Alysson Cristiano Beneti A HISTÓRIA DO ENSINO DE FÍSICA NO BRASIL NO SÉCULO XIX: AS ACADEMIAS MILITARES E O COLÉGIO PEDRO II Bauru 2014 Alysson Cristiano Beneti A HISTÓRIA DO ENSINO DE FÍSICA NO BRASIL NO SÉCULO XIX: AS ACADEMIAS MILITARES E O COLÉGIO PEDRO II Tese apresentada como requisito parcial à obtenção do título de Doutor à Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - Programa de Pós-Graduação em Educação para a Ciência, área de concentração Ensino de Ciências, sob a orientação da Profª. Dra. Odete Pacubi Baierl Teixeira Bauru 2014 Beneti, Alysson Cristiano. A História do Ensino de Física no Brasil no Século XIX: as Academias Militares e o Colégio Pedro II / Alysson Cristiano Beneti, 2014 153 f. : il. Orientador: Odete Pacubi Baierl Teixeira Tese (Doutorado)– Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências, Bauru, 2014 1. História do Ensino. 2. Física. 3. Academia Militar. 4.Colégio Pedro II. I. Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências. II. Título. AGRADECIMENTOS A minha família, pelo apoio e pela motivação. A minha orientadora Profª. Dra. Odete Pacubi Baierl Teixeira pela dedicação, paciência e amizade durante estes últimos oito anos. À Profª. Dra. Isabel Gomes Rodrigues Martins, ao Prof. Dr. Macioniro Celeste Filho, à Profª. Dra. Maria Lúcia Vital dos Santos Abib e à Profª. Dra. Beatriz Salemme Corrêa Cortela pelas valiosas críticas e sugestões feitas no momento em que participaram das bancas do exame geral de qualificação e de defesa. Ao Prof. Dr. Sérgio Camargo e à Profª. Dra. Fernanda Cátia Bozelli pela confiança em nosso trabalho. Aos docentes e funcionários da Pós-Graduação em Educação para a Ciência da UNESP – Bauru pela prontidão e colaboração. À minha tia e professora Regina Beneti pela colaboração durante a revisão deste trabalho. Aos meus amigos pelo apoio e compreensão. À Secretaria de Estado da Educação de São Paulo pelo financiamento parcial desta pesquisa por meio da bolsa doutorado. A todos que de uma forma ou outra colaboraram para esta longa jornada do meu aprendizado. A Jesus Cristo para Quem há cinco anos entreguei as rédeas da minha vida. À minha querida esposa Adriana pelo incentivo em continuar na área de pesquisa por meio do doutorado, pela dedicação, amor, carinho e compreensão... Aos meus pais João e Izildinha pelo exemplo de luta por continuarem vivendo... À minha querida irmã Gláucia pela amizade e companheirismo... À minha querida tia Regina Beneti pelo apoio e incentivo... À minha querida irmã Ellen (in memoriam)... Dedico... Beneti, A.C. A HISTÓRIA DO ENSINO DE FÍSICA NO BRASIL NO SÉCULO XIX: AS ACADEMIAS MILITARES E O COLÉGIO PEDRO II. 2014. 153f. Tese (Doutorado em Educação para a Ciência) – UNESP, Faculdade de Ciências, Bauru, 2014. RESUMO O objetivo deste estudo é o de realizar um levantamento histórico sobre o ensino de física no Brasil focalizando três instituições de ensino. O problema de pesquisa é expresso pela questão: quais foram as características do ensino de física na Real Academia de Artilharia, Fortificação e Desenho (1792 a 1810), na Academia Real Militar (1810 a 1822) e no Colégio Pedro II (1838 a 1890)? O enfoque é a análise dos documentos históricos confrontados com as narrativas históricas das fontes secundárias. O referencial teórico utilizado é o da historiografia apoiado em uma ferramenta da análise de discurso textual de Teaun Adrianus Van Dijk. Trata-se de uma pesquisa qualitativa e descritiva. Observamos através da análise de dados que na Real Academia de Artilharia, Fortificações e Desenho entre os anos de 1792 e 1810, que ensino de física era realizado com aulas teóricas complementadas com aulas práticas de campo, com o foco na compreensão da fabricação e do manuseio de artefatos bélicos, bem como do planejamento e construção civil. Verificamos as seguintes características na Academia Real Militar (1810 a 1822): a física era uma disciplina específica, isolada de outras disciplinas, o que lhe conferia maior importância na grade de conteúdos; o ensino era expositivo teórico; o objetivo do ensino de física era formar profissionais para o trabalho de defesa militar e construção civil.; e, os livros de física utilizados apresentavam conteúdos detalhados e diversificados. No Colégio Pedro II, num primeiro período, o ensino de física era expositivo, sem formalização matemática, e num segundo período, o ensino era enciclopédico, expositivo e conceitual com formalização matemática dos problemas físicos e com atividades de práticas experimentais em laboratório didático. Podemos inferir, com a realização do estudo, que práticas pedagógicas utilizadas nas escolas atuais estão enraizadas culturalmente e historicamente em práticas antigas do ensino de física, bem como os conteúdos presentes nos livros didáticos de física atuais estão há mais de duzentos anos praticamente inalterados. Palavras-chave: História / Ensino / Física / Academia Militar / Colégio Pedro II ABSTRACT The objective of this study is to set a historical notation on the teaching of Physics in Brazil focusing three teaching institutions. The research problem is expressed by the subject: which were the characteristics of the teaching of Physics in the Real Academia de Artilharia, Fortificações e Desenho (from 1792 to 1810), Academia Real Militar (from 1810 to 1822) and in Colégio Pedro II (from 1838 to 1890)? The goal of the historical documents analysis is confronted with historical narratives of secondary sources. The theoretical referencial used is it of the historiography supported in a tool of textual speech by Teaun Adrianus Van Dijk. It is a qualitative and descriptive research. We observed through the analysis of the data that in Real Academia de Artilharia, Fortificações e Desenho between the years of 1792 and 1810, physics teaching was accomplished with theoretical classes complemented with field practical classes, aiming the understanding of the production and handling of warlike workmanships, as well as planning and building site. In the Academia Real Militar, between 1810 and 1822, Physics was a specific discipline, apart from other disciplines, what highlighted its larger importance in the grating of contents. The teaching itself was for theoretical exhibition. The goal of physics teaching was forming professionals for the work of military defense and building site. The Physics books used presented detailed and diversified contents. In Colégio Pedro II physics teaching was for exhibition, without concern about mathematics in a first period and the teaching for encyclopedia, for exhibition and conceptual with concerning mathematics of physical problems and with activities of experimental practices in laboratories of a second period. We observed that pedagogical practices used at nowadays schools are taken root culturally and historically in old practices of physics teaching, as well as the present contents belonging to Physics books are more than two hundred years old and practically unaffected. Word-key: History / Teaching / Physics / Academia Militar / Colégio Pedro II LISTA DE ILUSTRAÇÕES Ficha Episódica 01: ................................................................................................... 47 Ficha Episódica 02: ................................................................................................... 73 Ficha Episódica 03: ................................................................................................. 133 Figura 01 .................................................................................................................. 42 Figura 02 .................................................................................................................. 42 Figura 03 .................................................................................................................. 43 Figura 04 .................................................................................................................. 44 Figura 05 .................................................................................................................. 44 Figura 06 .................................................................................................................. 45 Figura 07 .................................................................................................................. 55 Figura 08 .................................................................................................................. 56 Figura 09 .................................................................................................................. 56 Figura 10 .................................................................................................................. 60 Figura 11 .................................................................................................................. 61 Figura 12 .................................................................................................................. 62 Figura 13 .................................................................................................................. 62 Figura 14 .................................................................................................................. 63 Figura 15 .................................................................................................................. 63 Figura 16 .................................................................................................................. 64 Figura 17 .................................................................................................................. 65 Figura 18 .................................................................................................................. 65 Figura 19 .................................................................................................................. 66 Figura 20 .................................................................................................................. 67 Figura 21 .................................................................................................................. 67 Figura 22 .................................................................................................................. 68 Figura 23 .................................................................................................................. 68 Figura 24 .................................................................................................................. 69 Figura 25 .................................................................................................................. 82 Figura 26 .................................................................................................................. 83 Figura 27 .................................................................................................................. 83 Figura 28 .................................................................................................................. 83 Figura 29 .................................................................................................................. 84 Figura 30 .................................................................................................................. 84 Figura 31 .................................................................................................................. 89 Figura 32 .................................................................................................................. 93 Figura 33 .................................................................................................................. 94 Figura 34 .................................................................................................................. 95 Figura 35 .................................................................................................................. 96 Figura 36 .................................................................................................................. 98 Figura 37 .................................................................................................................. 99 Figura 38 ................................................................................................................ 105 Figura 39 ................................................................................................................ 106 Figura 40 ................................................................................................................ 107 Figura 41 ................................................................................................................ 107 Figura 42 ................................................................................................................ 108 Figura 43 ................................................................................................................ 108 Figura 44 ................................................................................................................ 108 Figura 45 ................................................................................................................ 108 Figura 46 ................................................................................................................ 109 Figura 47 ................................................................................................................ 109 Figura 48 ................................................................................................................ 109 Figura 49 ................................................................................................................ 110 Figura 50 ................................................................................................................ 110 Figura 51 ................................................................................................................ 110 Figura 52 ................................................................................................................ 110 Figura 53 ................................................................................................................ 111 Figura 54 ................................................................................................................ 111 Figura 55 ................................................................................................................ 111 Figura 56 ................................................................................................................ 111 Figura 57 ................................................................................................................ 112 Figura 58 ................................................................................................................ 112 Figura 59 ................................................................................................................ 113 Figura 60 ................................................................................................................ 113 Figura 61 ................................................................................................................ 113 Figura 62 ................................................................................................................ 113 Figura 63 ................................................................................................................ 114 Figura 64 ................................................................................................................ 115 Figura 65 ................................................................................................................ 115 Figura 66 ................................................................................................................ 116 Figura 67 ................................................................................................................ 116 Figura 68 ................................................................................................................ 117 Figura 69 ................................................................................................................ 117 Figura 70 ................................................................................................................ 118 Figura 71 ................................................................................................................ 118 Figura 72 ................................................................................................................ 119 Figura 73 ................................................................................................................ 119 Figura 74 ................................................................................................................ 120 Figura 75 ................................................................................................................ 121 Figura 76 ................................................................................................................ 121 Figura 77 ................................................................................................................ 121 Figura 78 ................................................................................................................ 121 Figura 79 ................................................................................................................ 122 Figura 80 ................................................................................................................ 122 Figura 81 ................................................................................................................ 122 Figura 82 ................................................................................................................ 122 Figura 83 ................................................................................................................ 123 Figura 84 ................................................................................................................ 123 Figura 85 ................................................................................................................ 124 Figura 86 ................................................................................................................ 124 Quadro 01: ................................................................................................................. 17 Quadro 02 .................................................................................................................. 33 Quadro 03: ................................................................................................................. 64 Quadro 04 .................................................................................................................. 70 Quadro 05: ................................................................................................................. 71 Quadro 06 .................................................................................................................. 85 Quadro 07: ................................................................................................................. 90 Quadro 08 .................................................................................................................. 91 Quadro 09: ................................................................................................................. 94 Quadro 10 .................................................................................................................. 97 Quadro 11: ............................................................................................................... 100 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 13 CAPÍTULO 1 – ESTABELECENDO OS CRITÉRIOS DE ESCOLHA DAS INSTITUIÇÕES DE ENSINO DE FÍSICA... ............................................................... 18 CAPÍTULO 2 – CARACTERIZANDO A METODOLOGIA E OS REFERENCIAIS DA PESQUISA ................................................................................................................ 24 2.1. Caracterizando a metodologia da pesquisa ....................................................... 28 2.2. A ferramenta de análise: o discurso textual na interpretação dos dados............ 28 2.3. Metodologia de análise de dados ....................................................................... 31 CAPÍTULO 3 – ANÁLISE DOS DADOS, RESULTADOS E DISCUSSÕES ............. 34 3.1. Real Academia de Artilharia, Fortificação e Desenho (1792-1810) ................... 34 3.2. Academia Real Militar (1810-1822) ................................................................... 48 3.3. O Colégio Pedro II (1838-1890) ......................................................................... 75 CAPÍTULO 4 – CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................... 137 REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 145 13 INTRODUÇÃO Pesquisar sobre a história foi uma atividade deslumbrante, e que particularmente ao desenvolver este trabalho, acabou nos trazendo surpresas agradáveis e desagradáveis. As agradáveis foram aquelas que surgiram quando conseguimos evidenciar algo que jamais imaginávamos ter acontecido de tal maneira. Este fato fez com que nos apaixonemos por esta modalidade de pesquisa. As desagradáveis foram aquelas relacionadas à conservação do patrimônio histórico e cultural de uma nação, que apesar de esforços terem sido destinados a tal tarefa no Brasil, ainda está muito aquém daquilo que seria desejável para uma conservação satisfatória. Não é de hoje que o homem procura realizar tal busca para saber mais sobre o seu passado. Entretanto esta tarefa sempre nos permitirá saber apenas um pouco mais sobre os acontecimentos, porém jamais nos permitirá saber exatamente como os fatos ocorreram no passado. O tempo sempre foi inimigo da conservação de documentos e relatos, fazendo com que somente tenhamos acesso ao que preferimos denominar de recortes históricos, originados de documentos que tenham sido conservados ao longo dos anos e que nos revelaram uma parte de uma história. Imbuído destas premissas e relembrando os relatos dos pares nos nossos anos de docência, ouvíamos por várias vezes que o ensino de física nas instituições do passado fora melhor que o ensino apresentado nos dias de hoje. Contudo estes relatos foram embasados, comumente, por intermédio de observações advindas do senso comum. Ainda temos uma carência envolvendo sistematização de dados relacionados no que diz respeito às pesquisas no campo da história do ensino de física do Brasil que nos permitiu fazer tal comparação com um embasamento teórico. A motivação para realizar esta pesquisa surgiu a partir da ideia de procurar mais evidências sobre a história do ensino de física no Brasil. Atualmente, quando voltamos nossos olhos para o interior da sala de aula, tanto no que diz respeito ao ensino médio como ao superior, temos observado que comumente as práticas de ensino são tradicionais e foram sedimentadas ao longo de anos. Da mesma maneira, os conteúdos padronizados pelos autores dos livros de física se arrastaram por anos reproduzindo-se de sumário em sumário. Talvez, um primeiro passo a ser dado para avançar no sentido de uma revitalização envolvendo o ensino de física, 14 seria primeiramente conhecer a sua história e refletir para entender as raízes históricas destas práticas de ensino utilizadas nas escolas de hoje. Por intermédio da nossa vivência, lecionando em cursos de engenharia elétrica, civil e produção, bem como no ensino médio na rede pública estadual paulista, verificamos um discurso onde esta presente a busca e a vontade de se ter um ensino revolucionário, diferente, atraente para o aluno. Entretanto, segundo a nossa experiência, o ensino de física no ensino médio paulista continua tendo os seguintes aspectos: pautado quase que exclusivamente em aulas expositivas, com base no esquema professor ensina e os alunos automaticamente aprendem; Eles são enfileirados em carteiras, enquanto o currículo prevê atividades em grupo praticamente para todas as aulas; os experimentos didáticos previstos no currículo não ocorrem na prática, pois não há material didático experimental nas escolas e nem recursos para adquiri-los – quando ocorre a prática experimental o professor financia o experimento do próprio salário; aulas com currículo pautado na construção de conhecimentos científicos, porém na prática se tornam meramente expositivas e repetitivas; quantidade excessiva de conteúdos para serem ensinados em um ano letivo que inviabilizam o trabalho docente; um aparato pedagógico ineficiente e um modelo de gestão pedagógica e administrativo não profissionalizado, o que impede que a pesquisa científica da área de educação chegue até aos professores por meio de reuniões pedagógicas pautadas em textos do senso comum. Podemos aqui retratar outros problemas do ensino de física nas escolas do ensino médio e do ensino superior, porém não é este o objetivo. Levantamos estas questões para convidar o leitor a refletir sobre qual é a influência histórica e cultural que serve como pano de fundo para este ensino de física das escolas atuais. O modo de ensinar e o modo de aprender podem estar enraizados culturalmente e historicamente ao longo de anos nas escolas. O lastro histórico e cultural pode estar pautando as reuniões pedagógicas nas instituições, estar presente até hoje na formação dos professores e pode estar influenciando as expectativas dos alunos quanto ao aprendizado em física. Devemos salientar que esta questão não representa o problema desta pesquisa, mas demonstra um posicionamento particular advindo da condição exercida enquanto professor e pesquisador. Estas observações servirão como pano de fundo para esta pesquisa que navegará pela história do ensino de física no Brasil. 15 Durante nossa revisão bibliográfica da área de história do ensino de física no Brasil foi possível identificar a escassez de pesquisas que contemplaram este assunto referente aos anos anteriores a 1950. A decisão por analisar os dados a partir de 1792 teve como base esta revisão bibliográfica, pois a pesquisa mais relevante já realizada neste âmbito trata apenas do ensino de física de 1950 até 2000 (MOREIRA, 2000). Dois outros artigos abordam a evolução do ensino de física de forma superficial, conforme afirma o próprio autor, nas obras Almeida Jr. (1979) e Almeida Jr. (1980). Ainda que exista uma tendência em tentarmos fazer comparações sobre épocas diferentes em relação ao ensino de física, não será nosso objetivo neste trabalho priorizar discussões no sentido de fazer abordagens que identifiquem se este ensino do passado foi melhor ou pior que o ensino apresentado no país nos dias de hoje. Estamos preocupados em realizar uma análise dos acontecimentos históricos que evidenciem como ocorreu o ensino de física particularmente em três instituições educacionais: a Real Academia de Artilharia, Fortificação e Desenho; a Academia Real Militar; e o Colégio Pedro II. A nossa expectativa com esta pesquisa foi a de analisar como era ensinada a física nas três instituições escolhidas, bem como evidenciar particularidades e peculiaridades de como ocorria tal ensino. Nosso objetivo principal esteve centrado em responder a seguinte questão de pesquisa: quais foram as características do ensino de física na Real Academia de Artilharia, Fortificação e Desenho (1792 a 1810), na Academia Real Militar (1810 a 1822) e no Colégio Pedro II (1838 a 1890)? A escolha destas três instituições foi baseada na importância que elas representaram diante da história educacional brasileira. Segundo Nicioli Jr. & Mattos (2007, p.7) “as Academias Militares são as grandes precursoras das ciências exatas no Brasil”. Por este motivo escolhemos começar nossa pesquisa pela primeira academia militar fundada em nosso país, que na época ainda era uma colônia de Portugal. A respeito da história do ensino de engenharia militar no Brasil, segundo Telles (2003), a referência mais antiga que foi possível obter, foi a contratação, por volta de 1640, do holandês Miguel Timermans, engenheiro de fogo, que aqui esteve de 1648 a 1650, encarregado de formar discípulos aptos para os trabalhos de fortificações e, portanto, de ensinar a sua arte e a sua ciência Telles (2003, p.3). 16 Entretanto o ensino da engenharia militar teve inicio em 1699 no Rio de Janeiro, com a fundação da Aula de Fortificação. Com os nomes sucessivos de Aula do Terço, Regimento de Fortificação e Real Academia de Artilharia, Fortificação e Desenho o estabelecimento seguiu seu curso até ser transformado em 1810 na Academia Real Militar, antecessora direta da atual Escola de Engenharia da UFRJ (FILGUEIRAS, 1998, p.352). Escolhemos iniciar nossa pesquisa a partir da Real Academia de Artilharia, Fortificações e Desenho por ser a primeira instituição criada oficialmente como academia militar fundada na colônia brasileira no ano de 1792. Analisamos a história do ensino de física nesta instituição desde a criação, no ano de 1792, até a sua extinção em 1810. A segunda instituição escolhida para a análise da história do ensino de física foi a Academia Real Militar fundada em 1810. Analisamos os dados históricos referentes ao ensino de física nesta instituição entre os anos de 1810 a 1822. Após 1822, “o nome da escola foi mudado para Academia Imperial Militar” (TELLES, 2003, p.12), passando por transformações permitindo inclusive a admissão de alunos civis. A terceira instituição escolhida para análise foi o Colégio Pedro II, previsto em lei a partir de 1837 e fundado em 1838, que está em funcionamento até os dias de hoje. Entretanto, por uma questão de limitação de tempo, analisamos a história do ensino de física desta instituição entre os anos de 1838 até 1890. O motivo para a escolha desta instituição ocorreu em virtude de ter sido criada para ser um modelo de ensino secundário no país (ALMEIDA, 1979; BARBOSA, 1882; FERREIRA, 1989; HAIDAR, 1972; LORENZ, 1986; NICIOLI & MATTOS, 2007; SAMPAIO, 2004). A criação do Colégio Pedro II representou a introdução das ciências físicas no ensino secundário brasileiro e segundo Ferreira (1989) colaborou para colocar um maior número de pessoas em contato esta ciência. Entretanto havia outras instituições de ensino secundário no país denominadas liceus, ateneus, institutos, escolas normais e colégios particulares que se destinavam, em geral, a cursos denominados preparatórios para o ensino superior. Nestes estabelecimentos de ensino, ao contrário do que ocorria no Colégio Pedro II até meados de 1870, o aluno poderia se matricular nas disciplinas que fossem de seu interesse em um sistema não seriado de ensino denominado de aulas régias ou aulas avulsas. Como exemplos destacam-se o Atheneu do Rio Grande do Norte (1825), o Liceu Paraibano (1836), o Liceu da Bahia (1836), a 17 Escola Normal da Bahia (1836), a Escola Normal do Pará (1839), a Escola Normal do Ceará (1845), o Liceu D. Affonso na província de São Pedro do Rio Grande do Sul (1846), as Escolas Normais de São Paulo (1846 e 1848), a Escola Normal da Paraíba (1854), a Escola Normal do Rio Grande do Sul (1870) e o Colégio Piracicabano (1881). O número pouco expressivo de matrículas na disciplina física nas diversas instituições de ensino secundário no império brasileiro, comparadas ao total de inscrições em outras disciplinas (quadro 01), nos conduziu a analisar apenas a história do ensino de física do Colégio Pedro II que manteve, neste período, um ensino seriado. Julgamos inexpressivo o número de matriculados em física nas demais instituições no final do período imperial, mas não descartamos pesquisas futuras sobre a história do ensino de física em tais instituições de ensino. Quadro 01: Inscrições na disciplina física em 1883 (HAIDAR, 1972, p.75) Estruturamos a presente pesquisa iniciando com a identificação das instituições de ensino de física no capítulo um. No capítulo dois estabelecemos a metodologia e os referenciais da pesquisa. No capítulo três desenvolvemos a análise dos dados, apresentamos a discussão e os resultados. No capítulo quatro apresentamos as considerações finais. A seguir, portanto no capítulo um, procedemos com o levantamento bibliográfico sobre a história da física no Brasil com a finalidade de justificar o estabelecimento critérios de escolha das instituições de ensino de física do passado brasileiro. 18 CAPÍTULO 1 – ESTABELECENDO OS CRITÉRIOS DE ESCOLHA DAS INSTITUIÇÕES DE ENSINO DE FÍSICA Através de uma revisão bibliográfica procuramos identificar as instituições de ensino que promoveram o ensino de física no Brasil. Foram consultadas fontes impressas e on-line da área de história da física, bem como sites eletrônicos de museus e acervos históricos (AMATI, 2010; BASSALO, 1990; FERREIRA, 2013, LUCENA, 2012, PORTUGAL, 2013, RIO DE JANEIRO, 2013, SAMPAIO, 2004; SAMPAIO, 2007; SAMPAIO & SANTOS, 2007; TELLES, 2003; VALENTE, 2007; VIDEIRA & VIEIRA, 2010; VIEIRA & VIDEIRA, 2007). Procuramos destacar quais foram as principais instituições que promoveram o ensino de física no Brasil. Os nossos apontamentos nos mostraram que no Brasil colonial “a metrópole portuguesa, ao contrário das Coroas espanhola e inglesa, não criara em suas colônias universidades, nem bibliotecas, nem institutos de ensino superior” (RIBEIRO, 1994, p.191). A sociedade agrária fundada no latifúndio escravista não requeria uma formação científica para a população, tampouco era o objetivo do governo colonial tal feito. Neste período a “história da física confunde-se com a da astronomia, com a da medicina e com alguns outros ramos da ciência” (VIEIRA & VIDEIRA, 2007, p.1). Entretanto algumas evidências da presença de conteúdos da física foram observadas na literatura da história da colônia brasileira. A citação do experimento realizado pelo sacerdote Bartolomeu Lourenço de Gusmão apareceu em Ribeiro (1994), Ferri & Motoyama (1974) e Videira & Vieira (2010). O experimento serviu para demonstrar a convecção térmica em fluidos aquecidos, bem como o princípio de Arquimedes. Em 1709, o sacerdote fez subir a quatro metros de altura, um balão cheio de ar quente denominado por ele de aerostato, mas Ferri & Motoyama (1974, p.67) afirmaram que “a não ser pelo fato de o padre voador ser natural de Santos, nada tem a ver na essência com o quadro cultural brasileiro” da época. Videira & Vieira (2010) confirmaram esta afirmação de Ferri & Motoyama (1974). Outro exemplo de iniciativa de introduzir a ciência na cultura brasileira foi quando o príncipe de Nassau instalou “em Pernambuco o primeiro observatório astronômico da América do Sul, no qual se fizeram observações sobre o eclipse solar de 1640” (RIBEIRO, 1994, p. 191), relatado também por Videira & Vieira (2010, p. 2). 19 Almeida Jr. (1979) relata que: Dentro do ensino excessivamente literário e retórico, nota-se pela análise minuciosa do Ratio Studiorum, o código administrativo, curricular e disciplinar dos colégios jesuíticos, um aceno de instrução científica nas aulas de metereologia (ALMEIDA JR, 1979, p. 46). Em 1772 foi fundada a Sociedade Científica do Rio de Janeiro, destinada a promover a divulgação científica, porém com pouco ou nenhum resultado efetivo nesta tarefa (FERRI & MOTOYAMA, 1974). Em 1792 foi criada a Real Academia de Artilharia, Fortificações e Desenho na cidade do Rio de Janeiro com o objetivo de formar engenheiros militares para a defesa da colônia (BENTO, 1994; NICIOLI & MATTOS, 2007; TELLES, 1997). Em 1800 foram iniciadas as aulas práticas de física no Seminário de Olinda, fundado por Azeredo Coutinho, que trouxe professores de Portugal, inclusive de física (VIDEIRA & VIEIRA, 2010). Segundo Marcolin (2012) no final do século XVIII, ou seja, no final do período colonial, o governo português contratou cientistas para realizar estudos sobre a natureza brasileira. O objetivo era o de fazer mapas do território, realizar prospecção mineral e desenvolver e disseminar técnicas agrícolas mais eficientes. Tudo para tentar gerar mais divisas e ajudar a equilibrar as periclitantes contas do reino de Portugal. A ordem para buscar os homens de ciência capazes de pesquisar a natureza brasileira partiu de dom Rodrigo de Sousa Coutinho ao assumir a Secretaria de Estado da Marinha e Domínios Ultramarinhos, em 1796, e formular uma nova política para a administração do Império colonial português. Para ele, era urgente conhecer a utilidade econômica das espécies nativas e investigar o verdadeiro potencial mineral das terras de além-mar (MARCOLIN, 2012, p.8). Entretanto ainda nos dias de hoje por falta de um aprofundamento na história da física é difícil saber se as ciências, inclusive a física, estiveram ou não presentes no período colonial brasileiro. Ainda hoje não conhecemos bem o período compreendido entre meados dos séculos XVI e início do século XVIII. Isso não só para o caso da física. À medida que nos aproximamos do século XX, contudo, nossa ignorância diminui. Um motivo para essa diferença é a força que a perspectiva da obra organizada por Fernando de Azevedo teve sobre as gerações posteriores à publicação da coletânea. Segundo o sociólogo e educador paulista, no período que antecede à criação das primeiras universidades no Brasil, a ciência era praticamente inexistente por aqui. Essa afirmação (e Azevedo o sabia) era errada. Para compreendê-lo, é preciso determinar o que ele entendia por ciência. Mais que certo tipo de conteúdo, ciência, para Azevedo, seria uma forma de conhecimento produzida sob determinadas circunstâncias, só existente em instituições como universidades e institutos de pesquisa (VIEIRA & VIDEIRA, 2007, p.3). 20 É consenso entre os historiadores da ciência (FERREIRA, 1989; FERRI & MOTOYAMA, 1974; MARCOLIN, 2012; RIBEIRO, 1994; VIDEIRA & VIEIRA, 2010; VIEIRA & VIDEIRA, 2007) que a introdução das ciências foi alavancada com a vinda de D. João VI para o Brasil. Segundo Ferreira (1989, p.124) “algumas medidas tomadas por D. João VI ao chegar ao Brasil – entre elas a abertura dos portos – tiveram salutar conseqüência e repercussão quase imediata na formação de nosso ambiente cultural.” As primeiras instituições brasileiras de caráter científico foram fundadas a partir de 1808. “Foi em uma dessas instituições que surgiram as primeiras aulas práticas de física no Rio de Janeiro, voltadas para a formação de militares e médicos” (VIDEIRA & VIEIRA, 2010, p.8). Os autores se referem às aulas do laboratório de física e química do Museu Nacional, e mencionam que a física ganhou autonomia como disciplina nos cursos médicos do Rio de Janeiro em 1830 respeitando um padrão europeu de ensino. Segundo Vieira & Videira (2007) existe um motivo social, político e econômico associado ao desenvolvimento científico do país, pois era preciso estabelecer um exército e uma marinha para a defesa do país; era preciso aclimatar plantas para fornecer o alimento necessário e adequado para os cerca de 30 mil portugueses que aqui desembarcaram ao longo dos anos seguintes (VIEIRA & VIDEIRA, 2007, p.7). Também seria necessário atender a uma demanda de pessoas que necessitariam de atendimento médico e possibilitar aos portugueses o acesso a cultura que já possuíam em Portugal e que na colônia ainda não existia. Em 1808 foram criados: o Colégio Médico Cirúrgico do Rio de Janeiro, a Academia Real da Marinha, O Real Horto e o Museu Real. Apesar de serem instituições de cunho prático e imediatista, sem pesquisa cientifica propriamente dita, constituíram-se nos primeiros núcleos a se contraporem à tendência retórica e literária até então soberanas (FERRI & MOTOYAMA, 1974, p.67). Ribeiro (1994) cita também a criação da Escola de Cirurgia fundada na Bahia em 1808, a Academia Real Militar no Rio de Janeiro em 1810 que se transformou em 1858 na Escola Central. Nestes primeiros estabelecimentos de ensino militar e de ensino médico e nos outros que se lhe seguiram, começariam mais tarde a ser lecionadas as ciências físicas, embora visando principalmente suas aplicações técnicas ou profissionais (RIBEIRO, 1994, p.192). 21 A partir de 1820 ocorreram aulas práticas de física experimental no laboratório de física e química do Museu Nacional, ministradas por João da Silveira Caldeira, diretor da instituição (FERREIRA, 1989; FERRI & MOTOYAMA, 1974; RIBEIRO, 1994). Em 1837 foi criado o Colégio Pedro II no Rio de Janeiro, mas que, efetivamente, funcionou somente a partir de 1838. Esta instituição foi criada para ser um modelo, um padrão de ensino secundário para o país, o que não ocorreu de fato segundo Haidar (1972). A criação do colégio representou a introdução das ciências físicas como disciplina do curso e segundo Ferreira (1989) colaborou para colocar um maior número de pessoas em contato com a ciência. Segundo Carvalho & Martins (2004) a qualidade do ensino ainda deixava muito a desejar para os padrões europeus da época. Nos primeiros anos de funcionamento o currículo do Colégio Pedro II era predominantemente humanista e com pouca ênfase para as ciências (HAIDAR, 1972). Segundo Vieira & Videira (2007), a física ganhou uma importância notória quando foi criado o curso de engenharia civil na Escola Militar do Rio de Janeiro em 1842. A partir daí a instituição exigiu a defesa de tese para obtenção do grau de doutor. “Na segunda metade do século XIX, o número de pessoas em contato com a Física havia aumentado bastante, devido à criação de novas instituições de caráter técnico ou educacional” (FERRI & MOTOYAMA, 1974, p.68). Em meados de 1850 havia uma divisão de ideias filosóficas entre o ensino e a pesquisa. De um lado os que defendiam as pesquisas em área passíveis de experimentação e de outro, aqueles não positivistas, que se preocupavam com a atualização dos currículos e o desenvolvimento de pesquisas teóricas. Houve então uma grande disseminação da filosofia positiva de Auguste Comte na intelectualidade brasileira, o que, de certa forma, foi bom pelo fato de o positivismo valorizar a ciência e combater a visão especulativa da realidade (CARVALHO & MARTINS, 2004, p.156) Nesta época as disciplinas científicas não eram prioridade nas escolas do país. A partir de relatos de Gonçalves Dias em 1851, quando inspecionava as condições da instrução pública nas províncias, Almeida Jr. (1979) cita que as mínimas aulas de Física, Química e Matemática amontoavam-se nos últimos anos atropelados com as línguas clássicas e modernas e, a exigência maior de matéria de humanidades nos exames preparatórios para 22 o ingresso nas escolas superiores, desobrigando ou reduzindo as aulas de Física a meras noções gerais, prejudicando profundamente os progressos dos estudos científicos (ALMEIDA JR, 1979, p.54). Em meio a este contexto do ensino, iniciativas isoladas de práticas de pesquisas laboratoriais existiam como o exemplo do experimento do Pêndulo de Foucault realizado em 1851, pelo professor da Escola Politécnica do Rio de Janeiro - Cândido Batista de Oliveira – bem como a publicação dos resultados em instituições internacionais. Em 1858 a física já era ministrada como disciplina independente na Escola Central e na Escola da Marinha. Na segunda metade do século XIX o Brasil passou por uma expansão do ensino superior, sendo mais intensa no final do século com a criação da Escola Politécnica em 1874, a Escola de Minas de Ouro Preto em 1875 e a Escola de Porto Alegre em 1896. “O aumento desses núcleos educacionais, e de outros, refletiu na quantidade e na qualidade dos professores de Física” (FERREIRA, 1989, p.124). O autor ressalta que neste contexto já começava a dar os primeiros passos a física experimental no país. Ferri & Motoyama (1979) relatam também estes fatos históricos. No final do século XIX a formação científica já estava mais presente nas instituições de ensino secundário e superior do país (ALMEIDA JR.,1979). Segundo Ferri & Motoyama (1979), neste período alguns nomes se destacaram no Rio de Janeiro por causa da dedicação que tinham para com as ciências. Já havia práticas laboratoriais nas escolas de engenharia do Rio de Janeiro (1875), de Outro Preto (1875), de São Paulo (1893) e de Porto Alegre (1896) segundo Videira & Vieira (2010). Não poderíamos deixar de citar os interesses que o imperador D. Pedro II apresentava com relação às ciências. Entretanto os autores Videira & Vieira (2010) ressaltam a necessidade de que mais pesquisas precisariam ser realizadas visando a busca de evidências, investigando com maior profundidade as reais intenções do imperador acerca desta área de estudos. Procuramos destacar aqui somente alguns aspectos sobre a história da física no Brasil que, de certa forma, estão relacionados ao período que optamos investigar na presente pesquisa, compreendido entre 1792 e 1890. 23 Escolhemos começar nossa jornada da história do ensino de física no Brasil a partir da análise da Real Academia de Artilharia, Fortificações e Desenho fundada em 1792, pois foi uma das primeiras instituições, de ensino superior, militares oficiais do país. A segunda instituição a ser pesquisada foi a Academia Real Militar criada em 1810, pelo fato de ser uma instituição de ensino militar superior e possuir o ensino de física em seu currículo. O Colégio Pedro II foi escolhido como a terceira instituição a ser analisada nesta pesquisa por representar a modalidade de ensino secundário e por ser uma escola criada com o intuito de ser um modelo de ensino secundário para o país. No capítulo a seguir apresentamos a metodologia e os referenciais da pesquisa. 24 CAPÍTULO 2 – CARACTERIZANDO A METODOLOGIA E OS REFERENCIAIS DA PESQUISA Diante dos resultados da revisão bibliográfica sobre as instituições de ensino de física do Brasil, selecionamos três instituições que julgamos serem de destaque quanto ao ensino de física. Na introdução deste trabalho destacamos o objetivo desta pesquisa, que visou responder a seguinte questão: quais foram as características do ensino de física na Real Academia de Artilharia, Fortificação e Desenho (1792 a 1810), na Academia Real Militar (1810 a 1822) e no Colégio Pedro II (1838 a 1890)? Para responder a esta questão, realizamos a análise dos dados buscando informações nas fontes históricas primárias e secundárias (MARTINS, 2005). As fontes primárias foram compostas por originais de leis, documentos históricos, livros e compêndios digitalizados por arquivos públicos estaduais e nacionais. Também foram utilizados dados de fontes históricas secundárias, compostos por livros, artigos e outras publicações de autores da história da educação brasileira, que compõem a narrativa sobre o ensino de física no Brasil para as instituições analisadas. Segundo Martins (2005) a fonte primária é todo material histórico original da época pesquisada, ou seja, as leis, os decretos, os livros, os manuscritos, as fotografias ou qualquer outra evidência da época que revele algum detalhe da história de um determinado acontecimento. A fonte secundária é toda narrativa proveniente de estudos historiográficos sobre o período histórico pesquisado. No desenvolvimento desta pesquisa encontramos considerável quantidade de documentos históricos em formato eletrônico, digitalizados, e optamos analisá-los. Sabemos da importância da visita aos centros de preservação e o contato com os documentos pessoalmente. Entretanto dada a quantidade de documentos que obtivemos das instituições, considerada por nós adequada e suficiente, foi nos permitida a realização da análise, o que não nos impede que futuramente novas pesquisas possam ocorrer em função dos dados complementares advindos de outros documentos. Não é desconhecido que toda pesquisa de cunho histórico apresente a característica de ampliação de dados, que possibilitam a revelação de novos detalhes importantes sobre o objeto de estudo. 25 Optamos por adicionar à metodologia histórica uma ferramenta de análise de discurso textual que julgamos ser útil para elucidar os dados das fontes primárias desta pesquisa. Como os documentos históricos foram em sua maioria textuais, utilizamos uma ferramenta denominada ficha episódica que faz parte da análise de discurso textual (VAN DIJK, 2002). Escolhida esta ferramenta auxiliar, foi necessário estabelecer critérios para a análise dos dados. Decidimos analisar os documentos de lei que criaram as instituições, bem como os seus estatutos. Dentro desta análise procuramos identificar os livros e compêndios utilizados no ensino de física em tais instituições. Aqueles que foram encontrados no formato original digitalizado, o que aconteceu com a maioria deles, foram analisados segundo a ferramenta escolhida (VAN DIJK, 2002). A partir destes critérios os documentos foram lidos na íntegra e caso fossem encontrados episódios que revelassem detalhes sobre o ensino de física, estes foram destacados e confrontados com as fontes históricas secundárias. A metodologia utilizada nesta pesquisa é historiográfica, entretanto a ficha episódica de Van Dijk (2002) serviu de subsídio, pois contribuiu para reunir de forma organizacional as informações decorrentes na análise historiográfica, advindas das narrativas. Quanto à historiografia da educação, “é um campo de estudo ao qual nenhum historiador pode se furtar. É a reflexão sobre a produção e a Escrita da História”. (SILVA e SILVA, 2010, p.189). Entretanto os debates a que referem-se às pesquisas historiográficas nos trouxeram indícios da precariedade no uso de referenciais teóricos na execução destes trabalhos (SAVIANI, 2010) e (SAVIANI, LOMBARDI & SANFELICE, 1998). Os autores Vieira & Videira (2007) articularam duras críticas à historiografia da física no Brasil, explicitando problemas de falta de aprofundamento nas pesquisas históricas em determinados períodos. Como exemplo citaram a história da física no Brasil colonial que tem como referência principal Fernando de Azevedo que influenciou uma geração de historiadores a relatarem erroneamente - por respeito à sua notoriedade como pesquisador - que não existia ciência na colônia brasileira. Segundo os autores Vieira & Videira (2007) este período não foi pesquisado com a devida atenção, e nada pode se afirmar sobre as condições da ciência nesta época do Brasil. 26 Nossa pesquisa foi embasada em dois referenciais teóricos da historiografia. O primeiro, Gaiofatto (2000), nos trouxe uma resenha sobre Saviani, Lombardi e Sanfelice (1998), indicando os subsídios para as pesquisas sobre a história da educação, que foram adotados para o tratamento dos dados desta pesquisa. O primeiro subsídio faz referência a preocupação em evitar que a pesquisa seja fundamentada somente em discursos oficiais sobre as decisões governamentais de políticas públicas. A narrativa é ferramenta fundamental para contrapor ou confirmar os discursos oficiais. Sendo assim, escolhemos confrontar os dados das fontes primárias com as narrativas das fontes secundárias, ao longo da análise dos dados. O segundo subsídio trata da existência das escolas históricas, “uma vez que optar por uma delas implica optar por uma forma de registro da temporalidade, considerando que o que há são representações históricas do tempo histórico” (GAIOFATTO, 2000, p.263). Adequando a nossa pesquisa optamos por não utilizar uma periodização da história da educação. Analisamos instituições de ensino que identificamos como importantes para o ensino de física no Brasil. O terceiro subsídio refere-se à necessidade de situar os aspectos estudados dentro de seu contexto adequado, a fim de aprofundar e expandir possíveis explicações e interpretações; a importância de expansão da variedade de leituras, quanto à Educação e outros aspectos e dimensões da sociedade (GAIOFATTO, 2000, p.265). Alinhando a nossa pesquisa com o terceiro subsídio, utilizamos as fontes históricas secundárias como um apoio para a interpretação das condições sociais, políticas e econômicas da sociedade brasileira em cada instituição analisada. O quarto subsídio trata da importância de utilizar fontes legislativas para a reconstrução das políticas públicas de cada período. Nossa pesquisa foi adequada, pois avaliou documentos históricos legislativos – estatutos criados por força de lei - além de livros e compêndios utilizados nas instituições. O segundo referencial teórico historiográfico - complementar ao primeiro - que nos orientou nesta pesquisa é Saviani (2010), que nos trouxe cinco princípios específicos para a historiografia da educação. No primeiro deles, consideramos que o conhecimento que cabe à historiografia educacional produzir consiste em reconstruir, por meio de ferramentas conceituais (categorias) apropriadas, 27 as relações reais que caracterizam a educação como um fenômeno no concreto. (SAVIANI, 2010, p.3). No segundo princípio o autor nos apresentou a importância de submeter períodos relativamente longos da história da educação (SAVIANI, 2010). No caso desta pesquisa, estamos alinhados com este princípio, pois tomamos como ponto inicial a criação da Real Academia de Artilharia, Fortificações e Desenho (1792- 1810), percorremos os caminhos do ensino de física procurando estabelecer as relações com as realidades educacional, social, econômica e política brasileiras até o ano de 1890. Analisamos a história do ensino de física também da Academia Real militar (1810-1822) e do Colégio Pedro II (1838-1890). O terceiro princípio indicou um “olhar analítico-sintético no trato com as fontes” (SAVIANI, 2010, p.4), que se traduz em um levantamento, e a análise minuciosa dos dados disponíveis, sem deixar “escapar as características do fenômeno investigado” (SAVIANI, 2010, p.4). Nossa pesquisa foi adequada a este princípio aumentando a quantidade de documentos analisados e adotando releituras dos documentos. O quarto princípio apontou a preocupação em articular os acontecimentos singulares com os acontecimentos universais, ou seja, entender as relações entre acontecimentos locais, nacionais e internacionais. Alinhamos nossa pesquisa a este princípio realizando a revisão bibliográfica das fontes históricas secundárias. O quinto e último princípio indicou que a pesquisa histórica não é desinteressada, ou seja, “o que provoca o impulso investigativo é a necessidade de responder a alguma questão que nos interpela na realidade presente” (SAVIANI, 2010, p. 4). Ao propormos o nosso problema de pesquisa, atendemos a este quinto princípio. Alinhamos nossa pesquisa com estes princípios através da utilização da ferramenta ficha episódica de Van Dijk (2002), estabelecendo questões que destacam categorias de análise. Ao articular os dados provenientes das fontes históricas primárias com as narrativas das fontes históricas secundárias evidenciamos quais foram as características do ensino de física nas três instituições de ensino brasileiras. 28 2.1. Caracterizando a metodologia da pesquisa Nosso objeto de estudo foi composto pelas características que descrevem o ensino de física no Brasil nas três instituições selecionadas. Esta pesquisa se enquadrou como qualitativa e descritiva, pois segundo Bogdan & Binklen (1999, p.48) “a investigação qualitativa é descritiva. Os dados recolhidos são em forma de palavras ou imagens e não de números”. Segundo os autores o objeto de estudo da pesquisa qualitativa é o conteúdo de documentos de quaisquer espécies. Nesta pesquisa, analisamos os documentos disponíveis que surgiram no decorrer do levantamento de dados. Consideramos como documentos os livros impressos, livro on-line via Internet (e-book), periódicos impressos ou em formato eletrônico, anais de congresso, artigos em jornais, fotografias, manuscritos, documentos oficiais do Estado e qualquer outro documento que comprove os fatos históricos. 2.2. A ferramenta de análise: o discurso textual na interpretação dos dados Os estudos sobre a análise do discurso não são recentes e atualmente possuem diferentes vertentes. Os termos escola e linha não foram utilizados neste estudo para designar tais vertentes, como exemplo, denominar escola francesa ou linha anglo-saxã de análise de discurso. Cada vertente têm muitas outras divisões que descaracterizam uma única linha ou escola a ser seguida, segundo Orlandi (2003). Nesta pesquisa foi utilizada uma ferramenta do referencial da análise de discurso textual (VAN DIJK, 2002) para a análise de textos históricos. Teun Adrianus Van Dijk, professor e pesquisador vinculado à Universidade de Amsterdã, em sua obra Cognição, Discurso e Interação (VAN DIJK, 2002) propôs um método de análise de discurso baseado na linguística textual. A proposta do autor foi a de subsidiar a análise de discursos textuais através das análises cognitiva, contextual, proposicional, de coerência, de macroestratégias, de estratégias esquemáticas, de produção, estilísticas, retóricas e semânticas. A análise cognitiva leva em consideração a atribuição de significados através da leitura de um texto que contém um discurso. Cada indivíduo atribui os significados de acordo com a estrutura do texto e também de acordo com o 29 conhecimento de mundo (VAN DIJK, 2002). Em relação à construção do conhecimento, o autor afirmou que diante de um fato, o indivíduo que o presenciou cria uma representação mental sobre a cena observada. Outro indivíduo lê uma história sobre o mesmo fato e cria a sua representação mental. Certamente não podemos afirmar que ambas as representações mentais são idênticas, pois no caso da história escrita, ela foi codificada pelo escritor. Ambos os indivíduos formaram uma representação na memória, com base em informações visuais (indivíduo que presenciou o fato) e linguísticas (indivíduo que leu a história). Quanto à interpretação, os indivíduos atribuíram interpretações dos acontecimentos (fatos) e do enunciado (história), ocorrendo construções de significados, ou seja, os fatos foram interpretados como um acontecimento e o enunciado como uma história sobre o acontecimento. Em ambos os casos ocorre construção de significados. Segundo Van Dijk (2002) as pessoas que compreendem acontecimentos reais ou eventos discursivos são capazes de construir uma representação mental, principalmente uma representação mental significativa, somente se tiverem um conhecimento mais geral a respeito de acontecimentos (VAN DIJK, 2002, p.15). O indivíduo que compreendeu um fato ou uma história possui três tipos de informações, a saber, a informação sobre o próprio acontecimento, informações sobre a situação ou contexto, e as informações das pressuposições cognitivas. A principal estratégia do modelo de análise de discurso textual apresentado pelo autor tem como base o indivíduo atribuir significados aos fatos ou à história de forma imediata, o mais rápido possível e tão bem quanto possível. Em outras palavras, a informação que foi processada pode estar incompleta, mas é a mais eficaz possível do ponto de vista do indivíduo que presenciou os fatos ou leu a história. Este indivíduo pode incrementar as informações com as expectativas que ele tinha em relação ao fato ou à história. Em resumo, o modelo proposto está baseado no pressuposto de que o processamento de discurso (...) é um processo estratégico no qual uma representação mental na memória é construída a partir do discurso, usando informações externas e internas, como o objetivo de interpretar o discurso. (VAN DIJK, 2002, p.16) Ao escrever ou ler um discurso, os interlocutores foram inseridos em uma realidade social, ou seja, existe um contexto social, eles possuíram papéis sociais, 30 existiu uma situação imposta ou ocorrida e eles interagiram. A partir destas características, Teun Adrianus Van Dijk (VAN DIJK, 2002) estabeleceu que o modelo cognitivo deva tratar do discurso e do processo de compreensão do discurso dentro de um contexto social. Os usuários da língua constroem representações não só do texto, mas também do contexto social e ambas as representações estão relacionadas. Outro fator importante, segundo o autor, a respeito da forma como o escritor conta esta história e a posição social que ele ocupa interferem na interpretação do leitor. A forma como uma história é contatada depende da situação social do escritor. Como exemplo mais concreto, uma história sobre um acidente é escrita de uma forma em uma correspondência informal entre amigos, mas se apresenta de outra forma quando escrita em um tribunal de fórum perante as autoridades judiciárias. As três maiores limitações deste modelo, segundo o próprio autor, são: o parsing linguístico - o modelo está limitado aos processos de informação semântica; a representação de modelo e uso - não são delineadas, de forma completa, as bases de conhecimento que fornecem informações necessárias para as várias operações semânticas; e a representação sistemática das informações contextuais - não são considerados atos relevantes da fala, interações e situações. Um discurso textual, segundo o autor, é composto por uma sequência de sentenças que expressam sequências de proposições. No discurso escrito, as sentenças estão dispostas de maneira linear, ou seja, uma após a outra. Os fatos denotados pelo discurso têm organização espacial, condicional (causal) ou temporal. Segundo Van Dijk (2002), a interpretação de um discurso não pode ser apenas fundamentada na semântica estrutural, ou seja, na elocução escrita acabada. Os leitores fazem uso de estratégias para atingirem, o quanto antes, a interpretação pretendida, lançando mão de informações textuais, contextuais e cognitivas ao mesmo tempo. Os discursos não têm significados, mas significados são atribuídos a eles. As características da análise que acabamos de discutir foram importantes para entendermos procedimentos da análise de discurso textual de Van Dijk (2002), contudo, é importante salientar que para a análise dos dados de nossa pesquisa utilizamos um instrumento elaborado pelo mesmo autor, denominado ficha episódica. Assim, nossa análise foi embasada nas narrativas históricas - referenciais da historiografia citados anteriormente - e auxiliada pela ficha episódica como 31 ferramenta de apoio, cuja elaboração foi inspirada nos pressupostos da análise de discurso textual, que discutiremos a seguir, realizando o tratamento da metodologia específica da análise dos dados, e da ferramenta utilizada para tal tarefa. 2.3. Metodologia de análise de dados A análise de discurso textual de Van Dijk (2002) possui ramificações que permitem o uso de técnicas e ferramentas particulares para a análise de dados. Pensando nesta análise (VAN DIJK, 2002) para elaborar as fichas episódicas, o contexto de um discurso possui uma pré-condição pragmática, definida como a pressuposição que o analista tem dos atos da fala do discurso. Cada ato da fala possui um contexto típico, como por exemplo, em uma pesquisa de levantamento histórico baseado em documentos históricos, os atos da fala estão no contexto da época em que o documento foi elaborado. Se o documento for legislativo, a pressuposição que temos é a de que ele contém regras e normas que deveriam ser cumpridas a quem seria de dever naquela época. Entretanto, não temos certeza que as leis foram cumpridas se não as contrapormos com outros documentos da mesma época, comprovando o cumprimento de tais leis. Segundo Van Dijk (2002), os métodos de compreensão pragmática pertencem ao contexto inicial do processo verbal de um ato da fala. Entendemos que o processo verbal para a elaboração de um ato da fala ocorre antes da expressão oral ou expressão escrita, e, portanto é o mesmo princípio básico utilizado para ambos, porém diferencia-se na forma como são transmitidos ao locutor ou ao leitor. Antes de falar/escrever sobre um evento, o discurso foi processado cognitivamente pelo falante/escritor e posteriormente foi engajado para determinado tipo de expressão, podendo ser oral ou textual. O contexto inicial em relação ao qual um ato da fala deve ser interpretado possui três tipos de informação segundo Van Dijk (2002): informações semânticas gerais (memórias/frames); informações de estados finais, derivadas de eventos/atos imediatamente precedentes; (macro) informação global sobre todas as estruturas/processos interativos prévios. Neste contexto o autor propôs as categorias de contexto social global: privado, público, institucional/formal e informal. 32 Os diferentes contextos sociais globais foram caracterizados por: posições (papéis sociais, status social, etc.), propriedades (sexo, idade, etc.), relações (dominação, autoridade, etc.) e funções (pai, garçonete, juiz, etc.). Estas características de convenções são regras, leis, princípios, normas e valores que “definem quais conjuntos de ações estão associados com quais funções, posições, etc.” (VAN DIJK, 2002, p.84). O autor afirma que o ouvinte/leitor tem que comparar o que o falante/escritor aparentemente supõe a respeito dele (o ouvinte/leitor), com seu próprio autoconhecimento. Procedendo com a maneira como conduzimos a análise dos dados, para cada conjunto de documentos históricos das instituições escolares analisadas temos uma ficha episódica, que comporta os dados e uma breve conclusão sobre a instituição. Para esta pesquisa adaptamos o modelo de ficha episódica de Van Dijk (2002) aos nossos dados. A adaptação da ficha episódica e a análise dos dados das fontes históricas primárias foram inspiradas nos pressupostos da análise de discurso textual (VAN DIJK, 2002) e no primeiro princípio historiográfico de SAVIANI (2010), citado anteriormente. Dentro desta perspectiva da análise contextual, elaboramos as questões da ficha episódica a partir da nossa experiência docente e acadêmica atendendo aos pressupostos de Van Dijk (2002), identificando como fundamentais as seguintes informações para a elucidação do ensino de física nas instituições pesquisadas: nome da instituição e ano de criação; cidade em que foi criada; identificar se a instituição era pública ou privada; o objetivo de sua criação; o que se entendia por física nesta instituição; como era denominada esta área do conhecimento; qual era o conteúdo ensinado em física; qual o objetivo do ensino destes conteúdos; identificar o perfil dos alunos da instituição; quais eram as outras disciplinas que faziam parte da grade de ensino juntamente com a física; quais eram os livros, compêndios e manuais de física utilizados; métodos de ensino utilizados nas aulas; estudos seriados ou com sistema de aulas avulsas; contexto social, político e econômico da época em que funcionou a instituição; influências do contexto social, político e econômico da época sobre o ensino de física; conclusões sobre o ensino de física na instituição. No quadro 02 estabelecemos as questões que atendem as informações que identificamos como relevantes para esta pesquisa. 33 No próximo capítulo iniciaremos a análise dos dados obtidos a partir das fontes históricas primárias confrontando-os com os dados obtidos nas fontes históricas secundárias. Quadro 02 – Modelo de ficha episódica, inspirado e adaptado a partir de Van Dijk (2002) A partir do modelo apresentado anteriormente, elaboramos as fichas episódicas de cada uma das três instituições analisadas, para evidenciar as características da história do ensino de física de tais instituições de ensino. No capítulo três iniciamos a análise dos dados utilizando os referencias teóricos adotados. Instituição de Ensino: nome da instituição e ano de criação I) Estrutura dos documentos: Cenário: Cidade sede. Citar se a instituição é mantida pelo governo ou por particulares. Foi criada com qual objetivo a princípio? II) Convenções dos documentos: a) O que se entendia por física nesta instituição e como era denominada esta área do conhecimento? Qual é o perfil do conteúdo ensinado? Visavam o quê com este ensino? Formação para a vida em sociedade? Formação para o trabalho? Formação do cientista? b) Qual era o perfil dos alunos desta instituição? Ensino elitizado? Ensino de massa? Se foram encontradas informações, citar os números de matriculas comparado com a população local. c) Qual era o objetivo de ensinar física nesta instituição? Puramente acadêmico? Tinha o viés experimental? Formação para o trabalho? Formação do cidadão? III) Informações contempladas pelas fontes: a) A física e as outras disciplinas da grade curricular – ciências versus humanidades b) Quais eram os conteúdos ensinados de física? c) Quais eram os livros, compêndios e manuais de física utilizados? d) Quais eram os métodos de ensino utilizados nas aulas? e) Os estudos eram seriados ou com sistema de aulas avulsas? Os alunos se matriculavam em disciplinas a seu critério ou havia um único regime de matrículas? f) Qual era o contexto social desta época? g) Qual era o contexto político desta época? h) Qual era o contexto econômico desta época? i) Como o ensino de física era influenciado pelos contextos social, político e econômico da época? IV) Conclusão sobre o ensino de física nesta instituição Uma breve conclusão com as características mais importantes do ensino de física nesta instituição 34 CAPÍTULO 3 – ANÁLISE DOS DADOS, RESULTADOS E DISCUSSÕES Os dados da pesquisa foram analisados objetivando a elaboração de fichas episódicas para cada instituição escolar decorrentes das informações históricas provenientes de fontes históricas primárias e secundárias. Os documentos históricos denominados nesta pesquisa de fontes históricas primárias foram encontrados no formato digitalizado após uma varredura em acervos digitalizados brasileiros, destacando os Arquivos Públicos dos Estados de São Paulo, Paraná, Ceará, Espírito Santo e Rio de Janeiro; Centro de Referência em Educação Mário Covas; Biblioteca Nacional Digital do Brasil; Conselho Nacional de Arquivos (Conarq); Portal do Arquivo Nacional; Cento de Memória UNICAMP (CMU); Portal da História da Educação Brasileira (HISTEDBR); Sociedade Brasileira da História da Educação (SBHE); Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP); Fundação Joaquim Nabuco; Exposição Tesouros do Patrimônio da Ciência e Tecnologia no Brasil (MAST - Museu de Astronomia e Ciências Afins); THESAURUS de Acervos Científicos em Língua Portuguesa (MAST - Museu de Astronomia e Ciências Afins); Biblioteca Nacional sem Fronteiras; Hemeroteca Digital Brasileira (Biblioteca Nacional Digital do Brasil). Os dados obtidos nas fontes históricas primárias foram confrontados com as informações presentes nas fontes históricas secundárias, que são narrativas das histórias das instituições pesquisadas presentes em livros, artigos em revistas da área e relatos escritos. Para cada instituição foi elaborado um texto inicial que descreveu as características da instituição, os contextos social, político e econômico da época, bem como as informações que identificamos como relevantes para responder às questões da ficha episódica. Ao final deste texto foi preenchida a ficha episódica com as conclusões sobre o ensino de física em cada instituição. 3.1. Real Academia de Artilharia, Fortificação e Desenho (1792-1810) Ao procurar identificar o papel da Real Academia de Artilharia, Fortificação e Desenho, no contexto do ensino de física, foi oportuno fazer um recorte da história do Brasil no período. 35 A história da colônia brasileira nos revelou que entre o fim do século XVII e o início do século XVIII os colonizadores deixaram de explorar apenas o litoral brasileiro, iniciando uma jornada rumo ao interior da colônia. Segundo Fausto (2011), após anos de investidas dos bandeirantes, rumo ao interior do Brasil, foram localizadas jazidas de minérios preciosos como ouro e diamantes, principalmente nas terras onde se encontra hoje o estado de Minas Gerais, atraindo muitos imigrantes portugueses para o Brasil. Este fato é confirmado por Hollanda (1997), no trecho abaixo: Esboçada no século anterior pela ocupação de quase todo o litoral, pelo devassamento dos sertões, e pela afirmação portuguesa nos extremos norte-oeste-sul, veremos a integração do território nacional praticamente concluída na primeira metade do século XVIII. Os bandeirantes transformaram-se em mineradores e fundam arraiais, logo engrossados por toda casta de gente. Povoa-se a faixa central de Minas-Goiás-Cuiabá, e delineia-se a fronteira do Mato Grosso (HOLLANDA, 1997, p.27) Este fato corroborou para uma mudança social, econômica e política do país. Teve início um movimento para que a cidade do Rio de Janeiro fosse transformada no centro social, econômico e político da colônia, fato que ocorreu mais tarde em 1763, com a mudança da capital de Salvador para esta cidade. Em 1710, o Rio de Janeiro contava então 12000 habitantes. Comprimia-se entre o mar e a Vala, que passava por onde hoje é a Rua Uruguaiana. Guarnição: dois regimentos (terço velho e terço novo, 590 soldados); mais o terço da Colônia do Sacramento, 300 homens. Milícias (regimento da nobreza), 550 homens. Dois regimentos de ordenanças: 780. Uma companhia de moedeiros (50 empregados da casa da Moeda). E 400 soldados da Marinha (HOLLANDA, 1977, p.32) A invasão francesa comandada por João Francisco Duclerc em 1710, sucedida de seu assassinato enquanto fora prisioneiro, acarretou uma revolta dos franceses e o envio de tropas reforçadas em 1711 sob o comando de René Duguay- Trouin. O Rio de Janeiro sofreu uma derrota com a fuga das tropas brasileiras e do governador. Ocorreram mortes de civis brasileiros, inclusive crianças. A cidade foi saqueada e o governo local teve que pagar em dinheiro e suprimentos para que os franceses deixassem as terras um mês e meio depois da investida, segundo Hollanda (1997). 36 A invasão de Duclerc “motivara providências de defesa, que – mandava o governo de Lisboa – deviam ser custeados por novos tributos” (HOLLANDA, 1977, p.32). Estes tributos motivaram as revoltas populares. Segundo Fausto (2011), no aspecto social, o deslocamento da população para o interior em busca de riquezas e o posterior aumento da tributação acarretou, no final do século XVIII, em muitos movimentos contra a dominação portuguesa e uma abertura de ideias e pensamentos. O rápido crescimento dos centros urbanos nas regiões das minas tornou a sociedade mais aberta, não se fecha no esquema estratificado de senhor e escravo, oferecendo perspectivas para segmentos médios – comerciantes, artífices, funcionários, além de marginais em profusão, como aventureiros de todo o tipo, à espera de oportunidade para qualquer negócio, jogadores, vadios e prostitutas (IGLÉSIAS, 1993, p.63). No aspecto econômico, a Inglaterra que se tornou uma potência mundial, desinteressou-se pelo comércio escravo para o Brasil. Começou a ocorrer uma abertura econômica, principalmente de comércio e ideais de abertura de portos que somente se concretizou em 1808. O Brasil serviu como fonte de riquezas para Portugal, com a mineração em alta e a produção do açúcar que andara em tempos de crise. Segundo Iglésias (1993), politicamente a colônia brasileira esteve sob o comando da dinastia Brigantina durante o século XVIII, a saber, Portugal teve como governantes D. Pedro II (1683-1706), D. João V (1706-1750), D. José I (1750-1777) e D. Maria I (1777-1816 – Regência do Príncipe D. João entre 1791 e 1799). Os chefes de estado na colônia eram os governadores gerais que, a partir de 1708, receberam o título de vice-reis. A partir do governo de D. José I (1750-1777) muitas mudanças ocorreram em Portugal e consequentemente no Brasil em virtude da nomeação do seu primeiro ministro Sebastião José de Carvalho e Mello – o Marquês de Pombal. Ele introduziu novas ideias no governo português, alavancando a modernização do país. Entretanto, no final do século XVIII o panorama do Brasil era de crise econômica, com a desarticulação provocada pelo declínio da economia mineradora e não compensada plenamente pela expansão de outros produtos. Crise política, com insatisfação contra o absolutismo, manifestada em várias capitanias pela elite proprietária que se sentia excluída do processo decisório colonial. Crise administrativa, com a organização do Império questionada por sua própria burocracia (WEHLING & WEHLING, 1999, p.336). 37 Dentro desse contexto havia uma preocupação do governo português em defender a colônia de possíveis ataques estrangeiros. Esta preocupação é revelada por meio das diversas ações para a formação de oficiais engenheiros do exército, principalmente na área de fortificações e artilharia. Baseado na seguinte afirmação de Nicioli Jr. & Mattos (2007, p.7) “as Academias Militares são as grandes precursoras das ciências exatas no Brasil”, buscamos no ensino das engenharias militares os primórdios do ensino de física no Brasil. Segundo Telles (1997), a engenharia no Brasil começou no tempo colonial, quando atuaram principalmente dois tipos de profissionais, os engenheiros-militares e os chamados mestres de risco. Os engenheiros-militares a princípio quase todos os portugueses, mas no final do período já muitos brasileiros além das obras de fortificação e de levantamentos estratégicos realizaram também muitas obras de construção predial, estradas, pontes, etc. os mestres de risco eram artífices legalmente licenciados para projetar e construir, mas sem nenhum curso regular de formação, tendo sido entretanto os autores da maioria das construções coloniais, inclusive grandes e belas igrejas (TELLES, 1997, p.117). No período colonial não havia legislação educacional vigente para o ensino superior (ARAUJO e VIANNA, 2010). A criação de instituições estava relacionada com as necessidades econômicas da colônia e ocorriam mediante determinações do governo colonial por meio de decretos. Segundo Nunes (1858), no ano de 1699 foi criada, na cidade do Rio de Janeiro, uma aula de fortificação. O nome do primeiro lente1 foi ignorado neste documento por ser desconhecido do autor, mas o segundo lente foi José Fernandes Pinto Alpoim. Sucederam-no os lentes Euzébio Antônio Ribeiras, Antônio Joaquim de Oliveira, e José de Oliveira Barbosa. Em 1793 foi estabelecido no Rio de Janeiro um curso militar cujas disciplinas ensinadas eram: fortificação de Mr. de Bitond (lente: Antônio Lopes de Barros), geometria prática de Mr. Belidor (lente: Albino dos Santos Pereira), aritmética de Bezout (lente: Francisco Antônio da Silva), desenho de Buchett (lente: Aureliano de Sousa), francês (lente: José Caetano de Araújo) e primeiras letras (lente: José Alvaro Marques). Segundo Tavares (1983), em meados de 1700 a engenharia no Brasil era exclusivamente militar e as indústrias militares precederam as civis, pois a Metrópole Portuguesa cerceava qualquer iniciativa de autonomia econômica e priorizava a 1 A palavra lente era sinônima da palavra professor na língua portuguesa utilizada na época. 38 defesa da colônia. O ensino militar teve início com as Aulas de Artilharia em 1698, e em 1705 uma Carta Régia previa que, havendo capitães e sargento-mores engenheiros disponíveis, estes deveriam ser obrigados a ensinar a quem quisesse aprender engenharia militar. O primeiro centro de ensino militar foi criado no Rio de Janeiro por ordem Régia, em 1738, com um curso de cinco anos de duração denominado Terço de Artilharia (AMATI, 2010). O diretor do curso era o Major José Fernandes Pinto Alpoim, autor dos livros Exame de Artilheiro e Exame de Bombeiro, este último com dez tratados de matemática aplicada à artilharia. Em 1774, este curso passou a abranger o ensino de arquitetura militar, com base no livro La science dês Ingenieurs, do autor Bellidor. Segundo Nicioli Jr. & Mattos (2007) os avanços tecnológicos na área bélica estavam nas mãos do ensino ministrado pelas chamadas Aulas de Artilharia e Fortificações que deram origem ao engenheiro moderno, cujo objetivo seria ter três características em seu ofício: rapidez, solidez e economia. Inicialmente, os cursos militares sempre tiveram todas as disciplinas de cunho científico, contrariando a tendência educacional humanística da época. Até o quarto ano a grade curricular era dominada por disciplinas de Matemática (aritmética, álgebra, geometria e trigonometria) e Física (mecânica, ótica, astronomia, geodésia e física experimental), as quais serviam de preparação para as disciplinas de caráter militar, que eram ministradas a partir do quinto ano (NICIOLI JR. & MATTOS, 2007, p.7). Em 1772 ocorreu a reforma da Universidade de Coimbra, em Portugal, promovida pelo Marquês de Pombal e foi feita «a partir de fora» pelo entendimento que o Marquês tinha de que a universidade, entregue ao corporativismo dos lentes (como hoje diríamos), nunca se reformaria por si só. As universidades criam inércias como quaisquer outras instituições e, para além disso, são dotadas de um valor social – ligado à produção de conhecimento – que facilmente sobrepuja o valor real (em termos de produção e de produtividade) do conhecimento efetivamente produzido por alguns dos universitários (SANTOS, 2005, p.10). Como reflexo da reforma, em 1792 foi criada no Rio de Janeiro, a Real Academia de Artilharia Fortificação e Desenho. Bento (1994) afirmou que tal academia foi fundada em 17 de dezembro de 1792 com sede na Casa do Trem, na cidade do Rio de Janeiro, com o objetivo de formar oficiais de infantaria, cavalaria, artilharia e engenheiros. Segundo o autor, a academia foi a pioneira em ensino militar acadêmico nas Américas e pioneira no ensino superior civil no Brasil, sendo 39 convertida em 1810 na Academia Real Militar do Rio de Janeiro. Segundo Telles (1997), a implantação desta modalidade de ensino teve motivação política, pois era necessário proteger as fronteiras da colônia. A Real Academia de Artilharia, Fortificação e Desenho destinava-se a formar oficiais de todas as Armas e engenheiros para o Brasil-Colônia. Esta Academia contava com seis professores, dois lentes e quatro substitutos. Nela, os oficiais destinados à Infantaria e à Cavalaria, cursavam três anos; os Artilheiros, cinco anos. E os destinados à Engenharia, seis anos, no último dos quais eram lecionadas as cadeiras de Arquitetura Civil, Materiais de Construção, Caminhos e Calçadas, Hidráulica, Pontes, Canais, Diques e Comportas. Foi a primeira escola de Engenharia das Américas e a terceira do mundo (LUCENA, 2005, p.7). Telles (1997) relatou que a Academia pertencia ao Exército e destinava-se a formação de engenheiros e de oficiais do Exército, era um verdadeiro instituto de ensino superior, com uma organização comparável com os congêneres de sua época. A Academia tinha um curso matemático, em seis anos, sendo que somente os engenheiros faziam o curso completo. O último ano era inteiramente dedicado a assuntos profissionais da engenharia civil, como corte de pedras e de madeiras, orçamento de obras, conhecimento de materiais, hidráulica, construção de estradas, pontes, diques, canais, etc.(TELLES, 1997, p.1108) A Real Academia de Artilharia, Fortificações e Desenho do Brasil foi criada em 1792 com base na estrutura da academia homônima, criada dois anos antes em Portugal influenciada pela reforma da Universidade de Coimbra. Entretanto o curso da instituição da colônia tinha a duração de seis anos ao contrário do curso de Portugal que tinha duração de quatro anos. Não foram encontrados os estatutos da academia brasileira digitalizados, mas os estatutos originais digitalizados da Real Academia de Artilharia, Fortificações e Desenho de Portugal (D.MARIA I, 1790) foram encontrados. Nestes documentos observamos que o curso de tal instituição foi dividido em quatro anos de estudos. O primeiro ano dedicado ao estudo da Fortificação Regular, Ataque e Defesa das Praças, e os princípios fundamentais de qualquer fortificação. No segundo ano eram ensinadas Fortificação Irregular, a Fortificação Effectiva e a Fortificação de Campanha. No terceiro ano eram ensinadas Theorica da Artilharia, das Minas, e Contraminas, e sua aplicação ao ataque e defesa de Praças. No quarto ano era ensinada Arquitetura Civil, contendo os cortes das pedras e madeiras, do projeto e orçamento dos edifícios e tudo o mais relativo ao conhecimento dos materiais que entram na sua 40 composição, os melhores métodos para a construção dos caminhos e calçadas, a hidráulica e as demais partes que lhe são análogas, como a arquitetura das pontes, canais, portos, diques e comportas (D.MARIA I, 1790, p.579). Os oficiais de infantaria e cavalaria concluíam o curso no terceiro ano completo. Os engenheiros completariam o curso no quarto ano. Quanto ao ensino, os estatutos detalharam as atividades de campo a serem realizadas pelos professores de cada disciplina, denominados lentes. O lente do primeiro ano ensinará o uso dos Instrumentos pertencentes à Geometria prática; fará media distancias inaccessíveis, nivelar terrenos e tirar diversas plantas; como também construir trincheiras, fazer sappas, e tudo quanto puder praticar-se das materias que tiver explicado. (D.MARIA I, 1790, p.580). O lente do segundo ano fará tirar a planta de alguns terrenos próprios para se traçar o projeto de uma Fortificação irregular; ensinará a construir todos os diferentes Fortes e Reductos de Campanha; assim como a Castrametação, e tudo quanto puder praticar-se relativamente às materias que tiver tratado. (D.MARIA I, 1790, p.580). O lente do terceiro ano ensinará o manejo das bocas de fogo, que se usão na Artilharia; fará construir Baterias, e exercitará os Discípulos em tudo o que for susceptível de praticar-se. O lente do Desenho ensinará também a tirar huma planta sem Instrumento, configurando as differentes irregularidades do terreno, e fazendo aplicações das regras de Óptica e Perspectiva. (D.MARIA I, 1790, p.580). Segundo Ferreira (1989), no fim do século XVIII foram criadas aulas elementares de Aritmética, Geometria, Desenho e Francês em várias cidades da orla marítima brasileira e em algumas cidades do planalto e do sertão, com objetivo de instrução militar, reafirmando a preocupação do governo colonial na defesa militar da colônia. “Por esta época, - fim do século XVIII – tornou-se visível o desenvolvimento do ensino científico, que foi aos poucos progredindo, ao lado da educação literária” (FERREIRA, 1989, p.5). Foi através dos estabelecimentos de instrução militar e de medicina que o ensino na física foi introduzido entre nós. Embora de má qualidade e pouco atualizado, esse ensino começou a formar um pequeno grupo de pessoas familiarizadas com a matemática e com algum senso de experimentação. (FERRI & MOTOYAMA, 1979, p.68). 41 Em busca de informações sobre como ocorreu o ensino de física nesta instituição, não encontramos citações sobre a disciplina física, mas encontramos informações sobre conteúdos ensinados na instituição, que nos dias de hoje estão dentro do escopo de seus estudos. As principais publicações utilizadas na Real Academia de Artilharia, Fortificações e Desenho foram os livros Exame de Bombeiros e Exame de Artilheiros do autor José Fernandes Pinto Alpoim, ambos encontrados digitalizados na íntegra. Seguindo as indicações de Lorenz (1984), que propôs que sejam pesquisados os conteúdos dos livros de ciências utilizados no ensino superior brasileiro, analisamos o livro Exame de Bombeiros publicado em 1748 (ALPOIM, 1748) que aborda dez tratados, sendo: geometria, nova trigonometria, longemetria, altimetria, morteiros, morteiros pedreiros, obus, petardos, baterias de morteiros e fogos de artifício. Os dois primeiros tratados abordam a matemática necessária para as atribuições do oficial bombeiro. Diferentemente do que hoje entendemos por bombeiro, na época, esta palavra representava a figura de um especialista em artefatos bélicos. Na formação do bombeiro, questões como segurança e na utilização correta do armamento, assim como medir e ponderar corretamente quantidades de bombas, granadas e pólvora são também de extrema importância. (AMATI, 2010, p.28). O autor do livro definiu bombeiro como “soldado ciente, deftro, e experimentado, no manejo do Morteiro; obfervando as regras e preceitos da arte” (ALPOIM, 1748, p. 79) - observamos que a linguagem da época substituía a consoante s pela consoante f. A partir do terceiro tratado pudemos observar a física aplicada às atividades do oficial bombeiro. Intitulado longemetria, os estudos versaram sobre as medidas de distância e os instrumentos de medida. Como o próprio autor define Longemetria, he a arte, que enfina a medir toda a forte de diftancias, horizontaes, verticaes, acceffliveis, e inacceffliveis, por meio de alguma medida conhecida, como vara, paffo, palmo, ou outra qualquer, com inftrumento, ou fem elle, pratica ou trigonometricamente. (ALPOIM, 1748, p.106). Na introdução o autor definiu o que são as distâncias acessível, inacessível, vertical e horizontal. Citou alguns instrumentos de medida, entre eles o Círculo, o 42 Semicirculo Dimenforio e a Prancheta. Ressaltamos aqui um paralelo entre a física atual que trata desse assunto no início do curso, ao introduzir os estudos da mecânica. O texto do livro Exame de Bombeiros foi escrito na forma de perguntas e respostas retóricas. Na introdução o autor preocupou-se em definir o que são estações e bandeirolas, explicou como utilizar o semicírculo dimensório e como se deveria medir uma distância determinada e acessível por uma só parte (fig. 39, 40, 41 e 42 da figura 01 deste trabalho), bem como medir de cima de um monte uma distância vertical e horizontal inacessível (fig. 43 da figura 02 deste trabalho). Figura 01 – Medidas com o semicírculo dimensório (ALPOIM, 1748, p.82) Figura 02 – Medidas com o semicírculo dimensório (ALPOIM, 1748, p.83) O quarto tratado do livro estabeleceu estudos sobre Altimetria, que segundo ALPOIM (1748, p.69) “he a arte, que enfina a medir alturas, como fortificaçoens, cavalleiros, torres, cazas &c com inftrumento, ou fem elle, acceffiveis ou inacceffiveis”. Neste tratado o autor citou alguns exemplos de como medir a altura de uma torre a que nós não podemos chegar (fig. 44 da figura 02 deste trabalho), como medir a altura de uma torre sem instrumento (figu. 45, 46 e 47 da figura 02), como medir a altura de uma torre praticamente sem instrumento (fig. 48 da figura 02), como medir a altura de uma torre por meio da sombra (fig. 49 da figura 02) e por 43 fim, como medir sobre uma montanha a altura de uma torre ou praça sem que possa chegar ao pé da montanha (fig. 50 da figura 02). Na figura 03 está representado um instrumento utilizado em tais medições, denominado Esquadra dos Bombeiros ou Esquadra Diretora. Figura 03 – Esquadra Diretora (ALPOIM, 1748, p.80) No quinto tratado foram descritas as formas de alinhar um morteiro para o lançamento de projéteis bélicos, como prepará-los, como calcular a quantidade de pólvora a ser utilizada e os procedimentos para lançamento. Interessaram-nos neste tratado os estudos do alinhamento dos morteiros, pois utilizaram conhecimento que nos dias de hoje são escopo do ensino de física, sob o título de lançamento de projéteis ou balística. Observamos durante a leitura do texto e por meio das ilustrações presentes na figura 04 que os alunos aprendiam a calcular os ângulos de lançamento dos projéteis, para depois alinhá-los para o efetivo lançamento utilizando a Esquadra Diretora, conforme mostra a figura 05. 44 Figura 04 – Lançamento de Projéteis (ALPOIM, 1748, p.233) Figura 05 – Esquadra Diretora acoplada a um lançador de projéteis (ALPOIM, 1748, p.234). A figura 06 consta na obra Exame de Bombeiros e demonstra a relação entre os graus de elevação dos morteiros e o alcance obtido para o projétil. Estas relações fazem parte do escopo da física estudada nos dias de hoje, sendo reconhecida como a área da balística ou lançamento de projéteis. 45 Figura 06 – Relação entre os graus de elevação dos morteiros e o alcance obtido para o projétil (ALPOIM,1748, p.236). Nos sexto, sétimo, oitavo, nono e décimo tratados foram discutidos outros dispositivos de lançamentos de projéteis, a saber, respectivamente os morteiros pedreiros, os obus, os petardos, as baterias de morteiros e os fogos de artifício. Também foram discutidas as técnicas de manipulação de elementos químicos para a fabricação de pólvora e outras substâncias inflamáveis. Não foram encontrados dados relevantes que indicam uma relação com o ensino de física atual nestes tratados, pois são específicos para apresentar peças de artilharia. Outro livro utilizado na Real Academia de Artilharia, Fortificações e Desenho foi livro Exame de Artilheiros, publicado em 1744 e encontrado no formato digitalizado (ALPOIM, 1744), que aborda três tratados, sendo eles: aritmética, geometria e artilharia. 46 O livro foi escrito por meio de perguntas e respostas retóricas. No primeiro tratado, o de aritmética, o autor discutiu os principais cálculos necessários para o desempenho da função de artilheiro. No segundo tratado denominado geometria, o autor discutiu os principais conceitos da geometria, bem como a utilização dos principais instrumentos para a construção de figuras planas, como o compasso por exemplo. No terceiro tratado denominado artilharia, o autor iniciou definindo a função do artilheiro que é “hum foldado deftro, experimentado no manejo da artilharia, que actualmente fe occupa no feu minifterio, obfervando as regras, e preceitos da arte. O artilheiro deve faber abfolutamente ler, efcrever e contar muito bem.” (ALPOIM, 1744, p.59). Este tratado descreveu como deve ser feito o manuseio do armamento de fogo, a carga de pólvora, o tipo de munição a ser utilizado, o modo de empilhamento de projéteis no solo. Encontramos nesta fonte evidências do ensino de assuntos que nos dias de hoje são escopo do ensino de física, porém trata-se de um ensino prático, sem explicações sobre os conceitos da física. Tomamos como um exemplo o excerto a seguir: “P. Porque faõ as peças mais groffas na culatra, e bocal? R. Porque fofrem mayor força de polvora inflamada, e no bocal, porque o chófre da bala contra o ar o quebraria facilmente senaõ foffe groffo” (ALPOIM, 1744, p.81). Neste trecho o autor explicou o motivo pelo qual os artefatos de lançamento de projeteis são mais espessos na região da culatra e do bocal, pois recebem uma força maior no momento do disparo. Não se trata de uma discussão do conceito de força, mas uma aplicação deste conceito na prática de um artilheiro. Consideramos esta citação como componente do ensino de física nesta instituição. Entretanto observamos que os dados contidos nesta fonte foram obtidos por testes práticos e não por previsões teóricas, diferentemente do que ocorre no livro Exame de Bombeiros (ALPOIM, 1748) do mesmo autor. Como por exemplo, a quantidade de pólvora utilizada para determinados artefatos foram definidas por meio de testes práticos, pois o autor não apresenta os cálculos. O autor relatou que para um determinado artefato deve-se utilizar uma determinada quantidade de pólvora, mas não demonstra através de nenhum cálculo como obteve tal quantidade, revelando o ensino de cunho prático. Observamos esta conduta ao longo de todo o terceiro tratado sobre artilharia. Reunindo todas as informações de fontes primárias e secundárias, respondemos às questões da ficha episódica desta instituição. 47 Ficha episódica 01 - Real Academia de Artilharia, Fortificação e Desenho (1792) Instituição de Ensino: Real Academia de Artilharia, Fortificação e Desenho (1792) I) Estrutura dos documentos: Cenário: Rio de Janeiro. Instituição mantida pelo governo imperial. Foi criada para formar engenheiros militares e civis. II) Convenções dos documentos: a) O que se entendia por física nesta instituição e como era denominada esta área do conhecimento? Não existia a disciplina denominada física, porém observamos nos documentos analisados que eram ensinados conteúdos do escopo da física dos dias de hoje. A física ensinada era de cunho prático, visando a formação de oficiais combatentes que teriam prioridade na defesa da colônia e também colaborariam para a construção civil. b) Qual era o perfil dos alunos desta instituição? Poderiam se matricular no curso quaisquer interessados. Não foram encontrados dados sobre o número de matriculas e número de alunos formados pela instituição.