UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE E HISTÓRIA, DIREITO E SERVIÇO SOCIAL LUCAS APARECIDO COSTA A ESQUERDIZAÇÃO DO CATOLICISMO NO BRASIL: Uma tentativa de modernidade nas práticas sociais da Igreja para o povo (1961-1964). FRANCA 2006 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE E HISTÓRIA, DIREITO E SERVIÇO SOCIAL LUCAS APARECIDO COSTA A ESQUERDIZAÇÃO DO CATOLICISMO NO BRASIL: Uma tentativa de modernidade nas práticas sociais da Igreja para o povo (1961-1964). Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação da Faculdade de História, Direito e Serviço Social da Universidade Estadual Paulista – Campus de Franca como requisito parcial para a obtenção do Título de Mestre em História. Área de concentração: História e Cultura Social. Orientador: Prof. Dr. Ivan Aparecido Manoel. FRANCA 2006 FOLHA DE APROVAÇÃO: BANCA EXAMINADORA: Prof. Dr. Ivan Aparecido Manoel (presidente): ________________________________________ 1° Examinador (a): ______________________________________________________________ 2° Examinador (a): ______________________________________________________________ Aos meus pais, João e Corina, com muito amor. Agradecimentos: A Deus por tudo. Primeiramente agradeço à minha família – o alicerce do meu desenvolvimento. À minha mãe devo tudo que sou: obrigado pelas orações, pela paciência, apoio irrestrito, e pelo amor incondicional; o resultado dessa etapa concluída é sinal que seus sábios conselhos foram ouvidos (esta vitória é sua! – Desculpa pelos maus momentos); A meu pai agradeço o respeito e a paciência durante estes longos anos – às vezes acabo não retribuindo tanta dedicação de vocês! Às minhas irmãs: Elaine, pelo seu jeito doce – sempre pronta para ouvir minhas lamentações; e à Tatiana por sua personalidade forte – muito segura em seus conselhos. Peço desculpas a todos vocês por ter ficado tanto tempo ausente, e pelos constantes momentos de mau-humor. Ao meu tio José dos Reis Costa agradeço por ter me acompanhado durante as infindáveis viagens que fiz a São Paulo, sempre pronto a me ajudar, e também, pela torcida para que tudo desse certo. Ao professor, e orientador desta pesquisa, Ivan Aparecido Manoel – referencial na área de História da Igreja – meus sinceros agradecimentos, se não fosse sua paciência e confiança não teria concluído este trabalho. Agradeço por ter acompanhado esta pesquisa desde os seus primeiros passos, que foram dados no final do segundo ano da graduação, em 2000. Não poderia esquecer do respeito e incentivo contínuos, prestado à minha pessoa durante todos estes anos. Aos professores Pedro Geraldo Tosi e Lélio Rodrigues pelas sugestões valiosas durante o Exame de Qualificação; na medida do possível foram incluídas. Aos funcionários da UNESP-Franca que, de diversas maneiras, puderam me prestar auxílio: Ana Cláudia, Enide, Fred, Juliana, Laura, Lourdes, Maísa, Mariângela, Márcio (obrigado pela formatação do texto), e Raquel. Aos professores da graduação – em especial à Denise A. S. Moura pelo incentivo A Eunice, bibliotecária da Biblioteca de Pesquisas Religiosas. Aos funcionários do CEDIC-PUC. À Silvia Cristina da Biblioteca do Convento dos Dominicanos. Ao Hermes pela correção impecável, pelas dicas a respeito da forma de se materializar o pensamento, e pela paciência. Essa pesquisa não seria levada a cabo sem o apoio financeiro de duas instituições de fomento à pesquisa: a CAPES e o Programa Bolsa Mestrado da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo. Faço público meus agradecimentos às duas instituições. A Isabel Parolim e ao Mário Zanca – sem vocês a última viagem a São Paulo não seria possível! Às diretoras da Escola Queiroz Filho, em Leme: Flávia Terossi Dias e Maria Inês Ferreira Vindilino, obrigado por tanta compreensão, apoio e confiança; e à Márcia (secretária) sempre pronta a tirar minhas dúvidas. A todos os meus alunos por terem compreendido a minha ausência. Aos amigos que conquistei na cidade de Leme: Antônio, Bel, Lia Raquel, Mário Ao casal Flávia e Douglas Dias por terem me recebido em sua casa. À drª. Ana Márcia V. P. Rodrigues pela compreensão – de suma importância para o processo da finalização da escrita do trabalho. À Rogéria – mesmo distante sei que torces por mim. Aos amigos que durante a minha vida acadêmica de algum modo fizeram parte dela: Adriana, Alcyr, André, Antônio Matheus, Cacilda, Carol, Cássia, Daniela, Dante, Débora, Denise, Duílio, Everton, Fabiane, Gisele, Igor, Lucas Antônio, Marcelo, Marcos, Minisa, Nainôra, Rejane, Rogério, Tarlei, Thatiana, Valdir e Wellington – obrigado pela força! A todos vocês minha eterna gratidão. 10 RESUMO O objetivo deste trabalho é analisar a dinâmica da tentativa de modernidade no interior do movimento social e semanário Brasil, Urgente (1961-1964). Para que essa proposta fosse levada a cabo, percorremos as seguintes etapas: a) buscamos delimitar, num primeiro momento, as raízes históricas da tentativa de modernidade no Brasil, considerando o contexto maior abrangido por esse processo histórico e o desenvolvimento – na Igreja – de uma Doutrina Social que buscou interpretar alguns valores enfatizados por uma das matrizes da tentativa de modernidade – como, por exemplo, a valorização dos direitos inalienáveis do homem e do cidadão, a democracia, a luta pela igualdade social, o socialismo, o comunismo, entre outros. Assim, a sugestão na primeira parte da pesquisa se resume a estudar as bases de uma, grosso modo, modernidade pretendida pela Igreja Católica (fazemos alusão ao seu mundo clerical, sobretudo a fração dominante, cujo representante máximo é o pontífice); b) Seguidamente, intentamos evidenciar que as interpretações dos leigos a respeito da modernidade pretendida pela Igreja foram as mais diversas possíveis. Para demonstrar essa diferença – entre a posição oficial da instituição eclesiástica e a atitude dos leigos – escolhemos historiar a parte do laicato católico que radicalizou as propostas do ensino social da Igreja – num fenômeno também intitulado de esquerdização. Dentre as manifestações desse grupo de cristãos – numericamente pequeno, porém muito influente –, delimitamos como fonte de estudo o já citado Brasil, Urgente; c) O resultado direto desse movimento social foi a criação, em 1963, de um semanário de circulação nacional (que levava o mesmo nome do movimento); d) por meio da análise dos artigos e reportagens publicados nas páginas combativas desse jornal, pretendemos verificar qual o formato assumido (num periódico de cristãos) pelo movimento da tentativa de modernidade, considerando que a dinâmica desse processo seguiu um caminho muito particular, oposto ao pretendido pela fração dominante do campo religioso, sobretudo por ter ultrapassado o limite da aceitabilidade da Igreja em relação a alguns valores modernos; e) para trabalhar as questões levantadas pelo presente trabalho utilizamos os conceitos de campo e habitus vindos da teoria sociológica da prática de Pierre Bourdieu, e a perspectiva da Historia Oral de autores como Philippe Joutard, Janaína Amado; Maria A. Aquino e Marieta Ferreira. Palavras-chave: Tentativa de modernidade; Brasil, Urgente (1961-1964); Igreja para o povo, esquerdização do catolicismo brasileiro; Igreja Católica, Doutrina Social da Igreja. 11 Abstract: ABSTRACT The objective of this work is to analyze the dynamics of the “modernity attempt” inside the social movement and weekly publication “Brazil, Urgent” (1961-1964). So that this proposal was carried out, we went through the following stages: the) we tried to delimit, in a first moment, the historical roots of the” modernity attempt” in Brazil, considering the larger context included by that historical process and the development - in the Church - of a Social Doctrine that attempted to interpret some values emphasized by one of the basis of the “modernity attempt” - as, for instance, the valorization of the man's and the citizen’s inalienable rights, the democracy, the fight for the social equality, the socialism, the communism, among others. This way, the suggestion in the first part of the research is to study the bases of a “modernity” intended by the Catholic Church (we refer to its clerical world, above all the dominant fraction, whose maximum representative is the pope); b) Continuously, we attempted to evidence that the interpretations of the lay ones regarding the “modernity” intended by the Church were as varied as possible. In order to demonstrate that difference - between the official position of the ecclesiastical institution and the attitude of the lay ones - we chose to recount the part of the Catholic laicato that radicalized the proposals of the social teaching of the Church - in a phenomenon also entitled of “left-winging”. Among the manifestations of that group of Christians – numerically small, however very influential -, we delimited as study source the already mentioned “Brazil, Urgent”; c) The direct result of that social movement was the creation, in 1963, of a weekly publication of national circulation (that took the same name of the movement); d) through the analysis of the articles and reports published in the combative pages of that newspaper, we intended to verify which was the assumed format (in a newspaper of “Christians”) for the movement of the” modernity attempt”, considering that the dynamics of that process followed a very particular way, opposite to the intended by the dominant fraction of the religious field, above all for having crossed the limit of the acceptability of the Church in relation to some modern values; e) to work the subjects aroused by the present work we used the concepts of “field” and “habitus” from the sociological theory of Pierre Bourdieu practice, and the perspective of the Oral History by authors as Philippe Joutard, Janaína Amado; Maria A. Aquino and Marieta Ferreira. Key-words: “Modernity attempt”; Brazil, Urgent (1961-1964); Church for the people, left- winging of the Brazilian Catholicism; Catholic Church, Social Doctrine of the Church. 12 SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO.........................................................................................................................14 2 As Raízes de um processo: considerações históricas, teóricas e metodológicas..........................................................................................................31 2.1 A política da Igreja para si.......................................................................................................31 2.2 A prática justificada..................................................................................................................43 2.3 Igreja para o povo: aportes metodológicos e contexto de formação.......................................51 3 As encíclicas sociais de João XXIII...................................................................60 3.1 Contexto histórico de publicação.............................................................................................60 3.2 Uma tentativa de modernidade? ..............................................................................................66 3.3 Ensino Social de João XXIII: A proposta da Igreja.................................................................76 4 A proposta dos cristãos: O movimento social e semanário Brasil, Urgente (1961-1964)..............................................................................................................92 4.1 O movimento social Brasil, Urgente em seu contexto.............................................................92 4.2 A trajetória do hebdomadário Brasil, Urgente.......................................................................108 5 Doutrina Social da Igreja: evolução e aplicação prática..............................122 5.1 Brasil, Urgente: da tradição à tentativa de modernidade.......................................................122 5.2 Todo erro traz em si uma parte de verdade............................................................................134 5.3 Cristãos e marxistas: uma ação comum..................................................................................134 5.4 O ABC Social Cristão: uma proposta cristã de sociedade:.....................................................157 6 Uma tentativa de modernidade: entre duas concepções de prática engajada:...............................................................................................................172 6.1 A palavra de alguns dos seus diretores...................................................................................172 13 6.2 Brasil, Urgente: A conjunção das matrizes da tentativa de modernidade.............................192 6.2.1 Exaltação ao pontificado de João XXIII: Igreja “serva e pobre”........................................192 6.2.2 Em defesa de Brasil, Urgente: o cristianismo social também se define por meio da luta................................................................................................................................................200 6.3 Por um cristianismo social.....................................................................................................205 7 Considerações Finais..............................................................................................................213 Referências..................................................................................................................................219 ANEXOS ....................................................................................................................................234 ANEXO A....................................................................................................................................234 ANEXO B...................................................................................................................................257 ANEXO C....................................................................................................................................261 14 1 INTRODUÇÃO Os debates historiográficos sobre a história da Igreja Católica no Brasil – no período anterior ao golpe de 1964 – evidenciam1 que, inicialmente, os estudos foram realizados majoritariamente por estrangeiros. Isto se deveu à política de bolsas implementadas pelo governo estadunidense (e também pelo canadense) para que diversos profissionais da área das ciências sociais – docentes e estudantes – viessem, não somente ao Brasil, mas a vários outros países da América Latina, estudar suas realidades2. Uma análise externa dos fatos não representa um entrave, “[...] pois uma visão externa pode desvelar elementos que, por tão óbvios na vida cotidiana, passam desapercebidos em sua significação particular [...]”.3 Todavia, se determinado tipo de corrente historiográfica se torna a única dominante, seus equívocos acabam, também, seguindo o mesmo trajeto. De acordo com Gómez de Souza, determinadas carências teóricas – advindas de estudos precipitados sobre a complexa rede de relações sociais na qual a Igreja está envolvida – passaram a ser reproduzidas por diversos cientistas sociais que fizeram da Igreja seu campo privilegiado de estudo. Partilhando da mesma opinião defendida por Gómez de Souza, mencionamos, outrossim, a pesquisa do canadense Thomas Bruneau. Grande parte das afirmações deste autor – em seu estudo sobre as causas das transformações pelas quais passou o catolicismo brasileiro da segunda metade do século XX4 – se fundamenta numa análise que atribui a mudança ocorrida na Igreja (posterior aos anos de 1950) à simples busca de manutenção da sua influência na sociedade, como a melhor forma de se articular ao mundo moderno. Ainda que essas considerações tragam relevantes contribuições, hodiernamente irrefutáveis, há um exacerbado indiferentismo acerca da figura da Igreja como comunidade de fiéis – que ganha grande impulso a partir de 1960 –, com privilégio, portanto, desta entidade em sua vertente institucional.5 Em solo brasileiro, reforçando 1 Essa afirmação, de autoria de Luiz A.G. de Souza, orientou grande parte das nossas considerações; com base em seus estudos, fomos direcionando a leitura e seleção da bibliografia, e ao mesmo tempo, as fontes documentais e orais. Para informações mais detalhadas, veja: GÓMEZ DE SOUZA, Luiz Alberto. A JUC: os estudantes católicos e a política. Petrópolis: Vozes, 1984, pp. 15-21. 2 Ibid., p.15. 3 Ibid., p. 15. 4BRUNEAU, Thomas. O catolicismo brasileiro em época de transição. São Paulo: Edições Loyola, 1974, p.06. 5 Não obstante as considerações de Bruneau se remeterem à Igreja institucional, não há definições precisas do que ele entende por Instituição Eclesiástica – seria o Ensino Oficial emanado das Encíclicas Papais? Ou a fala dos principais Bispos brasileiros? Nas páginas de número 33 e 40 do livro citado em nota anterior, é possível compreender o que 15 a análise de Gómez de Souza, Márcio Moreira Alves, utilizando-se dos mesmos métodos empregados por Bruneau, foi mais longe do que o canadense ao apreciar o caráter da Igreja apenas pelo seu viés institucional: Os que baseiam suas esperanças em uma profunda transformação do regime político e social do Brasil na mobilização militante da Igreja Católica enganam-se redondamente. Alguns setores da Igreja poderão contribuir para essas transformações. A Igreja poderá adaptar-se a uma sociedade transformada. Mas ela não estará na vanguarda das lutas necessárias para a realizar. Não há atalhos para revolução. Os que passam pela sacristia não vão mais longe do que qualquer outro.6 Nessa mesma corrente se encontra Roberto Romano. Este autor analisou o conteúdo doutrinário da Igreja Católica (a Igreja em seu mundo clerical), chegando a concluir, que da sua opção pelo Estado (Igreja para si) à opção pelos pobres na década de 1970, a mudança do discurso eclesial foi apenas tática e instrumental, conservando o seu esquema de doutrinação reacionária, disfarçada em propostas reformistas. Ou seja, o autor parte da suposição de que tais mudanças, que acabaram por justificar uma participação maior do leigo na vida política, deveriam vir acompanhadas de uma radical mudança teológica.7 As deduções de Romano, longe de duvidar do seu mérito, tornam difíceis novas abordagens, especialmente quando se pretende analisar a ação social desenvolvida pelos movimentos de cristãos, pois chegaríamos, com base em suas idéias, à conclusão de um idealismo ingênuo da Esquerda Cristã, vista como ludíbrio da Hierarquia Católica. Suas observações indicam a continuidade do discurso reacionário da Igreja, contudo perdem de vista uma parte do mundo católico – façamos referência à importância do apostolado leigo – que, suficientemente dotada de capitais, forçou mudanças significativas, sobretudo verificadas no envolvimento da Igreja em questões sociais. Gómez de Souza nos informa que tais problemas interpretativos decorrem dos estudos baseados nas categorias da sociologia norte-americana [os quais] se integram nos marcos teóricos, [...] que não vai mais além da modernização das estruturas do sistema capitalista vigente. Daí a importância dada às reformas parciais, a confusão entre reforma e revolução e a indeterminação das forças sociais, algumas das quais com real capacidade para questionar o sistema absoluto.8 sustentamos, especialmente quando o autor faz comentários acerca da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos Brasileiros) e da influência da Igreja nos meios de comunicação. 6ALVES, Márcio Moreira. A Igreja e a política no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1979, p.259. O autor em seu livro, à maneira de um estudo geral da História da Igreja no século XX, não desprezou a atuação dos leigos, por ele identificados como figurantes; contudo o autor não interpretou a ação dos leigos, a partir do esforço por validar a mensagem cristã, via Igreja Católica, como uma força social de libertação tão válida quanto o socialismo. 7ROMANO, Roberto. Brasil: Igreja contra Estado (crítica ao populismo católico). São Paulo: Kairós, 1979, passim. 8 GÓMEZ DE SOUZA, op.cit., p.19. (o grifo é nosso). 16 O outro grande eixo tem como principal referencial Luiz Gonzaga de Souza Lima, que trabalhou a história da Igreja a partir da idéia de espaço social católico9 dividido em “três níveis de institucionalização”: clerical, obras eclesiásticas e leigos. Para Souza Lima, os fatos que deram base à formação da esquerda – no período que abrange de 1950 até finais da década de 1960 – evidenciaram a ação combinada dos três níveis em volta de um mesmo objetivo, percorrendo, obviamente, caminhos diferentes. Nessa dinâmica, segundo o autor, a Igreja, de uma concepção conservadora, passou a uma concepção reformadora. A análise de Souza Lima, ao contrário do que pode sugerir uma análise apressada, não encerra parcialidades, pois não deixa de expor abertamente o caráter populista da Igreja, entre a concepção reacionária de mundo e uma orientação teológico-libertadora, que deu seus primeiros passos num período anterior à década de 1970. Giovanni Semeraro, em seu estudo sobre os movimentos de cristãos universitários na política, completando o percurso trilhado por Souza Lima, deu grande relevo às práticas sociais do período de 1960-1964, priorizando, em seu diagnóstico, a Igreja como comunidade de fiéis. Para ele, o Concílio Vaticano II (1962-1965) desenvolveu – o que interpretamos como uma legitimação – a noção da Igreja como povo de Deus,10 indo ao encontro das exigências desse novo tipo de catolicismo. Ambos os escritores citados convergem para as idéias de Gómez de Souza – mencionado exaustivamente em nossa introdução –, as quais ponderam a imprescindibilidade da delimitação do conteúdo a ser estudado dentro do universo da história da Igreja: “[...] a determinação dos diferentes grupos sociais em questão torna-se absolutamente indispensável [...]”.11 Ao mesmo tempo, é deveras importante ressaltar os trabalhos específicos sobre o Brasil, Urgente. Assim, destacamos primeiramente o livro de Paulo Cézar Loureiro Botas – A benção de abril. “Brasil, Urgente”: Memória e engajamento católico no Brasil 1963-64. Botas teve por objetivo sistematizar a evolução político-ideológica do jornal Brasil, Urgente no decurso da sua existência, entre março de 1963 e abril de 1964. Para tanto, o autor empreendeu uma análise com vistas a apresentar a importância desse jornal no contexto de ampla mobilização das forças 9 SOUZA LIMA, Luiz Gonzaga de. Evolução política dos católicos e da Igreja no Brasil: hipóteses para uma interpretação. Petrópolis: Vozes, 1979, p.11. 10 SEMERARO, Giovanni. A primavera dos anos 60. A geração de Betinho. São Paulo: Edições Loyola, 1994, p.38. Essa noção de Igreja como povo de Deus é identificada por nós como Igreja para o povo. Acreditamos ser mais adequado o uso da expressão em itálico, já que o conteúdo semântico, nos limites de uma dissertação de Mestrado, será esboçado devidamente. 11 GÓMEZ DE SOUZA, op. cit., p.20. 17 populares na década de 196012. Desde seu nascimento, segundo Botas, o jornal se posicionou favorável à política nacional-reformista de João Goulart e contra o tradicionalismo dos meios políticos: “[...] o jornal catalisava o interesse dos militantes católicos e se tornava o alvo preferido dos ataques de católicos conservadores e políticos reacionários [...]”.13 Nesse sentido, o semanário atuou em comunhão com os demais movimentos progressistas que buscavam atingir seus objetivos por meio da pressão popular. Botas articulou, outrossim, a existência do Brasil, Urgente ao amplo processo de luta para que o exemplo de Cuba não se alastrasse pela América Latina. Sua análise do jornal, pautada na atuação de Frei Carlos Josaphat, está dividida em três partes. Na primeira parte – que abrange da edição número 1 de Brasil, Urgente até a de número 24 –, tem-se o esboço do quadro geral da política brasileira, por meio da própria visão do jornal. Na segunda parte – da edição número 25 a 40 –, Botas procurou evidenciar os primeiros choques do jornal com a hierarquia eclesiástica e os limites de sua atuação, advindos da orientação radicalizante, influenciada pelo socialismo da AP (Ação Popular). Ainda nesse item, enfatizou-se a busca do jornal, nos textos pontifícios de João XXIII, de uma solução alternativa via socialismo. A terceira parte – da edição número 41 até a 55 – apresentou a luta do semanário no plano ideológico, orientado pelo conceito de Revolução Cristã. Segundo o autor, o plano da Igreja para desestabilizar a atuação teológico-política de Brasil, Urgente não surtiu o efeito desejado; sua linha de compromisso social-cristão, orientada pelos trabalhos de Josaphat, continuou a ser seguida, mesmo após, o exílio do frei, ocorrido no final de 1963 .14 Botas asseverou que a proposta do hebdomadário não foi além de uma “[...] humanização das estruturas capitalistas [...]”,15 cujo vértice apontava para a correção dos abusos do sistema, sendo as Reformas de Base – pretendidas por João Goulart e apoiadas por vários grupos da esquerda – a medida ideal para se instaurar a harmonia social. Ao mesmo tempo, observou o autor, o desenvolvimento da tendência dominante na reflexão social da Igreja, que procurou “[...] igualar, nas mesmas proporções, o capitalismo e o marxismo [...]”.16 12BOTAS, Paulo Cézar Loureiro. A benção de abril. Brasil, Urgente: Memória e engajamento católico no Brasil 1963-1964. Petrópolis: Vozes, 1983, p. 17. 13 Ibid., p. 17. 14 Ibid., pp. 22-24. 15Ibid., p. 58. 16Ibid., p. 59. 18 Malgrado a efêmera história do semanário, bem como o fato de sua orientação ter se assentado numa vertente católico-cristã, os assuntos divulgados em suas páginas eram variados; não sendo, portanto, aconselhável trabalhá-los como se fossem um todo coeso, porquanto a análise não se aprofundaria em tema algum – mesmo que apresentássemos grande quantidade de informações e peculiaridades atinentes à nossa fonte documental. Do mesmo modo, não se pode simplesmente afirmar que o pensamento de Brasil, Urgente era o da Ação Popular. As diferenças já se faziam notar entre a opção socialista (ainda idealista e vaga da AP) e a luta dos demais cristãos, justificada mediante uma releitura do cristianismo primitivo.17 Observando outras pesquisas, também acadêmicas,18 sobre Brasil, Urgente, destacamos duas abordagens.19 A primeira – seguindo o caminho aberto por Botas – é a de autoria de Maria Fernanda M. Antunes. Em sua dissertação de mestrado – O projeto de Brasil da Esquerda Católica expresso no semanário Brasil, Urgente –, Antunes buscou, através da análise do jornal como um todo, trilhar o que a esquerda católica pensou como sistema mais viável de desenvolvimento econômico para o Brasil, com vistas a “[...] desvendar o papel do projeto econômico dessa esquerda católica na conjuntura específica brasileira dos anos 63 e 64 [...]”.20 Embora seu estudo também tenha operado uma relação dos fundamentos da ação do jornal aos ensinamentos da DSI (Doutrina Social da Igreja), apresentados por João XXIII em suas chamadas encíclicas sociais – Mater et Magistra e Pacem in Terris –, seu trabalho não se confunde com o nosso, porque, não obstante essa semelhança, a meta da autora correu em outra direção: “[...] partir do estudo da visão de desenvolvimento da chamada Esquerda Católica, expresso no jornal Brasil, Urgente [...]”.21 17 Para ilustrar nossas intenções podemos citar o caso de Vitor Rego, um não-católico, que desde a edição de número 28, datada de 22-28 de novembro de 1963, passou a ser articulista do Brasil, Urgente. Não eram abordadas em seus textos as possibilidades de um diálogo entre cristianismo e marxismo, e a viabilidade de uma ação social conjunta entre os seus adeptos – que, à época da existência do jornal, suscitava calorosos debates, mormente no movimento mais radical da AC, a JUC. 18 A leitura das referidas obras acadêmicas foi de grande valia na delimitação do nosso objeto de estudo, visto que ambicionávamos, como resultado final, um estudo não ancorado unicamente em críticas de obras que versaram sobre a mesma fonte documental. 19 Há um estudo, também acadêmico, que abordou um pouco da experiência vivida por alguns dominicanos. Para maiores informações, confira: MAGALHÃES, Mariza. A atuação política da ordem dominicana em São Paulo no período de 1963-1973. 2002. 139f. Dissertação (Mestrado em História). Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2002. Esse trabalho não foi incluído na bibliografia comentada, pois a autora fez poucas alusões ao Jornal Brasil, Urgente em sua dissertação – carência escusável, já que este não era um dos seus objetivos. 20 ANTUNES, Maria Fernanda Marques. O “Projeto” de Brasil da Esquerda Católica expresso no semanário Brasil, Urgente. 1999. 110 f. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas, USP, São Paulo, op.cit., p.10. 21 Ibid., p.10. (o grifo é nosso). 19 A autora concluiu pela tese da suavização do capitalismo, presente em Brasil, Urgente, cujo conteúdo não teria ultrapassado a visão solidarista; observou, também, a contradição do semanário, haja vista o cerceamento moral imposto aos católicos quanto a aderirem a outras ideologias adversas ao catolicismo.22 Se a opção socialista não era a majoritária em Brasil, Urgente, a mesma afirmação deve ser estendida para considerações que procuraram evidenciar no semanário uma linha de desenvolvimento humanizado do capitalismo – ou neocapitalista; além do mais, necessita ser lembrado que essa nova forma de capitalismo, com tintas de socialização, foi muito criticada, tanto pela corrente católico-cristã quanto pela marxista, observando-se, é claro, a profunda diferença de admoestações entre as duas formas de pensar a história humana. Utilizando-se da mesma fonte documental trabalhada por Antunes, Admar Mendes de Souza, em sua dissertação de mestrado (dividida em duas partes, cuja primeira se detém no esboço do periódico, com a análise centrada nos artigos de Frei Carlos Josaphat),23 enfatizou a atuação desse sacerdote à frente do jornal. O autor estabeleceu um elo que tornou possível, segundo suas considerações, “[...] identificar uma ligação entre a teorização, prática política e religiosa estabelecida por frei Josaphat no início dos anos sessenta, e a ação política e religiosa levada a cabo pelos grupos dos dominicanos ligados à resistência ao regime militar no final da década [...]”.24 No estudo dos escritos de Josaphat publicados em Brasil, Urgente – haja vista o período de existência do semanário e o número de cinqüenta e cinco artigos editados pelo sacerdote –, Mendes optou por dividi-los entre artigos que se vinculavam a uma temática política mais bem definida e os demais que, segundo o autor, faziam “[...] parte de uma reflexão mais voltada a assuntos e considerações religiosas [...]”.25 A pesquisa de Souza deu atenção especial aos artigos de Frei Carlos. O autor salientou que os escritos do frade representaram um primeiro momento na caminhada rumo a uma nova forma de ser Igreja – a Igreja Popular. Mendes levou em consideração, igualmente, as 22Ibid. p. 97-102. Em suas considerações finais, a autora apontou “[...] A presença de alguns artigos favoráveis ao socialismo democrático ou cristão, que não aceitava o materialismo marxista, mostra que havia um setores (sic!) mais a esquerda. Entretanto, mesmo as constantes críticas ao individualismo liberal, pernicioso porque impede o Bem Comum, não permite concluir que caminhar para o socialismo era o projeto dominante no jornal [...]” (op. cit. p. 101-102). 23SOUZA, Admar Mendes de. Frades dominicanos de Perdizes: movimentos de prática política nos anos de 1960 no Brasil. 2003. 219f. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo: São Paulo, 2003. A segunda parte da referida dissertação trata, especificamente, da atuação dos integrantes da ordem dominicana nos diversos movimentos de contestação ao Regime Ditatorial, de 1964 a 1967. 24 Ibid., p.59. 25 Ibid., p. 66-67. 20 dificuldades de trabalhar temas tão variados com base em uma mesma fonte.26 É de fundamental importância assinalar, como fez o autor, a inviabilidade de pesquisar – como se fosse um todo coeso – as diferentes temáticas veiculadas pelo semanário. Fixar esse ponto se tornou deveras importante, haja vista o que pretendemos demonstrar com a apreciação dos artigos selecionados no Brasil, Urgente: a esquerdização teórico e prática do catolicismo, orientada pela tentativa de modernidade. Em vista do que já havia sido produzido pela historiografia sobre a atuação da Igreja Católica nos três primeiros vintenos do século passado – e, de modo mais particular, sobre Brasil, Urgente – 27 que foi direcionado o recorte temporal; a escolha das fontes; a metodologia; e, por fim, uma nova proposta de interpretação (à luz da reflexão desenvolvida ao longo da dissertação) de um contexto histórico, já densamente pesquisado. O catolicismo brasileiro, após 1950,28 manifestou uma ruptura de idéias, tanto na sua estrutura interna quanto externa, originando uma segunda vertente: um grupo de clérigos e leigos que, aos poucos, se distanciou da parte conservadora da Igreja Católica.29 Esse processo, considerado como esquerdização do catolicismo brasileiro, esteve intimamente ligado à formação dos movimentos de cristãos leigos, que aderiram a posições bem distantes dos dogmas católicos, até então romanizados. Como exemplo do que estamos afirmando, podemos citar a JUC (Juventude Universitária Católica). No referido processo de esquerdização, contou muito a pratica a que se lançaram os cristãos de esquerda, 30 na busca de um cristianismo vivo, mais consciente da práxis histórica, comprometido com a libertação da população explorada do Brasil. Dentro dessa dinâmica de 26 Ibid., p. 76. 27 Embora tenhamos usado, nesta parte, o termo “Igreja Católica”, estamos cientes do amplo espaço social ocupado por essa instituição; lembramos, novamente, que, na definição do que entendemos por Igreja, prevalece o caminho aberto por Luiz Gonzaga de Souza Lima. 28 Em nossa pesquisa, o período anterior a 1950 será devidamente trabalhado, pois é nele que se situa a noção de uma Igreja para si (conservadora); também é nele, outrossim, que se constituiu (de forma ainda tateante) a noção de uma Igreja para o povo (da mudança da doutrina em ação política). A existência do Jornal Brasil, Urgente faz parte,então, da época histórica em que se assistiu à gestação do segundo conceito por nós elaborado. 29 MANOEL, Ivan A. A esquerdização do catolicismo brasileiro (1960-1980): notas prévias para uma pesquisa. Estudos de História, Franca, v. 7, n.1, 2000, p.135-136. 30 O conceito de esquerda, no que se refere a este período vivido pela Igreja Católica brasileira, é utilizado para identificar os grupos de cristãos que, no processo de apropriação da DSI (Doutrina Social da Igreja), mediante as diretrizes emanadas das encíclicas sociais de João XXIII e dos trabalhos percorridos pelo Concílio Vaticano II (1962-1965), deram uma interpretação nova ao que seriam (em realidade) as exigências de uma verdadeira prática social cristã. Nesse processo, os mesmos textos sagrados são reinterpretados de formas diferenciadas pelos cristãos. O grupo conservador (integrista) continuará a defender a postura da Igreja, longe de qualquer compromisso social, ao contrário do grupo dito progressista. 21 atuar sobre a realidade para transformá-la, coloca-se a análise do movimento social e semanário31 Brasil, Urgente (1961-1964), sendo este nosso objeto de estudo. O movimento e jornal evidenciaram o perfil de um novo cristianismo, comprometido com a promoção da Justiça Social por meio da conscientização e mobilização das massas. As décadas de 1950 e, em especial, a de 1960, se caracterizaram por grandes realizações científicas, tecnológicas e econômicas, que levaram grupos mais conscientes, não somente de cristãos, a repensar o mundo, marcado, naquele contexto, por uma contínua interligação de países e culturas. Há de se observar também que o avanço científico, o ateísmo, o comunismo, a Revolução Cubana, entre outros fatores, acabaram por representar formas de questionamento da validade ou não de se sustentar uma fé transcendental. Concomitante aos avanços, aumentavam as injustiças sociais; deste modo, percebia-se que as maiores ameaças à humanidade, em seu sentido amplo, eram as diversas formas de opressão a que os povos do então chamado “Terceiro Mundo” estavam submetidos. Essa atmosfera de reflexão pertinente ao devir cristão32 – uma constante da década de 1960 – e o movimento social e semanário Brasil, Urgente (1961-1964) estiveram articulados ao contexto sócio-religioso, como também a representação da Igreja Católica no Brasil, atentando-se para o fato de que o período em que o movimento Brasil, Urgente é fundado se encaixa na fase de 1961-1964, caracterizada por Luiz Alberto Gómez de Souza como a crise do pacto populista.33 É nesse processo de reflexão acerca do verdadeiro compromisso social cristão, comum aos idos de 1960, que se deram os debates ideológicos,34 como Gómez de Souza já havia frisado. Possivelmente Michel Löwy35 teria atribuído tais disputas (cristãos e marxistas) à influência dos representantes da Esquerda Francesa.36 Essa fase se caracterizou também pelas cisões internas da 31 O jornal – resultado de um amplo movimento liderado por Frei Carlos Josaphat, que contava com a participação de pessoas vindas de diferentes agremiações comprometidas com as mudanças sociais – surgiu em março de 1963, tendo seu epílogo decretado em março do ano subseqüente. 32 Dessa reflexão fez parte,uma (re)leitura da realidade brasileira, devedora do esforço do Pe. Henrique de Lima Vaz. Ver: VAZ, Pe. Henrique de Lima. Cristianismo e consciência histórica. In: SOUZA, Herbet José de & GÓMEZ DE SOUZA, Luiz Alberto. Cristianismo hoje. Rio de Janeiro: Universitária, 1962; e VAZ, Henrique de Lima. Ontologia e História. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1968. 33 GÓMEZ DE SOUZA, Luiz Alberto. A JUC: os estudantes católicos e a política. Petrópolis: Vozes, 1984, p.196. 34 Tais debates se referem às posições de cristãos e marxistas, na luta pela emancipação política e social do povo brasileiro. 35 LÖWY, Michael. Ética católica e o espírito do capitalismo. Cultura Vozes, Petrópolis, n. 01, jan-fev/1998, p. 86- 100. 36 Os representantes da Esquerda Francesa a que nos referimos são: Jacques Maritain, Pe. Louis Joseph Lebret e Emmanuel Mounier. Hoje, acreditamos ser um tanto arriscado atribuir um movimento tão complexo, como foi a esquerdização do catolicismo no Brasil, unicamente à influência dos pensadores citados. 22 Igreja, quando bispos como Castro Mayer, Vicente Scherer e Proença Sigaud criticaram a orientação esquerdizante da Igreja, representada por Hélder Câmara, presidente da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil)37. A propósito das fontes utilizadas em nosso trabalho, destacamos primeiramente a coletânea organizada, em 1962, por Herbet José de Souza, em parceria com Luiz Alberto Gómez de Souza, com depoimentos e artigos de alguns expoentes defensores do cristianismo social. Entre esses testemunhos, enfatizamos os do Pe. Henrique de Lima Vaz, do Frei Thomas Cardonnel e o Manifesto Coletivo dos alunos da PUC do Rio de Janeiro. Esse florilégio traz o esforço teórico de um grupo de católicos que trilhou um novo caminho de reflexão cristã (para os anos de 1960), a partir de uma visão socialmente engajada. Essa renovação das práticas sociais de leigos e clérigos foi devedora, ao mesmo tempo, do esforço dos estudantes universitários da JUC – uma parte especializada da Ação Católica (AC). Sobre os documentos pontifícios – que exerceram influência decisiva na leitura social feita pelo Jornal Brasil, Urgente, a propósito do seu contexto histórico –, ressaltamos, primeiramente, a encíclica social Rerum Novarum (1891) de Leão XIII (1978-1903). Essa encíclica pode ser considerada o marco do ensino social da Igreja Católica. Nessa carta apostólica, Leão XIII advogou a função social da propriedade privada, a harmonia entre as classes e as desigualdades sociais como ordem natural estabelecida e querida por Deus. Boa parte do que foi dito nessa encíclica foi expresso numa linguagem paternalista. Se comparado ao pontificado de Pio IX (1846-1878), Leão XIII deu passos decisivos para quebrar a intransigente rigidez da Igreja. Em 1931, já sob o pontificado de Pio XI (1922-1939), publicou-se a encíclica Quadragésimo Anno, em comemoração ao aniversário de quarenta anos da Rerum Novarum. Nessa encíclica, o papa endossou a crítica ao capitalismo feita por Leão XIII. A solução socialista foi também rechaçada. Contudo, a realidade, sendo outra, obrigou Pio XI a reconhecer duas vertentes do socialismo: o comunismo violento dos bolcheviques e o socialismo moderado que, em alguns pontos, se aproximava da verdade e tradição cristãs. Porém, não se falava ainda em união de cristãos e marxistas; o tempo histórico e a evolução do pensamento católico não permitiam tal aproximação, ainda que esta se limitasse a uma adesão apenas no nível da prática. 37 GÓMEZ DE SOUZA, op. cit. p.198. 23 Essas são as palavras de Pio XI: “ninguém pode ser ao mesmo tempo bom católico e verdadeiro socialista”. As considerações do papa sobre o comunismo tomaram corpo em 1937 – quando da publicação da encíclica Divini Redemptoris –, quando o pontífice classificou o comunismo como um regime intrinsecamente mau. Nesse documento, Pio XI deu passos decisivos ao apresentar a Doutrina Social da Igreja como solução para os males sociais, negando as formulações do comunismo. Essa posição – de crítica ferrenha ao comunismo – daria seus primeiros sinais de ruptura com a publicação da Mater et Magistra (1961), do Papa João XXIII (1958-1963). Obviamente, nessa encíclica, o pontífice reforçou os ensinamentos de Leão XIII e Pio XI. Todavia, as novas condições históricas possibilitaram um novo rumo nas relações entre cristãos e marxistas, pautadas no diálogo pretendido por esse papa. A defesa de uma ação social cristã, presente nas páginas combativas do Brasil, Urgente, esteve orientada pelos princípios dessa encíclica, cujo texto retomou e ampliou os ensinamentos dos pontífices anteriores. Logo, percorrendo o caminho trilhado por essas encíclicas, podemos ter uma idéia clara das bases do que a Igreja entendeu por Justiça – já para a década de 1960 – e como esse entendimento foi apropriado pelo Jornal Brasil, Urgente. Há uma forte ligação entre a Mater et Magistra e a existência do movimento e jornal Brasil, Urgente. Tanto é que entre os meses de setembro e novembro de 1961, Frei Carlos Josaphat – fundador e animador do semanário – ofereceu um curso sobre essa encíclica, no Salão da Cúria Metropolitana de São Paulo. Para Frei Carlos, a Mater et Magistra chamou a atenção do mundo para a atualidade da Doutrina Social da Igreja.38 Outra encíclica de João XXIII que muito orientou a ação do Brasil, Urgente – fazemos referência, nesta parte, unicamente, ao semanário – foi a Pacem in Terris, de abril de 1963. Seguindo a lógica revisionista dos demais documentos circulares, essa encíclica ressaltou, outrossim, os progressos advindos do tempo presente. Esse documento, em sua nota introdutória, comprova o espírito da Igreja do século XX, com reforço da sua filosofia, e uma linguagem objetivada à atualização da DSI ao mundo moderno. João XXIII reconheceu como direitos as liberdades que a Igreja havia negado antes – por exemplo, legitimou os contatos práticos entre católicos e marxistas. Ponderou a união de ambos os grupos, pela instauração da Justiça Social, como benéfica; não negou, contudo, a distância doutrinária que separava o comunismo do 38 JOSAPHAT, Frei Carlos. A justiça social na bíblia e no ensino da Igreja: comentário à encíclica Mater et Magistra. São Paulo: Companhia das Letras, 1961. 24 cristianismo. Essas recomendações pastorais romperam com as posições dos pontífices predecessores. Seu impacto sobre a situação latino-americana seria decisivo, pois a palavra do papa esteve dirigida não aos bispos, mas “a todos os homens de boa vontade”. A mensagem papal soava aos católicos conservadores tão suspeita quanto o modernismo.39 Não podemos esquecer das mensagens da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) dos anos de 1962 e 1963, endereçadas à nação brasileira. Nesses comunicados, observamos a posição de comprometimento social, firmada por alguns membros do Episcopado Brasileiro. Os bispos, em conformidade com os ensinamentos de João XXIII, abordaram assuntos importantes para aquele período. Não obstante o tom reformista expresso nessas mensagens, sua repercussão agravou ainda mais a clivagem de práticas sociais entre os católicos. Muitas das idéias defendidas pelo Jornal Brasil, Urgente deitavam raízes nas conclusões da CNBB. No livro Utopia Urgente (2002), lançado em comemoração aos oitenta anos de Frei Carlos Josaphat, encontramos duas entrevistas realizadas com esse sacerdote. A primeira, concedida ao seu amigo e conterrâneo da cidade de Abaeté (MG), Frei Leonardo Lucas Pereira, trouxe fatos importantes da militância do frei nas décadas de 1940, 50 e 60, a partir de sua experiência pessoal. A segunda entrevista versou sobre a experiência do sacerdote quando da sua decisão de criar um jornal de inspiração cristã, intitulado Brasil, Urgente. Essa entrevista trouxe elementos deveras importantes sobre o contexto da década de 1960, como os debates sobre socialismo e democracia; reforma e revolução social. Sobre a criação do jornal, os entrevistadores apresentaram a curta história do semanário Brasil, Urgente e o seu significado para aquele período turbulento, vistos sob a ótica de Frei Carlos Josaphat. Em outra oportunidade, Josaphat concedeu, também, uma entrevista à Revista Espaços; na ocasião, falou sobre assuntos relacionados à utopia, à mística e, especialmente, ao compromisso social. Relembrou sua atuação na década de 1960, com ênfase reservada à sua experiência no jornal por ele fundado. Nessa fonte, tão cara à nossa pesquisa, Josaphat revelou a importância do pontificado de João XXIII com suas chamadas encíclicas sociais, fez comentários sobre a atuação dos dominicanos na época 39 Na encíclica Pascendi (1907), Pio X definiu o modernismo como a reunião desorganizada de todas as correntes filosóficas, contrárias à Revelação e à Tradição da DSI (Doutrina Social Igreja), fundadas no agnosticismo. Essa orientação da Igreja com relação ao advento moderno, embora datada do início do século XX, continuou a ser seguida nas décadas seguintes pelos fiéis católicos adeptos do integrismo – corrente oposta ao progressismo católico –, que abominava o envolvimento da Igreja e de seus fiéis em problemas sociais e políticos. O progressismo no Brasil, por sua vez, se orientou pela Esquerda Católica Francesa, que teve como expoente máximo o pensador católico Jacques Maritain. Alceu Amoroso Lima, conhecido pelo pseudônimo de Tristão de Athaíde, foi o grande colaborador para que as idéias de Maritain fincassem raízes em solo brasileiro. 25 da Ditadura Militar – que, em sua opinião, foi uma retomada da mística dos anos de 1961, quando a Igreja se abriu ao Outro. Para finalizar o comentário das fontes documentais utilizadas, incluímos duas obras raríssimas, em cujas páginas a temática socialismo e cristianismo ocupou o núcleo das discussões. O primeiro livro (resultado de uma coletânea organizada por James Klugmann), tinha a finalidade de debater a possibilidade de um campo de ação comum, entre cristãos e socialistas: A segunda obra, também uma coletânea, abrangia a mesma discussão, Frei Tomas Cardonnel foi seu organizador.40 Pelo fato de Carlos Josaphat ter sido o idealizador de todo esse movimento – tendo ao mesmo tempo redigido os primeiros vinte e cinco editoriais do semanário Brasil, Urgente –, incluímos entre nossas fontes as duas entrevistas que o frade nos concedeu. Ruy Cézar do Espírito Santo – que participou ativamente da história do movimento e jornal – também nos prestou depoimento. Por essa razão, levamos em conta toda a contribuição advinda da História Oral.41 As reflexões dessa área foram imprescindíveis para fundamentar não só os processos teóricos usados na produção da fonte oral, mas principalmente por terem colocado as bases para a compreensão da relação intersubjetiva que se processa entre pesquisador e sujeito da pesquisa, o que caracterizou a entrevista como trabalho de um historiador e não de um jornalista. Pelo procedimento da entrevista entramos em contato com “[...] uma dimensão histórica viva: uma percepção viva do passado, o qual não é apenas conhecido, mas sentido pessoalmente [...]”.42 A 40 As obras referidas são KLUGMANN, James. Cristianismo e Marxismo. Trad. Dora Rocha Flaskman. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1969, e; CARDONNEL, Jean. Socialismo e Cristianismo. Trad. Jeanete Peucheu. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967. 41 Concebemos por História Oral uma fonte, dentre outras, que servirá ao historiador em sua construção do passado. Assim nos orientamos pela conceituação de Joutard, para quem o termo fontes orais é mais acertado do que o conceito ambíguo de “História Oral”. Para maiores informações, cf. JOUTARD, Philippe. História Oral: balanço da metodologia e da produção nos últimos 25 anos. In: AMADO, Janaína & FERREIRA, Marieta de Morais. (coordenadoras). Usos & abusos da história oral. Rio de Janeiro: editora FGV, 2001, pp. 56-58. 42 THOMPSON, Paul. A voz do passado: história oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992, p. 30. Contemplamos em nossa pesquisa a história oral como proposta metodológica, uma vez que a entendemos como método privilegiado para se apreender a memória de indivíduos que estiveram envolvidos no processo de formação da Igreja para o povo. Logo, adotamos como referencial de análise – tanto para as entrevistas feitas pessoalmente com Frei Carlos quanto seus depoimentos publicados, em 2002, no livro em comemoração aos seus oitenta anos – a proposta das autoras Janaína Amado e Maria Aparecida de Aquino. Segundo Amado a história oral, “[...] entendida como metodologia [...] remete a uma dimensão técnica e a uma dimensão teórica. Esta última evidentemente a transcende e concerne à disciplina histórica como um todo [...]”. Cf. AMADO, J. & FERREIRA, M. M. (org), 1996, viii. Na mesma obra, em outra passagem, Amado identifica a história oral como a ponte que possibilita a união entre teoria e prática. Apesar de não a considerar como sendo apenas uma prática, a autora é enfática ao afirmar que no campo teórico a história oral não pode “jamais solucionar, questões”. Para tanto, deve-se buscar as soluções e explicações “na boa e antiga teoria da história”; para Aquino: “[...] o depoimento atua como contraponto à pesquisa empírica. 26 conversa com Frei Carlos Josaphat “percepção viva do passado” nos levou a considerar, outrossim, a noção de história do tempo presente.43 A inclusão de um semanário como fonte principal de pesquisa nos fez refletir sobre a questão de trabalhar a imprensa. Assim, o livro de Maria Helena Rolim Capelato e Maria Ligia Coelho Prado sobre o Jornal O Estado de São Paulo, no período de 1927 a 1937,44 se tornou um importante referencial metodológico para nossa pesquisa. Na perspectiva das autoras, o uso de um periódico como fonte histórica é justificado pelo entendimento da imprensa “[...] como instrumento de manipulação de interesses e de intervenção na vida social [...]”.45 As historiadoras contestam, portanto, as interpretações que avaliam a imprensa “[...] como mero “veículo de informações”, transmissor imparcial e neutro dos acontecimentos, nível isolado da realidade político-social na qual se insere [...]”.46 Partindo desse entendimento, Capelato e Prado indicaram como o Estado de São Paulo, na passagem da década de 1930 para a fase subseqüente, defendeu os arranjos políticos das frações de classe que representavam, sendo a justificação desses arranjos acoplada aos “postulados liberais”.47 Em outro livro, Maria H. R. Capelato sustentou que “[...] os jornais procuram atrair o publico leitor e conquistar seus corações e mentes. A meta é sempre conseguir adeptos para uma causa, seja ela empresarial ou política, e os artifícios utilizados para esse fim são múltiplos [...]”.48 Enfatizou-se, igualmente, a metodologia austera e o manuseio apropriado que devem acompanhar o trabalho do historiador: “[...] Sem esses ingredientes corre-se o risco de repetir para o leitor, aliás, sem o charme do jornal, a história que ele conta [...]” .49 Entende-se que no esforço da interpretação humana, o depoimento do contemporâneo assume papel de um instrumento de análise privilegiado, na medida em que reveste ao mesmo tempo, das problemáticas vivenciadas no presente e no passado [...]”. Cf. AQUINO, Maria Aparecida. Censura, Imprensa, Estado Autoritário (1968-1978): o exercício da dominação e da resistência: o Estado de São Paulo e Movimento. Bauru: EDUSC, 1999, p. 24. 43 FERREIRA, Marieta Moraes de. História do tempo presente. In: Cultura Vozes, n. 03, v. 94, 2000. p. 111-125. A autora, nesse artigo, indica alguns marcos cronológicos na delimitação do estudo da história do tempo presente. “[...] Para alguns trata-se do período que remonta à última grande ruptura; para outros trata-se da época em que vivemos e temos lembranças, ou da época cujas as testemunhas são vivas e podem supervisionar o trabalho do historiador e colocá-lo em xeque (Voldman 1993) (o grifo é nosso). 44 Esse livro é resultado da síntese das dissertações de Capelato e Prado. A primeira autora pesquisou o jornal no período de janeiro de 1927 a junho de 1932, a segunda centrou sua análise na fase que vai de junho de 1932 a dezembro de 1937. 45 CAPELATO, Maria Helena Rolim; PRADO, Maria Lígia. O bravo matutino: imprensa e ideologia no jornal “O Estado de São Paulo”. São Paulo: Alfa-Ômega, 1980, p. XIX. 46 Ibid., p. XIX. 47 Ibidem. Essa expressão aparece na mesma página, citada em nota de rodapé anterior. 48CAPELATO, Maria Helena Rolim. Imprensa e história do Brasil. São Paulo: Contexto/EDUSP, 1988, p. 15. 49Ibid., p. 23. 27 No capítulo primeiro, buscamos mostrar que as raízes da esquerdização do catolicismo em nosso país – da qual faz parte a breve história do Brasil, Urgente –, devem ser buscadas num período muito anterior, principalmente quando a função do leigo na Igreja sofreu profundas transformações. Para tanto, foi necessário recuar até os anos imediatamente posteriores à Proclamação da República, passando pelos anos de 1920, quando se assistiu, ainda, à continuidade do projeto recristianizador da sociedade – com a criação do Centro Dom Vital, em 1921, por Jackson de Figueiredo.50 Nesse sentido, procuramos enfatizar o papel desempenhado pela Igreja Católica no Brasil, desde sua política na defesa de seus próprios direitos (Igreja para si) até o momento em que ocorreria uma “virada” de posições,51 responsável pelo nascimento de uma Igreja socialmente engajada, atuante na defesa dos direitos da pessoa humana (Igreja para o povo); observamos, igualmente, os fatores principais que influenciaram a mudança de pensamento da Igreja Católica. Esse recuo – que abrange os principais fatos posteriores a 1890- 91 até fins da década de 1950 – se apresentou deveras importante para a compreensão dos mecanismos propulsores da formação e evolução, no seio de uma Igreja conservadora, de uma nova prática social cristã – de defesa dos direitos do povo. No segundo capítulo, articulamos as Encíclicas Sociais de João XXIII, sobretudo a Mater et Magistra e a Pacem in terris, ao desenvolvimento da fase anterior. Enfatizamos que os respectivos documentos pontifícios, muito mais que inovação, deram respaldo a várias posições e práticas que vinham se firmando entre o laicato (entenda-se o grupo mais intelectualizado e alguns representantes do clero), desde o período histórico abordado no capítulo primeiro. As encíclicas sociais de João XXIII – Mater et Magistra (1961) e Pacem in Terris (1963) – foram publicadas em um contexto histórico marcado pelas fortes mudanças por que passava a América Latina, a sociedade e a Igreja no Brasil. Não pode ser ignoradas as experiências socialistas – que naquele contexto já abarcava um terço da humanidade – e a então recente Revolução Cubana,52o perigo iminente visto pela Igreja no contexto sócio-político da América Latina. Dentro do cenário latino-americano, o evento cubano se apresentou como a alternativa de rompimento com o 50 A linha do pensamento católico sofreu alterações a partir do momento que Alceu Amoroso Lima – conhecido pelo pseudônimo de Tristão de Athaíde – assumiu a liderança do Centro D. Vital (cidade do Rio de Janeiro), após a morte de Jackson de Figueiredo, seu fundador. Essa mudança se tornou visível quando Alceu Amoroso Lima aderiu ao pensamento do filósofo católico francês Jacques Maritain, no que concerne à leitura da realidade social. 51 Essa “virada” de posicionamentos não foi vivida somente pela Igreja Católica do Brasil. Em grande parte da América Latina, por processos históricos semelhantes, assistiu-se a uma mesma dinâmica, preservadas, é claro, as particularidades de cada país e as respectivas heranças culturais. Esses fatores foram fundamentais no discurso de João XXIII, cujos escritos possivelmente tenham sido dirigidos aos povos do nosso continente. 52 FARIA, Ricardo de Moura. As Revoluções do século XX. São Paulo: Contexto, 2001, p. 85. 28 processo causador do subdesenvolvimento; seus objetivos se converteram na esperança de muitos militantes, de diversos grupos de esquerda, como uma abertura para uma nova proposta de sociedade fora do capitalismo.53 Embora João XXIII nunca tivesse visitado nosso continente, sua atuação e atenção estiveram intimamente ligadas à situação cubana, passível de alastramento por todo o continente. Ainda no segundo capítulo, introduzimos o ponto central da pesquisa, o fundamento da nossa tese, qual seja a contextualização do processo de esquerdização, a partir de uma visão de abertura para a Modernidade, ou melhor, uma tentativa de modernidade.54 Delimitamos o que entendemos pelo termo e apresentamos, ao mesmo tempo, as duas matrizes integrantes desse fenômeno (a tentativa de modernidade). Sustentamos que os cristãos sociais (grupo intitulado, também, de Esquerda Cristã) na realidade, quando optaram por reorientar alguns valores modernos não-utilitários ao discurso social católico, não propuseram uma corrente cristã de esquerda; estavam representando um esforço de uma pequena fração do mundo católico que, ao passo que aceitou dialogar com a Modernidade, concentrou em um mesmo movimento as duas matrizes da tentativa de modernidade. Isto significa dizer que as concepções de prática socialmente e politicamente engajada – que para alguns, indicam momentos distintos da prática social cristã – são, na realidade, partes de um único movimento.55 Pelo fato das encíclicas sociais de João XXIII terem sido importante referencial para o movimento Brasil, Urgente, discutimos, no terceiro tópico do segundo capítulo, as principais temáticas dessas cartas apostólicas, com vistas a demonstrar que, apesar da criação do jornal Brasil, Urgente deitar raízes no ensino social desse pontífice, o movimento de cristãos em torno em torno do semanário seguiu um caminho muito particular. No terceiro capítulo, com base em estudos de importantes pesquisadores – que fizeram dos principais acontecimentos, iniciais à década de 1960, seu tema de estudo –, procuramos situar 53 Não pretendemos reduzir o novo compromisso social dos leigos a uma simples reação à onda comunizante, propalada pela Revolução Cubana. Inseridos nesse contexto e como parte da dinâmica maior, representada pelos efeitos de um subdesenvolvimento gritante – associado ao grito de libertação dado por Cuba –, situamos a consciência adquirida pelos católicos acerca de uma nova visão de seu cristianismo, a partir de 1960. Essa nova visão redefinirá o compromisso da Igreja para o povo. 54 Acreditamos que todos os projetos, não somente da parte dos católicos, mas dos diferentes movimentos sociais e políticos seguiram, em geral, nos anos situados entre 1945 e 1964, a proposta de uma tentativa de modernidade; esta apreciação, no caso específico do catolicismo – mormente a parte mais avançada (intelectualmente) do laicato –, não deve ser confundida com o conceito de modernização. 55 Para trabalhar esta questão utilizamos os conceitos de campo e habitus, vindos da teoria sociológica da prática de Pierre Bourdieu. Optamos por não incluí-los na introdução, mas logo no decorrer dos capítulos, de acordo com a necessidade, foram esses termos elucidados em citações de rodapé. 29 e ressaltar a importância do movimento social Brasil, Urgente para aquela fase de intensa radicalização. O depoimento de Frei Carlos Josaphat – a nós concedido, em duas ocasiões diferentes – foi uma importante ferramenta utilizada nessa parte da pesquisa. No segundo tópico, foi problematizada a trajetória do Jornal Brasil, Urgente; com base no exame dos seus editoriais, procuramos evidenciar como se deu a conjunção da primeira e segunda matriz da tentativa de modernidade. Intentamos desvendar em qual posição situava a crítica do jornal – se era solidarista, socialista ou neocapitalista. Dentro do diversificado conteúdo veiculado pelo jornal, selecionamos – para a discussão do quarto capítulo – os artigos e reportagens que estabeleciam forte ligação com a Doutrina Social da Igreja e, do mesmo modo, com a renovação teológica advinda da contribuição dos teóricos católicos da Esquerda Católica Francesa. Foi privilegiada, portanto, a apreciação de duas seções – as Reportagens Históricas e o ABC: Social Cristão –que possibilitaram desenvolver uma discussão acerca dos propósitos cristãos do jornal, bem como destacar, entre seus escritos, a conjunção da primeira e da segunda matrizes da tentativa de modernidade. A preocupação, tanto dos socialistas – em seus diversos matizes – quanto dos cristãos, em relação às formas de libertar o pobre pela conscientização e pela ação, nos obrigou a abrir um parêntese e apresentar algumas posições de seus adeptos que propuseram um diálogo como forma de encontrar um campo de ação comum. A contribuição desse diálogo – embora tímido em nível teórico – era percebida nas práticas sociais entre ambos os grupos. A trajetória do Jornal Brasil, Urgente não poderia ser compreendida sem considerar a importância dos artigos dos seus principais colaboradores. Figuravam como principais articulistas do semanário três dos seus diretores – Dorian Jorge Freire, Roberto Freire e Ruy Cézar do Espírito Santo –; leigos, como era o caso de Alceu Amoroso Lima, Alfredo Bosi, Luís José de Mesquita, em diferentes ocasiões, também prestaram apoio à ação empreendida por Brasil, Urgente; o arcebispo cardeal Motta (à época arcebispo de São Paulo); os padres Santana, Lage, Huidobro, Charbonneau, Hélio Maranhão; o Frei Ático da Luz e o cônego René Laurentim – entre outros – auxiliaram, ao mesmo tempo em que defendiam a ação combativa do semanário, os marcos teóricos e práticos sob os quais Brasil, Urgente assentava sua proposta jornalística. Portanto, o objetivo do quinto capítulo – com base no estudo desses discursos – foi analisar a conjunção das matrizes da tentativa de modernidade. 30 Indicamos, do mesmo modo, quais as características do pontificado de João XXIII eram mais evidenciadas pelo jornal. No exame dos artigos (assinados) de cunho mais doutrinal – como foi o caso de um texto de autoria do teólogo francês Marie Dominique Chenu –, abrimos uma discussão abordando a relação do cristianismo com as diversas ideologias modernas – por exemplo, o marxismo e, em menor medida, o existencialismo. Por fim, propusemos estender o movimento de tentativa de modernidade para todo o jornal, no intuito de compreender como se deu a conjunção das matrizes dessa dinâmica em seu discurso.56 56 Para a análise dos discursos no jornal Brasil, Urgente, tomamos como base de apoio a contribuição vinda dos estudos de José Luiz Fiorín – a propósito das relações estabelecidas entre o enunciador e o enunciatário. De acordo com Fiorín: “[...] A finalidade última de todo ato de comunicação não é informar, mas é persuadir o outro a aceitar o que está sendo comunicado. Por isso, o ato de comunicação é um complexo jogo de manipulação com vistas a fazer o enunciatário crer naquilo que se transmite. A linguagem é sempre comunicação (e, portanto, persuasão), mas ela o é na medida em que é produção de sentido. Nesse jogo de persuasão, o enunciador utiliza-se de certos procedimentos argumentativos visando a levar o enunciatário a admitir como certo, como válido o sentido produzido. A argumentação consiste no conjunto de procedimentos lingüísticos e lógicos usados pelo enunciador para convencer o enunciatário. Por isso, não há sentido na divisão que se costuma fazer entre discursos argumentativos e não argumentativos, pois, na verdade,todos os discursos têm um componente argumentativo, uma vez que todos visam persuadir [...]”. (FIORÍN, José Luiz. Elementos de análise do discurso. São Paulo: Contexto/EDUSO, 1989., pp.52- 53. (o grifo é nosso). 31 2 As Raízes de um processo: considerações históricas, teóricas e metodológicas: 2.1 A política da Igreja para si: A vertente católica do cristianismo participou, desde fins do século XVIII, do processo de consolidação da modernidade. É sabido que a consolidação desses valores – iniciada com o humanismo renascentista e a Reforma Luterana do século XVI – cuja expressão máxima foi a Revolução Francesa –contribuiu de modo negativo para a sobrevivência da Igreja na Europa. Todas as manifestações posteriores a 1789 foram, para a Igreja, resultados diretos da vitória da Revolução “sem Deus”. Logo, seria necessário desenvolver uma política objetivada a levar a cabo uma proposta de combate à Modernidade. A reação católica aos “vícios” da Modernidade – explicitada nos pontificados de Gregório XVI, Pio IX, Leão XIII, Pio X e Pio XI – ficou conhecida como Ultramontanismo ou Romanização (no caso brasileiro) do catolicismo. Essa política teve como objetivo defender a Igreja Católica dos “erros” da Modernidade e, num futuro próximo para a época, através de uma ação recristianizadora, “[...] recolocar a Igreja como centro do equilíbrio mundial [...]”.1 Obviamente as questões levantadas na Europa, sobretudo na França do pós-1789, contra a presença da Igreja Católica, identificada ao passado medieval, repercutiriam em solo brasileiro. A Proclamação da Republica no Brasil, em 1889, trouxe à Igreja uma nova situação. Não obstante as bases doutrinárias e filosóficas de seus implantadores, estarem calcadas nos “erros” da Modernidade – de origem maçônica, positivista e liberal –, a Igreja no Brasil não foi perseguida como sua congênere francesa, em cujo caso “[...] a queda da monarquia foi acompanhada da perseguição anticlerical [...]”.2 Segundo Ivan Manoel, essa singularidade brasileira não foi levada em conta pela nossa historiografia que, ao considerar o evento político brasileiro na mesma categoria do processo europeu, sobretudo o francês, produziu uma vasta bibliografia, omissa em relação aos acordos firmados entre Igreja e Estado. Atualmente, essa visão já está superada, pois a produção historiográfica de data mais recente evidenciou que a 1 MANOEL, Ivan A. O Pêndulo da História. Tempo e eternidade no Pensamento Católico (1800-1960). Maringá: Eduem, 2004. p. 45. Definimos Ultramontanismo como a doutrina da Igreja Católica elaborada no século XIX, oposta ao Galicanismo. Logo essa política deu ênfase à autoridade suprema do papa sobre toda a Igreja Universal. O termo Ultramontanismo, derivado do latim, significa “o outro lado das montanhas”, isto é, dos Alpes, onde o poder supremo do papa é exercido. 2 MANOEL, Ivan A. D. Antonio de Macedo Costa e Rui Barbosa: a Igreja Católica na ordem republicana brasileira. Pós-história, Assis, UNESP, v. 5, p. 67-31, 1997. 32 influência da Igreja na construção do regime republicano “foi muito maior do que poderia supor”. 3 Assim, muito do que fora concretizado com o novo regime foi longamente discutido no período anterior ao advento da República. Mesmo os fatos negativos para a Igreja – como o decreto 119-A, de 07 de janeiro de 1890, que instituiu a separação entre as duas instâncias civis e a crítica acerba dos liberais e positivistas à hierarquia eclesiástica – não invalidam, portanto, os acordos firmados com o Estado. Esse decreto, em seu Artigo 5°,4 rezou pela preservação dos bens da Igreja, inclusive os de mão-morta. A união, ou pelo menos a busca por aproximação da Igreja com o Estado, após o decreto de 1890, não é evento menos correto. Veremos, é bem verdade, que no final do século XIX e nas décadas iniciais do século XX, essa busca por aproximação foi orientada por atitudes e práticas da Igreja na defesa dos seus próprios direitos, ou melhor, na configuração de uma Igreja para si. Na exposição dos eventos que se sucederam à Proclamação da República, não pretendemos açambarcar todos os fatos, mas sim, elaborar uma síntese dos principais posicionamentos da Igreja na defesa de seus direitos (Igreja para si), sem perder de vista que essa Igreja refletiu o seu envolvimento numa luta contra a Modernidade. Por paradoxal que fosse, como veremos adiante, a política da Igreja demandava a colaboração do Estado laico.5 Essa retomada bibliográfica se torna deveras importante para fundamentar nossa pesquisa e compreender os mecanismos que, no seio de uma Igreja conservadora, viabilizaram a formação e evolução de uma nova prática social cristã de defesa dos direitos do povo, identificada, em nosso trabalho, pelo conceito de Igreja para o povo.6 Esse recuo objetiva enfatizar a mudança de 3 Ibid., p. 69. 4 BRASIL – Governo Provisório da República. Decreto 119-A de 07 de Janeiro de 1890. Rio de Janeiro. Imprensa nacional, 1890, s/d. Apud. EPISCOPADO BRASILEIRO. Pastoral Coletiva de 1890. São Paulo: Tipografia Salesiana, p. 49. 5 O registro desse período, portanto, nada tem de original, pois, há uma bibliografia vastíssima que tratou dessa fase da história da Igreja no Brasil. Logo, a sua retomada pode gerar uma discussão do óbvio. Todavia, “[...] o óbvio pode ainda oferecer algumas surpresas, e o que se tentará fazer aqui é explora-lo mais um pouco [...]” GOMES, Ângela de Castro. A política brasileira em busca da modernidade: na fronteira entre o público e o privado. In: NOVAIS, Fernando A. (dir); SCHWARCZ, Lília Moritz (org). História da vida privada no Brasil: contrastes da intimidade contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 497. 6 O conceito Igreja para o povo é utilizado, neste trabalho, para caracterizar o perfil assumido, na década de 1960, por uma parcela da Igreja Católica (clérigos e leigos). Esse aspecto será devidamente trabalhado no segundo tópico deste capítulo. 33 habitus7 que foi ocorrendo no pensamento de destacados segmentos do laicato intelectualizado e de alguns clérigos, ao longo do século XX. Destarte, a evolução do pensamento social católico – de uma concepção reacionária (até 1960) para uma concepção libertadora (fins dos anos 1960) – refletiu a luta de diferentes grupos católicos em torno do discurso oficial da Igreja, sobretudo seu ensino social, que, desde o pontificado de Leão XIII (1878-1903), fora sistematizado. Para Oscar de Figueiredo Lustosa, a Igreja, “[...] nos primeiros decênios após a Proclamação da República “[...] conversou, negociou, brigou por seus direitos, até atingir, um nível de aceitação dos fatos e de composição com o governo que apontasse perspectivas favoráveis para o trabalho da missão pastoral [...]”.8 Assim, logo após 1889, o episcopado fundamentou seu discurso no arcabouço do catolicismo, enquanto religião da maioria do povo brasileiro e nos argumentos em curso, contrários a qualquer tipo de liberdade religiosa. Esse discursou não buscou, obviamente, uma luta direta com o Estado republicano, pois “[...] esse estado de beligerância permanecia apenas no plano simbólico e intelectual [...]”.9 A prova disso se deu mediante a continuidade da meta da Igreja, na defesa dos seus direitos, em transigir com o Estado republicano. Esse artifício de conciliação esteve amparado na certeza da influência que seu poder moral exercia sobre a nação. Para continuar o projeto de fortalecimento da sua presença moral na sociedade brasileira, a Igreja se enveredou pelo paradoxo e pela ambivalência. Sua crítica ácida ao novo regime não a impediu de “[...] apregoar a necessidade de obediência aos detentores do poder, oferecendo aos líderes republicanos a sua colaboração para a manutenção da ordem social [...]”.10 Um caso representativo da aproximação entre a Igreja e o Estado se deu quando do episódio de Canudos (1892-1896). Estado e Igreja uniram forças para eliminar o inimigo comum e sua proposta de 7 Bourdieu define habitus como sistema de disposições duráveis e transponíveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionarem como estruturas estruturantes, isto é, a funcionar como princípios geradores e organizadores de práticas e representações que podem ser objetivamente adaptadas à sua finalidade sem supor que se tenham em mira conscientemente esses fins e o controle necessário para obtê-los. Assim habitus é, ao mesmo tempo, um esquema de produção de práticas e um sistema de percepção e de apreciação de práticas, isto é, estruturas cognitivas e avaliatórias que os agentes adquirem pela experiência durável numa posição do mundo social. (BOURDIEU, Pierre. Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Marco zero, 1983). 8 LUSTOSA, Oscar de Figueiredo. A Igreja Católica no Brasil República. Cem anos de compromisso. 1889-1989. São Paulo: Edições Paulinas, 1991. pp. 20-21(o grifo é nosso). Essa consideração de Lustosa é deveras importante, pois evidencia a política que a Igreja – não mais atrelada ao Estado – deveria desenvolver na busca de seus próprios direitos. 9 AZZI, RIOLANDO. O Estado leigo e o projeto ultramontano. História do pensamento no Brasil – IV. São Paulo: Paulus, 1994. p. 96. 10 Ibid., p. 132. (o grifo é nosso). 34 ortodoxia, cujo conteúdo levava às últimas conseqüências a condenação do regime republicano e a defesa da monarquia, “[...] não acatando a voz dos bispos no sentido de aderir pacificamente às ordens das autoridades constituídas [...]”.11 Toda ação que tivesse por objetivo exagerar a crítica ao regime constituído – fora dos limites impostos pelo acordo de negociação entre ambos os poderes – esteve fadada à marginalização. Logo, a Igreja para si evidenciou um pacto silencioso, firmado com o poder constituído, sem alusão à defesa do povo – na passagem do século XIX ao XX, seria anacrônico conceber uma Igreja como povo de Deus – mas sim, a manutenção do seu privilégio como instância de poder moral. A ação conciliatória da Igreja prosseguiu na década de 1920, com destaque para a atuação de D. Sebastião da Silveira Leme,12 que, segundo Márcio Moreira Alves, foi o “porta- voz” da Igreja, num momento que ela necessitava de coesão.13 As manifestações de católicos ultramontanos, divergentes da política de conciliação, continuariam a existir. Todavia, tais manifestações seriam marginalizadas pela Igreja, preocupada em “[...] obter ganhos que ampliassem o espaço do catolicismo no Brasil [...]”.14 Riolando Azzi assevera – confirmando o uso adequado do conceito Igreja para si em nosso trabalho – que [...] não é ainda o povo que interessa diretamente à Igreja, mas sim a sua própria influência efetiva sobre os dirigentes e as leis do país. É a presença eclesiástica na 11 Ibid., p. 99. 12 D. Sebastião da Silveira Leme e Cintra nasceu em Espírito Santo do Pinhal (SP) em 1882. Em 1911 é sagrado bispo auxiliar do Rio de Janeiro, cujo arcebispo era D. Joaquim Arcoverde. Foi nomeado bispo de Olinda em 1930. Nesse mesmo ano retorna à cidade do Rio de Janeiro, na qualidade de arcebispo. Ainda em 1930, se torna o primeiro cardeal brasileiro, ao ser elevado ao cardinalato. Para maiores informações, ver: Necrologia. REB (Revista Eclesiástica Brasileira), v. 2, fasc. 4, dez. 1942, p. 1078-1079 13 ALVES, Márcio Moreira. A Igreja e a Política no Brasil. São Paulo; Editora Brasiliense, 1979. p. 36. 14 MALATIAN, Teresa Maria. Catolicismo e Monarquia na Primeira República. História, v. 11, 1992, p. 259-269. Caso típico de movimento católico que levou ao extremo algumas teses do ultramontanismo foi a Ação Imperial Patrianovista Brasileira. Esse movimento conservador, estruturado a partir de 1932, esteve vinculado ao discurso católico antiliberal de Pio IX (1846-1878). Os adeptos da Ação Patrianovista identificavam, segundo Teresa Malatian, no artigo citado, a República como a “[...] concretização de um direcionamento errado da história [...]” (p. 267). Logo, ao invés de transigir com o regime republicano, tinham por pretensão a derrubada do mesmo. Por ser expressão de um movimento oriundo da classe média, seus membros traziam consigo valores elitistas e o medo premente da proletarização do Brasil. Sua meta era arregimentar intelectuais “[...] como condutores da reordenação da sociedade e do Estado [...]” (p. 267). Seu discurso encontrou eco em pensadores conservadores como Jackson de Figueiredo, fundador da Revista Ordem, em 1920, e do Centro D. Vital, em 1921. Não obstante essa característica de Jackson – o defensor da “ordem” –, dele não se poderia esperar que apoiasse um movimento declaradamente contrário ao regime republicano que, conseqüentemente ocasionaria a desordem ao regime estabelecido. Jackson era pela ordem e não pela revolução. 35 orientação dos destinos da nação que constitui a meta principal da ação episcopal. Em última análise, retorna o sonho de transformar o Brasil num país declaradamente católico [...].15 Nessa década, fortaleceu-se uma das mais importantes gerações de intelectuais e leigos católicos, em torno do Centro D. Vital que, embora fosse pequeno em número de adeptos, obteve grande influência na evolução da política da Igreja Católica – enveredada pelo projeto de recristianização da sociedade brasileira, orquestrado por D. Leme, cuja proposta visava uma regeneração moral do país por meio das normas da Igreja, insistindo para que o Brasil voltasse a ser católico. O Centro D. Vital, fundado em 1921 por Jackson de Figueiredo,16 objetivava desenvolver uma intelectualidade designada a orientar e evangelizar a sociedade. A existência desse instituto católico pode ser dividida em duas fases: a primeira, compreendendo o período em que o Centro funcionou sob a direção de Jackson de Figueiredo – católico conservador e reacionário, fundador da Revista A Ordem – até a sua morte prematura em 1928, denota ter o círculo D. Vital assumido as mesmas posições reacionárias do seu fundador; a segunda fase ficou a cargo de Alceu Amoroso Lima (conhecido pelo pseudônimo de Tristão de Athaíde), responsável por imprimir ao Centro uma linha cultural mais aberta ao ideal democrático, sobretudo a partir de 1940, quando adotou como possibilidade interpretativa da realidade brasileira a leitura contextualizada das idéias do filósofo francês Jacques Maritain que, até então, eram vistas com muitas reservas pela Igreja para si – conservadora e avessa a qualquer idéia de pluralismo, ainda mais se o pluralismo fosse religioso. A orientação de Amoroso Lima pelo pluralismo democrático e religioso de Maritain,17 pautado no social-cristianismo, deu início à ruptura de posições dos católicos quanto aos problemas e questões sociais – haja vista o capital cultural e intelectual de Amoroso Lima. 15 AZZI, Riolando. A teologia no Brasil: considerações históricas. In: História da teologia na América Latina.São Paulo: Edições Paulinas, 1981. p. 40. (o grifo é nosso). 16Jackson de Martins Figueiredo nasceu no Estado de Sergipe aos 09/10/1891 e faleceu prematuramente aos 37 anos, vítima de afogamento. Em 1918, converteu-se ao catolicismo. Fundou, em 1920, a revista A Ordem e, em 1921, o Centro D. Vital, ambos redutos do Integralismo, cujo conteúdo se ligava ao do movimento da Ação Integralista Brasileira (AIB) – de inspiração fascista – fundada por Plínio Salgado em 1932. Para maiores informações a respeito de Jackson de Figueiredo, confira as obras: MOURA, D. Odilão (o.s.b). Idéias católicas no Brasil: direções do pensamento católico no Brasil do século XX. São Paulo: Convívio, 1978; e VILLAÇA, Antônio Carlos. O pensamento católico no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1975. 17 RICHARD, Pablo. Morte das cristandades e nascimento da Igreja. São Paulo: Paulinas, 1982. p. 147. 36 Deve-se ressaltar que a receptividade dessas idéias democráticas no Brasil, num período permeado por idéias totalitárias, cujo adepto mais influente era o próprio Getúlio Vargas, teria como destino (por parte do governo de Vargas) a marginalização; isto porque, seguindo as observações do contexto histórico feitas por Ângela de Castro Gomes, a Revolução de 1930 foi o primeiro passo para a instauração do Estado Novo, em 1937. Assim, se a forma ditatorial foi instituída com esse ato, os anos a ele anteriores já estavam condicionados a tal empresa, pois “[...] assim o disseram e quiseram os ideólogos desse regime que, [...] sagravam tanto o destino centralizador de nossa história política como a grandeza de sua liderança máxima [...]”.18 Scott Mainwaring afirma que a Igreja, nesse período, mobilizou um número considerável de católicos, recrutados entre a classe média urbana, como parte de sua política conciliatória, objetivada a garantir uma presença católica mais forte nos diversos campos sociais e no Estado.19 Apesar disso, conforme as diretrizes romanas, tais movimentos não dispunham de independência em relação à hierarquia e, se houve sugestão de D. Leme no que se refere a um trato maior com relação à questão operária, o projeto do arcebispo continuava orientado por uma cristianização de “cima para baixo”. Assim, o fortalecimento da Igreja para si orientou sua atuação fazendo uso do “nacionalismo católico”, cuja doutrina propunha que a nacionalidade católica – entendida como elemento essencial20 do ser brasileiro – se confundiria com a própria identidade do seu povo: “[...] essa identificação da Igreja com o país era comum através das décadas de 20, 30 e 40[...]”,21 A obra de recatolização da sociedade brasileira intencionada pela Igreja, cujo conteúdo ilustra tanto o caráter de defesa dos seus próprios direitos quanto sua postura triunfalista, é acompanhada de uma mudança na qual, segundo Riolando Azzi: [...] a Igreja passa de uma posição declaradamente defensiva típica da mentalidade do século XIX, para uma nova atitude de conquista espiritual do mundo [...] sucede a partir da Segunda década do século XX, um espírito de otimismo, de coragem e de cruzada: a meta da Igreja é restabelecer seu domínio na sociedade.22 18 GOMES, op. cit., pp. 514-515. 19 MAINWARING, Scott. A Igreja Católica e a política no Brasil (1916-1985). São Paulo: Civilização Brasileira, 1989. p. 47. Orientado por Azzi, Mainwaring afirma que, embora a hierarquia católica nunca tivesse endossado oficialmente a política varguista, a maioria dos bispos, padres e leigos militantes apoiaram seu governo. 20 RICHARD, op.cit., p. 140. 21 MAINWARING, op. cit., p.48. 22 AZZI, Riolando. A neocristandade: um projeto restaurador. São Paulo: Paulus, 1994. p. 23. 37 A atitude da Igreja, como bem mostra Azzi na citação anterior, de conquista espiritual e restabelecimento de seu domínio na sociedade – diferente de sua posição defensiva, típica do século XIX – deixa evidente, a certeza que o catolicismo atribuiu ao seu poder simbólico 23 capaz de restaurar a ordem moral e religiosa em consonância com a ordem social e política. Assistiu-se, nesse cenário, à transição da sociedade agrária para a sociedade urbana e industrial dependente. Com a Revolução de 1930 e a conseqüente posse de Getúlio Vargas no dia 04 de novembro do mesmo ano, chegou ao fim a aliança entre as oligarquias de São Paulo e Minas Gerais. O apoio da Igreja à Revolução elucida a continuidade de sua proposta de aproximação do Estado – Igreja para si. Fazendo uso de seu poder moral, a Igreja – na pessoa de D. Sebastião Leme – começou a organizar, a partir de 1931, diversas manifestações religiosas24 que, muito além de uma mera expressão do catolicismo devocional, tiveram por finalidade mostrar ao presidente o quanto a união e apoio à Igreja seria benéfico ao Estado. Essa relação foi, então, caracterizada por um pacto silencioso entre ambas partes – Igreja e Estado –; cada qual tinha em mente que concessões e negociações recíprocas seriam importantes como parte integrante das demandas de aproximação. Ganhou destaque, nessa fase, a Liga Eleitoral Católica (LEC), criada em 1932 por D. Leme. Sua característica principal foi a orientação do voto dos católicos segundo os valores conservadores, favoráveis à defesa dos direitos da Igreja. Datam dessa época e de um tempo imediatamente anterior a ela a fundação da AUC (Ação Universitária Católica), em 1929, e do Instituto de Estudos Superiores em 1932. Orientados pelas diretrizes de uma recristianização de cima para baixo, esses órgãos tinham por meta divulgar o catolicismo e ser reduto de uma intelectualidade católica.25 Os efeitos da Modernidade continuariam a ser o grande perigo para a 23 Poder simbólico é definido, segundo Pierre Bourdieu como “[...] o poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e crer, de confirmar ou de transformar a visão de mundo e, deste modo, a acção sobre o mundo, portanto o mundo; poder quase mágico que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou económica), graças ao efeito específico da mobilização, só se exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário [...]”. Cf: BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. p. 15. As atitudes da Igreja desse período ilustram bem o uso que ela fez do seu poder enquanto símbolo – logo que não gozava mais da posição de religião oficial do Estado. Sinal evidente do uso de seus símbolos, no projeto recristianizador e de colaboração com o Estado, foi a imagem do Cristo Redentor no ponto mais elevado da cidade do Rio de Janeiro, então capital do país. 24 Como exemplo podemos citar: A “Semana da Padroeira do Brasil”, realizada no Rio de Janeiro, em 1931; o “Congresso Eucarístico Nacional” (1933). 25 DIAS, Romualdo. Imagens de ordem: a doutrina católica sobre a autoridade no Brasil (1922-1933). São Paulo: UNESP, 1996. p. 101. Quando do ano da organização da AUC, 1929, até o momento que ela se uniu à ACB para formar a JUC (1937), a preocupação da maioria dos seus integrantes – estudantes dos cursos de medicina, direito e 38 maioria dos clérigos reacionários do período, que identificava como resultado mais desastroso da secularização o comunismo e seus seguidores, vistos como “bárbaros modernos, armados de foice e martelo”.26 Nesse momento, o crescimento do protestantismo no Brasil passou a se constituir, também, um sério problema para a Igreja, sobretudo os grupos pentecostais que açambarcavam um número considerável de pessoas das camadas sociais mais baixas das grandes cidades.27 As relações entre Estado e Igreja foram encaminhadas de modo pacífico e com grande nível de entrosamento entre Getúlio Vargas e D. Sebastião Leme. Essa afinidade rendeu frutos à Igreja que viu uma série de medidas favoráveis à sua política para si, incorporadas pela Constituição de 1934: [...] O prefácio da Constituição coloca-a “sob a proteção de Deus”, marcando com isso o fim da influência positivista; 2. Os religiosos obtêm direitos cívicos; 3. A personalidade jurídica das ordens religiosas não sofre entraves; 4. A assistência espiritual às organizações militares é consentida; 5. O casamento é reconhecido pela lei civil; O divórcio é proibido [...].28 Percebe-se, assim, que Getúlio Vargas não desprezou o poder da Igreja, manifestado através da sua influência moral sobre a sociedade. Scott Mainwaring ressalta que “[...] A ênfase que a Igreja atribuía à ordem, ao nacionalismo, ao patriotismo e ao anticomunismo coincidia com a orientação de Vargas. Clérigos destacados acreditavam que a legislação de Getúlio realizava a Doutrina Social da Igreja [...]”.29 Essa ação conciliatória, que o historiador Ralph Della Cava chamou de “concordata não escrita”, obviamente encontrou em Getúlio um grande colaborador, dada a sua aversão a tudo que fosse aparentemente democrático. Deve-se ressaltar que a Doutrina engenharia – se concentrava mais sobre religião e filosofia do que política. Tanto a AUC como a LEC foram frutos do intenso trabalho de Alceu Amoroso, que – em parceria com D. Leme e antes da adoção do pensamento democrático de Maritain – considerava ser a posição conservadora e de extrema direita espelho de um cristianismo autêntico. Sobre esse dado, confira: COSTA, Lucas Aparecido. A Juventude Universitária Católica na “Esquerdização” do Catolicismo Brasileiro (1950-1967). 2002. 83f. Monografia (Trabalho de Conclusão de Curso) – Faculdade de História, direito e Serviço Social, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2002, pp 16-22. A respeito de Amoroso Lima, não se deve perder de vista que sua militância foi marcada pelo signo da ambigüidade – ora à direita, ora à esquerda. Sobre esse ponto, ver: BUSETTO, Áureo. A democracia cristã no Brasil: princípios e práticas. São Paulo: Editora UNESP, 2002, p. 51. 26 Ibid., p. 49. 27A mensagem simples, sem fórmulas complicadas e de fundo proselitista, característica do protestantismo pentecostal, chamaria atenção do povo brasileiro, sobretudo das frações mais baixas da classe dominada. 28 Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1934. Artigos 17, 108, 113, parágrafos 5, 6, 144, 145 e 153. Apud: ALVES, Márcio Moreira. A Igreja e a Política no Brasil. São Paulo: Editora Brasiliense, 1979. p. 37. 29 MAINWARING, op. cit., p.47. 39 Social da Igreja, formulada inicialmente com a Encíclica Rerum Novarum (1891), de Leão XIII (1878-1903), favoreceu a aproximação, isto porque a sua concepção anticomunista e paternalista estava em conformidade com ideário varguista. Com o Estado Novo (1937), os acordos silenciosos entre ambos os poderes, se mantiveram. A Igreja soube usar bem da imagem carismática de “pai dos pobres” que foi sendo construída em torno de Getúlio Vargas. A figura do chefe de Estado dotado de um “coração” poderoso e generoso, como observado por Ângela de C. Gomes, objeto simbólico de ampla força religiosa e de uso comum nas mitologias políticas, era o centro do contrato político que, se desfeito, poderia ocasionar a sua morte – uma forma de fazer política, segundo a autora, impensável no modelo liberal.30 O populismo getuliano insuflou a Igreja. Nesse momento a Igreja para si fez do povo “[...] ‘massa de manobra’ nos planos de exploração política do Estado [...]”,31 e se colocou “[...] a serviço do povo, mas sob as bênçãos do governo que se servia do povo para interesses e objetivos oficiais [...]”.32 O apoio dos trabalhadores ao Estado Novo, decorrente da interpretação positiva do operariado sobre sua maior participação na política, não deve ser menosprezado. Não obstante o fato de o populismo ser antipopular, a conscientização de vários setores sociais, na década de 1960, pode ter seu ponto de partida situado nessas políticas paternalistas que, pretendendo destruir a consciência dos trabalhadores, acabaram lançando as bases para uma politização maior de diversos segmentos populares.33 Também os contatos estabelecidos entre a Igreja e as camadas médias e populares – que existiram entre os anos de 1930 e 1945, ainda incluídos na política da Igreja para si – forneceriam na década de 1950, especialmente na fase desenvolvimentista, contribuições significativas à construção de uma Igreja para o povo. Essa contribuição se daria, mormente, na conquista de autonomia política da base social, servindo tanto ao discurso populista varguista quanto aos interesses da Igreja para si. 30 GOMES, op.cit., p. 528-529. 31 LUSTOSA, op. cit., p. 55. 32 Ibid., p. 56. 33 Apesar da destruição das antigas experiências organizacionais de trabalhadores feitas pela política estadonovista, a mesma não impediu que os trabalhadores reconhecessem que, pela primeira vez na história do Brasil, seus direitos sociais haviam sido ampliados e garantidos por lei. Esse reconhecimento do “povo brasileiro” em relação ao assistencialismo governamental, se deu via construção de um mito em torno de Vargas, facilitado, obviamente, por sua própria personalidade, dotada de um imenso poder simbólico. 40 Pablo Richard aponta deverem as relações Estado/Igreja, fortalecidas com o advento da Revolução de 1930, ser interpretadas com os olhos direcionados para as conseqüências posteriores à crise de 1929, resultante na falência dos grandes proprietários de terra, na perda do poder político das oligarquias (tanto liberal quanto conservadora), na conquista da hegemonia política da burguesia nascente e no apoio crescente das camadas médias e de setores operários à política varguista, já que algumas das suas reivindicações trabalhistas haviam sido atendidas.34 Novamente assume importância o modo pelo qual as camadas médias e populares assimilaram a política paternalista de Vargas, que havia atendido parte de suas reivindicações como forma de conter possíveis revoluções. Refletindo o caráter de uma época marcada por rupturas e pela formulação de novas interpretações da realidade social, a pressão exercida pelas camadas populares na fase do populismo varguista forçaria a mudança da política de inserção da Igreja sobre o temporal. Também não se pode perder de vista o papel desempenhado, nesse contexto, pelos leigos da Ação Católica Especializada (AC) – possivelmente o embrião das futuras mudanças percebidas no terreno das práticas sociais dos fiéis adeptos da Esquerda Católica, em 1960. As raízes da Esquerda Católica da década de 1960 estariam situadas em alguns movimentos da Ação Católica, criados por D. Leme, com o fito de reforçar o projeto de recristianização da sociedade. A radicalidade a que chegaram alguns dos membros das seções especializadas da Ação Católica, na década de 1960, reforça o caráter do processo de mudança do habitus de uma fração do laicato católico. Essa ruptura pode ser vista por meio da formação de movimentos nascidos no interior de uma Igreja conservadora e ultramontana, contrários, todavia, à sua política de colaboração com o Estado. Se for correto não dissociar a “esquerdização” do catolicismo do contexto político e religioso da década de 1950, não é menos verdade que as raízes desse movimento devem ser buscadas, sobretudo, na dinâmica dos movimentos nascidos da Ação Católica. Destarte, é necessário abrir um “parêntese” com vistas a evidenciar a importância desse grupo, defensor de uma posição democrática de orientação maritainista, como forma de justificar sua prática engajada, sendo parte integrante e influente da própria realidade. 34 RICHARD, op. cit., p. 142-143. 41 O incentivo para a criação de um apostolado leigo se concretizou sob o pontificado de Pio XI (1922-1939), pelo nome de Ação Católica35. Segundo Áureo Busetto, “[...] com a organização e expansão da Ação Católica, Pio XI pretendia demonstrar o poderio da Igreja na mobilização das massas, estratégia então largamente praticada pela direita radical ou pela esquerda revolucionária [...]”.36 Transplantada para o Brasil, sem nenhuma adaptação à realidade nacional, a Ação Católica se transformaria – na passagem da política de uma Igreja para si a uma Igreja para o povo – num movimento responsável pelas mudanças que tornariam possíveis, num futuro próximo, o encaminhamento de uma nova prática social católica. A Ação Católica, fundada por D. Leme em 1923, no Rio de Janeiro, foi, inicialmente, segundo Pablo Richard, uma instituição sem nenhum significado apostólico e evangélico37. A liderança de um pequeno grupo de intelectuais católicos à frente desse movimento, entre eles Alceu Amoroso Lima se dava conforme os preceitos de Pio XI (1922-1939), segundo quem a evangelização deveria continuar a ser feita de “cima para baixo”; os bispos necessitavam de quadros organizacionais capacitados ao trabalho de auxílio à ação de D. Leme, não podendo estes serem recrutados senão entre a parcela da população católica culturalmente privilegiada38 e dona de consideráveis capitais. Percebe-se, portanto, que a Igreja para si não pensou e nem pretendeu ser e representar o povo e muito menos tornar-se sua porta-voz. Ainda na fase de sua consolidação (1923-1935), o grupo da Ação Católica travou uma luta com Plínio Correia de Oliveira, fundador do movimento Tradição, Família e Propriedade (TFP), para quem, o fato da Ação Católica ter recebido um mandatum da Igreja não a colocava acima dos demais movimentos católicos; alem disso Correia de Oliveira acusava o movimento de absorção de idéias modernas, contrárias à concepção da Igreja para si. A presença destacada de Alceu Amoroso Lima nos quadros da Açã