UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE ARQUITETURA, ARTES, COMUNICAÇÃO E DESIGN DEPARTAMENTO DE ARTES E REPRESENTAÇÃO GRÁFICA CAMPUS DE BAURU YOLANA BIANCHI MEDINA Animação Experimental: Possíveis diálogos com produções da Cartoon Network: 1997 - 2008 BAURU 2022 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE ARQUITETURA, ARTES, COMUNICAÇÃO E DESIGN DEPARTAMENTO DE ARTES E REPRESENTAÇÃO GRÁFICA CAMPUS DE BAURU YOLANA BIANCHI MEDINA Animação Experimental: Possíveis diálogos com produções da Cartoon Network: 1997 - 2008 Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao curso de Artes Visuais Bacharelado, Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação UNESP/Campus Bauru, como requisito parcial para conclusão da graduação, sob orientação da Profª Drª Regilene A. Sarzi Ribeiro. BAURU 2022 Medina, Yolana Bianchi. Animação experimental: Possíveis diálogos com produções da Cartoon Network: 1997 - 2008 / Yolana Bianchi Medina, 2022 84 f. : il. Orientador: Regilene Aparecida Sarzi Ribeiro Monografia (Graduação)–Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Arquitetura, Artes, Comunicação e Design, Bauru, 2022 1. Animação Experimental. 2. Animação Comercial. 3.Desenho animado. I. Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Arquitetura, Artes, Comunicação e Design. II. Título. YOLANA BIANCHI MEDINA Animação Experimental: Possíveis diálogos com produções da Cartoon Network - 1997 - 2008 Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao curso de Artes Visuais Bacharelado, Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação UNESP/Campus Bauru, como requisito parcial para conclusão da graduação, sob orientação da Profª Drª Regilene A. Sarzi Ribeiro. BANCA EXAMINADORA: ____________________________________ Profa. Dra. Regilene Aparecida Sarzi Ribeiro (Orientadora) Faculdade de Arquitetura, Artes, Comunicação e Design (FAAC/UNESP) ____________________________________ Profa. Dra. Thaís Regina Ueno Yamada Faculdade de Arquitetura, Artes, Comunicação e Design (FAAC/UNESP) ____________________________________ Profa. Dra. Liene Nunes Saddi Faculdades Integradas de Bauru (FIB) Bauru, Março de 2022. AGRADECIMENTOS Agradeço primeiramente, e principalmente, à minha mãe por estar ao meu lado em todos os momentos, por abrir o caminho das artes para mim e sempre me incentivar a me expressar por vias artísticas que culminaram a todo esse traçar de caminho que sigo hoje. Além disso, por todo o suporte durante mais uma etapa de minha vida, foi primordial para que eu pudesse, inclusive, realizar esta pesquisa. Aos meus avós, meu enorme agradecimento e carinho profundo por todos, com eles tive ensinamentos inimagináveis. Agradeço à minha avó Marlene pela criação, paciência e amor. Ao meu avô Aurélio, a compaixão e a vontade de aproveitar a vida, sua jovialidade sempre me inspirou. À minha avó Cida, ao imenso cuidado e cumplicidade, me ensinou também a ser forte. E ao meu avô Manoel, ao enorme carinho que teve comigo. À todos minha eterna gratidão e saudades, tenho cada um presente em minha trajetória. Aos que me apoiaram e me ajudaram, meu eterno agradecimento. Ao Daniel por me emprestar o tripé, ao Cadu pela câmera, à Tayná pela paciência e pelo incentivo. E a todos que puderam estar presentes neste momento. Aos meus amigos, agradeço pelas trocas e pela parceria, meu agradecimento especial à Raffaella que sempre esteve ao meu lado durante esses quatro anos de graduação. À minha orientadora, Profa. Dra. Regilene Sarzi Ribeiro, meus profundos agradecimentos, pelas aulas que me abriram novos olhares sobre as questões do vídeo, pelas referências e todo o apoio durante esse processo. Além disso, agradeço aos direcionamentos e a atenção e dedicação à essa etapa da minha formação. Agradeço também à banca examinadora por aceitar o meu convite e poder estar presente nesse momento tão especial, obrigada Profa. Dra. Thaís Regina Ueno Yamada e Profa. Dra. Liene Nunes Saddi. Meus enormes agradecimentos aos professores da UNESP que complementaram todo o meu caminho até este momento de finalização e a todos os meus colegas que fizeram parte do processo. RESUMO Esta pesquisa propõe, primeiramente, um estudo sucinto sobre o surgimento da animação que sirva de embasamento para entender as características históricas e visuais do vídeo experimental, formulando então, por meio de uma investigação, os seus possíveis diálogos com a animação comercial transmitida pelo canal Cartoon Network entre os anos de 1997 até 2008. Assim, esta pesquisa se faz necessária diante do escasso material disponível sobre a animação, principalmente de natureza crítica e escrito na língua portuguesa. A metodologia aqui utilizada é de natureza qualitativa com característica exploratória a partir de uma abordagem teórica-prática, ou seja, baseia-se na consulta de dados biográficos que partem da leitura de autores como Alberto Lucena Júnior (2001) e Walter Benjamin (2019), por exemplo. Encaminhando para uma produção prática de um objeto poético que corresponde à possibilidade de criar um filme animado que dialogue entre a animação comercial e a experimental, feita através da mescla entre o stop motion com papel compondo todo o cenário e a animação digital do personagem. Portanto, pretende-se que esta pesquisa possa, além de contribuir teoricamente com a temática, desenvolver os interesses e as habilidades técnicas da pesquisadora diante da animação, que já vem, inclusive, sendo seu grande foco durante seus dois últimos anos da graduação. Palavras-chave: Animação Experimental; Animação Comercial; Desenho Animado; Personagem Cartunesco; Vídeo Animado ABSTRACT Firstly, this project proposes an study about the beginning of the animation which can be a base to understand the historical and visual characteristics about the experimental video, formulating through an investigation their possible dialogues with the commercial animation through the cartoon network channel between the years 1997 to 2008. So, this project is necessary because we don´t have so much material available about the animation, especially in portuguese. The methodology that I use is qualitative with exploration characteristics from an approach theory and practice, that is, it is based on the consultation of bibliographic data from the reading of authors as Alberto Lucena Júnior (2001) e Walter Benjamin (2019), for example. Moving towards a practical production of a poetic object that corresponds to the possibility of creating an animated film that dialogues between commercial and experimental animation, made through the mix between stop motion with paper composing the whole background and the digital animation of the character. Therefore, it is intended that this research can, in addition to theoretically contributing to the theme, develop the interests and technical skills of the researcher in the face of animation, which has already been her main focus during her last two years of graduation. Key-words: Experimental animation; Commercial animation; Cartoon; Cartoon character; Animated video LISTA DE FIGURAS Figura 1 - Hunger (1973). Peter Foldès. Vídeo. 11 min. 25 seg. Colorido. The National Film Board of Canadá (NFB). Disponível em: . Acesso em: 20 de Setembro de 2021………………………………………….….22 Figura 2 - Little Nemo (1911). Winsor McCay. Vídeo. 10min. 37seg. Colorido. Disponível em: . Acesso em: 20 de Setembro de 2021………………….…24 Figura 3 - An Optical Poem (1938). Oskar Fischinger. Vídeo. 7min. 12 seg. Colorido. Disponível em: . Acesso em: 20 de Setembro de 2021…………………………………………………………………….25 Figura 4 - Pen Point Percussion (1951). Norman McLaren. Vídeo. 6 min. Colorido. Disponível em: . Acesso em: 20 de Setembro de 2021………………………………………………………………………...26 Figura 5 - Boogie-Doodle (1941). Norman McLaren. Vídeo. 3 min. 21 seg. Colorido. Disponível em: . Acesso em: 27 de Setembro de 2021………………………………………………………………………..28 Figura 6 - The World of UPA (Part 1 of 3). The Royal Ocean Film Society. Vídeo. 13 min. 26 seg. Colorido. Disponível em: . Acesso em: 8 de Dezembro de 2021………………………………………………………………………………………..…..34 Figura 7 - Toy Story Original Trailer (1995). Disney Plus. Vídeo. 1 min. 30 seg. Colorido. Disponível em: . Acesso em: 8 de Dezembro de 2021……………………………………………………………...…35 Figura 8 - Courage The Cowardly Dog (The Transplant). Courage the Cowardly Dog. Vídeo. 5 min. 12 seg. Colorido. Disponível em: . Acesso em: 15 de Dezembro de 2021…………………………………………………………………………………………….37 Figura 9 - Courage The Cowardly Dog (The Transplant). Courage the Cowardly Dog. Vídeo. 5 min. 12 seg. Colorido. Disponível em: . Acesso em: 15 de Dezembro de 2021…………………………………………………………………………………………….37 Figura 10 - Courage The Cowardly Dog (King Ramses’ Curse). Courage the Cowardly Dog. Vídeo. 2 min. 42 seg. Colorido. Disponível em: . Acesso em: . 15 de Dezembro de 2021……………………………………………………………………………38 Figura 11 - Cow and Chicken (Becoming Rich and Famous). Cartoon Network UK. Vídeo. 5 min. 20 seg. Colorido. Disponível em: . Acesso em: 15 de Dezembro de 2021……………………………………………………………….39 Figura 12 - Cow and Chicken (Becoming Rich and Famous). Cartoon Network UK. Vídeo. 5 min. 20 seg. Colorido. Disponível em: . Acesso em: 15 de Dezembro de 2021……………………………………………………………….40 Figura 13 - Chowder (Making a Froggy Apple Crumple Thumpkin). Cartoon Network UK. Vídeo. 5 min. 21 seg. Colorido. Disponível em: . Acesso em: 15 de Dezembro de 2021…………………………………………………………………………………………….41 Figura 14 - Neighbours. NFB. Vídeo. 8 min. 07 seg. Colorido. Disponível em: . Acesso em: 15 de Dezembro de 2021…………………………………………………………………………………………….41 Figura 15 - Chowder (Making a Froggy Apple Crumple Thumpkin). Cartoon Network UK. Vídeo. 5 min. 21 seg. Colorido. Disponível em: . Acesso em: 15 de Dezembro de 2021…………………………………………………………………………………………….42 Figura 16 - Chowder (Making a Froggy Apple Crumple Thumpkin). Cartoon Network UK. Vídeo. 5 min. 21 seg. Colorido. Disponível em: . Acesso em: 15 de Dezembro de 2021…………………………………………………………………………………………….43 Figura 17 - La Merle (1958).Norman McLaren. Vídeo. 4 min. 38 seg. Colorido. Disponível em: . Acesso em: 31 de Janeiro de 2022…………………………………………………………………………...46 https://www.youtube.com/watch?v=kKnC674-ZDU&list=LL&index=11 Figura 18 - As aberturas de Hora de Aventura. Cartoon Network Brasil. Vídeo. 5 min. 19 seg. Colorido. Disponível em: . Acesso em: 31 de Janeiro de 2022…………………………………………………………48 Figura 19 - Cartão Postal, 1929. Tarsila do Amaral, Óleo sobre tela. 142,5 cm x 127,5 cm. Disponível em:. Acesso em: 31 de Janeiro de 2022…………………………………………………………49 Figura 20 - O Pequeno Príncipe, Antoine de Saint Exupéry. Aquarela. Pg. 35. São Paulo: Editora Agir, 2006…………………………………………………………………….49 Figura 21 - Super Mario Bros 3. Via Techtudo. Disponível em: . Acesso em: 02 de Fevereiro de 2022……………………………..51 Figura 22 - Papéis utilizados para o stop motion, dezembro de 2021. Foto tirada pela autora…………………………………………………………………………………………..52 Figura 23 - Primeiro storyboard do projeto, dezembro de 2021. Foto tirada pela autora…………………………………………………………………………………………..53 Figura 24 - Detalhe da cena sete do storyboard, dezembro de 2021. Foto tirada pela autora…………………………………………………………………………………………..54 Figura 25 - Equipamentos utilizados para a gravação do stop motion, dezembro de 2021. Foto tirada pela autora………………………………………………………………..55 Figura 26 - Um momento da gravação das fotos, dezembro de 2021. Foto tirada por Tayná Maciel…………………………………………………………………………………..56 Figura 27 - Foto da primeira cena do storyboard, dezembro de 2021. Foto tirada pela autora…………………………………………………………………………………………..56 Figura 28 - Storyboard para a animação digital, janeiro de 2022. Foto tirada pela autora…………………………………………………………………………………………..60 Figura 29 - Detalhe de duas cenas do storyboard, janeiro de 2022. Foto tirada pela autora…………………………………………………………………………………………..60 Figura 30 - Frame do rascunho do ciclo de caminhada, janeiro de 2022. Imagem advinda do vídeo animado produzido pela autora………………………………………...61 Figura 31 - Outro frame do rascunho da animação digital, janeiro de 2022. Imagem advinda do vídeo animado produzido pela autora………………………………………...62 Figura 32 - Frame com a linha final, janeiro de 2022. Imagem advinda do vídeo animado produzido pela autora……………………………………………………………..63 Figura 33 - Outro frame com a linha final, janeiro de 2022. Imagem advinda do vídeo animado produzido pela autora……………………………………………………………..64 Figura 34 - Frame do vídeo finalizado, janeiro de 2022. Imagem advinda do vídeo animado produzido pela autora……………………………………………………………..65 Figura 35 - Outro frame do vídeo finalizado com foco no elemento da esfera rosa, janeiro de 2022. Imagem advinda do vídeo animado produzido pela autora………….65 Figura 36 - Frame do vídeo finalizado, janeiro de 2022. Imagem advinda do vídeo animado produzido pela autora……………………………………………………………..66 Figura 37 - Frame de uma das últimas cenas do filme já finalizado, janeiro de 2022. Imagem advinda do vídeo animado produzido pela autora……………………………...66 Figura 38 - Vinheta do filme animado, janeiro de 2022. Imagem advinda do vídeo animado produzido pela autora……………………………………………………………..68 Figura 39 - Créditos finais, janeiro de 2022. Imagem advinda do vídeo animado produzido pela autora………………………………………………………………………...68 SUMÁRIO INTRODUÇÃO...............................................................................................p. 11 CAPÍTULO 1..................................................................................................p. 19 A Animação Experimental..............................................................................p. 20 A Animação Comercial .................................................................................p. 31 CAPÍTULO 2.................................................................................................p. 44 Descrição do processo criativo......................................................................p. 45 Pré-Produção, Produção e Pós.....................................................................p. 58 CONSIDERAÇÕES FINAIS..........................................................................p. 69 REFERÊNCIAS.............................................................................................p. 72 APÊNDICES……………………………………………………………………….p. 77 APÊNDICE A………………………………………………………………………p. 77 APÊNDICE B………………………………………………………………………p. 78 APÊNDICE C………………………………………………………………………p. 79 APÊNDICE D………………………………………………………………………p. 80 APÊNDICE E………………………………………………...…………………….p. 81 APÊNDICE F…………………………...………………………………………….p. 82 APÊNDICE G………………………………………………………………………p. 83 APÊNDICE H………………………………………………………………………p. 84 INTRODUÇÃO INTRODUÇÃO Pensar no vídeo animado é refletir acerca de todo um caminho de acontecimentos e desenvolvimentos que tornaram possível enxergar um movimento, ou melhor, uma ilusão de movimento diante do olhar do espectador. Começa-se, então, o exercício de pensar cronologicamente em uma sequência de eventos que juntos culminam na produção da indústria atual de desenhos animados. Desde o Renascimento (do século XIV ao final de XVI) existe uma ânsia em representar pictoricamente a vida mais próxima de sua realidade, assim, vieram as pinturas renascentistas de caráter mimético. No entanto, logo surge a fotografia por volta de 1820, transformando a relação do homem com a tecnologia e sendo a principal porta de entrada para o cinema. Além de transformar a urgência que a arte possuía anteriormente para com a representação do real, já que a fotografia poderia cumprir com êxito este papel. Segundo Alberto Lucena Júnior (2001), foram os irmãos Lumière os primeiros a projetar filmes, apresentando em dezembro de 1895 a primeira exibição de fotografias animadas, com o seu cinematógrafo. Eis que surgem as primeiras imagens animadas produzidas por artistas que debruçaram-se sobre as técnicas do cinema, George Méliès foi o precursor da técnica de trickfilm, segundo Alberto Lucena Júnior (2001). Trickfilm eram filmes ilusionistas de efeitos especiais, ou seja, cheios de truques visuais que “enganavam” e prendiam o telespectador. Nota-se neste momento a relevância que o aparato tecnológico possibilitou aos artistas da época, já que era a partir destes novos meios científicos de conhecimento que foi possível realizar tais experimentos, sendo um campo mutável e em constante desenvolvimento. Artistas como Winsor McCay (1869 - 1934) e Émile Cohl (1857 - 1938) bebem da fonte das novas ciências e das artes sequenciais que já haviam surgido como importante mídia visual, explorando a técnica frame a frame¹ de desenhos, desenvolvendo personagens com características de movimentos, personalidade e desenvolvendo uma certa narrativa visual, principalmente os produzidos por Winsor McCay. Outra importante característica destes dois 1. (frame a frame) são animações desenhadas quadro a quadro. artistas está na utilização do conceito da metamorfose, ou seja, elementos e linhas que se misturam dando origem a novas figuras ou formas. Cohl desenvolveu conceitos que garantiam a eficácia de sua comunicação visual, ainda que por caminhos alternativos, sendo o mais característico e espetacular uso da metamorfose. Tirando vantagem do desenho construído exclusivamente com linhas, Cohl demonstra a flexibilidade desse elemento em configurações que tiram proveito de sua leveza e ambiguidade espacial, em sequências nos quais os contornos dos objetos sofrem mutações contínuas, misturando-se com outras formas para gerar novas figuras que seguem metamorfoseando-se em fluxos. (LUCENA JÚNIOR, 2001, p. 52) Durante a década de cinquenta surge a renovação artística de Norman McLaren (1914 - 1987), importante animador experimental e dono de um discurso crítico e inovador quando se pensa no suporte fílmico, McLaren transpõe o suporte e a lógica tecnológica do filme animado quando, por exemplo, desenha diretamente na película criando formas e dialogando a todo instante com a questão da sonoridade, já que utiliza de uma sincronicidade entre sons e ruídos. Na demanda de um cinema ostensivamente autônomo, Norman McLaren irá levar seu esforço até extremos insuspeitados. Antes de mais, irá promover a proximidade entre autor e obra, subtraindo o controle da imagem, do som e da duração fílmica aos automatismos específicos da máquina; libertando o filme dos formalismos e regras que sancionam o que se considera sera legitimidade das práticas profissionais; desembaraçando-o do encadeamento dos procedimentos que a tecnologia impõe à produção e reprodução cinematográficas. (GRAÇA, 2006, p. 39) Há, neste momento, a necessidade de criar uma produção que se afaste das demandas mercadológicas introduzidas dentro da indústria da animação, neste ponto Norman McLaren e outros animadores independentes como Evelyn Lambart (1914 - 1999) executam um importante papel de reinvenção por meio da experimentação. No início do século XX, quando é citado a industrialização no campo da animação, é inevitável não pensar no fenômeno Disney de produção, onde o camundongo Mickey Mouse é criado junto de toda uma indústria de produção pensada no consumo da grande massa, gerando um grande avanço técnico e mercadológico na qual a animação passa a ganhar espaço nas telas do cinema, entretanto também ocasiona a intensa alienação da população. 13 Consequentemente, chega-se ao conceito da produção e reprodução em grande escala que nos leva à reprodutibilidade técnica do texto de Walter Benjamin (1892 - 1940), publicado pela primeira vez no ano de 1936 em francês, onde o autor trata desse assunto a partir da ligação da perda da aura artística de um objeto. Ainda segundo Benjamin (2019), no filme temos uma forma cujo caráter artístico é pela primeira vez determinado completamente por sua reprodutibilidade, assim sendo, essa característica muda a relação da arte com a sociedade, tornando-a muitas vezes alienante, como o já citado desenho dos estúdios Disney. Para falar de desenho animado também é necessário pensar a respeito da televisão, uma tecnologia desenvolvida no início do século XX, sendo um dos principais canais de reprodução em grande escala que engloba uma grande quantidade de gêneros televisuais, diante disto, Arlindo Machado (2005) nos traz uma reflexão a respeito do modelo de narrativa seriada em diálogo com este modelo industrial de produção cinematográfica. Para muitos, a televisão, muito mais do que os meios anteriores, funciona segundo um modelo industrial e adota como estratégia produtiva as mesmas prerrogativas da produção em série [...] A necessidade de alimentar com material audiovisual uma programação ininterrupta teria exigido da televisão a adoção de modelos de produção em larga escala, onde a serialização e a repetição infinita do mesmo protótipo constituem a regra. (MACHADO, 2005, p. 86) Em vista disto, encontra-se uma necessidade em mecanizar os processos da animação para torná-la viável diante de prazos e orçamentos. Grandes canais televisivos surgem deste processo, como por exemplo, o Cartoon Network fundado em 1992 que possui majoritariamente um enfoque nos desenhos animados de características cartunescas. Em suma, temos nesta pesquisa dois principais objetivos: investigar e analisar os conceitos da animação experimental, ou animação independente, de artistas como Winsor McCay e Norman McLaren; partindo deste pressuposto, será feita uma análise visual de trechos de quatro desenhos transmitidos pelo canal televisivo Cartoon Network, sendo eles Laboratório de Dexter (Genndy Tartakovsky), Coragem, o Cão Covarde (John R Dilworth), As 14 Terríveis Aventuras de Billy e Mandy (Maxwell Atoms) e Mansão Foster Para Amigos Imaginários (Craig McCracken). A partir disso, buscou-se criar ligações e diálogos entre o filme animado experimental e o de viés comercial e, como produto final, uma peça animada que englobe, ou não, esses dois conceitos. À respeito da escolha do canal televisivo, optou-se pelo Cartoon Network por uma questão de identificação poética com o estilo de conteúdo produzido pela plataforma, principalmente com os quatro desenhos selecionados para a análise. Dessa forma, serve-se de repertório visual e, muito provavelmente, formulou o interesse que possuo no estilo cartunesco de ilustração em diálogo com a necessidade de explorar a animação de personagens e o desenvolvimento de narrativas. Pesquisar sobre o filme animado é trabalhar com uma limitada quantidade de material teórico disponível, principalmente de natureza analítica que transpõe abordagens descritivas e técnicas sobre as práticas da animação e, também, que estejam traduzidos para o português. Desta forma a pesquisa se justifica, primeiramente, pela necessidade de obtenção de conteúdos teóricos sobre o assunto e a contribuição que a mesma poderá fornecer para as futuras buscas sobre o tema. Além disso, a proposta traz um possível diálogo entre a animação experimental e a de caráter comercial, no qual o grande interesse é entender quais são as características visuais, plásticas e/ou formais que possibilitam as duas propostas fílmicas com fins estéticos díspares se tornarem semelhantes, conduzindo até o objeto poético final um curto vídeo animado a partir da técnica frame a frame. Em relação à metodologia, esta pesquisa em arte classifica-se como qualitativa de abordagem teórico-prática e de natureza exploratória. Seus procedimentos consistem na coleta e consulta de dados bibliográficos, observação e análise visual de um material já previamente selecionado, coleta de dados e produção de caráter experimental. Em relação à produção do vídeo animado, suas etapas serão bem delimitadas e executadas a partir do material visual analisado, sendo assim, partindo do roteiro, logo após o storyboard, a 15 criação e os registros do processo por meio de fotografias e/ou material digital. Prosseguindo para o material final que deu origem ao objeto poético da pesquisa, foi desenvolvida uma segunda análise reflexiva a respeito deste filme em relação aos desenhos animados que já foram observados anteriormente, sendo possível responder a problemática que torna esta pesquisa relevante. A problemática que rodeia essa pesquisa se encontra em uma principal questão: quais são os possíveis diálogos visuais entre a animação experimental e a animação comercial de caráter cartunesco produzida no canal televisivo Cartoon Network entre os anos 1997 até 2008. Sendo assim, a hipótese defendida é a de que o diálogo entre o filme animado experimental e o de estrutura comercial se dá por meio de vestígios plásticos, formais e/ou estilísticos encontrados nos desenhos animados citados que se dispõe de certa similaridade com o modo de se desenvolver os primeiros experimentos animados de artistas como Norman McLaren, por exemplo. Desta maneira, sustenta-se a hipótese de que é possível produzir uma animação que traga um pouco das duas características através, inclusive, da experimentação, já que invariavelmente animar é experimentar a todo instante possibilidades de movimentos. Para que, enfim, esta pesquisa seja desenvolvida parto da análise de autores como Alberto Lucena Júnior (2001), Arlindo Machado (2005), Marina Estela Graça (2006), Walter Benjamin (2019), Richard Williams (2016), Theodor Adorno e outros teóricos que possam ser importantes para o desenvolvimento da pesquisa. Além do material teórico, também foi pesquisado trechos das animações Laboratório de Dexter (Genndy Tartakovsky), Coragem, o Cão Covarde (John R Dilworth), As Terríveis Aventuras de Billy e Mandy (Maxwell Atoms) e Mansão Foster Para Amigos Imaginários (Craig McCracken), ambas reproduzidas pelo canal televisivo Cartoon Network. Em relação ao corpo da pesquisa, no primeiro capítulo foi abordado um contexto histórico geral da animação experimental seguido de um contraponto da animação comercial. Foi pensado neste momento no conceito de animação experimental no sentido independente, ou seja, artistas que produziram 16 conteúdos de natureza experimental e que vão no sentido oposto da industrialização da animação comercial. Neste sentido, chega-se a grandes artistas como Norman Mclaren (1914 - 1987) que produz suas obras cinematográficas em meio a um grande avanço tecnológico das mídias, indo em desencontro com questões que permeiam a mecanização dos vídeos animados, como a impessoalização da produção e o afastamento do autor-obra e a representação do real. A animação de Mclaren veio propor não apenas uma obra fílmica, na qual cada filme aparece como formalmente aquilo que é, mas também um contexto no qual quer o discurso, quer o modo de produção, quer o processo de comunicação (que, no caso da animação, depende exclusivamente da máquina), são postos em questão e recriados enquanto expressão. O filme apareceria não como meio de representação, como suporte de qualquer outra coisa, mas em si mesmo: como presença. (GRAÇA, 2006, pg. 43) Desta forma, Mclaren produziu filmes animados que fugiram da representação do real e, muitas vezes, do figurativo também, optando pelo abstracionismo e o minimalismo em suas experimentações sinestésicas que dialogavam a todo tempo com a sonoridade. Segundo Marina Estela Graça (2006), o artista explorou as características psicofisiológicas da percepção humana como se compusesse música para um instrumento ainda obscuro. Em contraposto com a produção experimental foi discutido a indústria comercial de animação, a partir primeiramente do surgimento da arte cinematográfica trazida pelos irmãos Lumiére em sequência dos primórdios da arte animada de George Mélies, passando por artistas experimentais como Norman McLaren até chegar na grande industrialização da animação trazida, a princípio, pelos estúdios Disney. Neste momento fala-se a respeito da parte técnica da animação que a tornou mecanizada a ponto de poder ser produzida rapidamente para servir de meio de consumo da grande massa. Diante deste cenário, a televisão adquire grande importância na evolução das novas mídias, segundo Richard Williams (2016), a chegada da televisão e seu apetite voraz por um conteúdo produzido rapidamente exigiu trabalhos mais simples e grosseiros, ou seja, que fugiam dos aspectos realistas. 17 Assim, chegamos ao canal televisivo Cartoon Network que possui extrema relevância para o caminhar desta pesquisa, encontra-se nos aspectos dos desenhos animados desta plataforma simplicidade dentro de formas complexas que se enquadram em um modelo seriado de televisão, ou seja, com mecanismos alcançados pelos estúdios Disney na década de trinta e desenvolvidos com o passar do tempo por intermédio das novas mídias, a fim de que a produção acompanhe o ritmo conduzido pela televisão. Em decorrência dos avanços técnicos e midiáticos dos meios de comunicação e principalmente dos modelos reprodutivos de entretenimento, chega-se ao conceito de indústria cultural desenvolvido pelo filósofo Theodor Adorno (1903 - 1969) em que o mesmo propõe a indústria como definidora de todas as características que serão consumidas pela massa, inclusive em relação à estrutura de organização do trabalho, dialogando constantemente com Walter Benjamin (1892 - 1940) em relação à reprodutibilidade técnica. Chega-se, enfim, ao segundo capítulo o qual será direcionado para a produção e análise da peça animada. Neste momento a pesquisa toma um rumo prático que é consequência de uma série de processos, sendo eles: o roteiro, um documento que guia uma parte da animação; o storyboard que definirá visualmente o que antes estava apenas no campo da imaginação; a criação do material, partindo das técnicas de animação digital e podendo passar por técnicas mais clássicas como o stop motion - caracterizado por uma animação feita quadro a quadro - ou outras técnicas que contemplem a natureza experimental. Todo esse procedimento de elaboração do vídeo será registrado por meio de fotografias e/ou imagens digitais que posteriormente poderão ser inseridas no projeto e /ou usadas como um futuro campo de pesquisa. Neste sentido, o último passo consiste em realizar um relato de experiência a partir do processo de desenvolvimento da animação produzida baseando-se nos conceitos teóricos antes estudados, que servirão de bagagem para responder a questão da pesquisa e responder positivamente ou negativamente à hipótese levantada. 18 CAPÍTULO 1 “À noite, tu olharás as estrelas. Aquela onde moro é muito pequena, para que eu possa te mostrar. É melhor assim. Minha estrela será para ti qualquer uma das estrelas. Assim, gostarás de olhar todas elas… Serão, todas, tuas amigas.” O Pequeno Príncipe. 19 CAPÍTULO 1 1.1 A Animação Experimental O vídeo animado surge a partir de vários acontecimentos e desenvolvimentos que foram transcorrendo com o passar do tempo, a princípio, a chegada da fotografia foi o primeiro grande marco para o nascimento desta nova modalidade artística. Segundo Alberto Lucena Júnior (2001), a tecnologia da fotografia foi inventada no fim da década de 1820 pelos franceses Nicéphore Niepce (1765 - 1833) e Louis Daguerre (1787 - 1851), este último sendo o inventor do daguerreótipo, dispositivo que formava uma imagem fotográfica sem o uso do negativo. Entretanto, ainda segundo o autor, foram os irmãos Lumière os primeiros a projetar filmes, apresentando em dezembro de 1885 a primeira exibição de fotografias animadas, com o seu cinematógrafo. Neste sentido, a fotografia representa o primeiro grande facilitador responsável pelo desenvolvimento dos estudos do filme animado, porém, lidando primeiramente apenas com a representação do real, assim como já era trabalhado durante a pintura Renascentista (do século XIV ao final de XVI) de caráter mimético. Marina Estela Graça (2006) aponta essa relação entre a criação dos primeiros aparatos tecnológicos pautados na característica da reprodução, assim como a já citada arte Renascentista, desta forma a autora cita o fato da produção de imagens manter, desde sempre, relações com o real sensível, em termos tanto de representação como de sua manifestação direta. Com o passar do tempo e o desenvolvimento cinematográfico em ascensão, novas técnicas foram sendo introduzidas para acompanhar o crescimento da indústria e as capacidades que o suporte fílmico poderia proporcionar. Surge, então, a técnica de Trickfilm, ou seja, do filme de efeitos, sendo George Méliès (1861 - 1938) o grande precursor desse novo sistema ilusionista, segundo Alberto Lucena Júnior (2001). Esses Trickfilms eram, portanto, filmes ilusionistas que utilizavam truques visuais para enganar e prender a atenção dos telespectadores, característica que encontramos de 20 maneira muito mais desenvolvida no cinema contemporâneo, principalmente nos gêneros fantasiosos e de ficção científica, nos quais utilizam, muitas vezes, dos efeitos especiais para alcançar resultados diferentes dos que poderiam ser alcançados apenas com a utilização da câmera. Esse experimento feito por George Méliès possui grande relevância para o desenvolvimento científico da época, já que foi a partir de processos tecnológicos como este que foi possível perceber o quão expansivo e em constante desenvolvimento estava sendo construído o cenário que possibilitaria, futuramente, o surgimento das primeiras experimentações no campo da animação. Um dos principais precursores da arte animada foi Winsor McCay (1869 - 1934), utilizando dos recursos das novas tecnologias e explorando a técnica frame a frame que foi integrada a partir dos conceitos das artes sequenciais das histórias em quadrinhos. Sobre as artes sequenciais, Alberto Lucena Júnior (2001) aponta a sua relevância nos Estados Unidos onde essa técnica prosperou como mídia de massa e de grande influência para o desenvolvimento do cinema como indústria. Neste sentido, McCay desenvolve um novo olhar para o desenvolvimento do vídeo animado, junto de outros importantes animadores como Émile Cohl (1857 - 1938), desenvolvendo juntos o conceito da metamorfose, ou seja, elementos e linhas que se fundem e dão origem a novas figuras ou formas. Cohl desenvolveu conceitos que garantiam a eficácia de sua comunicação visual, ainda que por caminhos alternativos, sendo o mais característico e espetacular uso da metamorfose. Tirando vantagem do desenho construído exclusivamente com linhas, Cohl demonstra a flexibilidade desse elemento em configurações que tiram proveito de sua leveza e ambiguidade espacial, em sequências nos quais os contornos dos objetos sofrem mutações contínuas, misturando-se com outras formas para gerar novas figuras que seguem metamorfoseando-se em fluxos. (LUCENA JÚNIOR, 2001, p. 52) Dentro desse conceito analógico de metamorfose de Èmile Cohl, pode-se fazer uma pequena conexão com um procedimento parecido com este aplicado pelo artista experimental. Peter Foldès (1924 - 1977) em 1973 produz 21 o filme “Hunger”, no qual explora digitalmente o conceito dos keyframes a partir do processo da interpolação, sendo assim, Peter produz uma peça animada feita a partir de desenhos chaves, ou keyframes, e por meio de um programa digital liga uma pose chave à outra de maneira automatizada. Segundo Alberto Lucena Júnior, Foldès estreou a técnica de keyframe, cuja aplicação da interpolação linear é bem evidente nas metamorfoses das linhas de uma forma à outra. Conseguinte, o conceito antes analógico aplicado por Cohl e McCay foi o primórdio, inclusive, para conceitos que futuramente foram criados em programas digitais, assim como todo o desenvolvimento de softwares para animação digital partiu dos princípios da animação tradicional que foi desenvolvida, primeiramente, pelos animadores experimentais. Figura 1 - Hunger (1973). Peter Foldès. Fonte: Vídeo. 11 min. 25 seg. Colorido. The National Film Board of Canadá (NFB). Disponível em: . Acesso em: 20 de Setembro de 2021. Além do já citado efeito de metamorfose usado por Cohl e McCay, a experiência plástica de ambos os artistas fez com que o processo da animação entre eles fosse muito bem sucedido, desta forma, Cohl passou a simplificação da forma para facilitar na animação e McCay permaneceu com a mesma qualidade que dedicava às suas histórias em quadrinhos, além de experimentar novas características plásticas à animação dos personagens, como a exageração das expressões e das formas, conceito no qual futuramente será 22 muito usado dentro da indústria por intermédio dos conhecidos desenhos do Mickey Mouse (1928) e Pica Pau (1940), famosos personagens que foram reconhecidos pela sua forma alucinada, ou seja, figuras cômicas com formatos e ações exageradas utilizadas para entreter o público. Essa intimidade de McCay com a manipulação da forma, aliada à sua obsessão criativa, leva-o a extrapolar as convenções visuais dos quadrinhos. Nesse sentido, começa fazendo uma releitura de antigas tradições, como a deformação de personagens, enriquecendo suas narrativas fora do comum com a exageração das compreensões e esticamentos dos corpos das figuras, num efeito ao mesmo tempo cômico e estranho. (LUCENA JÚNIOR, 2001, p. 55) Winsor McCay desenvolve alguns filmes animados experimentais com enfoque na animação de personagens, entre eles o “Little Nemo” lançado no ano de 1911 que foi baseado em uma história em quadrinhos já criada anteriormente pelo artista no ano de 1905. Durante a narrativa de “Little Nemo” o artista começa o vídeo desenhando os personagens principais em um papel ao passo em que mostra seu processo criativo de forma teatral e ensaiada, criando uma atmosfera que guiará até o momento em que os personagem passam a ser, finalmente, animados e ganham “vida”, ou seja, são desenvoltos a partir de certas características de movimento que garantem para cada um personalidade por meio de movimentos exagerados e de características alucinadas. Outro ponto importante de se notar é que nesse momento o cenário não era algo muito desenvolvido entre os animadores experimentais, já que direcionavam seu foco em seus personagens ou nos principais elementos que compunham a cena devido aos primeiros estudos que estavam sendo desenvolvidos no campo do vídeo animado, levando em conta suas dificuldades técnicas e a tecnologia que ainda não estava tão avançada. Segundo Alberto Lucena Júnior (2001), o personagem de animação ganhava personalidade, abrindo as portas para o desenvolvimento da indústria do desenho animado. 23 Figura 2 - Little Nemo (1911). Winsor McCay. Fonte: Vídeo. 10min. 37seg. Colorido. Disponível em: . Acesso em: 20 de Setembro de 2021. Outro importante animador experimental que expandiu as técnicas do seu trabalho de forma fenomenal foi Norman McLaren (1914 - 1987), dono de um discurso crítico e inovador quando se pensa a respeito do suporte fílmico. McLaren foi diretamente influenciado pelo trabalho de Oskar Fischinger (1900 - 1967) no qual permeia o universo da abstração, desta forma, o artista trabalhou tanto plasticamente na pintura quanto entre as primeiras peças animadas já produzidas. Fischinger trabalhava principalmente com a relação das cores, expandindo para o universo da animação mediante experimentações e da técnica de desenhar diretamente no suporte fílmico, sendo esta mesma técnica o principal artifício utilizado por Norman McLaren em conjunto com a sinestesia do som. Fischinger não apenas expandiu o universo estético da animação abstrata; ele contribuiu ainda com uma série de dispositivos e engenhosas inovações técnicas que permitiam as mais variadas aplicações, como o método para criação sintética do som no filme. Numa equivalência ao automatismo surrealista, ele confeccionou uma engenhoca que efetuava cortes automáticos de fatias extremamente finas de blocos de cera especialmente preparados, revelando formas inusitadas de espirais e estrias multicoloridas. (LUCENA JÚNIOR, 2001, p. 86) 24 https://www.youtube.com/watch?v=K8qow7jTyoM&list=PLvySFrGkCpHc9_AJ1s3D4aEX65-iQ0Wey&index=18 https://www.youtube.com/watch?v=K8qow7jTyoM&list=PLvySFrGkCpHc9_AJ1s3D4aEX65-iQ0Wey&index=18 Assim como ambos, Mary Ellen Bute (1906 - 1983), também pioneira na arte da animação experimental, explora essa mescla sinestésica entre som e imagem no campo da música, principalmente por intermédio da abstração das formas. Neste sentido, nota-se três grandes animadores que expandem as artes plásticas para a esfera da imagem em movimento, explorando formas, texturas, cores e repetições que se misturam com as características sonoras com que cada um procura se dispõe a pesquisar. Figura 3 - An Optical Poem (1938). Oskar Fischinger. Fonte: Vídeo. 7min. 12 seg. Colorido. Disponível em: . Acesso em: 20 de Setembro de 2021. Norman McLaren debruça nos estudos de Oskar Fischinger e passa a explorar ainda mais o suporte fílmico e a sinestesia do som. Segundo Marina Estela Graça (2006), McLaren em sua obra explora exaustivamente todas as possibilidades expressivas dos elementos de codificação e de suporte do discurso fílmico. Ainda sobre o processo de codificação, a autora escreve que o artista reduz a seus elementos mínimos, no nível da manipulação dos modos de codificação gráfica e sonora. O trabalho de McLaren gira em torno dele mesmo, sua animação de autor fala por si só, ou seja, vale de sua própria experimentação, sem uma preocupação estética com o produto final, já que o processo é tão importante quanto o que está sendo produzido de fato. 25 A animação de McLaren veio propor não apenas uma obra fílmica, na qual cada filme aparece como formalmente aquilo que é, mas também um contexto no qual quer o discurso, quer o modo de produção, quer o processo de comunicação (que, no caso da animação, depende exclusivamente da máquina), são postos em questão e recriados enquanto expressão. O filme apareceria não como meio de representação, como suporte de qualquer outra coisa, mas em si mesmo: como presença. (GRAÇA, 2006, p. 43) McLaren inicia seus experimentos com a animação e, segundo Alberto Lucena Júnior (2001), assume o protótipo do artista/cientista numa busca guiada pela sua curiosidade pelo suporte técnico do filme que expandia-se dentro dos limites artísticos do vídeo animado. Entre suas experimentações, a técnica direto sobre a película foi a mais explorada pelo artista. Desta forma, o artista desenhava formas, normalmente abstratas, frame a frame sobre a película em sincronia com o som, em outros momentos desenhava o próprio som no filme e o transportava até um projetor de cinema, um aparelho de montagem cinematográfica, portanto, o primórdio do que conhecemos hoje como uma mesa de edição de vídeo. Assim, quando eram feitos desenhos sobre a película para formar sons, o aparelho projetor calculava e formava o som a partir do tamanho dos desenhos que eram feitos, a fim de definir os níveis de volume. Figura 4 - Pen Point Percussion (1951). Norman McLaren. Fonte: Vídeo. 6 min. Colorido. Disponível em: . Acesso em: 20 de Setembro de 2021. Além da inovação e pesquisas em relação ao suporte fílmico, Norman McLaren explora também a questão plástica do som, trabalhando de maneira sinestésica, isto significava uma combinação de sensações geradas a partir da 26 https://www.youtube.com/watch?v=8paMx5Hphf4 associação feita entre as formas visuais e o som que as acompanhava, ou até mesmo pensando de outra maneira, as formas visuais que acompanhavam o som. Dito isto, é perceptível a ligação entre esses estudos de McLaren e a própria utilização do som na indústria de animação contemporânea que aperfeiçoaram a sincronia entre movimento com a sonorização. Segundo Alberto Lucena Júnior (2001), a animação sintética do som foi uma técnica especialmente desenvolvida para uma criação original de trilhas sonoras, em perfeita sincronia com o movimento e as características visuais dos desenhos. Um bom exemplo disto, muito aplicado na indústria de animação atual, é o Lyp Sync, que trata-se de uma técnica de sincronia entre as posições da boca dos personagens e a dublagem do áudio, com o intuito de formular a ilusão da fala. O desenvolvimento de procedimentos como este só foram possíveis a partir da extensão dos estudos feitos de animadores experimentais, como Norman McLaren. Nota-se que a pesquisa de McLaren permeia o suporte e suas extensões, logo, trata-se também de limitações tanto tecnológicas como orçamentária, sendo essa característica a base da composição de seus trabalhos, já que o artista explora em seus filmes sua criatividade a partir do que lhe é oferecido. McLaren esforça-se por exibir ao espectador o filme em si mesmo, em sua materialidade, estrutura e mecanismos, conduzindo-o numa espécie de aprendizagem crítica, consciente, da qual nem o espectador nem o cinema poderiam sair incólumes. Em seus filmes, explorou as características psicofisiológicas da percepção humana como se compusesse música para um instrumento ainda obscuro, ao mesmo tempo que se aventurava na pesquisa dos aspectos fundamentais de seu próprio desconhecimento. (GRAÇA, 2006, p. 86) 27 Figura 5 - Boogie-Doodle (1941). Norman McLaren. Fonte: Vídeo. 3 min. 21 seg. Colorido. Disponível em: . Acesso em: 27 de Setembro de 2021. Em Boogie-Doodle (1941), Norman McLaren produz uma animação experimental em conjunto com o pianista Albert Ammons (1907 - 1949), no qual produz a trilha sonora da peça animada. Neste vídeo animado é possível perceber claramente a sinestesia do som com a imagem desenhada por McLaren sem a utilização da câmera de fato, já que o artista desenhou diretamente sobre a película. Durante o filme, as formas abstratas vão literalmente dançando conforme a música vai acontecendo, as figuras se locomovem e metamorfoseiam-se dentro do campo visual. Em relação à cor, há o uso do contraste das cores: preto, branco, vermelho e azul. Durante a animação, McLaren também relaciona o tamanho das figuras em harmonia com a intensidade dos tons da música, assim como a velocidade com que os elementos se movem sobre a tela e se misturam, levando o telespectador a, literalmente, mergulhar dentro do som. Ainda sobre a pesquisa de som desenvolvido por McLaren, Arlindo Machado (2005), relata a proposta de uma música sintética proporcionada pelo artista e a relevância que essa pesquisa alcançou a fim de integrar música e imagem, sendo assim, o autor também ressalta que o cinema foi o primeiro 28 https://www.youtube.com/watch?v=fZs5kwNwVs0 meio a materializar o sonho de uma música produzida inteiramente com imagens. Neste sentido, pode-se falar também do videoclipe, que consiste nessa integração entre música e imagem, sendo essas imagens construídas por gravações de vídeo, animações ou até mesmo uma mistura entre gravação e animação. Atualmente, temos o videoclipe como um campo muito abrangente e possível de experimentações, segundo Arlindo Machado (2005), o videoclipe aparece como um dos raros espaços decididamente abertos a mentalidades inventivas e se formula a partir dos estudos experimentais de animação, cinema e, também, da videoarte. Até o momento, foi dito a respeito do surgimento do vídeo animado experimental e os vários conceitos, técnicas e desenvolvimento científico que vieram deste caminho e possibilitaram a ascensão da animação. Conforme o desenvolvimento desses pontos aqui levantados, a animação passa a elevar-se para a concepção de indústria a partir do momento em que passa a ser consumida como tal, ou seja, vira um objeto de consumo da grande massa. No que diz respeito a esse processo, a televisão foi o principal meio tecnológico de disseminação dessa lógica de consumo e, segundo Arlindo Machado (2005), difunde-se de maneira massiva depois da Segunda Guerra Mundial (1945), sendo assim, todo a indústria do audiovisual passa a ganhar notoriedade dentro da sociedade. Arlindo Machado (2005) também trata dos principais gêneros televisuais e entre eles está a narrativa seriada, ou seja, um modelo de produção em série que visa o consumo desse material por parte da população. Para muitos, a televisão, muito mais do que os meios anteriores, funciona segundo um modelo industrial e adota como estratégia produtiva as mesmas prerrogativas da produção em série que já vigoram em outras esferas industriais, sobretudo na indústria automobilística. A necessidade de alimentar com material audiovisual uma programação ininterrupta teria exigido da televisão a adoção de modelos de produção em larga escala, onde a serialização e a repetição infinita do mesmo protótipo constituem a regra. (MACHADO, 2005, p. 86) 29 Diante desse cenário, para que fosse viável o filme animado alcançar esse valor reprodutivo que a televisão passou a exigir, alguns facilitadores passaram a ser aplicados dentro da indústria tradicional de animação para que se pudesse acelerar o processo e tornar realizável. Portanto, surgem recursos como o uso de acetato por parte dos artistas, transformando o processo mais rápido e de fácil manuseio, a simplificação das formas - ponto no qual será abordado mais adiante nesta pesquisa - e a rotoscopia citada por Alberto Lucena Júnior (2001) como uma técnica possível graças ao uso do acetato e desenvolvida pelos irmãos Max e Dave Fleischer em 1915. Ainda segundo o autor, essa técnica se tratava de imagens reais posteriormente filmadas e projetadas para que fosse possível desenhar sobre as mesmas. Portanto, nesse momento, percebemos o impacto que os animadores experimentais tiveram no desenvolvimento do filme animado, pois foi a partir das pesquisas experimentais de artistas como Norman McLaren e Winsor McCay junto do desenvolvimento científico, que o vídeo animado passa a ganhar cada vez mais notoriedade e relevância, passando pelas mãos de grandes artistas como Walt Disney (1901 - 1966) que mudará o rumo da imagem animada. 30 1.2 A Animação Comercial Os estudos dentro da animação de caráter experimental e a expansão tecnológica foram pontos cruciais para o desenvolvimento de toda uma indústria de vídeo animado, como já dito anteriormente. Por conseguinte, foi a partir da descoberta e do estudo dos primeiros animadores que chegamos ao que Marina Estela Graça (2006) define como desenho animado, sendo uma concentração de técnicas e modos de codificação dentro da experimentação gráfica, ou seja, um conhecimento em crescente ascensão que aos poucos eleva a condição do desenho animado à indústria de consumo. Diante deste cenário, é possível fazer relação entre o objeto artístico e o objeto como produto de consumo quando se pensa a respeito da indústria do desenho animado. Theodor Adorno (2021), grande filósofo que estudou, entre outros assuntos, a indústria cultural em paralelo com a sociedade, escreve que a indústria adapta-se aos desejos por ela evocados, neste sentido da transferência da arte para objeto de consumo que é uma característica encontrada na indústria de animação comercial. A indústria cultural pode se vangloriar de haver atuado com energia e de ter erigido em princípio a transposição - tantas vezes grosseira - da arte para a esfera do consumo, de haver liberado a diversão da sua ingenuidade mais desagradável e de haver melhorado a confecção das mercadorias. (ADORNO, 2021, p. 25) Essa transferência da arte para objeto de consumo relaciona-se diretamente com a questão da perda da aura artística, conceito abordado por Walter Benjamin (2019), o autor aborda a atrofiação dessa aura na era da reprodutibilidade técnica da obra de arte. Neste sentido, o filme cinematográfico ou o filme animado, segundo o autor, possui uma forma cujo o caráter artístico é completamente determinado pela sua reprodutibilidade. Invariavelmente, a animação comercial está diretamente relacionada com a perda da aura, muito mais que a animação de autor, já que visa toda a produção direcionada a um consumo para a grande massa. E esse consumo da grande massa advém, consequentemente, das raízes criadas pelo capitalismo. Logo, Theodor Adorno (2021) aponta para a questão do 31 divertimento vindo de indústrias cinematográficas, por exemplo. O autor descreve a diversão como prolongamento do trabalho sob o capitalismo tardio, e essa diversão é procurada pelos que querem distração das suas condições de trabalho. A arte como distração torna-se muito clara quando pensamos a respeito de grandes personagens como Mickey Mouse, criado pela grande indústria de Walt Disney (1901 - 1966), no qual revolucionou os parâmetros do mercado de animação. Walter Benjamin (2019) coloca a figura de Mickey Mouse como a representação do sonho coletivo, da psicose coletiva, neste mesmo sentido da distração do trabalho que Adorno trouxe em seu discurso. A risada coletiva proporciona a erupção precoce e salutar de tal psicose de massas. O consumo de uma quantidade avassaladora de acontecimentos grotescos no cinema é uma drástica evidência dos perigos que ameaçam a humanidade nas repressões que a civilização traz consigo. Os filmes pastelão americanos e os filmes da Disney causam uma explosão terapêutica do inconsciente. (BENJAMIN, 2019, p. 89) A respeito dos estúdios Disney, fica evidente até os dias atuais a sua relevância dentro da indústria de desenhos animados e como o animador e empreendedor Walt Disney elevou, com êxito, a animação para o caminho de indústria. Além disso, percebe-se a influência dos estudos sinestésicos entre imagem e som de pioneiros da animação experimental em produções realizadas no estúdio. Como fica evidente no filme Disney Fantasia (1940) onde há um predomínio da sonorização, ou seja, o ritmo do filme animado era conduzido pelo som a partir de elementos figurativos, formas abstratas e vários efeitos visuais. Segundo Alberto Lucena Júnior (2001), os estúdios Disney e seus animadores estabeleceram paradigmas relevantes para este caminho de arte, tornando-se referência até os dias atuais, já que pensaram em todos os processos que envolviam a arte de animar, desde o processo de pré-produção para se obter uma animação até em maneiras que facilitariam e revolucionariam o desenvolvimento da produção e pós-produção. 32 É essa percepção do potencial e do sentido de uma mídia que fará de Walt Disney um fenômeno no universo da animação. Sua extraordinária sensibilidade artística e a noção precisa de cinema enquanto arte associada à exploração como entretenimento contribuíram para que ele e seus artistas estabelecessem nada menos que os conceitos fundamentais da arte da animação. (LUCENA JÚNIOR, 2001, p. 97) Em relação a esses conceitos fundamentais da animação, Alberto Lucena Júnior (2001) menciona os doze princípios da animação reconhecidos e usados até a atualidade no qual Walt Disney estabeleceu em seu trabalho no decorrer do tempo, usados a princípio de maneira tradicional e posteriormente por intermédio do digital. Esses conceitos se expandiram para diversos animadores, e também, outros estúdios de animação que foram sendo criados a partir de novas perspectivas e conceitos, como os estúdios dos irmãos Fleischer (1921) e a Warner Bros (1923), por exemplo. Dentre esses conceitos, figuram os princípios de animação que Disney e seus artistas sistematizaram. Chegaram a doze princípios: comprimir e esticar, antecipação, encenação, animação direta e posição-chave, continuidade e sobreposição da ação, aceleração e desaceleração, movimento em arco, ação secundária, temporização, exageração, desenho volumétrico, apelo. (LUCENA JÚNIOR, 2001, p. 115) Em relação à forma, novos estilos de desenho estavam sendo criados em paralelo com a maneira refinada e detalhada dos estúdios Disney, entre eles o estilo cartunesco. Marina Estela Graça (2006) descreve o cartoon como um tipo de filme animado que abriu novas perspectivas para o futuro do cinema. Pensando neste sentido, de fato o estilo cartunesco trouxe uma nova abordagem para a criação de personagens, já que eram personagens mais simplificados e compostos de personalidade e exageros. Além disso, a simplificação acelerou o processo da produção de animação de fato, aumentando a quantidade de imagem animada que poderia ser produzida em certo período de tempo. Nessas novas configurações, surge o “estilo UPA” de animação que foi de encontro com os desenhos detalhados de Walt Disney. O estúdio United Productions of America, mais conhecido como UPA, foi criado em 1946 diante 33 dessa característica de personagens mais simplificados com o foco direcionado para as formas, segundo Alberto Lucena Júnior (2001), as configurações da UPA advinham da estética da arte moderna, como o cubismo, que possuía ênfase na geometria e na linha simplificada. Figura 6 - The World of UPA (Part 1 of 3). The Royal Ocean Film Society. Fonte: Vídeo. 13 min. 26 seg. Colorido. Disponível em: . Acesso em: 8 de Dezembro de 2021. Como já dito anteriormente, essa abordagem cartunesca de simplificação da forma tornou a animação viavelmente mais rápida de ser produzida, consequentemente, torna-se um produto de consumo em grande escala ao passo que a televisão já estava sendo ligeiramente mais acessível para a população. Foi com a criação da United Productions of America (UPA) que a animação se viu diante de uma revolução artística com força suficiente para inaugurar uma vertente expressiva absolutamente independente da influência de Disney, a ponto de fazer surgir a expressão “estilo UPA”, tão contrastante era com o “estilo Disney”. O estilo UPA era mesmo a negação do estilo Disney e de todos os seus fundamentos. (LUCENA JÚNIOR, 2001, p. 128) Neste sentido Alberto Lucena Júnior (2001) cita essa demanda da televisão por programas abundantes em paralelo com a abordagem limitada da animação que os estúdios UPA estavam produzindo, tornando o desenho animado de baixo custo e baixa qualidade artística, um produto de consumo para crianças. Abre-se, então, espaço para novos estúdios surgirem e criarem 34 https://www.youtube.com/watch?v=A8-09DbxHBU animações de baixo custo mas ainda com a qualidade artística necessária, que é o caso do estúdio Hanna-Barbera criado em 1957. O sistema Hanna-Barbera se baseava num movimento simplificado, cuidadosamente elaborado e cronometrado, com ênfase em poses chaves e no movimento das extremidades dos personagens. Permitia a reutilização de animações em diversas sequências, eliminando trabalho e, portanto, derrubando os custos. Atrelou esse esquema a concepções gráficas de personagens bastante originais metidos em histórias agradáveis do tipo comédia/aventura. (LUCENA JÚNIOR, 2001, p. 136) Em meados dos anos 1980 o computador passa a ser um recurso mais acessível para a população e torna-se um grande aliado do desenho animado, já que trazia recursos digitais que facilitariam ainda mais o processo de animação. Segundo Alberto Lucena Júnior (2001), para o uso de instrumentos digitais bastaria apenas que eles se tornassem viáveis e integrados às opções dos artistas, tornando possível explorar as expressões plásticas. Neste sentido, grandes animações dentro do universo bidimensional e tridimensional começam a surgir, um dos exemplos de grande impacto é a animação Toy Story desenvolvida em 1995 que, segundo Andrew Chong (2011) foi um dos primeiros filmes feitos com as ferramentas digitais mais rápidas e modernas e com princípios da animação tradicional. Figura 7 - Toy Story Original Trailer (1995). Disney Plus. Fonte: Vídeo. 1 min. 30 seg. Colorido. Disponível em: . Acesso em: 8 de Dezembro de 2021. 35 https://www.youtube.com/watch?v=CxwTLktovTU E então caminhamos para o surgimento do canal Cartoon Network em 1992 que, como o nome já sugere, segue o estilo cartunesco de animação, segundo Sérgio Nesteriuk (2011) o canal surge a partir da aquisição de todo o acervo da Hanna-Barbera. A partir de 1995 o canal passa a reproduzir seus primeiros títulos marcantes como A Vaca e o Frango em 1995 e O Laboratório de Dexter em meados de 1996. Dentre os vários títulos produzidos pelo canal televisivo, destacarei neste momento três animações apresentadas pelo Cartoon entre os anos de 1997 à 2008, buscando vestígios de caráter experimental entre os desenhos. O canal surge a partir da aquisição, por parte do magnata das comunicações norte-americano Ted Turner, de todo o acervo da Hanna-Barbera. Turner pensou que, ao invés de usar este material de forma dispersa entre seus canais, poderia criar um veículo específico para tal propósito. Em 1994, o Cartoon Network era o quinto canal a cabo mais popular e, em 2001, o segundo - sucesso maior que as previsões mais otimistas de Ted Turner. Em seus primeiros anos, o canal vivia praticamente da reprise de séries adquiridas da Hanna-Barbera e de alguns outros estúdios. (NESTERIUK, 2011, p. 96) A primeira animação aqui destacada é Coragem o Cão Covarde, transmitida pela plataforma pela primeira vez no ano de 1997, perdurando até 2002 e contabilizando um total de quatro temporadas. O episódio escolhido chama-se “O transplante” e foi divulgado em meados de 2001. Neste momento, um dos principais pontos de colisão com a animação experimental que pude evidenciar foi a respeito do cenário, sendo constituído próximo à uma lembrança de colagem, destacando o fator da textura em contraste com os personagens que possuem cores mais chapadas. 36 Figura 8 - Courage The Cowardly Dog (The Transplant). Courage the Cowardly Dog. Fonte: Vídeo. 5 min. 12 seg. Colorido. Disponível em: . Acesso em: 15 de Dezembro de 2021. Nota-se uma possível mistura de técnicas, existe a animação simplificada dos personagens ao mesmo passo em que há um enorme detalhamento no cenário, sendo possivelmente algo entre uma ilustração muito bem detalhada ou de fato uma colagem experimental de fotografia, enriquecendo o trabalho visual da animação. Além disso, em certa parte do episódio, o personagem Eustácio sofre uma espécie de metamorfose em sua forma, conversando diretamente com os primeiros conceitos aplicados por animadores como Émile Cohl, no qual elementos e formas se fundem dando origem à novos elementos. Desta forma, o personagem se modifica exageradamente, passando ao formato figurativo de um morango e uma flor em questão de segundos. Figura 9 - Courage The Cowardly Dog (The Transplant). Courage the Cowardly Dog. Fonte: Vídeo. 5 min. 12 seg. Colorido. Disponível em: . Acesso em: 15 de Dezembro de 2021. 37 https://www.youtube.com/watch?v=L7Ux-BZir6o https://www.youtube.com/watch?v=L7Ux-BZir6o Outro momento experimental que destacarei a partir desta animação, acontece quando reparamos no efeito de fumaça que foi apresentado no episódio “A maldição do Rei Ramsés" reproduzido no ano de 2000, onde há novamente uma mistura de linguagens, o cenário está próximo de uma colagem fotográfica, o personagem é feito com efeitos tridimensionais e a fumaça foi desenhada no bidimensional. Alguns efeitos como fumaça, chuva, poeira e entre outros, apesar de existir um técnica, estão próximos da experimentação, como se não houvesse um planejamento ou um controle total de como esses elementos deveriam se comportar ao serem desenhados. Figura 10 - Courage The Cowardly Dog (King Ramses’ Curse). Courage the Cowardly Dog. Fonte: Vídeo. 2 min. 42 seg. Colorido. Disponível em: . Acesso em: 15 de Dezembro de 2021. A segunda animação que destaco nesta pesquisa é A Vaca e o Frango, transmitida pelo Cartoon Network pela primeira vez no ano de 1997 até 1999, contabilizando três temporadas. O episódio selecionado chama-se “Tornando-se Rico e Famoso” e é formado por dois personagens principais que dão nome à série, a vaca e o frango. Um dos mais importantes pontos que pude ressaltar nesta animação é em relação à construção dos personagens, sendo elementos com personalidade alucinada, movimentos rápidos, poses exageradas e grandes distorções. É possível, neste momento, fazer uma ligação com os personagens da animação “Little Nemo” de Winsor McCay, o qual foi um dos primeiros 38 https://www.youtube.com/watch?v=kKnC674-ZDU&list=LL&index=11 animadores experimentais a dar personalidade para seus personagens e utilizar os recursos de poses exageradas e distorções. Sendo assim, a animação possui essa estética alucinada que veio dos pioneiros e foi sendo aplicada em contextos anteriores já citados nesta pesquisa, como na criação do personagem Mickey Mouse e o Pica Pau em 1940. Figura 11 - Cow and Chicken (Becoming Rich and Famous). Cartoon Network UK. Fonte: Vídeo. 5 min. 20 seg. Colorido. Disponível em: . Acesso em: 15 de Dezembro de 2021. Em relação à forma, é possível perceber o uso de cenários mais simplificados e geometrizados, assim como é feito nos estúdios UPA junto de uma abordagem mais cartunesca, entretanto, neste momento, com uma composição mais estilizada, como pode se notar na figura 12. Apesar da complexidade estar mais elevada, ainda notamos as figuras bem geometrizadas, o traço relativamente mais solto e o uso de cores mais chapadas com poucas graduações de sombreamento. 39 Figura 12 - Cow and Chicken (Becoming Rich and Famous). Cartoon Network UK. Fonte: Vídeo. 5 min. 20 seg. Colorido. Disponível em: . Acesso em: 15 de Dezembro de 2021. A próxima animação aqui comentada é Chowder, que estreou no Cartoon Network por volta de 2007 e soma um total de três temporadas. Entre os desenhos aqui citados, Chowder é um dos mais relevantes a respeito de sua forma, já que possui muitos pontos que colidem com os primeiros estudos da animação independente. Ambas animações aqui citadas são de viés comercial mas possuem em seu desenvolvimento, possíveis vestígios de experimentações processuais. Em vista disso, selecionei um dos primeiros episódios da série animada, chamado “Froggy Apple Crumple Thumpkin” no qual já logo de início podemos notar uma mistura de linguagens, entre a animação bidimensional, a fotografia e a técnica de stop motion, esta última consiste em uma quantidade de fotografias colocadas em sequência e formando uma imagem animada. 40 Figura 13. Chowder (Making a Froggy Apple Crumple Thumpkin). Cartoon Network UK. Fonte: Vídeo. 5 min. 21 seg. Colorido. Disponível em: . Acesso em: 15 de Dezembro de 2021. Em relação à técnica de stop motion utilizada neste desenho animado, é possível fazer uma conexão com os estudos de Norman McLaren, principalmente na sua peça animada Neighbours (1952) na qual o artista utiliza da técnica para dar movimento à alguns elementos, como os dois personagens e a flor, decorrendo por meio de um vídeo de oito minutos em que ele mescla o stop motion com a própria gravação corrida das cenas. Figura 14 - Neighbours. NFB. Fonte: Vídeo. 8 min. 07 seg. Colorido. Disponível em: . Acesso em: 15 de Dezembro de 2021. Em outro momento do episódio de Chowder temos uma característica que se repete em toda a série, que seria a textura das roupas de alguns personagens, uma imagem gráfica possivelmente feita a partir de fotografias. Em relação à essa característica mencionada, ela aparece de forma estática, é 41 como se os personagens se mexessem ao passo em que ela continua parada, dando uma nova sensação visual para a animação, fugindo da cor chapada mais simplificada e achando uma solução que seria viável dentro dos prazos e das demandas da animação comercial, contanto que essa textura seja feita a partir da fotografias. Figura 15 - Chowder (Making a Froggy Apple Crumple Thumpkin). Cartoon Network UK. Fonte: Vídeo. 5 min. 21 seg. Colorido. Disponível em: . Acesso em: 15 de Dezembro de 2021. Outros pontos já mencionados nas animações anteriores também são identificados em Chowder, como por exemplo a distorção e o exagero dos personagens, ponto em comum que geralmente é encontrado em várias animações cartunescas, já que por um certo distanciamento com o realismo, podem se debruçar em distorções e expressões exageradas para alcançar os resultados esperados. Além disso, os cenários e personagens também são mais simplificados, buscando sempre uma certa geometrização das formas e alguns efeitos, como a fumaça já identificada anteriormente na animação Coragem o Cão Covarde possui uma proximidade com a experimentação, pois não são elementos que podem ser completamente planejados dentro de um processo animado. 42 Figura 16 - Chowder (Making a Froggy Apple Crumple Thumpkin). Cartoon Network UK. Fonte: Vídeo. 5 min. 21 seg. Colorido. Disponível em: . Acesso em: 15 de Dezembro de 2021. A partir do trabalho que os precursores experimentais produziram, percebe-se uma certa expansão de conceitos já utilizados e criados anteriormente em paralelo com uma aproximação do que é produzido comercialmente dentro da atualidade. Existe uma relação de continuidade e evolução de todo o conteúdo sobre a peça animada que já foi criado até o momento atual, e isso nos possibilita fazer certas conexões entre o que foi produzido experimentalmente e o que é produzido comercialmente, dentro, em específico, dos exemplos de animações cartunescas mencionados nesta pesquisa. 43 CAPÍTULO 2 “Existem inúmeras possibilidades. Não estamos copiando a vida, estamos expressando um ponto de vista sobre ela.” WILLIAMS, Richard. 2016 44 CAPÍTULO 2 2.1 Descrição do processo criativo A partir deste capítulo a respeito da parte prática do objeto poético, assumo a escrita em primeira pessoa por se tratar de um registro criativo e experimental do processo, sendo assim, necessário adequar a escrita para este olhar de investigação da minha própria produção. Com base na pesquisa teórica descrita, desenvolvo um projeto animado que dialoga de certa forma com a animação comercial cartunesca. Neste momento percorro todo o processo que dá início ao vídeo animado, desde as referências visuais até as primeiras decisões do storyboard. Ressalto também a divisão da produção em duas partes complementares, sendo a primeira referente à animação de caráter mais experimental, feita a partir de sequências de fotos, e a segunda feita digitalmente. Entretanto, neste primeiro capítulo, abordo mais a fundo a primeira parte e as ideias que deram origem à toda a animação final. Antes de todo processo prático ao desenvolver certos projetos, a busca de referências visuais torna-se o ponto de partida, em conjunto com o nosso próprio repertório pessoal. E não foi diferente para o desenvolvimento deste trabalho, além de toda pesquisa teórica realizada a princípio já servir de direcionamento, também investigo outras referências que dialogam com meu objetivo nesta pesquisa, principalmente quando se trata de forma e características visuais. Em relação à animação, já havia decidido que ela seria formada por duas partes complementares, como já foi citado anteriormente, uma delas a partir de fotos em sequência e posteriormente uma animação digital por cima. Sendo assim, direcionei essa primeira parte para compor todo o cenário do vídeo e a animação digital para o personagem e objetos secundários que poderiam aparecer em cena, ambos em função do cenário. Dito isto, o cenário ocupa um lugar de destaque em meu projeto, já que é a partir dele finalizado 45 que penso em todo o resto que o poderia complementar, ou seja, o personagem e, ainda mais para frente, a sonorização do vídeo. Como referência para este projeto, usei principalmente os trabalhos de Norman McLaren e os desenhos do Cartoon Network aqui já mencionados. Em La Merle (1958), McLaren anima a figura de um pássaro a partir de uma composição geométrica que sugere o tempo todo ao observador que todas as formas desenhadas de maneira independente dão uma ideia de conjunto, e esse conjunto formaria a figura de um pássaro. Então, neste momento, me chama atenção as formas simplificadas e a ideia de sugestão dos elementos, sem precisar de detalhamentos, ou até mesmo sem necessitar que as formas assumam ideias únicas durante toda a sequência, já que estão o tempo todo em uma constante transformação, mas nunca se afastando da ideia principal que seria o elemento do pássaro. Figura 17. La Merle (1958).Norman McLaren. Fonte: Vídeo. 4 min. 38 seg. Colorido. Disponível em: . Acesso em: 31 de Janeiro de 2022. Outro trabalho de McLaren que teve muita influência em meu projeto foi Neighbours (1952), já mencionado aqui, onde o artista faz o uso da técnica de stop motion para compor o filme, animando paralelamente alguns elementos e mesclando com a gravação do filme propriamente dita. Neste sentido, vemos a mesma técnica utilizada em alguns trechos do desenho animado Chowder, como no episódio “Froggy Apple Crumple Thumpkin” também já mencionado 46 anteriormente. Então, nota-se o uso da mescla entre o stop motion com a animação digital, sendo este o ponto de partida que uso para o meu objeto poético. Outra importante referência, também já mencionada aqui, é a peça animada Hunger (1973) de Peter Foldés, onde o artista explora digitalmente o conceito de metamorfose de Émile Cohl, porém utilizando de forma automatizada a partir do processo de interpolação que alguns softwares digitais de animação nos possibilitam acesso. Assim, essa característica de metamorfose, ou seja, de transformação das formas, torna-se constante em vários desenhos animados atuais, como aparece no episódio “The Transplant” de Coragem o Cão Covarde, também já mencionado nesta pesquisa. Deste modo, me debruço brevemente neste conceito de metamorfose para desenvolver meu trecho animado, pensando que os elementos possam estar sujeitos a transformação de suas formas em curtos intervalos de tempo, sem precisar de fato que passem por processos que antecedem e indiquem que haverá uma determinada transformação, desprendendo do realismo e focando no exagero das formas. No que diz respeito à composição das formas, agrupo algumas referências que me servem de repertório visual para desenvolver os desenhos que compõem, principalmente, o cenário do filme animado. Uma das minhas principais referências visuais, não só para esse projeto mas para o tipo de gráfico cartunizado que gosto de fazer em meus trabalhos pessoais, parte do desenho animado Hora de Aventura transmitido pela Cartoon Network. A série é desenvolvida a partir da criação de todo um universo imaginário muito bem desenvolvido que é composto a partir de personagens fantasiosos e cenários construídos a partir de formas geométricas simples. Nesta animação, a composição do cenário e dos personagens me inspiram em relação à forma dos elementos, os personagens são simplificados e os cenários possuem universos muito bem desenvolvidos, diferenciando tanto o 47 dia da noite, quanto demonstrando características físicas e de personalidade de personagens que vivem em determinado lugar. Figura 18 - As aberturas de Hora de Aventura. Cartoon Network Brasil. Fonte: Vídeo. 5 min. 19 seg. Colorido. Disponível em: . Acesso em: 31 de Janeiro de 2022. Ainda em relação à composição visual das formas, o modernismo brasileiro é uma importante fonte de inspiração visual para a minha peça animada, principalmente em relação à geometrização das formas, o uso das cores e essa característica do afastamento da arte acadêmica e seu mimetismo. E dentro do modernismo brasileiro destaco, principalmente, a artista plástica Tarsila do Amaral (1886 - 1973) e o uso que a mesma faz das formas mais simplificadas e geometrizadas. Na obra “Cartão Postal” de 1929 é possível perceber essa relação formal, muitas vezes com as bordas mais arredondadas, cores mais chapadas, contornos delimitados e essa relação em pintar a natureza e seus elementos em sua forma sintética. Além disso, existe uma separação muito clara dos planos do quadro, é facilmente identificável o que está em primeiro plano e o que está mais para o fundo da tela. 48 Figura 19 - Cartão Postal, 1929. Tarsila do Amaral. Fonte: Óleo sobre tela. 142,5 cm x 127,5 cm. Disponível em: . Acesso em: 31 de Janeiro de 2022. Outra inspiração visual que utilizo é o livro Pequeno Príncipe de Antoine de Saint Exupéry, neste momento encaminharei a atenção para a parte visual do livro pois, além de escritor, o autor também aquarelou as ilustrações da história. Então, temos uma história sensível e profunda marcada por desenhos que incorporam o que o autor escreve. Durante a narrativa são desenhados vários planetas e cada um com características específicas que introduzem a personalidade das pessoas que ali vivem, assim, garante uma sutileza para a história ao direcionar o leitor a entrar nesse universo criado pelo escritor. Figura 20 - O Pequeno Príncipe, Antoine de Saint Exupéry. Fonte: Aquarela. Pg. 35. São Paulo: Editora Agir, 2006. 49 Nesta imagem vemos o personagem em seu planeta diante de um universo criado apenas para ele, por conseguinte, a questão da criação de toda uma atmosfera lúdica em torno da história me chama a atenção para pensar em criar algo que esteja fora do entendimento lógico das coisas que reconhecemos. Assim, a animação torna-se um importante meio para a criação de universos que fogem do comum e da realidade que já conhecemos, em relação a isto, o estilo cartunesco também foge um pouco da realidade, e/ou exagera e cria movimentos impossíveis de acontecer na vida real. Em relação ao contraste que a animação extremamente realista traz à tona, Richard Williams (2016) parafraseia uma fala de Walt Disney à respeito da animação, na qual consistia em fazer coisas que os humanos fossem incapazes de fazer, ou seja, caminha no sentido de não tentar representar fielmente a realidade dentro de uma animação para não causar um certo estranhamento. Em seu livro Richard Williams (2016) descreve essa imitação enorme do real nas animações como algo que estivesse no “vale do estranhamento”, sendo assim, causando um certo incômodo para o observador. Diante disto, um dos estilos que me proponho a desenvolver em meus trabalhos é o cartunesco, como já dito anteriormente, sendo o mais sintetizado e baseado em formas geométricas. Podemos ficar cada vez mais realistas e críveis sem perder a empatia, mas a partir de certo ponto, quando obtemos algo parecido demais com a realidade, há uma queda abrupta, um mergulho rumo a algo inaceitavelmente arrepiante, e nos recolhemos em aversão. Estamos então no “vale do estranhamento” [...] Espectadores de animações 2D clássicas sempre preferiram os personagens mais cartunescos aos mais realistas [...] (WILLIAMS, 2016, p. 375) Para complementar as referências que somam no desenvolvimento do meu projeto, caminho em direção à tecnologia dos jogos digitais, com um recorte específico à estética de Super Mario Bros que possui essa configuração de jogos com vários desafios no qual o objetivo é passar as diversas fases. Trago este exemplo, principalmente, por conta da estética do jogo, onde o personagem percorre um caminho em direção ao objetivo da fase, sendo essas 50 fases compostas por universos específicos, com composições de cenários geometrizados e, no caso dos primeiros jogos do Super Mario, personagens simplificados e pixelados. Figura 21 - Super Mario Bros 3. Via Techtudo. Fonte: Disponível em: . Acesso em: 02 de Fevereiro de 2022. Diante disso tudo, chego à algumas decisões estéticas que aplico ao meu projeto, baseando-se nas referências que busquei e em algumas características que me chamaram a atenção, sendo elas: a geometrização e sintetização das formas, a simplificação dos traços, o uso de cores mais chapadas e com poucas quantidades de sombras junto de contornos delimitados. E então, a partir dessas características visuais, realizo a primeira parte da animação, que consiste na produção animada do cenário, pensando primeiramente na questão da materialidade e posteriormente planejando as formas. Dito isto, escolho o papel como materialidade do stop motion, pensando na sua maleabilidade e na facilidade de alcançar formatos desejados. Entretanto, busco folhas que tenham uma gramatura maior, já que se trata de um material relativamente delicado. 51 Figura 22 - Papéis utilizados para o stop motion, dezembro de 2021. Fonte: Foto tirada pela autora. Opto pelas folhas Canson que, além de uma gramatura maior, possuem tons mais pastéis que me interessam visualmente. A escolha da paleta foi uma decisão mais intuitiva, relaciono combinações de cores que me agradam, mas que não sejam distantes das próprias cores que utilizo em outros trabalhos pessoais. O objetivo é mesclar, principalmente, os tons de rosa e verde água. Outra decisão que tomo neste início em relação às cores, é a de utilizar também o amarelo, porém, não neste momento do stop motion. Deixo o amarelo como cor base da personagem que posteriormente foi desenvolvida de maneira digital. O próximo e importante passo, foi o de organizar quais formas eu gostaria de criar com aqueles papéis e como seria a ordem das fotos. Assim, produzo um rascunho de um storyboard para essa primeira parte do trabalho. É perceptível que para otimizar o tempo da tiragem das fotos, seria necessário uma organização previamente estabelecida de todos os papéis, desde os recortes das formas até a sequência das cenas e, para isso, esse momento do storyboard foi de grande importância. 52 Figura 23 - Primeiro storyboard do projeto, dezembro de 2021. Fonte: Foto tirada pela autora. Então, simplifico ao máximo este momento do storyboard, o objetivo é criar cenas já pensando na quantidade de papéis que eu tinha em mãos, então tudo foi muito bem planejado para que fosse possível utilizar todas as folhas e não faltar papel. Além de planejar os recortes, também anoto e planejo o movimento de cada cena, ou seja, se os papéis estariam subindo em uma cena ou se estariam se deslocando para a direita, por exemplo, o intuito era não ter muitos movimentos repetidos para a mesma direção. Essa parte de execução do storyboard levou apenas algumas horas, o passo seguinte foi o de recortar as folhas e separá-las em cenas para que, no momento da gravação, eu já tivesse tudo esquematizado. Então, levo dois dias para recortar e separar todas as folhas. Um detalhe neste processo importante de se destacar, foi na cena de número sete, a partir do storyboard, em que foi planejado o movimento de um círculo se expandindo, então ele começaria pequeno e iria expandir até ocupar todo o espaço do quadro. Neste momento ficou claro que a melhor maneira de alcançar esse movimento de cena almejado seria fotografando na ordem reversa e posteriormente organizando as fotos na ordem correta. Dessa maneira otimizei a quantidade de folhas, pois foi feito primeiramente o desenho do círculo 53 grande e no momento da gravação, a partir de cada foto tirada da esfera, foi sendo seguido a partir do recortes das tiras já previamente demarcadas, e assim, diminuindo esse círculo até chegar em seu tamanho mínimo. Figura 24 - Detalhe da cena sete do storyboard, dezembro de 2021. Fonte: Foto tirada pela autora. Depois de tudo organizado, o momento mais desafiador dessa primeira etapa foi o dia de fotografar os papéis. Pela minha falta de prática com a técnica e a falta de alguns equipamentos, acabei tendo algumas dificuldades neste início. A maior parte do equipamento que consegui foi improvisado, tanto a câmera e o tripé, quanto o suporte para as folhas. Entretanto, pelo tripé estar relativamente quebrado, precisei enrolar bastante fita para conseguir garantir uma estabilidade na câmera e não correr o risco das fotos saírem com ângulos diferentes. A princípio, o objetivo era realizar essa gravação em um lugar plano com as folhas apoiadas em uma mesa, porém, pela falta de equipamentos de iluminação adequados, e também de técnica, não foi possível encontrar um ângulo em que não formasse sombra nas cenas. Então optei por deixar o suporte das folhas o mais vertical possível e, para que fosse viável, foi necessário colar cada pedaço de papel com fita crepe, consequentemente, em cada movimento produzido, era preciso colar e descolar novamente o papel do suporte. 54 Figura 25 - Equipamentos utilizados para a gravação do stop motion, dezembro de 2021. Fonte: Foto tirada pela autora. A partir do equipamento já alinhado, o próximo passo foi o de fotografar as cenas. Esse procedimento da fotografia perdurou um dia inteiro e, como eu havia mencionado, não obtive um equipamento de iluminação adequado. Dessa forma, toda a iluminação das fotos foram feitas pela própria lâmpada que já estava no ambiente junto da iluminação natural do dia que vinha da janela ao lado esquerda, sendo esta última a mais eficiente. Sendo assim, fotografo todas as cenas antes do sol se pôr, fato no qual foi possível realizar. Para minimizar os erros de angulação dos papéis ao fotografar cada elemento, optei pelo uso de uma fita crepe para demarcar a área da base da mesa, criando uma espécie de margem, assim, ao ter todas os frames já finalizados, facilitou o momento da edição, já que eu tive conhecimento de onde estava a base de corte e, consequentemente, o tamanho da área do filme. 55 Figura 26 - Um momento da gravação das fotos, dezembro de 2021. Fonte: Foto tirada por Tayná Maciel. Figura 27 - Foto da primeira cena do storyboard, dezembro de 2021. Fonte: Foto tirada pela autora. Ao final do dia foi somado uma quantidade de, mais ou menos, quatrocentas fotos, uma quantidade que eu já estava esperando alcançar levando em conta o número de cenas e a complexidade de cada uma delas. Gostei muito de todo esse procedimento do stop motion, principalmente ao ver as fotos já em sequência e imaginar o efeito que criaria no vídeo final. 56 Estive diante de um desafio, ao pensar que é uma técnica minuciosa e extremamente detalhista, além disso, pude experimentar um pouco desse universo de imagens em sequências que artistas tão importantes, como Norman McLaren, aplicaram em seus trabalhos há décadas atrás. Ver uma imagem que você idealizou e produziu se movimentar, criando basicamente vida, é extremamente gratificante e mágico, fazendo todo o trabalho valer a pena. 57 2.2 Pré Produção, Produção e Pós Produção A partir das fotos tiradas e os arquivos salvos, chega o momento de colocá-los em sequência pensando, também, na questão do tempo do vídeo animado, a finalidade era a de conseguir desenvolver um vídeo de pelo menos cinquenta segundos a partir da quantidade de fotos que eu havia tirado. O primeiro passo da edição foi cortar todas essas fotografias respeitando a mesma angulação e as demarcações que eu já havia feito anteriormente na mesa com fita crepe. Para este procedimento, o programa Adobe Animate foi utilizado, a princípio experimento a possibilidade de cortar com o Premiere, outro programa da Adobe, porém, pela minha pouca experiência com a plataforma, obtive algumas dificuldades e optei pelo caminho do programa que eu tenho mais conhecimento. E então foi preciso cortar e ajustar cada uma das quase quatrocentas fotos, levando uma média de dois dias para que todos os fotogramas estivessem prontos e em ordem. Neste momento eu também pude já decidir o formato que o arquivo assumiria, que seria o de 920 pixels por 720 pixels, dado no qual se torna muito importante para o andamento do projeto. Desde o início eu já almejava que o formato não fosse dos mais comuns e utilizados atualmente, que são os tamanhos das telas de computadores, ou seja, com formatos mais horizontais. Sendo assim, me aproximo de formatos utilizados anteriormente nas televisões de tubo, ou seja, com aspecto 4:3, já que uma forma mais quadrada me agradaria mais do que a retangular. Além do recorte das fotos, também organizo nesta etapa a quantidade de frames por imagens, sendo esta outra importante decisão que norteia o ritmo da animação. Me baseio, então, em um ritmo mais travado, mas que não perdesse a relação de fluidez entre as formas. Por conseguinte, os elementos de papel se moveriam, o espectador perceberia um certo intervalo entre um movimento e outro, mas ao observar todo o conjunto, formará um ritmo coerente e confortável. 58 Após essa decisão um pouco mais técnica, encaminho este arquivo do Animate para o Premiere e alinho melhor todas as fotos, compensando a questão da luz e da nitidez dos fotogramas. Neste momento trabalho um pouco com a questão da pós produção no vídeo, pois o intuito é levar esse arquivo do cenário o mais pronto possível para a animação digital, pois assim mantenho o foco em uma etapa de cada vez. A partir deste stop motion já finalizado, começo a pensar na animação digital que vai interagir com o cenário. Até esse momento eu não havia pensado em nada muito específico para fazer nessa etapa do projeto, pois só a partir do cenário pronto que eu passei a planejar o personagem e os elementos que poderiam estar na animação. A fluidez do papel e a composição do cenário garantiu uma abertura suficiente para criar elementos que se desprendem do racional, sendo possível compor um universo com um personagem cartunesco que fluiria no ambiente conforme o cenário fosse se transmutando. Em relação ao desenho da personagem, não levo muito tempo desenvolvendo suas características físicas, me baseio em personagens que já costumo desenhar que seguem, inclusive, algumas de minhas características físicas - como a franja e o cabelo mais curto - entretanto, não considero que seja uma representação de um certo tipo de autorretrato, e sim, apenas uma forma intuitiva de desenhar algo que já costumo criar. Neste sentido, crio um esboço único no storyboard, o mesmo utilizado para o cenário, e desenvolvo uma espécie de trajetória que este elemento iria percorrer. Essa trajetória depende diretamente da variação dos movimentos do cenário, assim, até mesmo no digital, os movimentos continuam sendo de certa forma experimentais e dependentes de uma sincronicidade entre toda a composição da animação. 59 Figura 28 - Storyboard para a animação digital, janeiro de 2022. Fonte: Foto tirada pela autora. E então nota-se, a partir dessa segunda versão do storyboard, a maneira como fui capaz de conduzir a trajetória da personagem a partir do movimento já antes estabelecido pelo stopmotion, identificando certa relação de dependência entre o que foi sendo produzido posteriormente ao cenário para com o filme do cenário já finalizado. Posto isto, um grande detalhe dessa pesquisa prática é que nada poderia ser pré estabelecido antes que a sequência do stop motion estivesse finalizada, e assim fui seguindo essa linha de raciocínio até o final do projeto: a colorização só seria feita assim que as linhas da animação digital já estivesse finalizada, assim como a sonorização só seria feita quando o vídeo animado já estivesse completo e assim sucessivamente. Figura 29 - Detalhe de duas cenas do storyboard, janeiro de 2022. Fonte: Foto tirada pela autora. 60 A partir do storyboard do personagem pronto, me encaminhei para a próxima etapa de rascunhar todos esses movimentos que eu havia planejado para a personagem, isso tudo utilizando da animação digital bidimensional. Para este processo, utilizo a plataforma Adobe Animate, já mencionada aqui, principalmente por ser um programa que eu já possuo um conhecimento prévio e por um afeiçoamento a partir da liberdade que ele traz, possibilitando que os desenhos sejam feitos quadro a quadro, mais próximo da animação tradicional de fato. Além disso, uma outra característica desse programa é que os traços nessa plataforma saem em forma de vetor, semelhante ao que o Adobe Illustrator alcança, entretanto aqui, existe a possibilidade de desenvolver um objeto animado. Figura 30 - Frame do rascunho do ciclo de caminhada, janeiro de 2022. Fonte: Imagem advinda do vídeo animado produzido pela autora. Esta etapa do rascunho dos elementos digitais perdurou uma média de quatro a cinco dias no total, sendo a primeira cena uma das que eu gastei mais tempo, já que consiste em uma espécie de ciclo de caminhada. Não por acaso, Richard Williams (2016) parafraseia um conselho de Ken Harris (1898 - 1982) a respeito do ciclo de caminhada, sendo a primeira coisa a se aprender porque elas são provavelmente as coisas mais difíceis de se fazer de forma correta. De fato, Ken Harris sendo um importante animador dos estúdios Warner Brothers já deu a dica para animadores iniciantes como eu, não é por acaso 61 que fiquei pelo menos dois dias apenas entendendo como poderia deixar a caminhada da personagem um pouco mais dinâmica. Não há nada como experimentar. Existem inúmeras possibilidades. Não estamos copiando a vida, estamos expressando um ponto de vista sobre ela. Se errarmos, e daí? É só um teste. Faça as correções e teste de novo. Metade das vezes vamos falhar feio - mas na outra metade o movimento vai funcionar e vai ser algo novo. (WILLIAMS, 2016, p. 135) Ainda em relação ao programa escolhido para animar digitalmente, apesar de ser o que eu tenho maior afinidade, em comparação aos outros que são utilizados para animação, ainda tive algumas dificuldades, principalmente por nunca ter desenvolvido um vídeo com mais de quinze segundos. Apesar do desafio, gostei muito do processo e com isso pude perceber o quão amplo e diverso é o campo da animação, sinto que todo esse projeto me fez expandir minha visão a partir das possibilidades que a animação bidimensional pode proporcionar. Figura 31 - Outro frame do rascunho da animação digital, janeiro de 2022. Fonte: Imagem advinda do vídeo animado produzido pela autora. Assim que o rascunho foi finalizado, dei início a um dos processos de acabamento e refinamento do desenho, desenhando novamente por cima do rascunho e tornando o traço mais limpo e legível dentro das configurações plásticas que eu gostaria de ter em meu projeto. Em relação ao tempo, acredito ter alcançado mais ou menos três dias para refazer todos os desenhos e 62 melhorar alguns traços e movimentos. Para mim, este é um momento definidor, já que é a partir dele que torna-se viável ter uma ampla noção estética de como ficou a animação digital em seu resultado final. Em relação ao traço, procuro aproximação com as características dos gráficos cartunizados, como já havia dito e previsto anteriormente, porém, me distanciando brevemente da perfeição das linhas totalmente fechadas e de angulação perfeita, buscando um desenho mais solto que garantisse uma certa dinamicidade ao filme animado, característica na qual eu deduzi que conversaria com o movimento e a estética do stop motion ao fundo. E essa dinâmica do traço eu consegui utilizando um pincel que tivesse diferentes níveis de pressão, possibilitando a passagem da mesma linha com diferentes espessuras. Conforme colocava mais pressão na caneta da mesa digitalizadora, mais grosso ficava o traço, ao passo em que se tornava mais fino ao diminuir a pressão da caneta sobre a mesa. Figura 32 - Frame com a linha final, janeiro de 2022. Fonte: Imagem advinda do vídeo animado produzido pela autora. 63 Figura 33 - Outro frame com a linha final, janeiro de 2022. Fonte: Imagem advinda do vídeo animado produzido pela autora. O último passo em relação à finalização da animação digital foi o da colorização do projeto. Neste momento, praticamente apenas dois elementos precisavam ser coloridos, a personagem e a esfera que aparece em uma das cenas. A colorização foi um dos meus momentos favoritos, pois as cores já estavam pré definidas e só foi preciso preencher os espaços em cada um dos frames. Apesar de ser uma etapa mais mecânica, é um momento de finalização e já se encontra muito perto do resultado final, então é possível ter uma grande noção de como ficou o conjunto do filme animado. Além da cor, também adiciono alguns detalhes como o reflexo no cabelo da personagem e afino alguns outros tons de amarelo que aparecem em cena. 64 Figura 34 - Frame do vídeo finalizado, janeiro de 2022. Fonte: Imagem advinda do vídeo animado produzido pela autora. Ainda em relação à cor, já havia mencionado a escolha do amarelo para o personagem, entretanto, os outros elementos como o papel pendurado na árvore que aparece na Figura 34 acima e a esfera que surge em outra cena do vídeo final, na Figura 35, são formados a partir de cores que derivam do cenário. Dessa forma, crio uma composição de tons que dialogam entre si e que se diferem, normalmente, apenas pela saturação. Tomo essa decisão para não fugir dos tons já escolhidos anteriormente pelos papéis utilizados no cenário, evitando misturar muitas cores e destoar do que já estava pronto. Figura 35 - Outro frame do vídeo finalizado com foco no elemento da esfera rosa, janeiro de 2022. Fonte: Imagem advinda do vídeo animado produzido pela autora. 65 A partir da junção de todas essas técnicas e processos, chego, enfim, ao resultado final da peça animada. Ainda sem sonorização e outros ajustes finais, porém, com todos os elementos e etapas que consistem no ato de animar, finalizados. Figura 36 - Frame do vídeo finalizado, janeiro de 2022. Fonte: Imagem advinda do vídeo animado produzido pela autora. Figura 37 - Frame de uma das últimas