UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA – “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” – INSTITUTO DE ARTES DA UNESP Programa de Pós-Graduação em Artes Rafael Vicente Ferreira BNCC ARTE: ENTRE O SONHO NEOLIBERAL E O GOVERNO DA ALMA São Paulo 2021 Rafael Vicente Ferreira BNCC ARTE: ENTRE O SONHO NEOLIBERAL E O GOVERNO DA ALMA Dissertação submetida à UNESP – Universidade Estadual Paulista, como requisito parcial exigido pelo Programa de Pós-Graduação em Artes, para a obtenção do título de Mestre em Artes. Área de concentração: Artes e Educação. Linha de Pesquisa: Processos artísticos, experiências educacionais e mediação cultural. Orientadora: Prof. Dra. Luiza Helena da Silva Christov São Paulo 2021 Ficha catalográfica preparada pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da UNESP F383b Ferreira, Rafael Vicente, 1986-. BNCC Arte: entre o sonho neoliberal e o governo da alma / Rafael Vicente Ferreira. - São Paulo, 2021. 183 f. Orientadora: Prof. Dra. Luiza Helena da Silva Christov. Dissertação (Mestrado em Artes) – Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes. 1. Arte e educação. 2. Currículo. 3. Arte – Estudo e ensino. 4. Política educacionaI. 5. Neoliberalismo. I. Christov, Luiza Helena da Silva. II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. III. Título. CDD 707 (Mariana Borges Gasparino - CRB 8/7762) CERTIFICADO DE APROVAÇÃO Câmpus de São Paulo UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA BNCC Arte: entre o sonho neoliberal e o governo da almaTÍTULO DA DISSERTAÇÃO: AUTOR: RAFAEL VICENTE FERREIRA ORIENTADORA: LUIZA HELENA DA SILVA CHRISTOV Aprovado como parte das exigências para obtenção do Título de Mestre em ARTES, área: Arte e Educação pela Comissão Examinadora: Profa. Dra. LUIZA HELENA DA SILVA CHRISTOV (Participaçao Virtual) Professora Voluntária / Instituto de Artes da Unesp Profa. Dra. CECILIA HANNA MATE (Participaçao Virtual) Departamento de Metodologia do Ensino e Educação Comparada / Universidade de São Paulo Profa. Dra. RITA LUCIANA BERTI BREDARIOLLI (Participaçao Virtual) Departamento de Artes / Instituto de Artes da Unesp São Paulo, 07 de maio de 2021 Instituto de Artes - Câmpus de São Paulo - Rua Dr Bento Theobaldo Ferraz, 271, 01140070 http://www.ia.unesp.br/#!/pos-graduacao/stricto---artes/CNPJ: 48031918001791. Agradecimentos Ao meu filho Tiago, que nasceu no meio do processo de escrita dessa dissertação, entregando luz, alegria e esperança em meio aos dias sombrios da pandemia. A minha amada companheira Nina, mãe do meu filho, parceira de todas as aventuras, desafios, construções e sonhos. Que baita sorte que eu tenho de ter você, meu amor! A minha mãe Terezinha, minha segunda mãe, a Rita, e a minha sogra Sonia, pela imprescindível dedicação e rede de apoio no momento de aperto da quarentena. Sem a força afetiva e concreta de vocês essa escrita não seria possível. A minha orientadora Prof. Dra. Luiza Helena da Silva Christov, meu profundo agradecimento pelas palavras sábias e orientação tranquila. E a todo o bando do nosso grupo de pesquisa “Arte e Formação de Educadores”. Eu não seria sem vocês. A Beá Meira, mestra, quem me ensinou a conceber e escrever um material didático de arte/educação, que confiou no meu trabalho nas sortes dos começos e que manteve sempre acesa a chama de uma arte/educação crítica, transdisciplinar, decolonial e transformadora. Não tenho palavras, só gratidão. A Taiana Machado, Silvia Sotter, Valquíria Prates, Caio Paduan e demais autoras e autores brilhantes e combativos que tive a honra de trabalhar ao lado em tantas peripécias escritas, levantando as mais diferentes coleções de materiais didáticos de Arte. E aos editores e editoras que estavam conosco nessa jornada inquieta. Ao Silvio Hotimsky pelas leituras atentas e comentários perspicazes. E a todas e todos que de alguma forma passaram por essa pesquisa, das companhias nas aulas ao longo do mestrado, passando pelas prosas elétricas em encontros e reuniões aos telefonemas e videochamadas no isolamento social. Cada troca foi imprescindível. Muito obrigado. Dedicatória As arte/educadoras e arte/educadores que constroem uma educação insubmissa, feita de sonho, poesia e luta. Avante! Faremos uma nova aurora. RESUMO A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é um documento normativo que redefine os parâmetros da educação em todo território nacional, partindo de uma progressão de aprendizagens essenciais ancoradas em competências e habilidades. Na presente dissertação, a discursividade desse documento é investigada, tendo como enfoque o componente curricular Arte, envolvendo suas Unidades Temáticas (Artes Visuais, Dança, Música, Teatro e Artes Integradas) e a Área de Linguagens. Junto com a investigação da Base, outras discursividades relacionadas são cotejadas, com especial destaque para as transformações no Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) a partir da BNCC. A abordagem teórico-metodológica parte de um encontro entre os repertórios foucaultiano e marxista, com destaque para os processos de objetivação e subjetivação, determinados pela ideologia neoliberal hegemônica. Por fim, são indicados possíveis caminhos para “hackear” a BNCC Arte: construir a partir do próprio documento currículos críticos de arte/educação. Palavras-chave: Arte/Educação. Artes. Currículo. Educação. Ensino de arte. Política educacional. Neoliberalismo. BNCC. PNLD. ABSTRACT Title: The Brazilian Common Core Curriculum [BNCC] in Art: between the neoliberal dream and the government of the soul The Brazilian Common Core Curriculum [BNCC] is a normative document that redefines educational parameters for the entire nation, based on the progressive acquisition of essential learning competencies and abilities. Discourse analysis of this document is undertaken in this dissertation, focusing specifically on the Art component of the curriculum, involving its Thematic Units (Visual Arts, Dance, Music, Theater, and Integrated Arts) as well as the Area of Languages. In conjunction with the Common Core Curriculum, other discourses related to it are investigated, with special emphasis on the transformations it brought about within the Brazilian National Book and Didactic Material Program (PNLD). The theoretical and methodological framework of the analysis undertaken herein is based on an encounter between Marxist and Foucauldian repertoires, with special emphasis on processes of subjectification and objectification, determined by hegemonic neoliberal ideology. Finally, possible routes for “hacking” the Arts section of the BNCC are indicated: pathways for building critical art/education curricula based on the document itself. Keywords: Art/Education. Art Teaching. Arts. Curriculum. Education. Educational politics. Neoliberalism. BNCC. PNLD. BNCC Arte: entre o sonho neoliberal e o governo da alma Sumário Prólogo em forma de conto. Com o que sonha o Rei? ............................................. 10 Apresentação. Por que BNCC Arte? Para quê? ....................................................... 12 Introdução em duas partes: como nomear a vontade de verdade da BNCC? .......... 15 I. BNCC, PNLD, neoliberalismo e discursos-comentários .............................. 15 II. Das miradas de onde se vê: encontros, espaços e ferramentas ................ 31 1. Discursividade da BNCC: mapa teórico-metodológico da pesquisa ..................... 41 1.1. Objetivação e subjetivação ..................................................................... 41 1.2. Sonho neoliberal ..................................................................................... 45 1.3. Governo da alma .................................................................................... 53 2. A Base pela Base: Apresentação, Introdução e Estrutura .................................... 64 2.1. Apresentação da BNCC .......................................................................... 64 2.2. Introdução da BNCC ............................................................................... 71 2.2.1. Competências Gerais da Educação Básica .................................. 73 2.2.2. Os marcos legais que embasam a BNCC ................................... 102 2.2.3. Os fundamentos pedagógicos da BNCC .................................... 106 2.3. A Estrutura da BNCC ............................................................................ 116 3. Discursividade da BNCC Arte ............................................................................ 123 3.1. Arte e Cultura no Neoliberalismo Digital ............................................... 127 3.2. Área de Linguagens .............................................................................. 137 3.3. Arte e suas Unidade temáticas ............................................................. 147 3.4. Ensino Médio: subsunção do Componente Curricular Arte ................... 166 Considerações Finais. Princípios para “hackear” a BNCC Arte .............................. 173 Referencias: ........................................................................................................... 186 Bibliografía .................................................................................................. 186 Webgrafia .................................................................................................... 190 10 Prólogo em forma de conto. Com o que sonha o Rei? Tudo aconteceu em um tempo antigo, numa terra muito distante, pouco depois das celebrações das conquistas do Império. Foi nessa época que os pesadelos do Rei começaram. Todas as noites o regente era acometido por paisagens oníricas terríveis, cheias de sombras que lhe apunhalavam ardilosamente. O sono real quase não era possível. Assim que fechava os olhos para dormir, lá vinham os Inimigos do Rei, feitos de vultos e traições, povoando qualquer acontecimento sonhado. Dizia a crendice popular que o Rei era vítima de uma maldição, rogada silenciosamente por cada família plebeia faminta, pela peste rondando as ruas, pelo ódio diante das milícias reais e pelos lutos nunca elaborados. Mas eram só boatarias baratas. O fato é que dormir tornara-se uma penúria para o Rei, por mais que se esforçassem os conselheiros e sábios trazidos de todos os cantos do Império por sua diligente Esposa, afoita por encontrar soluções para as noites mal dormidas do seu amado marido, autoridade máxima e poder maior daquelas terras distantes. A solução só veio quando o Rei – cansado de dar atenção para os eruditos, astrônomos, médicos e cientistas trazidos por sua Esposa – resolveu aconselhar-se com seus Generais e Chefes de Polícia. Para esses novos conselheiros, acostumados a refletir tendo na espada, no conflito e no sangue os principais argumentos, a questão era bem simples: bastava ao Rei caçar as sombras dos seus sonhos, eliminá-las de todas as terras do reino, expurgar cada ameaça conspiratória do Império. “Pois se habitam o sono do Rei”, concluiu o mais velho General entre todos os Generais, “essas sombras certamente habitam também vossas terras, escondidas com ardil, tramando tua desgraça e a do teu Império.” Ao ouvir os conselhos dos Homens de Armas, o Rei subitamente iluminou-se com uma nova verdade. Expediu imediato Edito Real, concedendo aos Generais e Chefes de Polícia um poder nunca imaginado. A ordem era explícita: encontrar os traidores do Império, desentocá-los dos seus ninhos e sangrá-los em praça pública, para servirem de exemplo e não mais atormentarem os sonhos do Rei. Em pouco tempo já começavam a despontar fogueiras e abatedouros de gente por vilarejos, plantações e cidadelas plebeias. Qualquer suspeita era convertida em punições descabidas por parte das Autoridades. Os plebeus, sob a 11 sombra do Edito Real, eram considerados suspeitos em potencial, aquelas e aqueles responsáveis pelos pesadelos do Rei. A cada nova onda de genocídios e destemperanças, no entanto, melhor dormia o Rei. Ao relembrar de cada pessoa violentada antes de dormir, os pesadelos reais se convertiam em sonhos. Nessas novas paragens oníricas, o Rei, vestido com sua mais brilhante armadura, brandindo a mais mortal das espadas, montando o mais imparável dos corcéis, avançava contra as sombras assustadas, chacinando os sussurros que antes o amedrontavam, gozando com a onipotência do seu sonho de poder. Acontece que também os plebeus se revoltam, e não existia convencimento do espírito possível de sustentar as barbáries e perversões nas zonas populares do Império. Logo ficaram ocas as preces dos Padres e Pastores clamando a calma dos gentios, a narrativa do sangue azul e da herança divina, a liturgia cotidiana feita de fome e violência. Os plebeus deram um basta para todo governo de alma, engolido como um pão seco a cada nova manhã. E assim se acenderam as chamas de uma revolta camponesa, que se espalhou como fogo na palha entre miseráveis e famintos, já sem nada a perder. Contam que no fatídico dia do Incêndio da Corte, depois de ser abandonado por todos os Generais e Nobres, o Rei trancafiou-se sozinho em seu quarto. Para seu desespero, imensas sombras invadiram o lugar pela janela, desenhadas no dossel da sua cama real. Eram as sombras dos homens e mulheres em revolta que ateavam fogo ao castelo, tornando ruínas aquele carcomido e perverso mundo velho. Tradicionalmente, a moral dessa história é recitada em forma de pergunta. Existe uma divergência notável entre estudiosos e acadêmicos quanto as possíveis traduções dessa passagem, embates titânicos de feudos intelectuais. Na minha modesta opinião, que não sou nenhum especialista, eis a tradução que mais gosto da moral dessa antiga fábula: Se desejas saber os perigos do teu tempo, te pergunta: com o que sonha o rei? 12 Apresentação. Por que BNCC Arte? Para quê? Meu nome é Rafael Vicente Ferreira, também conhecido por Rafael Presto, meu nome artístico. Sou desse tipo: trabalhador da cultura. Escritor, roteirista, dramaturgo e teatrista. Graduado em Artes Cênicas na ECA – USP, com pós- graduação em Roteiro para Cinema e Televisão pela FAAP. Teatrista do Coletivo de Galochas, grupo com atuação continuada por mais de dez anos. Ao lado da minha trajetória de trabalhador das artes caminha uma outra, de arte/educador1. Fui professor de teatro e música em escolas públicas e particulares, oficineiro no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) e na Medida Sócio Educativa (MSE), artista orientador do Programa Vocacional. Educador e colaborador da Escola Popular de Teatro e Vídeo de São Paulo, ligada ao MST e a Rede Nuestra América. E por esses caminhos da arte e arte/educação recebi um convite, iniciando minha trajetória de autor de materiais didáticos de Arte2. Sou coautor de três coleções de livros didáticos aprovadas no PNLD3: Ligamundo Arte (Anos iniciais do Ensino Fundamental, PNLD 2019), Mosaico Artes (Anos finais do Ensino Fundamental, PNLD 2017 e PNLD 2020) e Percursos da Arte (Ensino Médio, PNLD 2018). As disputas e homologações até a versão final da BNCC modificaram radicalmente a escrita dos livros didáticos de Arte – a norma da Base tornou-se o critério de avaliação do PNLD. Na presente dissertação desempenho uma investigação dessa nova norma4 de pensar e fazer a Educação que tenta se impor através do documento, é essa a principal cisma da pesquisa. Por quais processo discursivos o horizonte teórico-normativo da BNCC, com suas categorias difusas como empreendedorismo, resiliência, habilidades socioemocionais, competências, se desenvolve? Como essa discursividade da 1 A grafia adotada está de acordo com Ana Mae Barbosa: “Prefiro a designação Arte/Educação (com barra) por recomendação feita por uma linguista, Lúcia Pimentel, que criticou o uso de hífen como usávamos em Arte-Educação, para dar o sentido de pertencimento. Já a barra, com base na linguagem de computador, é que significa ‘pertencer a’” (BARBOSA, 2010, p. 21). 2 Sempre quando grafada com maiúscula, Arte designa o componente curricular ou disciplina escolar. 3 Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). Programa do Ministério da Educação que financia e fiscaliza a produção e distribuição dos livros didáticos das escolas de todo território nacional. 4 Ao longo da dissertação, destaco em itálico termos e conceitos relevantes ao desenvolvimento teórico da pesquisa. Os termos destacados serão retomados, contextualizados e desenvolvidos no decorrer dos capítulos. 13 BNCC apresenta suas proposições de maneira tão naturalizada, óbvia, consensuada? Que tipo de relação específica estabelece com a noção de neoliberalismo? Como a Arte participa disso tudo? Como é compreendida na BNCC? Como arte e cultura são definidas nesse pensamento neoliberal? Para enfrentar essas perguntas, me aproximei do grupo de pesquisa Arte e Formação de Educadores, do Instituto de Artes da Unesp, liderado pela Prof. Dra. Luiza Helena da Silva Christov, também orientadora deste mestrado, a quem devo infinitas palavras de gratidão e carinho pela sabedoria e lucidez. Essa dissertação parte de uma proposta de análise da discursividade da BNCC Arte dividida em três capítulos, mais Introdução e Considerações Finais. O que pretendo é analisar o ato discursivo do documento, os efeitos do seu acontecimento, na busca de flagrar o regime de verdade que o torna possível. Na Introdução explano, em linhas gerais, a definição do que é a BNCC, relacionando o documento com discursos-comentários que se baseiam nele, destacando o PNLD e a produção do material didático de Arte, relacionados com a razão neoliberal. Faço também uma breve justificativa teórico-afetiva da metodologia da pesquisa, que atrela um repertório foucaultiano de análise com um repertório de crítica marxista ao longo da investigação. No Capítulo 1, contextualizo os principais termos e dispositivos utilizados nas análises da discursividade inicial da Base. Exploro os conceitos de objetivação e subjetivação, sonho neoliberal e governo da alma, modalidade atualizada e brasileira do poder pastoral. No Capítulo 2, avanço para a leitura do documento de fato, através de uma investigação pormenorizada da discursividade da BNCC, explorando as seções iniciais do documento: Apresentação, Introdução e Estrutura. No Capítulo 3, sigo à análise da discursividade da Base, avançando para o recorte específico do componente curricular Arte, o que envolve suas Unidades Temáticas (Artes Visuais, Dança, Música, Teatro e Artes Integradas) e a Área de Linguagens. Essa investigação é constituída a partir de um elencado conjunto teórico sobre arte, cultura e linguagem relacionados ao neoliberalismo contemporâneo. Por fim, nas Considerações Finais, arrisco possíveis caminhos para “hackear” a BNCC Arte, fornecendo pistas e destaques para a construção de currículos críticos de arte/educação a partir do próprio documento. A tentativa é fornecer ferramentas 14 teóricas que ajudem as professoras e professores de Arte na criação de seus planejamentos e aulas a partir do documento da Base, subvertendo seus dogmas neoliberais. 15 Introdução em duas partes: como nomear a vontade de verdade da BNCC? O desejo diz: “Eu não queria ter de entrar nesta ordem arriscada do discurso; não queria ter de me haver com o que tem de categórico e decisivo; gostaria que fosse ao meu redor como uma transparência calma, profunda, indefinidamente aberta, em que os outros respondessem à minha expectativa, e de onde as verdades se elevassem, uma a uma; eu não teria senão de me deixar levar, nela e por ela, como um destroço feliz”. E a instituição responde: “Você não tem por que temer começar; estamos todos aí para lhe mostrar que o discurso está na ordem das leis; que há muito tempo se cuida de sua aparição; que lhe foi preparado um lugar que o honra e o desarma; e que, se lhe ocorre ter algum poder, é de nós, só de nós, que ele lhe advém”. (FOUCAULT, 2014, p. 7) I. BNCC, PNLD, neoliberalismo e discursos-comentários A Base Nacional Comum Curricular participa da agenda dos governos e Ministérios da Educação desde 2014. No final de dezembro de 2017 foram aprovadas suas versões para as etapas da Educação Infantil e do Ensino Fundamental. Em dezembro de 2018, o documento terminou sua trajetória legal de elaboração, com a homologação da Etapa do Ensino Médio, aprovada pelo Conselho Nacional de Educação (CNE), completando toda a Educação Básica. O processo de produção e aprovação das diferentes etapas da BNCC foi marcado, de maneira contínua e persistente, por uma grande resistência de uma parcela expressiva da comunidade que compõe o amplo universo escolar, com severas críticas e incertezas por parte de docentes, sistemas de ensinos dos estados e municípios, instituições acadêmicas, espaços de formação e sindicatos5. Apesar das resistências, a BNCC está homologada, e suas consequências práticas e teóricas para a Educação Pública se desenvolvem em diferentes 5 Diversas publicações aconteceram para contestar especificamente a BNCC – artigos, teses e livros. Algumas estão presentes nesta dissertação (CURY, REIS, ZANARDI, 2018; FERNANDO, CATELLI JR, 2019). Além disso, inúmeras entidades publicaram notas de discordância ou repúdio ao processo de redação e implementação da Base Nacional Comum Curricular, disponível em: Nota da ANPED sobre a BNCC Ensino Médio < http://www.anped.org.br/news/nota-anped-proposta- de-bncc-do-ensino-medio-alguns-pontos-para-o-debate >; Nota da UBES sobre a BNCC Ensino Médio < https://ubes.org.br/2018/bncc-joga-ainda-mais- incertezas-sobre-o-ensino-medio/ >; Nota de das entidades sobre a audiência pública do CNE sobre a BNCC do Ensino Médio, divulgada e endossada pela FAEB < https://www.faeb.com.br/site/wp- content/uploads/2018/06/NOTA_entidades_BNCCEM_PARADIVULGAR.pdf >; Notícia do portal da SBPC sobre a BNCC Ensino Médio < http://portal.sbpcnet.org.br/noticias/a-bncc-do-ensino-medio- entre-o-sonho-e-a-ficcao/ >. [Todos os links apresentados na dissertação foram acessados no dia 16/09/2021.] http://www.anped.org.br/news/nota-anped-proposta-de-bncc-do-ensino-medio-alguns-pontos-para-o-debate http://www.anped.org.br/news/nota-anped-proposta-de-bncc-do-ensino-medio-alguns-pontos-para-o-debate https://ubes.org.br/2018/bncc-joga-ainda-mais-incertezas-sobre-o-ensino-medio/ https://ubes.org.br/2018/bncc-joga-ainda-mais-incertezas-sobre-o-ensino-medio/ https://www.faeb.com.br/site/wp-content/uploads/2018/06/NOTA_entidades_BNCCEM_PARADIVULGAR.pdf https://www.faeb.com.br/site/wp-content/uploads/2018/06/NOTA_entidades_BNCCEM_PARADIVULGAR.pdf http://portal.sbpcnet.org.br/noticias/a-bncc-do-ensino-medio-entre-o-sonho-e-a-ficcao/ http://portal.sbpcnet.org.br/noticias/a-bncc-do-ensino-medio-entre-o-sonho-e-a-ficcao/ 16 instâncias. A reformulação pretendida pela BNCC não é pequena, como demonstra seu site oficial: A Base Nacional Comum Curricular é um documento normativo que define o conjunto de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica. Seu principal objetivo é ser a balizadora da qualidade da educação no país por meio do estabelecimento de um patamar de aprendizagem e desenvolvimento a que todos os alunos têm direito! 6 A Base Nacional Comum Curricular é um documento que pretende reorganizar a produção escolar a partir do discurso impresso nas suas páginas, partindo da definição de uma progressão de aprendizagens essenciais ancoradas em competências e habilidades, em substituição à ideia de conteúdos mínimos e disciplinas escolares. A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é um documento de caráter normativo que define o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica, de modo a que tenham assegurados seus direitos de aprendizagem e desenvolvimento (...). Ao dizer que os conteúdos curriculares estão a serviço do desenvolvimento de competências, a LDB orienta a definição das aprendizagens essenciais, e não apenas dos conteúdos mínimos a ser ensinados. (BRASIL, 2018, p. 7. Ênfase do próprio documento) A expectativa da Base é reformular o aparato da educação sob a bandeira dos critérios e horizontes pedagógicos anunciados na discursividade do documento. Em franco processo de aplicação (ou de tentativa de), vem gerando redesenhos curriculares das instituições de Ensino Básico por todo o país7, bem como orientando a produção de materiais didáticos do PNLD. Atrela-se a isso inúmeras políticas e materiais de formação para docentes e gestores vinculados ao horizonte de competências e habilidades que orientam a discursividade do referido documento – desenvolvidos por organizações sociais e institutos privados, em sua maioria, 6 Disponível em: < http://basenacionalcomum.mec.gov.br/a-base >. 7 “BNCC: os desafios para 2019 e 2020”. Matéria do site Nova Escola. < https://gestaoescolar.org.br/conteudo/2268/bncc-os-desafios-para-2019-e-2020 >; “Discussões sobre BNCC: construção de currículo e próximos desafios”. Matéria do site Conviva Educação < https://convivaeducacao.org.br/fique_atento/1842 >. http://basenacionalcomum.mec.gov.br/a-base https://gestaoescolar.org.br/conteudo/2268/bncc-os-desafios-para-2019-e-2020 https://convivaeducacao.org.br/fique_atento/1842 17 pautados pela implementação de mecanismos de fiscalização e controle do trabalho das professoras e professores a partir dos parâmetros da BNCC8. Utilizo o termo discursividade e não discurso por uma distinção analítica. Busco analisar o discurso na sua dimensão de acontecimento, de ato discursivo. É essa dimensão que o insere em uma ordem, a ordem do discurso, que responde a uma determinada norma, com seus constrangimentos, regulações, princípios. Estamos diante da operação de jogos de verificação que tornam possíveis a um ato discursivo inserir-se dentro do terreno da verdade. O discurso e uma série de elementos que operam no interior do mecanismo geral do poder. Consequentemente, é preciso considerar o discurso como uma série de acontecimentos, como acontecimentos políticos, através dos quais o poder é vinculado e orientado (...). O que me interessa, no problema do discurso, é o fato de que alguém disse alguma coisa em um dado momento. Não é o sentido que eu busco evidenciar, mas a função que se pode atribuir uma vez que essa coisa foi dita naquele momento. Isto é o que eu chamo de acontecimento. (FOUCAULT, 2006, p. 254) A dimensão concreta do acontecimento do discurso opera não no vazio das palavras impressas abstratas, mas nas proposições de objetivação e subjetivação das discursividades, sempre apontadas para sujeitos concretos, os alvos para produção do discurso e seus efeitos. Analisar a discursividade da BNCC é compreender que a redação das suas linhas é também uma prática discursiva que busca normatizar a constituição dos sujeitos que habitam o Aparato Escolar através do ato do seu dizer, essas linhas cheias de intencionalidades impressas no documento. Por isso a abordagem dirigida ao campo de análise das práticas discursivas, das discursividades, abordando o estudo pelo viés do que se faz com o sujeito, por essa construção correlativa do sujeito e objeto no interior de práticas que tornam inteligíveis esses mesmos sujeito e objeto. No caso da discursividade da BNCC, o objeto é o “estudante”, e os sujeitos são as crianças e jovens que serão traduzidos a partir dos parâmetros de saber extraídos desse objeto. Como se, enquanto são 8 BNCC na escola: guia para os gestores escolares. Material disponível no site da Fundação Lemann. < https://fundacaolemann.org.br/noticias/bncc-na-escola-guia-para-os-gestores-escolares >; Formação continuada: materiais para ajudar secretarias e gestores. Material disponível no site do Movimento pela Base: < https://movimentopelabase.org.br/acontece/formacao-continua-materiais- para-ajudar-secretarias-e-gestores/ >. https://fundacaolemann.org.br/noticias/bncc-na-escola-guia-para-os-gestores-escolares https://movimentopelabase.org.br/acontece/formacao-continua-materiais-para-ajudar-secretarias-e-gestores/ https://movimentopelabase.org.br/acontece/formacao-continua-materiais-para-ajudar-secretarias-e-gestores/ 18 esquadrinhados como estudantes, as crianças e jovens aprendessem, objetiva e subjetivamente, a serem estudantes. O tipo de análise que pratico não trata do problema do sujeito falante, mas examina as diferentes maneiras pelas quais o discurso desempenha um papel no interior de um sistema estratégico em que o poder está implicado, e para o qual o poder funciona. (...) O poder não é nem fonte nem origem do discurso. O Poder é alguma coisa que opera através do discurso, já que o próprio discurso é um elemento em um dispositivo estratégico de relações de poder. (...) Estudo também as funções estratégicas de tipos particulares de acontecimentos discursivos no interior de um sistema político ou de um sistema de poder. (FOUCAULT, 2006, p. 253 – 254) É assim que a análise desempenhada na presente pesquisa parte da discursividade da BNCC. Uma pesquisa sobre o interior produtivo dos dizeres do documento da Base, buscando a ordem do seu discurso, seus dispositivos de constrangimento e indução normativos, apontados para os sujeitos e instituições aos quais suas linhas se destinam. Outro recurso que utilizo na investigação da BNCC é comparar a discursividade da Base com discursos-comentários que são produzidos a partir dela. O discurso-comentário é um tipo bem particular de discursividade, sempre parte de uma escolha reflexiva de uma discursividade primeira. Para além de apenas replicar o discurso original, esses discursos-comentários criam novas compreensões e efeitos de poder. Seu comentário não é pura repetição, mas é também, e sobretudo, criação. Assim, os discursos-comentários, no interior de um dispositivo institucional, atrelam uma discursividade original a um novo e inédito efeito produtivo do poder. Em primeiro lugar, o comentário. (...) pode-se supor que há, muito regularmente nas sociedades, uma espécie de desnivelamento entre os discursos: os discursos que "se dizem" no correr dos dias e das trocas, e que passam com o ato mesmo que os pronunciou; e os discursos que estão na origem de certo número de atos novos de fala que os retomam, os transformam ou falam deles, ou seja, os discursos que, indefinidamente, para além de sua formulação, são ditos, permanecem ditos e estão ainda por dizer. Nós os conhecemos em nosso sistema de cultura: são os textos religiosos ou jurídicos, são também esses textos curiosos, quando se considera o seu estatuto, e que chamamos de "literários"; em certa medida textos científicos. (FOUCAULT, 2014, p. 21) A BNCC traz uma discursividade que declaradamente pretende permanecer, ser a fonte de origem de “certo número de atos novos de fala” que a retomem, produzindo inéditos e eficientes efeitos de poder. Esses “atos novos de fala” é o que estou chamando de discurso-comentário. São dispositivos centrais para 19 implementação da BNCC nos meandros produtivos do aparato da Escola, que replicam, comentam e/ou reiteram a discursividade da Base, inventariando novos objetos e princípios de subjetivação nesse movimento de repetição produtiva. A presente dissertação tem como núcleo de investigação a análise da discursividade da BNCC Arte e seus desdobramentos de objetivação e subjetivação. Dessa maneira, flanarei de maneira utilitarista diante desses dispositivos discursivos de comentário, procurando pistas e emergências que auxiliem na análise da própria discursividade original da Base. Perseguindo esse objetivo, o primeiro discurso-comentário que abordarei diz respeito a relação entre a BNCC e os editais do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). A partir do momento em que foi aprovada institucionalmente, a Base tornou- se o critério central para a produção de livros e materiais didáticos voltados para a rede pública de ensino, fiscalizados via Ministério da Educação. Dessa forma, investigar os efeitos produzidos nos editais do PNLD, que passam a ser discursos- comentários da Base, é compreender de que maneira a discursividade da BNCC estabelece normas e determinações produtivas concretas nas instituições e conteúdos da Educação. O PNLD9 é responsável por orientar e fiscalizar a escrita dos materiais didáticos, além de financiar a impressão e garantir a distribuição em todas as instituições de ensino básico público presentes no território nacional. O PNLD é o arranjo mais recente de um dispositivo institucional que surgiu no Estado Novo, administrado pelo Ministro Gustavo Capanema: o Instituto Nacional do Livro (INL). Criado por medida provisória em dezembro de 1937, o INL era responsável por distribuir obras didáticas para os estudantes da rede pública de todo Brasil. Surge como complemento produtivo de um outro departamento, criado um pouco antes, sob o manto da ditadura varguista – o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). A criação do Instituto Nacional do Livro, pelo Decreto-Lei n. 93, de 21 de dezembro de 1937, sob direção de Gustavo Capanema, imprimiu nos currículos uma espécie de ideologia oficial nos textos, já que os livros, para efeito de publicação e de divulgação, deveriam ter a autorização do 9 No site oficial do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) temos uma linha do tempo com a criação e as transformações do PNLD. Disponível em: < http://www.fnde.gov.br/component/k2/item/518-hist%C3%B3rico >. http://www.fnde.gov.br/component/k2/item/518-hist%C3%B3rico 20 Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). (CURY, REIS, ZANARDI, 2018, p. 32.) Operando por mais de 80 anos, a produção de livros e materiais didáticos via governo federal mudou bastante ao longo do tempo, chegando no arranjo que tem hoje com o PNLD. Destaco algumas dessas transformações, importantes para compreendermos como esse dispositivo assumiu o modus operandi que possuí nos dias atuais em sua relação franca e direta com a implementação da BNCC. O primeiro ponto de destaque está nas modificações desempenhadas no programa ao longo da Ditadura Civil-Militar, que contribuíram fortemente para o escalonamento da produção e distribuição dos materiais didáticos, com apoio explícito da Agência Norte-Americana para o Desenvolvimento Internacional (USAID - United States Agency for International Development, em inglês). A agência estadunidense fechou um acordo secreto com o MEC, firmado em 1964, mas tornado público somente em 1966, o acordo MEC-USAID, com o intuito de auxiliar nas ações referentes a produção, edição e distribuição do livro didático, em conjunto com um aporte generoso de recursos (ALVES, 1968). É através desse famoso acordo que se cria, portanto, a Comissão do Livro Técnico e Livro Didático (Colted) que, transformando-se ao longo da história, passará a ter a atual nomenclatura de PNLD na década de 1980. O apoio dos EUA neste início tem explícita motivação econômica: formar a mão-de-obra necessária para tentar garantir os lucros dos capitais investidos no Brasil, parte das estratégias de submissão política e econômica do governo da Ditadura Civil-Militar à influência norte-americano. Soma-se a esse movimento de formação objetiva de mão-de-obra um desejo determinado de subjetivação do sujeito estudante, relacionado a terminologia do capital humano. É a teoria do capital humano que concentra a expectativa formativa do horizonte pedagógico do acordo MEC-USAID, relativo ao aparato da Educação. O conceito de capital humano foi explicitamente desenvolvido a partir da década de 1960 (...). Um dos pontos centrais da teoria é o de que o capital humano é algo deliberadamente produzido pelo investimento que se faz no indivíduo a partir da educação formal e do treinamento; que a produtividade do indivíduo resulta na maior ou menor quantidade de capital humano que venha este a possuir. Sustenta ainda a teoria [do capital humano] que um indivíduo em relação a outro, na medida em que o seu nível de educação cresce, cresce também sua renda, no pressuposto de que é pela educação e pelo treinamento que a 21 produtividade do indivíduo aumenta, tudo dentro do suposto neoclássico da teoria econômica de que os fatores de produção são remunerados de acordo com a sua produtividade marginal. Desse modo, tem-se que as pessoas são por natureza educáveis (bens com potencialidades produtivas a partir do nível de aprimoramento); a educação tem como função precípua desenvolver as habilidades e conhecimentos objetivando o aumento da produtividade; um maior índice de estudos corresponde a um maior número de ganhos de habilidades cognitivas; e finalmente, quanto maior for o grau de produtividade, maior será a cota de renda que a pessoa perceberá. (ARAPIRACA, 1979, p. 33 e 34) É esse novo objeto, capital humano, que serve de base para uma longa jornada de transformações nas discursividades e práticas educativas-pedagógicas, com sua respectiva racionalidade e regime de verdade. Essa terminologia desenrola seu rastro histórico até a formulação da BNCC, orientada sob os mesmos princípios do capital humano, atualizados ao calor do momento atual. Contudo, vale ressaltar, o problema em si da diferenciação não reside no interior da escola somente, mas sim na estrutura social utilitarista que lhe dá forma e atribuições de reprodução desses valores. E são esses valores da competição, por exemplo, pelos quais o individuo é confundido com o capital e tratado utilitarísticamente como mercadoria, que carecem ser discutidos. (ARAPIRACA, 1979, p. 242) Mas é em 1985, com o Decreto nº 91.54210, que é criado o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), estabelecendo as dinâmicas que se mantiveram, e foram intensivamente aprimorados, até os dias atuais. Trata-se basicamente de um princípio de terceirização, onde toda a gestão da cadeia do livro didático – concepção, produção e distribuição – é transferida para grandes grupos editoriais privados. Ao governo federal, via Ministério da Educação, cabe o papel de financiador e fiscal, além de determinar os princípios curriculares, legais e éticos que devem orientar a escrita dos materiais. A função do PNLD é garantir que cada aluno ou aluna matriculada no ensino básico da rede pública escolar brasileira receba livros didáticos dos mais variados componentes curriculares, o que expressa a dimensão de investimento necessária para bancar a impressão e distribuição dos livros em todos os segmentos da Educação Básica. O programa é financiado através do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). Enquanto esta dissertação é finalizada, a produção de obras e coleções para o PNLD 2021, que visa a produção de materiais didáticos para a etapa do Ensino 10 Disponível em: < https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1980-1987/decreto-91542-19-agosto- 1985-441959-publicacaooriginal-1-pe.html >. https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1980-1987/decreto-91542-19-agosto-1985-441959-publicacaooriginal-1-pe.html https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1980-1987/decreto-91542-19-agosto-1985-441959-publicacaooriginal-1-pe.html 22 Médio da Educação Básica, acaba de ser concluída. O seguimento do Ensino Médio foi o que sofreu as mudanças mais agravadas na nova BNCC, em conjunto com a aprovação da lei nº 13.415/201711. O edital do PNLD, que estabelece os critérios para a produção dos materiais didáticos, manteve esse movimento de transformação e ruptura do Ensino Médio, propondo um novo jeito de se conceber e avaliar os materiais didáticos, de acordo com a nova Base. Trata-se de um negócio de dimensões vultuosas: o PNLD é um programa de cifras bilionárias que aquece uma gigantesca indústria. Sendo ele um programa que existe há trinta anos, já nesse formato atual, passando por altos e baixos, os gestores do capital puderam praticar inúmeras manobras no seu interior, transferindo de maneira cada vez mais direta toda a renda do programa, dispondo recursos e poder administrativo de maneira mais e mais direta aos empresários da educação, organizados em holdings e grupos de investimentos. Para se ter uma ideia da dimensão dessa Indústria, o PNLD teve o orçamento na casa dos R$1,3 bilhões em 2017, dinheiro destinado ao mercado- indústria dos livros didáticos das escolas públicas nacionais. Desse montante de recursos, 70% ficou na mão de cinco grandes grupos editorais, como nos lembra o pesquisador Fernando Cássio em seu artigo Existe vida fora da BNCC?, reiterando que: “A Base é, antes de tudo, uma política de centralização curricular. Alicerçada nas avaliações em larga escala e balizadora dos programas governamentais de livros didáticos.” (CÁSSIO in CÁSSIO, CATELLI JR, 2019, p. 13). Já para 2019 – 2020, esse orçamento está previsto para casa de R$2,3 bilhões12. Esses materiais são concebidos e produzidos por esses grupos editoriais, que disputam esse orçamento. Além disso, com o crescimento desse mercado nos últimos anos, grande parte das editoras de pequeno e médio porte foram adquiridas em longuíssimas cadeias de fusão, gerando imensas e lucrativas corporações educacionais. A atuação de grupos empresariais não se pauta exclusivamente em deter os meios de produção de materiais didáticos para concorrer no PNLD, se espraiando em uma extensa fauna dentro do Mercado e Indústria da Educação, 11 Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13415.htm > 12 Disponível nos Dados estatísticos do PNLD, site do FNDE: < https://www.fnde.gov.br/index.php/programas/programas-do-livro/pnld/dados-estatisticos > Também na matéria para o portal de Educação do G1 sobre o Orçamento do PNLD 2019-2020: < https://g1.globo.com/educacao/noticia/2019/09/13/orcamento-do-governo-federal-preve-cortes-para- educacao-basica-em-2020.ghtml >. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13415.htm https://www.fnde.gov.br/index.php/programas/programas-do-livro/pnld/dados-estatisticos https://g1.globo.com/educacao/noticia/2019/09/13/orcamento-do-governo-federal-preve-cortes-para-educacao-basica-em-2020.ghtml https://g1.globo.com/educacao/noticia/2019/09/13/orcamento-do-governo-federal-preve-cortes-para-educacao-basica-em-2020.ghtml 23 capitalizando cada nódulo produtivo, tanto do setor privado quanto do público. Esses conglomerados empresariais da educação têm como objetivo principal o lucro, somado a um modelo formativo neoliberal defendido por seus gestores. Tomemos como exemplo a consolidação da atual Cogna Educação13, de outubro de 2019. Foi uma longa trajetória até a formação desse holding, responsável pela marca Saber, grupo editorial criado para assumir as coleções e materiais didáticos da antiga SOMOS Educação, responsável até então por quase metade das coleções aprovadas nas últimas edições do PNLD. Se soa confuso é porque é mesmo confuso, uma verdadeira avalanche de aquisições financeiras e transformações empresariais em curto tempo, desempenhadas pelo aquecimento cada vez maior do Mercado da Educação. A Cogna Educação surge com a mudança de nome, somada a uma ampla reorganização e nova departamentalização produtiva da maior empresa privada de educação do Brasil, a Kroton Educação14. Para desenrolar toda essa narrativa empresarial, tomemos como começo da história a SOMOS Educação, um começo impreciso certamente, porque a SOMOS Educação já está no meio, já é o resultado de um primeiro movimento de fusão, desempenhado pelo grupo de investimentos Tarpon. A SOMOS Educação surgiu através de um conglomerado formado pela aquisição da editora Scipione em conjunto com outros selos do grupo Abril Educação (Abril Educação que, por sua vez, foi fundado a partir de uma fusão da editora Ática, Scipione e o sistema de ensino SER, em 2010), somada a editora Saraiva, a Red Baloon e os sistemas de ensino Anglo e pH. Foi a fusão de todas essas marcas e editoras que fez surgir a SOMOS Educação, comprada depois pela Kroton em um novo movimento de acumulação empresarial, que assumiu o controle acionário da coisa toda. Assim, os selos e coleções que antes eram da Somos Educação tornaram-se ativos submetidos a organização-mãe Saber Serviços Educacionais S.A.15, submetida à Kroton. Mas, na autofagia sistêmica do neoliberalismo rentista, as transformações não cessam, e chegamos enfim a mais recente mutação, operada em transações 13 Cogna Educação – Site Oficial: < https://www.cognaedu.com.br/ >. 14 Época Negócios, Matéria digital: “Maior grupo de educação do país, Kroton vira Cogna e se divide em quatro”. Disponível em: < https://epocanegocios.globo.com/Empresa/noticia/2019/10/maior-grupo- de-educacao-do-pais-kroton-vira-cogna-e-se-divide-em-quatro.html >; 15 Kroton pede abertura de capital da holding Saber – matéria da Forbes: < https://forbes.com.br/last/2018/06/kroton-pede-abertura-de-capital-da-holding-saber/ >. https://www.cognaedu.com.br/ https://epocanegocios.globo.com/Empresa/noticia/2019/10/maior-grupo-de-educacao-do-pais-kroton-vira-cogna-e-se-divide-em-quatro.html https://epocanegocios.globo.com/Empresa/noticia/2019/10/maior-grupo-de-educacao-do-pais-kroton-vira-cogna-e-se-divide-em-quatro.html https://forbes.com.br/last/2018/06/kroton-pede-abertura-de-capital-da-holding-saber/ 24 acionárias da cifra dos bilhões, onde a Kroton foi rebatizada e reorganizada através da holding Cogna Educação. E por que me embrenhei em toda essa narrativa de formatação dessa corporação-império industrial-empresarial da Educação, nessa história um tanto absurda – seja pelas cifras, seja pelo seu desenrolar vertiginoso de aquisições –, nesse conto trágico da educação tomada como franca mercadoria no auge do espírito neoliberal? Porque é no interior de suas cadeias produtivas que essa dissertação se inicia, no mais concreto dos seus termos. Este que vos escreve trabalha como autor de livros e materiais didáticos desde 2010, acompanhando, no interior caótico e produtivo da escrita de coleções de Arte para disputar o PNLD, essa guerra empresarial pelo conteúdo que será distribuído nas escolas públicas nacionais. Tendo escrito coleções e materiais para diferentes editoras, fagocitadas nesse imenso movimento corporativo de concentração do capital financeiro, pude acompanhar algumas das transformações operadas pela BNCC desde esse ponto de vista bem específico, qual seja, do autor de livros e materiais didáticos de Arte. Apesar da longevidade do PNLD dentro das dinâmicas escolares públicas, que como vimos existe desde 1985, os materiais didáticos voltados ao componente curricular Arte são razoavelmente recentes. O programa passou a incluir distribuição de livros de Arte a partir do PNLD 2015, destinado ao Ensino Médio. E foi essa ampliação da indústria do livro didático, que passava agora a englobar o componente curricular Arte, que permitiu minha entrada nesse universo, dada a minha formação especializada em teatro. Isso porque o extenso debate da arte/educação no Brasil entre polivalência e formação específica marcará de maneira decisiva a concepção da Arte nos critérios do PNLD, exigindo que os materiais didáticos abordassem o que se definiu como as quatro áreas da Arte na cultura escolar, às vezes chamadas de linguagens: Artes Visuais, Dança, Música e Teatro16. Na BNCC, essas áreas foram rebatizadas de Unidades Temáticas, recebendo o acréscimo de um quinto elemento, Artes Integradas. Minha formação especializada em artes cênicas, somada a minha trajetória como arte/educador e aos meus trabalhos teatrais e artísticos, garantiram uma 16 Da mesma maneira que faço com Arte, quando designo Artes Visuais, Dança, Música ou Teatro com maiúscula me refiro a tradução dessas áreas da expressão humana no interior da cultura escolar, as quatro áreas/linguagens/unidade temáticas que oficialmente constituem a disciplina/componente curricular Arte. 25 entrada para as minhas produções literárias dentro do campo dos materiais educacionais e didáticos, desempenhados no interior de um escalonamento massivo. Tive esse privilégio da autoria desses livros didáticos, escritos em conjunto com uma equipe, distribuídos para milhões de estudantes. Mais do que isso: estávamos construindo a própria cultura dos livros didáticos de Arte na rede pública, que estava no começo de sua história, portanto, ainda sem modelos consagrados estabelecidos – um terreno novo de criação e conhecimento literário, um processo de disputa do estabelecimento de quais conteúdos, princípios e metodologias, qual cultura escolar seria priorizada para arte/educação na praxe desses materiais. Sempre empenho minhas pretensões políticas e estéticas nos meus trabalhos como artista e educador. Fui aluno de escola pública – no Ensino Fundamental, Médio e Universitário –, e quando convidado para escrever materiais didáticos, ainda sem nenhuma noção da dimensão do trabalho que estava me embrenhando, o que me motivava era um objetivo central bastante idealizado: escrever o livro didático de Arte que eu sonhava em ter quando era um estudante da rede pública da cidade de São Paulo. E movido por esse sonho, sustentado por princípios de crítica e transformação radical da sociedade, iniciei essa trajetória de autor de livros e materiais didáticos de Arte, que foi assumindo contornos cada vez maiores, com crescentes responsabilidades. Não era possível imaginar, absolutamente, o que é o interior produtivo de um material didático para o PNLD. Na perspectiva do autor, escrever uma coleção de livros didáticos é uma batalha sem descanso de longa duração, um furacão de prazos e exigências de edital manobrados no esforço de manter o material que se escreve crítico e consequente. Uma lida permanente com duas determinantes normativas constantes, impostas pelo MEC: o tempo e a norma curricular. Uma observação mais detalhada dessas duas determinantes pode fornecer um quadro de como funciona a regulação da escrita dos livros e materiais didáticos, da perspectiva do autor17. A delimitação tempo/prazo é mais fácil de destacar e nomear dentro da produção de um material didático para o PNLD. O número demarcado após o nome do programa indica o ano em que o livro didático deve estar nas salas de aula, 17 Para análise que segue, utilizei principalmente os Editais do PNLD que tomei contato enquanto autor, do PNLD 2015 até o PNLD 2023, que podem ser conferidos no site do FNDE: < https://www.fnde.gov.br/index.php/programas/programas-do-livro/consultas/editais-programas-livro > https://www.fnde.gov.br/index.php/programas/programas-do-livro/consultas/editais-programas-livro 26 sendo usado pelos estudantes no ano letivo referido (PNLD 2019, PNLD 2020, PNLD 2021 etc.) É a relação entre o lançamento do edital pelo MEC e o prazo de chegada nas mãos dos estudantes que determina o tempo de produção disponível para a concepção e desenvolvimento desses materiais didáticos. O PNLD 2015, por exemplo, o que teve Arte incluída pela primeira vez, teve seu edital lançado em janeiro de 2013, garantindo um prazo de dois anos para concepção, realização, impressão e distribuição dos materiais didáticos. Esse tempo de planejamento e produção foi se estreitando cada vez mais, chegando ao limite no PNLD 2021, com sua primeira Audiência Pública, que apresentou uma versão provisória do Edital, acontecendo em outubro de 2019. Isso deixou, descontados os tempos de avaliação e distribuição, menos de 6 meses para produção dos materiais e livros didáticos que serão utilizados por todos os estudantes do Ensino Médio da rede pública escolar brasileira no ano letivo de 2021. Dada a dimensão de investimento que gira dentro da indústria, as empresas não abrem mão de participar, não importando o declínio da qualidade dos materiais didáticos por conta dos prazos exíguos. Isso demonstra esse primeiro limite produtivo, o mais básico deles, que atua como força concreta no interior de uma produção desse tipo. Na perspectiva do autor, pressionado pelas empresas educacionais para quem submete seus escritos, a corporação que garante os rendimentos da autoria no mercado editorial educacional como está desenhado, o tempo/prazo é crucial, constrangendo as possibilidades de escrita do material. Já a segunda delimitação é infinitamente mais complexa, transitando necessariamente por meandros ideológicos: a norma curricular adotada pelo MEC na composição do Edital do PNLD. Participam dessa norma um conjunto de critérios de exclusão. Uma parte deles diz respeito à legislação, às diretrizes e às normas oficiais. Cada jurisdição aprovada que se destina ao campo da Educação tem de ser considerada no interior dos critérios do edital do PNLD, a começar pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), passando pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), além do conjunto de Diretrizes Nacionais para Educação envolvendo o Ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, a Educação Ambiental e Educação em Direitos Humanos. As jurisdições de caráter de norma aos materiais didáticos são bem extensivas, chegando até o Código de Trânsito 27 Brasileiro por exemplo, através da Lei 9.503/1997. O edital do PNLD 202318, por exemplo, na sua alínea 2.2, traz uma listagem de módicos 32 aportes, passando por Leis, Decretos, Políticas, Programas, Diretrizes, Normas e Portarias, que as coleções devem contemplar, com risco de serem reprovadas no edital. Soma-se a todas essas determinações legais um outro conjunto, o das decisões curriculares amplas, determinadas pelos grandes documentos discursivos que servem de orientação curricular geral para a educação brasileira. Na atualidade, esse documento normativo curricular é a BNCC. Na perspectiva de um autor ou autora de materiais didáticos do PNLD, as grandes decisões curriculares do MEC têm peso de norma, servem de critério para aprovação ou não do material didático no edital. No momento em que é homologada, a BNCC torna-se o critério obrigatório para composição do edital do PNLD, consequentemente, um critério normativo para composição e escrita do material didático de Arte pelas autoras e autores propriamente ditos – como outrora foram os Parâmetros Curriculares Nacionais, por exemplo. São esses os ingredientes que são dispostos no Edital do PNLD, que tem como tarefa apontar a direção produtiva, concreta, o critério que balizará a escrita dos diferentes componentes curriculares. Além dessas normativas legais completa- se no interior das suas prerrogativas um conjunto mais difuso, mais subjetivo, de critérios eliminatórios, apresentados em três grandes campos principais. O primeiro diz respeito aos princípios éticos e morais que servem de fundo para a produção dos materiais didáticos, normalmente escamoteados sob o manto do conceito de cidadania e de convívio social republicano. São termos amplos e genéricos sobre o que a coleção não pode fazer. Como exemplo, destaco o Edital do PNLD 202119: 2.1.2. Observância aos princípios éticos necessários à construção da cidadania e ao convívio social republicano 2.1.2.1. Em decorrência do marco legal supracitado, a obra didática deve: a. Estar livre de estereótipos ou preconceitos de condição socioeconômica, regional, étnico-racial, de gênero, de orientação sexual, de idade, de linguagem, de deficiência, religioso, assim como de qualquer outra forma de discriminação, violência ou violação de direitos humanos. b. Estar livre de doutrinação religiosa, política ou ideológica, respeitando o caráter laico e autônomo do ensino público. (...) (BRASIL, 2021, p. 51) 18 Edital do PNLD 2023 disponível em: < https://www.fnde.gov.br/index.php/programas/programas-do- livro/consultas/editais-programas-livro/item/14094-edital-pnld-2023 > 19 Edital do PNLD 2021 disponível em: < http://www.fnde.gov.br/index.php/programas/programas-do- livro/consultas/editais-programas-livro/item/13106-edital-pnld-2021 > https://www.fnde.gov.br/index.php/programas/programas-do-livro/consultas/editais-programas-livro/item/14094-edital-pnld-2023 https://www.fnde.gov.br/index.php/programas/programas-do-livro/consultas/editais-programas-livro/item/14094-edital-pnld-2023 http://www.fnde.gov.br/index.php/programas/programas-do-livro/consultas/editais-programas-livro/item/13106-edital-pnld-2021 http://www.fnde.gov.br/index.php/programas/programas-do-livro/consultas/editais-programas-livro/item/13106-edital-pnld-2021 28 O segundo campo está ligado aos conteúdos e teorias da coleção que concorrerá ao edital, determinando que a coleção mantenha a coerência e adequação na sua escolha de abordagem teórico-metodológica, garantindo o uso correto de conceitos, informações e procedimentos, até a atenção à erros gramaticais. Esse critério, teoricamente, não deveria determinar uma metodologia específica para a escrita dos materiais didáticos, mas sim respeitar a multiplicidade de formulações teóricas para a produção desses livros, garantindo a qualidade na execução dessas escolhas, e não o tipo de metodologia que deve orientar a escrita de todos os materiais. No entanto, esse respeito a pluralidade de métodos e concepções pedagógicas não se mantem, não desde a chegada da BNCC. Retomando o PNLD 2021, que normatizou a escrita dos materiais destinados ao Ensino Médio, temos, já logo na introdução das Considerações Gerais para avaliação das obras, uma amostragem do repertório metodológico e teórico que as coleções devem aspirar, pautados pela Base Nacional Comum Curricular, com risco de serem desclassificadas se não o fizerem. 1. Considerações gerais – Características e objetivos do ensino médio: Última etapa da educação básica, o ensino médio passa por um amplo processo de reformulação que tem como propósito promover uma trajetória escolar que faça mais sentido, gere maior engajamento, dialogue com o projeto de vida dos estudantes e desenvolva conhecimentos, habilidades, atitudes e valores que os empoderem para lidar com os desafios da sociedade contemporânea. (...) Nessa perspectiva, o PNLD 2021, na esteira do PNLD 2019 (Educação Infantil e Anos Iniciais do Ensino Fundamental) e do PNLD 2020 (Anos Finais do Ensino Fundamental), se propõe a promover o desenvolvimento das competências gerais, competências específicas e habilidades definidas pela BNCC, sempre estimulando a autonomia, o protagonismo e a responsabilidade dos estudantes, para que eles sejam capazes de fazer escolhas e tomar decisões em relação a seus projetos presentes e futuros. (BRASIL, 2021, p. 48 e 49. Grifos do próprio edital) Termos como projeto de vida, habilidades, atitudes, valores, competências, são apresentados com naturalidade de compreensão, como se já fossem determinantes orgânicas para a produção de todo o aparato da Educação, metodologias aceitas e incorporadas nas escolas e salas de aula do Brasil inteiro. É por essas searas que, ao chegar no segundo campo de critérios do PNLD, aquele que diz respeito a coerência e adequação da abordagem teórica-metodológica da 29 coleção inscrita para concorrer no edital, temos, de fato, a imposição de um conjunto bem específico para realização dessas obras: 2.1.3. Coerência e adequação da abordagem teórica-metodológica 2.1.3.1. Por mais diversificadas que sejam as concepções e as práticas de ensino e aprendizagem, a obra didática deve propiciar ao estudante uma efetiva apropriação de conhecimentos, habilidades, atitudes e valores, conforme estabelecido pela BNCC. (BRASIL, 2021, p. 52) Por fim, o terceiro campo majoritário de avaliação do PNLD diz respeito ao manual do professor, relativo a “Adequação e pertinência das orientações prestadas ao professor” (BRASIL, 2021, p. 53). O Manual do Professor é um livro que só as e os docentes têm acesso, que traz orientações para realização das atividades, explicita as bases teóricas do material e aponta possibilidades de autoformação para o professorado. Existem outros campos de atenção, como “correção e atualização de conceitos, informações e procedimentos” (BRASIL, 2021, p. 52) à “Observância às regras ortográficas e gramaticais da língua na qual a obra tenha sido escrita” (BRASIL, 2021, p. 54). Mas são esses três campos – I. princípios éticos relativos à cidadania; II. coerência e adequação metodológica; e III. manual do professor – que demonstram com maior precisão a transposição da normatividade da BNCC para os materiais didáticos. Como vimos, é através dessa transposição normativa sutil entre determinantes legais, grandes reformas educacionais oficiais e um campo mais ou menos subjetivo de expectativas éticas, morais, pedagógicas, teóricas e conteudísticas que é feito o Edital do PNLD. Dessa forma que se determina o critério da norma para a escrita dos livros didáticos que vão para as escolas públicas do Brasil inteiro, inclusos aí os de Arte. E é justamente essa transposição que torna o PNLD um dispositivo poderoso para aplicação de um currículo, uma excelente ferramenta, da perspectiva do Estado-Mercado, para consolidar determinado conjunto de terceirização de práticas escolares associada a certa concepção de educação, mundo e sujeito, elaborando em proposições sedutoras e concisas o que antes era só indicado no interior de uma discursividade fria de um documento como a Base. Dessa maneira que a aprovação da BNCC é profundamente determinante no interior produtivo da escrita dos materiais didáticos, atrelada ao movimento lucrativo 30 das fusões e aquisições do gigantesco Mercado-Indústria da Educação. Como autor, junto da equipe que faço parte, fui sendo arrastado, com nossos livros e materiais didáticos de arte/educação, de fusão em fusão, vendo precarizar meu trabalho de escritor na mesma medida que aumentava a pressão para submeter toda concepção didática a essa metodologia e concepção teórica camuflada, retirada do corolário neoliberal, feita de critérios difusos, pouco sedimentados, como competências e habilidades socioemocionais, pedagogias ativas, projeto de vida. As disputas críticas que estávamos imersos no interior produtivo da escrita dos livros didáticos, nós, autoras e autores do material de Arte, guiados por nossos propósitos enquanto arte/educadores, nunca eram poucas. A batalha permanente de fazer um material consequente – politicamente posicionado, crítico, intercultural, decolonial, transdisciplinar – sempre é desigual e desgastante. Guerrear por determinado conjunto de conteúdos, realizar múltiplos enfrentamentos políticos- teóricos por metodologias consequentes, defender radicalmente as singularidades e especificidade das linguagens e saberes artísticos – são esses os campos de peleja de qualquer arte/educador ou arte/educadora que tente manter seus princípios diante das contingências de produzir um material didático. Uma peleja ingrata e difícil diante de um arranjo empresarial-industrial orientado para o lucro, sonhando com a transformação das e dos estudantes em máquinas neoliberais de competências e habilidades socioemocionais, mediadas pelo capital humano. É desse caldo intenso que surge a necessidade da presente dissertação. Construir um ponto de vista de todo esse movimento de maneira distanciada, estabelecer um repertório de ferramentas de análise e reflexão em conjunto com um ponto de vista alternativo de toda essa eufórica disputa. Qualquer coisa assim que me permitisse, ao menos, em meio ao furacão de contingências das pressões, prazos e determinações curriculares, ver. Simplesmente a construção de uma mirada e um tempo de reflexão, uma mistura de ensinamento, ajuda e incentivo ao ato de analisar e pensar nossos turbulentos dias, recortados sob as disputas vivas da arte/educação diante da BNCC e suas forças neoliberais de enunciação. Me ajuda a olhar? 31 II. Das miradas de onde se vê: encontros, espaços e ferramentas A cisma da presente dissertação surgiu dessa necessidade pragmática: compreender as forças que determinavam meu trabalho de autor de materiais didáticos de Arte no interior desse dispositivo estatal do PNLD orientado pela BNCC. Analisar como esses circuitos de saber neoliberal eram impostos, mapear as forças que determinam as formas de dizer da educação que são recebidas como verdadeiras no interior do horizonte normativo teórico-curricular da Base. Procurava um espaço que congregasse três eixos complementares que pareciam necessários para dar conta dessa cisma. Primeiro, um espaço de produção de conhecimento que tivesse por eixo a Educação Pública, tanto em suas formulações de pesquisa quanto pelos integrantes da sua composição, preferencialmente no interior de uma universidade também pública. Em segundo lugar, que esse espaço tivesse na arte/educação uma fonte de inquietação permanente, um horizonte teórico-crítico, libertário, aberto e pulsante. Por fim, eixo um pouco mais esfumaçado, quase um eixo devaneio, mas nem por isso menos determinante: encontrar um espaço de encontro inquieto e revolucionário, mas que fosse também afetivo e sereno, rigoroso com o conhecimento sem ser dogmático, com abertura para o narrativo e o poético sem se perder na imprecisão do relativismo absoluto ou no abandono do sonho e da utopia. E foi através desses três eixos que terminei encontrando, para minha boa sorte e da minha pesquisa, no Instituto de Artes da Unesp, o grupo de pesquisa Arte e Formação de Educadores, liderado pela Prof. Dra. Luiza Helena da Silva Christov. O Grupo Arte e Formação de Educadores possuí Sete Valores que servem de bússola ao seu desenvolvimento vivo. As cismas iniciais da minha pesquisa foram anguladas sob a lente desses Valores, o que terminou por delinear as ferramentas e miradas para, enfim, transformar o que era só inquietação e instinto em um processo de produção de conhecimento vivo e corajoso. Foi a reelaboração das questões e objetos concretos que me inquietavam, a BNCC e seus efeitos de poder, a partir desses sete Valores que tornou possível estabelecer um chão de palavras para firmar a pesquisa, estabelece suas referências e princípios. O Valor 1 consiste em ter na literatura uma fonte de ensinamento importante para dizer e conhecer, uma utilidade sensível para escrita do conhecimento; uma 32 tentativa de impedir o conhecimento de cair no ostracismo da soberba de uma intelectualidade fria e apartada das paixões e rasgos da sensibilidade e do mundo. O Valor 2 está em carregar a filosofia como referência partindo de uma relação de padecimento profundo, literalmente, escolher um conjunto determinado de pensadores e padecer com suas palavras, buscando, nessa febre – que se associa a uma febre de mundo – a complexidade da experiência do conhecimento. O Valor 3 atenta para a busca que se dá nem pela teoria, nem pela prática, mas pela experiência, valorizada enquanto método; o que na minha pesquisa significa encarar a BNCC em sua experiência discursiva, em seu ato de dizer, sua discursividade. O Valor 4 se apoia numa dupla humildade complementar do narrador e do aprendiz, onde devemos narrar como quem aprende e aprender com quem narra, atentos, mas sem ser submissos, as tradições e gigantes que sussurraram suas histórias antes das nossas; o narrar é aqui destinação, uma busca de sentido para nós, seres de palavras. O Valor 5 se refere ao encontro com o Outro sem previsões e prescrições à troca, tentando apreender as relações a partir do que é suscitado no interior dos seus jogos de realização e significação, elaborar a troca com o Outro na busca de um presente feito em ato, na materialidade do acontecimento do encontro. O Valor 6 alerta para o permanente ruído dos desejos das trocas, das dificuldades e limites do encontro com o Outro, e da redobrada atenção com o perigo perverso de ter, na lida com o desejo do Outro, uma vontade de objetificação desse desejo. Em suma, cuidar para não praticar a submissão do desejo do Outro, transformado em um Objeto de saber e poder. E o Valor 7, por fim, leva a premissa do educar-se por estar com, de onde carreguei, de saída, a premissa da Pedagogia como Pirataria de Jorge Larrosa, com sua ousadia de profanar o saber, de sonhar a escola como um lugar público que profana o conhecimento (LARROSA, 2016). Sem dúvida esse último Valor profano, associado a ideia de padecer com a filosofia (Valor 2) e com buscar a experiência da discursividade (Valor 3), que compuseram o gesto decisivo da presente pesquisa. Esse conjunto me induzia a um tipo de tombamento diante do mundo, a tal mirada silenciosa e potente para contemplar minha cisma. Um espaço capaz de superar a opinião apressada e os nomes antigos, tendo na interrogação um anzol, somado a certa abertura ao mistério 33 da escrita, não por mistificação, mas pelo esforço de não impor nenhuma instrumentalização ou imposição em sua lida. Dessa reflexão valorativa se apontou o filosofo que eu padeceria para estabelecer o centro movediço da minha pesquisa. O vigoroso uso desse pensador por Jorge Larrosa no artigo Tecnologia do Eu e Educação (LARROSA, 1994) reforçava a aposta. Trata-se do pensador francês Michel Foucault, a quem devo muitas horas de prazeroso padecimento. Iniciei pela tentativa de utilizar os princípios da arqueologia e da genealogia como bússola no trabalho de análise da discursividade da BNCC Arte. Compartilho a compreensão do pesquisador Roberto Machado, no artigo Por uma genealogia do poder (MACHADO, 2017), sobre a novidade metodológica desse procedimento de análise: um jeito singular de abordagem da questão do poder, que tem no saber seu campo próprio de investigação. A questão do poder não é o mais velho desafio formulado pelas análises de Michel Foucault. Surgiu em determinado momento de suas pesquisas, assinalando uma reformulação dos objetivos teóricos e políticos que, se não estavam ausentes dos primeiros livros, ao menos não eram explicitamente colocados, complementando o exercício de uma arqueologia do saber pelo projeto de uma genealogia do poder. (MACHADO, 2017, p. 7.) O objetivo central desse tipo de análise é estabelecer relações entre os saberes, cada um tomado dentro de sua própria positividade, sem julgar com base em um saber posterior ou superior. Isso permite individualizar formações discursivas, encontrar os elementos que estabelecem sua regularidade, no caso do presente projeto, as formações e regularidades presentes na discursividade da 3ª Edição da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). A análise que proponho busca compreender o saber como materialidade na sua relação com o poder, não como resultado de um jogo mecânico de um poder absoluto e universal, essencialista. Importante destacar que a genealogia não é uma teoria geral do poder. Não se apoia conceitualmente em uma ontologia do poder, uma essência do que é o poder definido por suas características universais. Sua base de análise é fragmentária e transformável, buscando o movimento cambiante do poder como prática social constituída historicamente. (MACHADO, 2017, p. 13.) O saber é compreendido como materialidade a partir da análise da sua atuação objetiva na realidade – o ato do saber. Esse acontecimento é desempenhado fundamentalmente através de regimes produtivos/discursivos, que 34 enformam um jeito determinado para esse saber acontecer. Todo ato discursivo é filiado a uma determinada discursividade que o torna possível. Essas discursividades habitam a sociedade em uma rede complexa de instituições, normas e critérios, abrangendo diferentes gramáticas, interlocutores, naturezas e efeitos. Imaginemos cadeias discursivas específicas para ilustrar a imagem, como o discurso jurídico, o discurso médico, o discurso psicológico – e toda a teia de instituições que produzem e são produzidos por esses regimes discursivos, como o tribunal, o hospital, o manicômio. Atrelados a todo esse complexo de maneira indissociável estão as e os indivíduos que formulam e são formulados por essas instituições, categorias sociais que reformulam a forma de perceber e produzir a totalidade da sociedade: o juiz e o réu; o médico e o paciente; o psicólogo e o louco. A discursividade escolar – com seus jargões, entendimentos, formulações e História – produz e é produzida pelo aparato da Escola, sendo formulada e formulando o professor e o estudante. Habita o conjunto de discursividades do atual regime de verdade hegemônico, este que se associa aos processos de objetivação e subjetivações da sociedade neoliberal brasileira contemporânea. O que temos é uma constelação de cadeias discursivas atuando como forças perenes, erguidas e aprimoradas no interior de uma longa tradição de práticas sociais, fomentando a vida comum e seus regimes de verdade. São atos de fala que enformam a base dos processos de subjetivação da sociedade, as cadeias discursivas que fundamentam nossa maneira de ler e dizer o mundo, ou seja, o discurso da experiência de si, as ferramentas essenciais para a autoprodução da identidade. O princípio da especificidade é muito importante nesse entendimento. O discurso não é cúmplice do nosso conhecimento, não traz um jogo de significações prévias. Trata-se de um acontecimento, o acontecimento específico daquele discurso. É na análise dessa prática singular, historicamente restrita, que é possível encontrar as marcas e princípios da sua regularidade – no caso da presente pesquisa, os princípios e marcas que formam o todo da discursividade da BNCC. O acontecimento de um discurso, seu ato na realidade, é cercado de inúmeros imprevistos arriscados, de coisas que podem sair do controle. São muitos os perigos que cercam as discursividades, e ainda mais perigosas são suas infinitas possibilidades de serem concebidas. O poder, para manter e sustentar seus efeitos, 35 apoia-se em diversos dispositivos que constrangem as possibilidades dos dizeres, construídos e praticados socialmente, restringindo quais discursividades são possíveis. Compartilhamos assim a hipótese do Foucault de que (...) em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e distribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade. (FOUCAULT, 2014. P. 8 e 11.) Tomamos como princípio para essa análise o pequeno e potente livro A Ordem do Discurso: aula inaugural no Collège de France (FOUCAULT, 2014). Nesse texto, Foucault lança as premissas da tarefa que pretende desempenhar na cátedra que acabara de assumir no Collège de France: investigar as relações entre as práticas discursivas e os poderes que as permeiam. Sua proposta é realizar um estudo das interdições que atingem o discurso, uma análise dos diversos procedimentos que desempenham esse ato de cerceamento e controle da produção das discursividades, abrangendo suas reproduções e permanências na sociedade. No caso da presente pesquisa, minha cisma é bem específica, dizendo respeito aos discursos oficiais da educação pública no Brasil, especificamente sua mais recente manifestação, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Que dispositivos são construídos socialmente para constranger as discursividades possíveis, restringindo em um campo fechado de possibilidades o discurso? É possível analisar a BNCC como um dispositivo de indução a uma determinada discursividade dentro do universo produtivo do aparato escolar? Como isso acontece? O objeto de fundo que a discursividade da BNCC evoca – as aprendizagens essenciais que os alunos devem obter, as habilidades que precisam adquirir para alcançar determinado mito de igualdade e inteireza socioemocional – cerca-se de que tabus? Que determinações atuam para construir um campo de que é permitido ou não falar dentro da circunstância dessa discursividade? Quais são os objetos que ancoram centralmente a BNCC em seu arranjo disciplinar? Qual seu horizonte teórico? Que vontade de verdade serve de parâmetro para estabelecer as condições de verdadeiro e falso no interior discursivo da BNCC? Como essa vontade de verdade atua no campo da Arte? Como a Arte interfere e é interferida nesse jeito de dizer e fazer o sujeito e a educação? 36 Essas questões emergiram ao longo da investigação central que aqui desempenho, a análise da discursividade da BNCC Arte. Os três capítulos que constituem essa dissertação descrevem esse esforço, um debruçar atento a cada linha e palavra do referido documento. Antes de apresentá-los, no entanto, resta uma pequena ressalva sobre a escolha do pensamento e análise foucaultiana como motor fundamental, mas não exclusivo, da minha pesquisa. Padeci profundamente do pensamento e das obras de Michel Foucault, com toda sinceridade. Encontrei nexos diretos e gritantes com fenômenos que cercam minha vida concreta, essa que transcorre na realidade dessa periferia do neoliberalismo global contemporânea chamada Brasil (em meio a governança bolsonarista), e as proposições foucaultianas sobre poder, saber e subjetivação – a descrição dos fenômenos de objetivação e subjetivação na constante e franca guerra pela verdade. A disputa da determinação dos regimes e jogos de veridicção, sua filosófica única sobre a produção da identidade e da subjetividade no interior mesmo desses jogos e regimes, sempre caem como dinamites na minha compreensão da realidade que me rodeia. E não à toa: essa tendência ao confronto do atual é uma das grandes preciosidades da obra foucaultiana. Compartilho a perspectiva de Joel Birman, em seu artigo Jogando com a Verdade. Uma Leitura de Foucault (BIRMAN, 2002), de que grande parte da potência dos escritos de Foucault está nessa postura permanente de confrontar a realidade imediata que o rodeava. Tanto nos objetos que escolhe investigar à história – como a sexualidade, a prisão, a confissão, o governo – quanto na sua formulação filosófica, Foucault assume o compromisso de um pensamento voltada para as disputas do agora. Um princípio de sempre atualidade que guia o esforço de análise, provocando as definições não apenas do que pensar, mas também como pensar. Com essa formulação seminal, Foucault procurou inscrever o discurso filosófico no horizonte de seu tempo, isto é, nas linhas de força e nos antagonismos que permeariam o espaço social em que existia. Esta seria a maneira de inscrever o futuro no presente, sob a forma da sua antecipação. Procurou assim afastar aquele de uma posição meramente contemplativa, de forma a transformá-lo numa arma de combate das questões maiores da contemporaneidade. Para isso, no entanto, necessário seria que a filosofia abandonasse o seu ranço academicista, pelo qual se restringia à pura exegese dos sistemas filosóficos do passado e à escrita de novos comentários para a composição da história da filosofia, para se engajar definitivamente nas problemáticas maiores indicadas pela atualidade. (BIRMAN, 2002, p. 304) 37 Um compromisso estreito da produção de conhecimento com as disputas reais de poder da contemporaneidade. Atacar de maneira profunda os pressupostos dos processos de objetivação e submissão que nos rodeiam, na tentativa de flagrar e enfrentar o ato mesmo do poder, combater esse tipo esquisito de hipermaterialidade do acontecimento da submissão, por isso mesmo atrelado com a verdade e a subjetivação. Inventar uma forma de travar combate com um regime de verdade sofisticado e contemporâneo, um regime discursivo que faz coincidir submissão, liberdade e sonho de maneira quase indistinta. Eis um compromisso que assumi diante das operações, as vezes sutis, as vezes explicitas, da BNCC na extensão do seu acontecimento discursivo. E a análise foucaultiana é um dos seus mapas, o principal deles, sem dúvida. Mas isso não pode ser confundido com defender um essencialismo foucaultiano da análise discursiva, ou mesmo filiar a presente dissertação a determinado feudo pós-crítico da produção acadêmica atual. Essa ressalva não é nem um pouco trivial. Significa que adotei uma espécie de postura utilitarista descarada ao longo das análises desempenhadas daqui para frente. Que, quando necessário, recorri a autores de diferentes fontes teóricas, mesclando perspectivas sobre sociedade, poder, educação, cultura, arte, economia, intercalando um conjunto de autores que, muitas vezes, são tomados em relação de oposição. O principal ponto de tensão possível, por exemplo, está na composição entre teorias marxistas e teorias foucaltianas que utilizo na pesquisa, buscando pontos de intersecção ao invés de pontos de oposição entre as duas perspectivas teóricas. Dessa forma, utilizo sem nenhum constrangimento diversos autores marxistas, sobretudo nas investigações sobre a Razão Neoliberal, a partir da obra da dupla Pierre Dardot e Christian Laval, e nas investigações específicas sobre arte e cultura, através das obras de Terry Eagleton e Raymond Willians, mas não somente. Quando determinado esforço de análise emergente vai além do ponto de vista foucaultiano (esse que se propõe mais ou menos da perspectiva do sujeito, ali nas tessituras micropolíticas dos processos de saber, poder e subjetivação – o que não é demérito de nenhum tipo), lanço mão de outros pensadores desse conjunto heterodoxo. É possível que se diga, e com bastante razão, que esse encontro de referências, teorias e pensadores só pode levar a um conjunto contraditório, 38 abertamente conflitante, que senão por uma imprecisão ou aberração teórica poderiam compor um todo crítico. O que é verdade. Mas foi um pouco dessa tarefa mesma que me propus, a criação de uma geringonça analítica, onde os conceitos são costurados partindo sempre do compromisso estreito com o esforço de análise e sua emergência, e tão somente isso – desprendido de compromissos de submissão a grandes e seguros portos inequívocos de nichos filosófico-teóricos. Mesmo porque, descambando para o limite da escrita subjetiva dessa apresentação, nosso é um tempo saturado de Igrejas e Pastores de todos os tipos. Não tenho a pretensão, mais do que isso, não quero correr o risco de parecer que professo a palavra de Foucault, ou de Marx, ou de qualquer outro feudo de produção acadêmica. Sou contrário a qualquer sacralização ou dogmatismo no campo da produção de conhecimento, seja uma sacralização pós-moderna ou crítica, um dogmatismo foucaultiana ou marxista. Essas Igrejas de produção de conhecimento, preservadas pela repetição dos seus rótulos, são feudos circunscritos em uma dinâmica triste de um academicismo narcísico, distanciado de seu compromisso útil e sublime com a realidade presente. Um circuito de produção de conhecimento articulado em nome da sua autossobrevivência e autoafirmação requintada. Não procuro nenhum tipo de filiação ou capital intelectual em torno da minha dissertação. Busco um tipo de análise errática, uma tentativa de formulações inusitadas, de deixar-se surpreender com as urgências do contemporâneo. Uma postura que busca convergência nos diferentes dispositivos de análise, um encontro criativo do que me parece ser o melhor do parco e insuficiente arsenal crítico que consigo mobilizar. Penso que, dessa maneira, honro, digamos assim, o maior dos esforços desempenhados por Foucault: não se deixar submeter a nenhuma grande unidade essencialista totalizante para produção do pensamento, não ceder o terreno da Verdade e do Sujeito a nenhuma idealização abstrata transcendente, não responder senão à urgência dos tempos violentos que nos cercam. No caso da presente dissertação, investigo o gesto de poder expresso na discursividade da BNCC Arte, apontado para o aparato da Educação e seus dispositivos. Feita essa última ressalva, voltemos ao breve resumo dos três capítulos que compõem a presente dissertação, encerrando, enfim, essa longa introdução. No Capítulo 1. Discursividade da BNCC: mapa teórico-metodológico da pesquisa, contextualizo os principais termos e dispositivos utilizados para analisar a 39 discursividade da Base, sobretudo suas formulações teóricas gerais. Exploro os conceitos de objetivação e subjetivação, desempenhados na BNCC a partir da razão e do sonho neoliberal. Esses conceitos são investigados através de discursos- comentários que orbitam a Base , atrelando essa produção discursiva ao governo da alma, modalidade atualizada e bem brasileira do poder pastoral. No Capítulo 2. A Base pela Base: Apresentação, Introdução e Estrutura, parto para a leitura minuciosa da BNCC, iniciando a análise da discursividade do documento. A busca é flagrar o ato discursivo da Base, expondo uma determinada perspectiva de poder, saber e subjetivação para a Educação brasileira. Ao longo da análise, tento refletir as partes internas da BNCC com sua própria retórica, fazendo emergir sua maquinaria de governo. Busco a relação teórica da Base pela Base, encontrando o significado que sua discursividade desenha para os conceitos e como vão se relacionando até formar o seu todo discursivo. Essa investigação torna evidente o vínculo entre a discursividade da BNCC e a ideologia neoliberal, que se infiltra como único sonho possível para Educação. No Capítulo 3. Discursividade da BNCC Arte, avanço a análise da discursividade para o componente curricular Arte, desdobrado nas suas cinco Unidades Temáticas – Artes Visuais, Música, Dança e Teatro e Artes Integradas. O que exige a análise da Área de Linguagens, da qual Arte faz parte, bem como uma reflexão sobre os diferentes segmentos da Educação Básica (Ensino Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio). Para dar conta desses campos de investigação, esse capítulo traz algumas definições provisórias para Linguagem, Arte, Cultura e Estética no interior da Razão e do Sonho Neoliberal, agregando um novo repertório de termos à pesquisa. De que maneira específica a discursividade da Arte contribui para o governo contemporâneo? Como alimenta a positividade neoliberal? Como as diferentes linguagens artísticas, que possuem seus saberes especializados e formação singular, participam dessa imensa discursividade? Por fim, nas Considerações Finais. Princípios para “hackear” a BNCC Arte, apresento um conjunto de estratégias e destaques da Base passíveis de serem mobilizados para subverter a ordem discursiva do próprio documento. A ideia é traçar um mapa teórico-metodológico que possa servir a construção de currículos e planejamentos críticos para as aulas de Arte, partindo das definições teóricas da própria BNCC para o campo da arte/educação – feito de pressupostos generalistas, superficiais e positivos para Arte e suas múltiplas linguagens artísticas –, mas 40 utilizando esse referencial para outros propósitos: para produzir e sonhar uma arte/educação, e consequentemente uma escola, para muito além do sonho neoliberal e seu governo da alma. 41 1. Discursividade da BNCC: mapa teórico-metodológico da pesquisa Ars est artium regimen anumarum (“o governo das almas é a arte das artes”) - Gregório, o Grande20. 1.1. Objetivação e subjetivação Escrito no ano de sua morte, existe esse anedótico, conciso e poderoso texto de Foucault, em que o filósofo resume os percursos da sua escrita e formulação de conhecimento, descrevendo a trajetória de sua pesquisa – as inquietações iniciais, objetos centrais, métodos de análise e princípios teóricos. Anedótico porque assinado sob o pseudônimo de Maurice Florence, M.F., numa analogia com a abreviação de seu próprio nome, Michel Foucault. Trata-se do artigo-verbete Foucault (FOUCAULT, 2004, p. 234), escrito em 1984 para o Dictionnarire des philosophes (Dicionário dos Filósofos)21. Todo a peripécia do pseudônimo é contada em uma breve introdução do verbete que, com suas pouco mais de 5 páginas, formula com assombrosa precisão os princípios metodológicos que Foucault utilizava, o bote de tigre sempre armado em sua lida com o conhecimento, a filosofia, a história, o pensamento e a verdade. Nesse artigo, Foucault nomeia sua própria obra de história crítica do pensamento. O pensamento, esse ato que coloca em suas diversas relações possíveis um sujeito e um objeto, é colocado sob crítica. Assim, a crítica do pensamento é a análise das condições das formas de relação sujeito X objeto e suas modificações. As condições dessa forma são constitutivas de um saber, no duplo movimento de sua formulação e acontecimento. Não se trata de definir as condições formais de uma relação com o objeto: também não se trata de destacar as condições empíricas que puderam em um dado momento permitir ao sujeito em geral tomar conhecimento de um objeto já dado no real. A questão é determinar o que deve ser o sujeito, a que condições ele está submetido, qual o seu status, que posição deve ocupar no 20 Escrito e organizado por Gregório Magno, o último “bom papa”, na virada do século VI para o VII, o livro Regulas Pastoralis reúne ensinamentos e reflexões em torno da prática do pastoreio das almas e sua relação com as dinâmicas do poder da Igreja no período. (in FOUCAULT, 2008, p. 212, Nota 47.) 21 Esse livro foi traduzido e publicado no Brasil (Huisman, Denis. Dicionário dos filósofos. São Paulo: Martins Fontes, 2001). No entanto, os comentários aqui desempenhados foram feitos a partir da tradução do Ditos e Escritos V (FOUCAULT, 2004, p. 234). Trata-se de duas publicações do mesmo artigo, o verbete Foucault, escrito pelo próprio Foucault sob pseudônimo de Maurice Florence, M.F. 42 real ou no imaginário para se tornar sujeito legítimo deste ou daquele tipo de conhecimento; em suma, trata-se de determinar seu modo de “subjetivação”. (...). (FOUCAULT, 2004, p. 234) Esses domínios dos modos de subjetivação não operam somente no nível abstrato do pensamento. E na sua relação com os objetos de conhecimento que a subjetivação estabelece seu efeito de poder. E assim chegamos na objetivação, que é a maneira pela qual alguma coisa é definida como objeto para um conhecimento possível. Isso envolve a eleição da pertinência de suas partes, os recortes de análise que essa coisa será submetida, constituindo-se a partir desses processos como objeto de conhecimento. É dessa relação entre subjetivação e objetivação que emerge o modo de subjetivação do sujeito no interior complementar de um aparato de objetos de conhecimento. O movimento vivo da história da crítica do pensamento que Foucault desempenha tem na subjetivação e na objetivação um duplo ponto de ataque. Evocando um duplo ponto de atenção produtiva na lida crítica com a discursividade da BNCC. Quais os princípios de subjetivação e objetivação que o documento determina no dizer da sua norma? São as relações de desenvolvimento mútuo e ligação recíproca entre objetivação e subjetivação que dão origem aos jogos de verdade, segue Foucault no verbete-artigo de si mesmo. A Verdade surge desse encontro entre o Saber e o Poder, que determina os objetos de conhecimento e os modos de subjetivação dos sujeitos. É da soma dessas verdades com seus critérios que emergem os regimes de veridicção, os critérios que estabelecem o que é verdadeiro e o que é falso em um determinado contexto social, singularmente histórico. É isso que faz com que a história crítica do pensamento seja a história da emergência dos jogos de verdade. A história das “veridicções”, entendidas como as formas pelas quais se articulam, sobre um campo de coisas, discursos capazes de serem ditos verdadeiros ou falsos: quais foram as condições dessa emergência, o preço com o qual, de qualquer maneira pela qual, ligando um certo tipo de objeto a certas modalidades do sujeito, ela constitui, por um tempo, uma área e determinados indivíduos, o a priori histórico de uma experiência possível. (FOUCAULT, 2004, p. 235) Atento aos movimentos produtivos de objetivação e subjetivação, “a constituição do a priori histórico de uma experiência possível”, Foucault está interessado nos jogos de verdade em que o próprio sujeito é colocado como objeto 43 de um saber possível. Ou seja, interessado nos processos que impõe determinado processo de objetivação aos sujeitos, definindo critérios de verdadeiro e falso na autoformação da subjetividade e da identidade desses mesmos sujeitos ao enquadrá-los nesse objeto de conhecimento. Um dos interesses fundamentais para realizar essa pesquisa foi esse: como o próprio sujeito é colocado como objeto de conhecimento a partir da categoria estudante, categoria essa definida pelo conjunto de jogos de verdade da BNCC, expressos na norma da discursividade do documento. Existe uma negatividade do Outro nesse movimento de transformar um sujeito em objeto de conhecimento. Na modernidade ocidental, aquilo que se é constitui-se inicialmente a partir daquilo que não se é – como acontece com as categorias louco/normal, marginal/cidadão, pecador/inocente, categorias positivas que se afirmam a partir da objetivação do seu Outro negativo. Sou cidadão porque não sou marginal, e não ao contrário. Transposto para o universo escolar, o que constitui o sujeito estudante é o seu Outro, o sujeito não estudante, esse que as políticas públicas devem mapear e resgatar para o interior das instituições escolares. Esse resgate dos não escolarizados é um ato que carrega um saldo positivo, constituindo-se como um valor. Tanto é que os índices de alfabetização de uma sociedade representam um grau civilizatório elevado para grande parte das sensibilidades, posicionamento ideológico que me incluo: no interior do contexto específico da sociedade em que vivo, acho mesmo, sem sombra alguma de dúvida, um imenso valor positivo erradicar o analfabetismo. De qualquer forma, o não estudante é simplesmente um corpo que não foi acolhido no interior da instituição escolar. Seu corpo é imbuído desse valor, que se expressa de maneira negativa na vida concreta: na sociedade contemporânea, alguém que porte uma baixa inserção nos meandros da formação escolar vive com maiores dificuldades e rendimentos mais baixos. É o valor negativo do não estudante que define o valor positivo de ser um estudante. Isso implica todo um conjunto de tecnologias do Eu, em que o sujeito, desejoso de ser reconhecido e se reconhecer como estudante, inquere e constrói em si mesmo os elementos que o distancie do fantasma negativo daquilo que ele não deve ser, o não escolarizado, sabedor que é do valor negativo que essa categoria porta na vida concreta. Além disso, o estudante deve estar sempre atento 44 para não estar na fronteira de sê-lo, ou seja, ser e ser reconhecido a partir da figura do mau estudante, do aluno problema. Curioso reparar que, embora anunciada para sanar a crise da educação, a fantasmagoria real da escola – o mitificado e ao mesmo tempo bem presente aluno problema – é sempre omitido da BNCC e sua discursividade. Não existe uma definição para o “delinquente da educação”, aquele estudante disruptivo, que não aceita as normas da instituição escolar, causando muitos transtornos. O estudante tomado em seu valor negativo não participa das formulações da Base; essa categoria é omitida, não nomeada, desaparece dentro da positividade lisa das formulações da BNCC22. O que seria o sujeito escolar não-empreendedor, não- resiliente? Essa hipótese não é levantada, nomeada, aceita. O jogo de verdade da Base, seu regime de veridicção, não aceita o “falso”. Um reino da positividade absoluta, reafirmada pela ocultação do seu lado negativo, o aluno-problema. Voltando ao verbete-artigo Foucault, é através das operações entre objetivação e subjetivação que entramos em uma história da subjetividade, sendo subjetividade a maneira pela qual o sujeito faz a experiência de si mesmo em um jogo de verdade no qual se relaciona consigo mesmo. Isso significa indicar um campo de expectativas do que vou me tornar. É nesse terreno do vir-à-ser, dessas visões desejosas de futuro, do sonho, que o poder “faz fazer”, ou seja, opera a autoindução da subjetividade em seu jogo de objetivação e subjetivação. O sujeito deve reconhecer como parte mais essencial dele certas modalidades de sonhos de futuro, só possíveis no interior de um aparato técnico de reconhecimento e produção de si mesmo. Precisa internalizar ferramentas que permitam ler a si mesmo com determinada intenção, orientado por um critério existencial que sirva de guia para essa autofabricação da identidade e do desejo. Um progresso de transformação de si mesmo através do tempo, apoiado em certa técnica de si, instrumentos para a automodelagem do que se é. Os discursos (...) dizem o que é o sujeito dentro de um certo jogo muito particular de verdade; mas esses jogos não são impostos de fora para o sujeito, de acordo com uma causalidade necessária ou determinações estruturais; eles abrem um campo de experiência em que sujeito e objeto são ambos constituídos apenas em certas condições simultâneas, mas que não 22 No capítulo 3 exploro com mais profundidade essa ideia de uma estética do liso no neoliberalismo digital contemporâneo (HAN, 2019), resultando na eliminação do aluno problema da discursividade sem atritos da BNCC. 45 param de se modificar um em relação ao outro, e, portanto, de modificar esse mesmo campo de experiência. (FOUCAULT, 2004, p. 237 – 238) Como inquirir as emergências de jogos de verdade da BNCC, esse movimento produtivo em que o próprio sujeito é colocado como objeto de um saber possível? Que qualidade de sujeito emerge da constituição desse objeto? Como operam esses procedimentos precisos de governo, no qual a subjetivação do sujeito transcorre de maneira participativa e feliz, no interior da instituição escolar? As respostas para essas perguntas se iniciam não no presente, mas no amanhã, nas expectativas do vir-à-ser, nas miragen