...) os lacaios leem em seus assentos, os cocheiros em sua boleia, os soldados nas guaritas (W. Krauss, p. 194- 312, apud WITTMANN in. CAVALLO, CHARTIER, 1999, p. 135-136). A leitura, tão disseminada que se tornou, ganhou atenção de diversos campos, sendo vista, por alguns, como uma “febre de leitura” e, rapidamente atingindo o status de “epidemia da leitura” (WITTMANN in. CAVALLO, CHARTIER, 1999, p. 136). Tanto que seus sintomas foram registrados pelo religioso Johann Rudolf Gottlieb Beyer, em 1796: Leitores e leitoras que se levantam e vão deitar-se com o livro, que se sentam à mesa com ele, que o têm consigo no trabalho, levam-no aos passeios e que não podem separar-se da leitura uma vez iniciada, enquanto não chegarem ao fim. Mas nem bem devoraram a última 47 página de um livro, já se sentem ávidos por outro; e assim que encontram algo, num banheiro, numa estante ou em qualquer outro lugar, algo que pertença a sua área, ou que lhes pareça legível, levam- no consigo, e o devoram com uma espécie de fome canina. Nenhum amante do tabaco ou do café, nenhum apreciador do vinho ou do jogo pode estar tão preso a seu cachimbo, a sua garrafa, à mesa de jogo ou de café quanto alguns famintos leitores a sua leitura (BEYER, p. 07, apud CAVALLO, CHARTIER, 1999, p. 135-136). Karl Gottfried Bauer, ao trazer os malefícios que a leitura silenciosa poderia trazer, nos mostra que essa “epidemia da leitura” contava naturalmente com a presença em massa da leitura silenciosa: A posição obrigada e a ausência de qualquer movimento físico durante a leitura [...] provocam efeitos sobre os órgãos sexuais, estancamentos e corrupções do sangue, tensões excitantes e relaxamentos do sistema nervoso, languidez e debilidade no corpo todo (BAUER, p. 190, apud INSTITUTO C&A, 2008, p. 78). Seu levante nos séculos XVIII e XIX não foi por acaso. Nessa época, a leitura passava por uma revolução, caminhando da leitura intensiva para a leitura extensiva. A prática da leitura intensiva significava a leitura repetitiva de textos “na maioria das vezes de caráter religioso, sobretudo a Bíblia” (WITTMANN, in. CAVALLO, CHARTIER, 1999, p. 136), mas as pessoas passaram a querer novas fontes de leitura, seja para distração, seja para informação, consumindo cada vez mais materiais, numa leitura extensiva das obras e fazendo com que a leitura intensiva se tornasse obsoleta e inferior. A leitura fragmentada O século XX vai trazer um aparelho que garantirá uma mudança decisiva no modo de leitura do fim do mesmo século: o controle remoto: Como sabemos, o uso do controle remoto proporcionou ao telespectador a possibilidade de mudar instantaneamente de canal, passando de um filme a um debate, de um jogo ao telejornal, de um clipe publicitário a uma telenovela e assim por diante, numa vertiginosa sucessão de imagens e de episódios (PETRUCCI, Armando, in. CAVALLO, CHARTIER, 1999, p. 219). Com a habilidade de trocar de informações rapidamente e, acima de tudo, obter informações incompletas, a televisão e o rádio prepararam seus 48 espectadores para a chegada da internet. Se o conforto do controle remoto criava a condição perfeita para o zapping24 (JENKINS, 2009, p. 111), a internet, com seus hiperlinks, e as abas múltiplas trouxeram o ambiente perfeito para que a leitura fragmentada fosse possível. A leitura fragmentada trouxe ainda mais velocidade que a silenciosa. Por não precisar se deter aos detalhes para a compreensão da mensagem, os novos leitores passaram a ler apenas partes das notícias, passando para a próxima, atentando-se pouco ou nada na qualidade ou veracidade do que se lê. Apesar de obras como a web série Zot! (2000), de Scott McCloud, apresentarem estratégias narrativas originais, a maior parte dos textos jornalísticos e literários virtuais não deixavam a sombra das virtualizações, sendo apenas a versão digital dos textos impressos, tanto em blogs como em sites de jornais e outras mídias informativas, ajudando a popularização rápida da prática da leitura fragmentada, permitindo que apenas a leitura das manchetes e títulos das notícias e postagens fosse suficiente para se compreender o texto. Mais tarde, para tentar burlar essa prática e “capturar” leitores fragmentários, sites e blogs adotaram a prática do clickbait (isca de cliques)25. Essa prática foi atacada com força pelos leitores, diminuindo seu uso e fazendo com que aquele que faça uso da prática perdesse confiabilidade de grande parcela do público26. O germe da leitura transmídia Cibercultura: inteligência coletiva e comunidades virtuais Com o desenvolvimento da Web 1.0 para a Web 2.0 (que permitiu ao usuário participar na formação do conteúdo virtual, gerando conteúdo, moderando-o e agregando valores), foi possível organizar instantânea e globalmente algo que sempre esteve presente desde a história pré-escrita, a que Pierre-Lévy (1998) se refere por inteligência coletiva. A inteligência coletiva 24 Termo estadunidense para a troca constante de canais – conhecida popularmente, no Brasil, por sua forma aportuguesada “zapear”. 25 Títulos sensacionalistas e/ou falsos que buscam chamar a atenção dos leitores para que que abrissem certo link. 26 Porém, ela parece ter sido revitalizada com força total repaginada na forma de fake news, 49 entende o conhecimento como grande demais para apenas uma pessoa, de modo que, para que certo conhecimento seja construído, são necessárias várias fontes que se somam a um mesmo fim, em um grupo (LÉVY, 2010). As criações da inteligência coletiva não têm autor, como a Bíblia e a mitologia grega. Homero, Sófocles ou Ovídio, enquanto intérpretes célebres dessa mitologia, evidentemente lhe deram um brilho particular. Mas Ovídio é o autor das Metamorfoses, não da mitologia; Sófocles escreveu Édipo Rei, mas não inventou a saga dos reis de Tebas etc (LÉVY, 2010, p. 154-155). Textos assim só foram possíveis graças ao ciberespaço, palavra originada em 1984, por William Gibson (1948 – atual) em sua obra Neuromancer. Esse termo cobre o universo de informações digitais que possibilitam a comunicação em rede, assim como as pessoas que se comunicam. As técnicas, valores e toda forma de construção material e intelectual criado, desenvolvido e/ou carregado no ciberespaço fazem parte do que chamamos de cibercultura, onde “a conexão é sempre preferível ao isolamento” (LÉVY, 2010, p. 17). Dois elementos são invocados quando se menciona cibercultura: a inteligência coletiva e as comunidades virtuais. Destes, a inteligência coletiva: seria sua perspectiva espiritual, sua finalidade última. Esse projeto foi propagado pelos visionários dos anos 60: Engelbart (o inventor do mouse e das janelas das interfaces atuais), Licklider (pioneiro das conferências eletrônicas), Nelson (inventor da palavra e do conceito de hipertexto). O ideal da inteligência coletiva também é defendido por alguns gurus atuais da cibercultura como Tim Berners Lee (inventor da World Wide Web), John Perry Barlow (exletrista do grupo musical Grateful Dead, um dos fundadores e porta-vozes da Electronic Frontier Foundation) ou Marc Pesce (coordenador da norma VRML) (LEVY, 2017. p. 133). A inteligência coletiva parte do princípio de que ninguém sabe tudo, mas todos sabemos parte de alguma coisa e, juntos, podemos construir o conhecimento. Assim, no ciberespaço, nunca estamos sozinhos, nem pensamos sozinhos, sempre usamos nosso conhecimento para/com um grupo – uma comunidade – a fim de evoluí-la, expandi-la, ou apenas para passar tempo. Quanto mais o conhecimento se desenvolve, maior é a inclusão dos usuários da rede, tanto para com novos usuários, quanto para com os mais resistentes a 50 mudanças. O processo de aquisição de conhecimento (responsável pela criação de laços entre os membros de uma comunidade) é o consolidante da inteligência coletiva, não a posse do conhecimento em si. Nas comunidades, além da inteligência coletiva, há também a inteligência compartilhada. Enquanto a inteligência coletiva versa sobre a soma dos conhecimentos individuais, a compartilhada prosa sobre o conhecimento comum a todos. Os fundamentos da comunidade, por exemplo, necessários para que ela se desenvolva e continue harmônica entre seus participantes, seriam parte da inteligência compartilhada, uma vez que todos devem ter conhecimento deles (JENKINS, 2009, p. 57). Para que a inteligência coletiva funcione, é preciso um grupo de pessoas que partilhe de um mesmo interesse e afinidades e esteja disposto a se relacionar num processo de troca e/ou cooperação, sendo irrelevante sua localização geográfica, ou filiação institucional. Denominado por Howard Rheingold (1993) de Comunidade Virtual (RHEINGOLD, 1993, p. 6), atua sob regras não verbais de boa conduta, tornando-se passível de exclusão da comunidade aquele que não as seguir. Segundo o autor, as comunidades virtuais surgem quando relações pessoais se formam a partir da interação entre participantes do ciberespaço em discussões sobre qualquer assunto (RHEINGOLD, 1993, p. 6-7). Por não ser, necessariamente, possível que um participante