0 UNESP UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP EMANUELA RODRIGUES DA SILVA O PRONOME MIM NA ORALIDADE DO PORTUGUÊS PAULISTANO: UMA PERSPECTIVA (SOCIO)LINGUÍSTICA ARARAQUARA – S.P. 2023 1 EMANUELA RODRIGUES DA SILVA O PRONOME MIM NA ORALIDADE DO PORTUGUÊS PAULISTANO: UMA PERSPECTIVA (SOCIO)LINGUÍSTICA Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) apresentado ao Conselho de Curso de Letras, da Faculdade de Ciências e Letras– Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Bacharel em Letras. Área de concentração: Análise Fonológica, Morfossintática, Semântica e Pragmática Orientador: Profa. Dra. Rosane de Andrade Berlinck Co-orientador: Profa. Dra. Sílvia Maria Brandão ARARAQUARA – S.P. 2023 D229p Silva, Emanuela Rodrigues da O PRONOME MIM NA ORALIDADE DO PORTUGUÊS PAULISTANO : UMA PERSPECTIVA (SOCIO)LINGUÍSTICA / Emanuela Rodrigues da Silva. -- Araraquara, 2023 44 p. Trabalho de conclusão de curso (Bacharelado e licenciatura - Letras) - Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Araraquara Orientadora: Rosane de Andrade Berlinck Coorientadora: Silvia Maria Brandão 1. Sociolinguística Variacionista. 2. Português Paulistano. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Dados fornecidos pelo autor(a). 2 IMPACTO POTENCIAL DESTA PESQUISA A presente pesquisa lança luz sobre aspectos da linguagem e da sociedade, uma vez que a construção “para+mim+infinitivo” pode ser considerada incorreta segundo normas da gramática tradicional, ao passo que é amplamente utilizada por várias comunidades linguísticas. As investigações sociolinguísticas exploraram como o fenômeno varia em diferentes contextos sociais de comunicação, além de investigar também seus fatores linguísticos, buscando entender quais variáveis influenciam na aceitação ou estigmatização da construção. Ao entender como o pronome mim como sujeito em orações infinitivas iniciadas pela preposição para é interpretado por diferentes grupos de falantes, é possível implicar em áreas educacionais de forma a promover aceitação e respeito linguístico, corroborando para o desenvolvimento de materiais didáticos relevantes que abordam a diversidade linguística e social. A pesquisa tem capacidade de enriquecer a compreensão da linguagem humana, nesse contexto, e suas respectivas interações sociais. POTENTIAL IMPACT OF THIS RESEARCH This research sheds light on aspects of language and society, since the construction “para+mim+infinitive” can be considered incorrect according to traditional grammar rules, while it is widely used by several linguistic communities. Sociolinguistic investigations explored how the phenomenon varies in different social communication contexts, in addition to also investigating its linguistic factors, seeking to understand which variables influence the acceptance or stigmatization of the construction. By understanding how the pronoun mim as a subject in infinitive sentences beginning with the preposition para is interpreted by different groups of speakers, it is possible to implicate educational areas in order to promote linguistic acceptance and respect, supporting the development of relevant teaching materials that address diversity linguistic and social. Research has the capacity to enrich the understanding of human language, in this context, and their respective social interactions. 3 EMANUELA RODRIGUES DA SILVA O PRONOME MIM NA ORALIDADE DO PORTUGUÊS PAULISTANO: UMA PERSPECTIVA (SOCIO)LINGUÍSTICA Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) apresentado ao Conselho de Curso de Letras, da Faculdade de Ciências e Letras– Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Bacharel em Letras. Área de concentração: Análise Fonológica, Morfossintática, Semântica e Pragmática Orientador: Profa. Dra. Rosane de Andrade Berlinck Co-orientador: Profa. Dra. Sílvia Maria Brandão Data da defesa/entrega: 03/01/2023 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientador: Profa. Dra. Rosane de Andrade Berlinck (UNESP) Membro Titular: Profa. Dra. Caroline Carnielli Biazolli (UFSCar) Membro Titular: Prof. Dr. Marcus Garcia de Sene (UPE/Garanhuns) Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara 4 Com gratidão, dedico este trabalho a todos que fizeram parte da minha trajetória acadêmica. 5 AGRADECIMENTOS Agradeço aos meus pais por tanto amor e por todo apoio, por não me deixarem desistir e por me incentivarem a seguir em frente e alcançar meus objetivos. Agradeço aos meus grandes amigos unespianos – nas pessoas de Daiane, Camila, Lívia, Júlia, Nadja, Juliano e Naira – por todos os lindos momentos juntos de muitas risadas, afagos, viagens e festas. Por todo apoio moral, por enfrentarmos momentos difíceis todos sempre juntos, por sonharem comigo, por dançarem comigo, por chorarem comigo. À minha orientadora, Profa. Dra. Rosane de Andrade Berlinck, que me apresentou a sociolinguística, que me abraçou e que me fez ter certeza do caminho que quero e devo seguir. Agradeço também pela paciência, pela disposição em sempre me ouvir e me ajudar, e por me orientar com tanto carinho e dedicação. À minha co-orientadora, Dra. Silvia Maria Brandão, que mesmo estando tão longe não exitou em me ajudar. Agradeço pela grande contribuição à minha pesquisa, pela paciência em entender minhas limitações, pelas dicas, pelas leituras e releituras de textos meus e por todo carinho. Aos amigos do grupo SoLAr, em especial à Ma. Milena Aparecida de Almeida, que se prontificou a me ouvir e entender minhas inquietações. Agradeço imensamente pela grande ajuda com a minha pesquisa, pela simpatia e pela amizade que se instaurou. À Reitoria da Unesp (Código de Financiamento 6008) e ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq (Código de Financiamento 10855) pelo apoio financeiro. Agradeço a todos que acreditaram em mim, me ajudando mesmo que indiretamente, com palavras e abraços em momentos que eu precisava. 6 “Eu não tenho a letra, eu tenho a palavra.” Dona Fiota. 7 RESUMO O objetivo dessa pesquisa é descrever os usos do pronome oblíquo mim com base nos pressupostos teóricos da sociolinguística laboviana (Weinreich; Labov; Herzog, 2006 [1968]; Labov 1994, 2001, 2008 [1972], 2010), em busca da compreensão de seu comportamento (sócio)linguístico no português paulistano. Os dados analisados pertencem ao banco de dados do Projeto SP2010, o qual retrata amostras da fala paulistana. Partimos da construção para+mim+infinitivo para fazer uma descrição mais ampla dos usos do mim a fim de identificar os contextos em que esse pronome é usado para um possível diagnóstico em tais contextos em que ocorrem variação. Com isso, nossa hipótese é que haja uma mudança em curso envolvendo o pronome oblíquo mim e o pronome reto eu nesse contexto, pois por mais que as gramáticas tradicionais condenem essa forma, os trabalhos sociolinguísticos sobre o tema nos mostram que cada vez menos o pronome reto eu é usado. Para a realização dessa pesquisa, os dados são analisados segundo fatores linguísticos (preposição que antecede o pronome – de, em, para, com, por, a, até; função sintática do pronome) e extralinguísticos (sexo, faixa etária, escolaridade). A quantificação dos dados foi feita com o auxílio da plataforma R (Core Team, 2021). Os resultados obtidos mostraram que, além da preposição para, os informantes da amostra investigada usaram as preposições a, até, contra, em, para e por antecedendo o mim. Em vista disso, foram identificadas 8 funções sintáticas que o pronome desempenhou nos dados do corpus. Em relação aos fatores sociais, a pesquisa indica que a construção para+mim+infinitivo é mais produzida por jovens do sexo masculino, o que vai ao encontro de um tendência identificada para vários fenômenos de que as mulheres tendem a usar as formas prestigiadas com mais frequência. Palavras – chave: pronome mim; sociolinguística variacionista; português paulistano. 8 ABSTRACT The objective of this research is to describe the uses of the oblique pronoun mim based on the theoretical assumptions of Labovian sociolinguistics (Weinreich; Labov; Herzog, 2006 [1968]; Labov 1994, 2001, 2008 [1972], 2010), in search of an understanding of their (socio)linguistic behavior in São Paulo City Portuguese. The data analyzed belongs to the SP2010 Project database, which portrays speech samples from São Paulo. We start from the construction para+mim+infinitivo to provide a broader description of the uses of mim in order to identify the contexts in which this pronoun is used for a possible diagnosis in such contexts in which variation occurs. With this, our hypothesis is that there is an ongoing change involving the oblique pronoun mim and the straight pronoun eu in this context, because as much as traditional grammars condemn this form, sociolinguistic work on the subject shows us that less and less the pronoun straight I is used. To carry out this research, the data is based on second linguistic factors (preposition that precedes the pronoun – de, em, para, com, por, a, até; syntactic function of the pronoun) and extralinguistic (gender, age group, education). Data quantification was done with the help of the R platform (Core Team, 2021). The results obtained showed that, in addition to the preposition for, the informants in the investigated sample obtained the prepositionsa, até, contra, em, para and por preceding mim. In view of this, 8 syntactic functions that the pronoun performed in the corpus data were identified. In relation to social factors, the research indicates that the construction para+mim+infinitive is more produced by young males, which is in line with a trend identified for specific sections in which women tend to use the prestigious forms with more frequency. Keywords: pronoun me; variationist sociolinguistics; São Paulo city portuguese. 9 LISTA DE TABELAS Tabela 1 Quadro dos pronomes pessoais no PB em Castilho (2014) 20 Tabela 2 Contextos estruturais em que pode ocorrer o pronome mim, de acordo com as diferentes gramáticas analisadas. 24 Tabela 3 Categorias que caracterizam a estratificação no SP2010 29 Tabela 4 Ocorrência de preposição nos dados analisados 31 Tabela 5 O mim como O.I e as preposições que o antecede 35 Tabela 6 Preposições encontradas nas ocorrências de complemento relativo e nominal 36 Tabela 7 Distribuição dos usos de “para + mim + infinitivo” segundo os fatores extralinguísticos 39 Tabela 8 Ocorrência de eu, mim e zero anafórico nos estudos de Gomes (2019) 40 10 SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO 11 2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA 14 2.1. A Sociolinguística Variacionista 14 2.2 Construções em que o mim ocorre de acordo com gramáticas 16 2.3 O que dizem os estudos sociolinguísticos 23 3. METODOLOGIA 27 3.1 Fonte de dados: o banco SP2010 27 3.2 Procedimentos de coleta e quantificação dos dados 27 3.3 Análise sintática das ocorrências 30 4. O PRONOME MIM NA ORALIDADE PAULISTANA: ANÁLISE E DISCUSSÃO 31 4.1 Fatores linguísticos: preposição e função sintática do pronome 31 4.2 Fatores extralinguísticos 36 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS 40 REFERÊNCIAS 42 11 1. INTRODUÇÃO A pesquisa propõe descrever os usos do pronome oblíquo mim no português paulistano, analisando a função do pronome na modalidade falada da língua com o objetivo de identificar situações de variação e, potencialmente, mudança linguística. Tomamos como base teórico-metodológica a perspectiva da Sociolinguística Variacionista, que foi fundada pelo linguista William Labov na década de 1960 (Labov, 2008 [1972]). Essa teoria tem como objetivo entender os fatores motivantes da variação, estudando a língua em seu uso real (Martelotta, 2008). Para isso, a concepção de que a língua está em constante relação com a sociedade é fundamental nos estudos sociolinguísticos. Dos fenômenos em variação no quadro pronominal do português brasileiro (PB), o pronome mim, quando usado como sujeito em orações infinitivas iniciadas pela preposição para, está entre aqueles que sofrem estigma social. Nessa construção, esse pronome está em variação com o pronome reto eu, uma vez que a forma “para eu fazer” é relativamente substituída por “para mim fazer”. A construção com mim é muito conhecida e usada tanto na fala de pessoas menos letradas como por falantes com nível superior de escolaridade, mas é condenada pelas gramáticas tradicionais e mecanicamente ensinada como incorreta nas escolas. Dizer que essa construção é incorreta é uma ideia que se propaga socialmente pelos falantes do PB. As justificativas para enfatizar esse “erro” não possuem fundamentos científicos, de maneira que a maioria das respostas que condenam essa construção pode ser resumida na frase “o pronome mim não conjuga verbo”. Acusações como essa prestigiam um modo de falar e estigmatizam outro, fazendo com que o preconceito linguístico seja evidente. Os usos da língua em diferentes contextos da sociedade dão origem à variação linguística, mas a ideia de que existe um único jeito correto de se falar ainda é predominante. Essa crença está fortemente ligada à propagação do preconceito linguístico. A construção para+mim+infinitivo tem sido alvo de estudos sociolinguísticos de maneira a denunciar e combater o preconceito (Figueiredo, 2007; Torrent, 2008; Gomes, 2019; Novaes, 2019). A partir do seu funcionamento e do modo como ela é vista socialmente, partimos, com base nos pressupostos teóricos da sociolinguística laboviana (Weinreich; Labov; Herzog, 2006 [1968]; Labov 2008 [1972], 1994, 2001, 2010), para uma descrição dos usos da forma mim em busca da compreensão de seu comportamento sintático no português paulistano. Embora a discussão em torno do pronome mim focalize a construção apresentada acima, existem ainda outros desdobramentos que podem e precisam ser explorados, como 12 outros contextos de uso ou outros arranjos sintáticos, e é a partir daí que a presente pesquisa se encaminha. Para além da construção em questão, com esse estudo pretende-se, assim, analisar a relação do pronome mim em contexto preposicionado, verificando se o comportamento variável observado junto da preposição para ocorre também junto de outras preposições, e se o pronome mim tem comportamento variável em outros contextos sintáticos. Também avaliamos o papel de fatores extralinguísticos (sexo, faixa etária, escolaridade) no uso variável do pronome. Ou seja, o objetivo da pesquisa é fazer uma descrição mais completa dos usos do mim a fim de alavancar os estudos nessa área. Cabe destacar que esse fenômeno foi muito pouco investigado no português paulista, de modo que nossa proposta também visa contribuir para a descrição dessa variedade do português brasileiro na perspectiva sociolinguística. Sabemos que ainda há muito a conhecer sobre o funcionamento da língua e consideramos que uma descrição mais adequada e real dos usos do pronome mim pode contribuir para uma visão de língua livre de preconceitos. Se a língua e a sociedade estão intimamente ligadas, ao investigarmos a língua, em suas variações e mudanças, podemos também entender como a sociedade se organiza e se modifica, e vice-versa (Weinreich, Labov & Herzog, 1968). Sendo assim, acreditamos que essa pesquisa contribuirá para estudos sociolinguísticos, de maneira que redirecionará novas análises sobre o pronome mim e trará reflexões acerca da língua em uso. Para apresentar o desenvolvimento da pesquisa, o presente trabalho encontra-se organizado da forma descrita a seguir: Organizado em cinco seções, nesta Introdução apresentamos brevemente o tema e a justificativa do estudo em questão. Baseado na Sociolinguística Variacionista, apresentamos a visão de língua que abordamos: heterogênea e mutável. Tendo isso em vista, explicamos de onde partimos para realizar a presente pesquisa e os respectivos objetivos. Na seção “Fundamentação Teórica”, apresentamos considerações sobre a Sociolinguística Variacionista, o que serviu de base e fundamento para o trabalho. Apresenta-se, também, revisão bibliográfica acerca do tema no que diz respeito ao modo como o objeto de estudo é abordado. Nas abordagens tradicionais das gramáticas, verificamos o descrédito acerca do pronome mim quando cumpre função de sujeito em orações infinitivas iniciadas por para. Já nos estudos sociolinguísticos que se ocuparam do tema, verificamos que os usos reais são diferentes daquilo que as gramáticas tradicionais recomendam. Na seção “Metodologia”, detalhamos os procedimentos metodológicos usados para a realização da pesquisa empírica, a partir do banco de dados do Projeto SP2010. Especificamos 13 quais foram os fatores linguísticos e extralinguísticos considerados no estudo e como os dados foram quantificados. Na seção “Análise e Discussão”, apresentamos as discussões dos resultados obtidos de acordo com os dados analisados, observando as funções sintáticas que o mim desempenha e as preposições que antecedem esse pronome. A última seção do trabalho traz as conclusões obtidas com o desenvolvimento da pesquisa e das análises realizadas sobre o objeto estudado, sendo seguida pelas referências que embasaram o estudo. 14 2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA Durante a segunda metade do século XX, os estudos sociolinguísticos ganharam maior relevância. Enquanto anteriormente a ênfase estava principalmente na compreensão da estrutura interna do sistema linguístico (Saussure, 2006, [1916]), a partir desse período, houve um crescente interesse em entender também como os fatores externos à língua influenciam seu uso (Labov, 2008 [1972]). Os estudos sociolinguísticos, por sua vez, desempenham um papel fundamental na promoção do “respeito linguístico” (Scherre, 2020), especialmente porque há uma longa história de mitos e preconceitos linguísticos que foram perpetuados sócio-historicamente. Esses mitos muitas vezes se originam de prescrições normativas presentes nas gramáticas tradicionais, que estabelecem padrões linguísticos considerados "corretos" ou "ideais" e desvalorizam outras formas de linguagem. A noção de “respeito linguístico” (Scherre, 2020) refere-se ao reconhecimento e valorização da diversidade linguística, bem como à promoção de uma atitude de aceitação e apreço pelas diferentes formas de falar e de se comunicar. Essa ideia é fundamental nos estudos sociolinguísticos em que se busca promover uma abordagem mais inclusiva em relação às variedades linguísticas. Desse modo, nas subseções desta seção apresentamos a Sociolinguística Variacionista, que é base para o presente trabalho. Traremos também um levantamento das gramáticas normativas, descritivas e históricas a fim de entender o que dizem sobre o pronome mim. Apresentamos, ainda, estudos sociolinguísticos que se ocuparam do tema. 2.1 A Sociolinguística Variacionista A Sociolinguística tem desdobramentos em vários campos, possibilitando pesquisas mais apuradas sobre os fenômenos linguísticos. Existe, por exemplo, a Sociolinguística Interacional, que discute a interação social da linguagem por uma perspectiva sociológica e antropológica, existe a Sociolinguística Cognitiva, que estuda a variação linguística a partir de fatores sociais e culturais atrelados a processos cognitivos do falante (Mollica, Ferrarezi Junior, 2016) e a Sociolinguística Variacionista, que também é chamada de Sociolinguística Quantitativa por trabalhar com coleta de grandes conjuntos de dados que são analisados com o apoio de ferramentas estatísticas. A Sociolinguística Variacionista, teoria em que este trabalho se baseia, foi fundada por William Labov, na década de 1960, e tem como objetivo observar como a variação linguística 15 se comporta no que diz respeito a questões de escolaridade, sexo, faixa etária ou outros fatores sociais em uma comunidade de fala. A comunidade de fala, segundo Labov (2008), se define como um grupo de falantes que têm as mesmas normas em relação à língua. Ou seja, não se define como um grupo de pessoas que falam igual e, sim, que têm características linguísticas comuns, diferenciando-se de outros grupos, e que compartilham as mesmas normas e valores de uso. Essa noção é fundamental, uma vez que a língua não pertence unicamente ao indivíduo e sim à sociedade. Dessa maneira, Labov se contrapõe às ideias de Saussure e Chomsky, que tinham uma visão predominantemente homogênea de língua. O estruturalismo e o gerativismo não incluíam a variação linguística em seus estudos. O sociolinguista Labov concebe a língua em um contexto social com o intuito de explorar o que a comunidade revela sobre a língua, ou seja, sobre a estrutura linguística. Essas observações foram primordiais para responder às questões de mudança linguística que se encaminharam desde o século XIX. Nessa vertente a relação entre língua e sociedade é fundamental para se chegar a uma concepção de que a língua é heterogênea e que há variação linguística em todos os aspectos, sejam fonológicos, morfológicos, sintáticos, semânticos ou lexicais. Em 1963, Labov realizou seu primeiro estudo como linguista na ilha de Martha's Vineyard no estado de Massachusetts (Labov, 2008 [1972]). Ele dá início ao estudo entrevistando e gravando os moradores da ilha. Foi identificada uma variável que mostrava centralização dos ditongos /ay/, como em right, white ou life e /aw/, como em out, house ou doubt. Labov investiga a fundo os ditongos e elabora um questionário lexical para os entrevistados. A partir disso, o resultado da pesquisa revelou que a variação dos ditongos se dava em correlação com diferenças de classe social dos moradores, de idade, de sexo e o local de moradia na ilha. Outra observação interessante do sociolinguista foi ter encontrado uma relação entre a variação e traços identitários dos habitantes, ou seja, o uso desses ditongos centralizados reforçava o fato de que o falante pertence ou se sentia pertencente à ilha. Nas palavras do autor: Fica evidente que o significado imediato desse traço fonético é “vineyardense”. Quando um homem diz right ou house (os ditongos centralizados) está inconscientemente expressando o fato de que pertence à ilha: de que ele é um dos nativos a quem a ilha realmente pertence. (Labov, 2008 [1972], p. 57, negrito acrescentado). 16 Esses resultados foram importantes para mostrar que a língua é como um reflexo da sociedade, ou seja, as escolhas linguísticas são fortemente ligadas à identidade social do falante. Em consequência, é através do vernáculo, a língua falada em situações naturais e informais de interação social (Tarallo, 1986), que a pesquisa sociolinguística observa a variação linguística em uma comunidade de fala, levantando questões como quais os principais fatores que favorecem a variação e qual a importância desses fatores (Martellota, 2008). Mas, para além da variação, temos o fenômeno da mudança linguística. Ao estudar uma variante, pode ser observado que exista uma “competição” com outras variantes de modo que uma se sobressaia e se torne um indicativo de uma mudança em curso. Nas palavras de Martellota (2008): Os resultados da análise das variantes podem definir duas situações: a. a existência de estabilidade entre variantes; a. a competição entre as variantes com aumento de uso de uma das variantes. No primeiro caso, diz-se que ocorre variação e no segundo, mudança em curso. A variação é facilmente detectada, pois para ela ocorrer é necessário simplesmente o favorecimento do ambiente linguístico. Para ocorrer uma mudança linguística, no entanto, é necessária a interferência de fatores sociais, refletindo as lutas pelo poder, o prestígio entre classes, sexos e gerações. Mas, para ocorrer a mudança, é necessário um período de variação entre formas. (Martelotta, 2008, p. 150) Partindo da perspectiva laboviana de que a língua sofre variação decorrente de fatores sociais, o próximo tópico descreve os usos do pronome oblíquo tônico mim tal como estudado em gramáticas e trabalhos sociolinguísticos. 2.2 Construções em que o pronome mim ocorre de acordo com gramáticas Bem sabemos que os pronomes oblíquos empregados como sujeito em orações infinitivas iniciadas por para são fortemente condenados pelas gramáticas tradicionais. Como uma tentativa de explicar o uso da função para+mim+infinitivo, Cunha e Cintra (1985) fazem uma observação acerca do cruzamento de duas construções “isto não é trabalho para eu fazer” e “isto não é trabalho para mim” que resultou em uma terceira construção “isto não é trabalho para mim fazer”. Essa terceira construção, segundo os autores, é “muito generalizada na língua familiar” (p. 312). As recomendações feitas pelas gramáticas normativas e as tentativas de explicar o “erro” causam o aumento do preconceito linguístico pelo estigma social que envolve o uso de algumas formas. Cegalla (1985), por exemplo, mostra, brevemente, frases em que o pronome 17 tônico mim é usado de modo “inadequado” e logo em seguida a frase é reformulada. Temos, então, quatro orações: 1. Ele deu o livro para mim. 2. Ele dera o livro para eu guardar. (E não: para mim guardar.) 3. Não é difícil, para mim, ir lá. ( = para mim não é difícil ir lá). 4. Fizeram tudo para eu ir lá. [...] (Cegalla, 1985, p. 459). A mesma abordagem acontece na gramática de Evanildo Bechara (2009), em que encontramos afirmações sobre regência quanto aos pronomes mim e eu. Temos então dois exemplos: Isto é para mim (a preposição rege o pronome). Isto é para eu fazer (a preposição rege o infinitivo: Isto é, para que eu faça). (Bechara, 2009, p. 566) Igualmente, Rodrigo Bezerra (2015) assegura que é obrigatório o uso de pronome tônico após uma preposição, já que os pronomes átonos não são regidos pelas preposições: Percebemos, portanto, que, quando há presença de uma preposição essencial, deve-se- obrigatoriamente- usar os pronomes pessoais tônicos, já que os pronomes átonos são insuscetíveis de virem regidos por preposição. Observe: 1. Após mim, veio o cortejo. 2. Desde ti até mim, nunca houve mudança significativa na Universidade. 3. Pedro fez tudo por mim e ti 4. Durante a turbulência, várias malas caíram sobre mim. 5. Todos se coligaram contra mim 6. Diante de mim, todos se calaram. (Bezerra, 2015, p. 238) O autor faz uma observação quanto à importância da tonicidade do pronome e em como essa tonicidade interfere em seu uso. Segundo ele, os pronomes tônicos são sempre precedidos por preposições e os átonos não. Dessa forma, temos “a mim, não me interessam as objeções do guia” (p. 235), em que o pronome tônico segue uma preposição. Na gramática de Castilho (2014), o autor nos apresenta um quadro em que os pronomes são divididos entre formais e informais, como mostramos a seguir: Tabela 01: Quadro dos pronomes pessoais no PB em Castilho (2014) 18 Fonte: (Castilho, 2014, p. 477) De acordo com o quadro, mesmo no português informal, o pronome mim é apresentado somente como objeto, haja vista estar na categoria “complemento”. Sabemos que na fala informal e não monitorada, esse pronome tem outra função sintática, como quando assume o papel de sujeito, assim como na forma em questão para+mim+infinitivo. Tendo isso em vista, o que é observado no vernáculo, muitas vezes, se distancia das prescrições gramaticais, uma vez que a preposição pode, além de reger o pronome, reger a oração, como acontece na informação entre parênteses do exemplo 2 da gramática de Cegalla (1985) mencionado anteriormente “Ele dera o livro para eu guardar. (E não: para mim guardar.)”. É o que acontece, também, nos exemplos trazidos por Bagno (2011). Em sua gramática intitulada Gramática Pedagógica do Português Brasileiro, o autor trata a construção para+mim+infinitivo como um exemplo interessante de traço descontínuo. Esse é um termo proposto pela linguista Bortoni-Ricardo (1998) para referenciar traços linguísticos que aparecem na fala de brasileiros que vivem no meio rural com pouca ou nenhuma escolaridade e que vão diminuindo conforme se aproximam do meio urbano (Bagno, 2011, p. 105). Entretanto, o autor afirma que essa construção ocorre com frequência na fala paulistana entre pessoas de nível superior como médicos, engenheiros, professores, e até mesmo na escrita literária, há anos. Bagno (2011) justifica essa afirmação ao trazer o romance “Inocência” escrito em 1872 por Visconde de Taunay em que para+mim aparece como sujeito em orações infinitivas já naquela época: (31) Agora, amigo meu, disse o moço depois de pequena pausa, estou às suas ordens; podemos ver a sua doentinha e aproveitar a parada da febre para mim atalha-la de pronto. Em tais casos, não gosto de adiantamentos. [cap. IV] 19 (32) Sim... certo tropeiro... mandou ordem para mim cobrar... de um parente uma bolada... Também eu tinha que... pagar outra pessoa... que... [cap. XIV] (33) Se alguém viesse agora e nos visse, eu morria de vergonha. Sr.Cirino, deixe-me... vá-se embora!... o Sr. Me tirou algum quebranto... aquela sua mezinha tinha alguma erva para mim tomar... e me virar o juízo... [cap. XIX] (Bagno 2011, p. 729) Os traços descontínuos são alvos de preconceito linguístico e, consequentemente, para+mim+infinitivo é sempre alvo de estigma. A questão é: se essa construção é usada há tanto tempo pelos falantes de PB, por que ainda hoje quem a usa é hostilizado? Mesmo que essa construção não esteja mais alocada na fala de populações mais isoladas, em ambientes rurais, ocorrendo em meio urbano. A esse respeito, o autor aponta o ensino escolar que insiste em dizer aos alunos que é uma forma “errada”, mas os mesmos falantes que hostilizam a construção como “errada” usam outras construções não autorizadas pelas gramáticas tradicionais. Ao trabalhar o emprego das preposições e dos pronomes oblíquos, Bagno (2011) afirma que as preposições, quando seguidas de pronomes pessoais, os obrigam a declinar no caso oblíquo. Isso é o que pode justificar o uso de mim depois da preposição para nas orações infinitivas. Contudo, ao citar um exemplo da gramática de Cunha e Cintra (1985), o autor revela que com a preposição entre isso não acontece nem na forma escrita da língua: Entre eu e tu, Tão profundo é o contrato Que não pode haver disputa (J.Régio, ED, 91) Entre eu e minha mãe existe o mar. (Ribeiro Couto, PR, 365) (Bagno, 2011, p. 876) Para além da fala, há exemplos, também, de construções retiradas do jornal Folha de São Paulo. Nesse caso, trata-se de traduções feitas a partir de publicações em jornais estrangeiros: (28) Não é verdade que a relação entre eu e Woody era tão clara que não necessitasse explicações no set de filmagem. (11/5/1994) (29) O que se estabelece é uma espécie de duelo entre eu e cada personagem, cujo estilo um pouco eu aceito e um pouco eu recuso. (10/10/1994) (30) Jackie não suportou a intimidade que existia entre eu e Joanne durante as filmagens e acabou pedindo o divórcio. (19/3/1995) (31) Há muitos outros que não podem, mas, para chegar a um acordo entre eu e um esquimó ou um argelino, provavelmente, se começarmos por nosso direito de usar o corpo, encontraremos alguns valores universais. (15/5/1995) (32) Toda questão da vida interior, seu turbilhão, multiplicação, a divisão-em-duas (consciência), o fato curioso de que só sou Uma com o outro, a importância ou não 20 importância que esses dados têm para o processo de pensar, o “dialogo silencioso entre eu e eu mesma” etc. (18/6/1995) (33) E é verdade que a dança para mim devia ser uma coisa lógica, pois como eu desenhava corpos, havia algo orgânico entre eu e a dança. (28/10/1997) (Bagno, 2011, p. 877) Perini (2016) afirma que, no que diz respeito à regra preposição+pronome oblíquo mim e ti, há uma exceção quando a preposição que antecede o pronome for entre porque, neste caso, usa-se a forma reta, como em “A jornalista ficou entre o diretor e eu/ entre eu e o diretor” (Perini, 2016, p.156). Entretanto, ele declara que “entre mim e o diretor é possível, embora pareça um tanto livresco; mas entre o diretor e mim é totalmente inaceitável” (p. 156). Essa afirmação não é explicada pelo autor. Ainda em relação a esse ponto, Neves (2000) também apresenta uma observação a respeito dos pronomes eu e tu com a preposição entre. Mesmo as gramáticas tradicionais dizendo que os pronomes eu e tu não são regidos por preposição, a autora mostra vários exemplos dessa construção em falares populares, literários e jornalísticos: 1. Diga só no meu ouvido, só entre você e EU. (FSP) 2. Claro que entre ele e EU havia dificuldades. (FSP) 3. Mas, reaparecendo, sentando-se entre EU e Jerônimo, Rosália não podia esconder o que havia muito sabíamos: crescia no seu ventre o filho do irmão. (ML) 4. Coisas há que deve ficar entre EU e ela. (VI) 5. Cristo me disse que havia apenas uma diferença entre EU e Artur (OAQ) 6. As relações entre EU e meu marido só a mim diziam respeito. (P) 7. Foi um cansativo e monótono jogo de gato e rato, entre EU, Keffel e o confuso senhor de nome estranho. (CRU) (Neves, 2000, p. 456) No que diz respeito a preposições regendo o pronome, Neves (2000) expõe mais alguns usos em que o sintagma preposicionado funciona como complemento ou adjunto: Mas papai sem MIM, não da nem para pensar. (COR) Mas isso não é novidade para MIM, Sérgio! (A) Faze-lhe uma visita, por TI e por MIM. (TER) A luta entre MIM e o Governador é de igual para igual. (VP) (Neves, 2000, p. 456) Bezerra (2015), em sua gramática já mencionada anteriormente, também mostra frases em que a preposição rege a oração ao fazer uma observação sobre regência. Ele diz que os pronomes eu e tu, especificamente, não são regidos por preposição em hipótese alguma e para exemplificar tal afirmação, há a seguinte oração: “Não há problemas entre tu e eu, Mario” (p. 236). Esta é, segundo o autor, uma construção que deve ser corrigida para “Não há problemas entre mim e ti, Mário” (p. 236). Na oração “deixaram o livro para eu ler durante o final de semana” (p. 235) a preposição rege a oração e não o pronome. Dessa forma, temos a 21 possibilidade de pronome reto precedido por preposição desde que o pronome seja regido por ela. Vemos, nos exemplos citados, que pode ocorrer a forma reta quando o recomendado pelas gramáticas tradicionais é o uso da forma oblíqua. Essa forma é “aceita” pelos falantes, de modo que, quem a usa não sofre preconceito. Nesse sentido, com a preposição entre, tanto faz o uso de pronome reto ou oblíquo. Outro exemplo de uso dos falantes que as gramáticas tradicionais condenam sem que haja o estigma presente em para+mim é o objeto direto pleonástico. Voltando para Cunha e Cintra (1985) temos alguns exemplos do pronome funcionando como objeto indireto: A mim, ninguém me espera em casa. (J. Régio, CL, 52.) Quantas vezes, viandante, esta incolor paisagem. Não te mirou a ti, a ti também sem cor!(A. de Guimaraens, OC, 194.) Mas não encontrou Marcelo nenhum. Encontrou-nos a nós. (D. Mourão-Ferreira, 1,23.) (Cunha e Cintra, 1985, p. 157) Na gramática de Perini (2016) encontramos também casos em que o pronome me alterna com sua forma preposicionada para+mim, como em “Ela me deu um suéter/ Ela deu pra mim um suéter” (p. 158). Essas duas variações podem ocorrer juntas na mesma frase. Nas palavras do autor: As duas variantes são mais ou menos equivalentes em aceitabilidade. E podem ocorrer lado a lado na mesma oração, ocasionalmente: [30] Ela me deu pra mim um suéter. Essas formas redundantes parecem mais coloquiais, menos cuidadas que outras; mas sem dúvida ocorrem com frequência. (Perini, 2016, p. 158) Neves (2000) explica essa variação ocorrendo na mesma frase de maneira que os pronomes oblíquos átonos podem aparecer como um reforço para os pronomes tônicos de mesma pessoa como em “A hora do almoço, chamaram-me, a mim e a Mário” e em “A mim nunca ninguém me proibiu de roubar”. Este fenômeno também pode ser chamado de pleonasmo do objeto. As gramáticas históricas estudam aspectos da língua e sua evolução; apesar disso encontramos pouca ou nenhuma informação sobre o mim, isso pode ser justificado pelo fato de, até então, haver poucos estudos sobre os usos desse pronome. Na gramática histórica de Coutinho (2011), o que temos é uma breve explicação da origem da palavra me e de sua função como objeto indireto: Mi (dat.) por mihi> mim. A nasalação do –i foi provocada pela presença da nasal inicial. Apesar de ser mim do fim do século XV, em Camões ainda se encontra mi: “Ouve os danos de mi” (Lusíadas). Mi, forma arcaica átona, deu a atual me, o que explica a função de objeto indireto que pode desempenhar esta variação pronominal. (Coutinho, 2011, p. 253) 22 Said Ali (1965) também traz a função sintática do pronome como objeto e dependente de preposição, em uma perspectiva tradicional: 453. O português literário moderno conhece duas séries de formas oblíquas que se correspondem respectivamente. Umas, não podem ser regidas de preposição e figuram sempre como vocábulos átonos, a saber: me, te, nos, vos, lhe, lhes, o, a, os, as, se; as outras são sempre tônicas e dependentes de preposição: mim (outrora mi), ti, nós, vós, ele, ela, eles, elas, e o reflexivo si. Assim dizemos: (...) estas cartas são para mim, para ti, para ele, etc; move-se por si. Coerentemente se diz também entre ti e mim; entre mim e ti está a cruz ensanguentada (Herculano, Eur. 46); porque a conjunção e só liga cousas homogêneas. 456. As expressões a mim, a ti, a ele, a si, a nós, etc. além de indicarem um objeto indireto, usam-se também para exprimir o objeto direto enfático: viu-me a mim e não a ele; A quem cuidas que venceram os godos? A mim? Não por certo, se não a ti (Bernardes, N.Flor. 5, 2006). (Said Ali, 1965, p. 94) O autor ainda acrescenta que, antes do período chamado quinhentismo, ou seja, antes do séc. XVI, os escritores portugueses usavam o pronome mim na forma enfática sem a preposição a: Contando como cativarom elle e os outros oito (Zurara, Guiné 190)- Sojugam sy meesmos (Zurara, ib. 460)- Segure mim e meus portos (Zurara, P. Men.) (Said Ali, 1965, p. 94). Igualmente, Said Ali (1965) atenta-se às formas de objeto que ocupam, muitas vezes, lugar de sujeito. Esse fato linguístico ele afirma ser repugnante à língua culta: 457. O emprego curioso das formas acusativas em lugar do nominativo repugna a linguagem culta de hoje. Já não era assim no falar antigo em certas frases comparativas como as seguintes (cf. com o francês atual): Mais o coraçom pode mais ca mi (Canc. Din 1326)- Com’er poderom viver... senom coitados come mi (C. B. 141) (...) Sodes milhor cavalleiro e mais ardido ca mim (ib. 141) 459. Em lugar de como eu dizem ainda hoje na Beira como mim... (Said Ali, 1965, p. 95). Para sintetizar o que dizem as gramáticas sobre o pronome mim, a tabela a seguir mostra as construções em que o pronome oblíquo pode ocorrer, segundo o conjunto de gramáticas analisadas. Algumas indicam para os mesmos contextos a possibilidade de ocorrência do pronome de caso reto eu. Tabela 2- Contextos estruturais em que pode ocorrer o pronome mim, de acordo com as gramáticas analisadas. Gramáticas Preposição entre +pronome oblíquo Preposição entre +pronome reto Preposição +pronome tônico mim Preposição + pronome reto eu Pleonasmo do objeto 23 Fonte: Elaborado pelo autor. 2.3 O que dizem os estudos Sociolinguísticos O pronome oblíquo tônico mim é tratado de semelhante modo em trabalhos de sociolinguística já realizados pelo autor Marcos Bagno como em A Língua de Eulália (1997), Não é errado falar assim! (2009) e Gramática pedagógica do português brasileiro (2012), de maneira que temos o mim atrelado sempre à preposição para. O autor dedica um capítulo de seu livro A Língua de Eulália para discorrer sobre a construção para+mim+infinitivo, expondo três hipóteses para o uso da construção. Na primeira hipótese, Bagno (1997) trata sobre um cruzamento sintático. Temos então dois enunciados: “João trouxe um monte de livros para mim” e “João trouxe um monte de livros para eu escolher”. Como resultado do cruzamento dessas duas frases numa tentativa de dizer as duas de uma só vez, temos “João trouxe um monte de livros para mim escolher”. É o que vemos exposto neste trecho: -Realmente, Irene, me parece uma boa explicação- avalia Silvia. O resultado da soma das duas primeiras frases seria: “João trouxe um monte de livros para mim, para eu escolher”, mas aquela tendência que a língua tem à economia, ao Perini (2016) X X X Bezerra (2015) X X X Neves (2000) X X X Cunha e Cintra (1985) X X X Bechara (2009) X X Cegalla (1985) X X Bagno (2011) X X Coutinho (2011) X Said Ali (1965) X 24 enxugamento, leva o falante a dizer as duas coisas de uma só vez. Essa frase deixa bem claro que João trouxe os livros para mim e não para qualquer outra pessoa, e que trouxe para eu escolher, e não para eu guardar vender ou copiar. (Bagno, 1997, p. 182) A segunda hipótese de Bagno (1997) tem a ver com a posição do pronome na frase e a regra de preposição, que é carinhosamente intitulada de “fica com a vaga quem chegar primeiro”: -Na produção desse enunciado (João trouxe um monte de livro para [ ] ler.), quem aparece primeiro, na fala, é a preposição para. Ora, existe uma regra na língua que diz: “depois de preposição, pronome oblíquo”. Também existe uma outra regra que diz: “na função de sujeito de um verbo, o pronome deve figurar no caso reto”. São duas regras pra serem obedecidas. A qual delas o falante vai obedecer? A que veio primeiro, à que foi acionada em primeiro lugar. Uma vez ocupada a vaga conforme a primeira regra, a segunda regra perde a chance de se impor. Estabelece-se uma hierarquia por ordem de chegada. Então o que temos é uma vaga para dois candidatos, ambos exercendo uma pressão para preencher a lacuna: João trouxe um monte de livros para [ ] escolher.” (Bagno, 1997, p. 183, negrito acrescentado) A terceira e última hipótese de Bagno (1997) diz respeito ao deslocamento do pronome. Em “É muito difícil para mim fazer isso sozinho”, a construção para+mim+infinitivo deste enunciado está inadequada do ponto de vista das gramáticas normativas. Para explicar tal afirmação, o autor desloca a construção para+mim para outras posições na sentença: Para mim é muito difícil fazer isso sozinho. É para mim muito difícil fazer isso sozinho. É muito difícil fazer isso sozinho para mim. (Bagno,1997, p. 184) Ele explica que para+mim nessas frases tem o sentido de “em minha opinião”, “no que me diz respeito”. Na dissertação de mestrado de Dalto (2002), cujo título é Estudo sociolinguístico dos pronomes-objeto de primeira e de segunda pessoa nas três capitais do sul do Brasil, temos uma pesquisa sociolinguística em que foram feitos levantamentos das formas pronominais nas cidades de Florianópolis, Curitiba e Porto Alegre a partir de amostras de fala que compõem o projeto VARSUL (Variação Linguística na Região Sul do Brasil). Em um estudo piloto na cidade de Florianópolis, algumas formas encontradas nas gravações foram “a mim”, “pra mim” e “em mim”. Com o objetivo de observar a função sintática das formas pronominais, Dalto (2002) traz as ideias de Cegalla (1976) sobre “preposição implícita”. Cegalla (1976) diz que o objeto direto é regido por preposição implícita nos pronomes átonos me, te, se, lhe, nos, vos, lhes, como em “obedece-me (= a mim), Isto não te pertence (= a ti), Rogo-lhe (= a ele, a você) que 25 fique, Peço-vos isto (= a vós)" (p. 60), uma vez que a preposição implícita nesses exemplos é unicamente a. Entretanto, a autora diz que a preposição a + pronome mim não acontece nas amostras das falas de Florianópolis da forma como foi dita anteriormente. O que temos é a preposição em + pronome mim, como podemos observar nos exemplos abaixo: (19) Se eu deixá o filho me [em mim] mandá, daqui amanhã ele tá querendo me [em mim] batê. (FLP 03, F, A, PRI, L0448) (20) foi o que aconteceu [com]- até pode tê otra coisa envolvida nisso, mas uma criança de catorze anos se matá que a punição foi tão rígida numa escola militá- Não sei se a senhora viu, agora, na televisão, aquilo. E aí me [em mim] doeu profundamente. (FLP 04, M, A, PRI, LI074) (21) Bom, essa não sei dá explicação, porque essa é uma coisa que não me [em mim] entra. Tem gente que gosta de tá judiando c'o animal, e eu, essa não. (FLP 05, M, B, PRI, L0679) (22) Ele pudia tá ali com uma faca ou uma qualqué coisa, o pudia ali me [em mim] dá um empurrão, o pudia me marcá, né? otro dia pudia fazê pió. Intão eu peguei, como ele não chegô a roubá, eu tamém dexei. Não alarmei. (FLP 15, F, B, GIN, L0785) (23) "Aí vocês me dexa aqui, ela vai me [cumigo] acabá aqui no pau." (FLP 08, F, B, PRI, L0825) (Dalto, 2002, p. 60) No Nordeste, há também um trabalho sobre o pronome mim, por Viviane Silva de Novais. O trabalho de conclusão de curso, que tem por título Usos dos pronomes mim e eu na posição de sujeito em frases infinitivas iniciadas pela preposição para: o que pensam os falantes universitários do sertão alagoano (2018), é norteado pela Sociolinguística Variacionista e tem como objetivo analisar como os falantes universitários avaliam os usos dos pronomes mim e eu como sujeito em orações iniciadas por para. Ao analisar as respostas de um questionário entregue aos alunos como parte de sua metodologia do trabalho, Novaes (2018) diz haver discriminação quando um falante usa o pronome mim como sujeito em orações infinitivas, principalmente em materiais que circulam na internet, como memes compartilhados que propagam preconceito linguístico. Os pesquisadores Brandão, Biazolli e Sene (2020) elaboraram um artigo sobre preconceito linguístico que se dá por uma pesquisa em rede social com o objetivo de analisar respostas de internautas em uma postagem do Facebook. A publicação contém a seguinte pergunta: "Cite um erro de português que te irrita profundamente”. Dentre mais de 2,5 mil comentários, 577 dados apresentava variações de usos do pronome mim como a construção mim+verbo ou o pronome mim no lugar do átono me, como os exemplos a seguir: FRASE 13: Tinha alguma tarefa para mim fazer para o encontro de amanhã? FRASE 31 O secretário poderia mim entregar a pasta amarela? (Revista Falange Miúda, 2020, p. 238) 26 Mesmo a construção mim+verbo sendo bastante usada no português brasileiro, é um fator de preconceito generalizado segundo os autores. Foi possível observar comentários sobre o uso do mim no lugar de me referindo-se a índios, como em “mim índio de boas” (p. 229), fazendo com que o preconceito social atrelado ao pronome mim seja evidente. Embora haja modos diferentes de falar a mesma coisa, o pensamento de que existe uma forma correta de falar ainda é predominante. Outra região alvo de estudos sociolinguísticos sobre esse tema foi o interior de São Paulo. A dissertação de mestrado escrita por Aline Bianca dos Santos Gomes mostra estudos desenvolvidos na cidade de São José do Rio Preto sobre as variações pronominais em orações infinitivas iniciadas pela preposição para. Levando em conta fatores sociais, Gomes (2019) analisa os pronomes mim e eu em posição de sujeito na oração infinitiva iniciada por para. Contudo, a forma eu (exemplo 2) não é a única a se opor à forma mim (exemplo 1), o trabalho identifica também como possibilidade a forma anafórica zero (exemplo 3): 1. aí eu comentei lá em casa com a minha mã::e meu pa::i meu irmão e todos eles deram... incentivo pra mim fazê(r) né?... pra mim prestá(r) a prova... né?... só que aí:: tinha só um dia... pra mim fazê(r) a... a inscrição então... tive que corré(r) atrás de::... histórico escolar:: fu/ éh:: foi bem corrido (AC-053, L 10) 2. NÓS ficamos lá:: e eu tentei encontrá(r) alguma coisinha pra mim né? de::... presente... que a minha cunhada tinha me dado dinhe(i)ro pra eu comprá(r)... não enconTRE::I... [(IBORUNA – AC/013) 3. Cal/ o é de Caldas ou de Poços de Caldas num sei que eu vô(u) lá às vezes pa Ø andá(r) a cava::lo pra pra Ø fazê(r) um monte de coisa... (IBORUNA – AC/001) (Gomes, 2019, p. 13) A partir disso, temos uma variável, ou seja, três formas/construções diferentes expressando a mesma ideia como em “o dia que der pra mim/eu/Ø voltar, eu volto”. A autora usou em seu trabalho dados do Iboruna, banco de dados que retrata o português da região de São José do Rio Preto, interior do estado de São Paulo. De acordo com os dados apresentados, a forma anafórica zero é a que mais apareceu, com 308 ocorrências, correspondendo a 75% dos dados. Depois temos o pronome oblíquo mim com 82 ocorrências e o pronome reto eu aparecendo somente 28 vezes. O uso do pronome reto eu tem prestígio social por ser mais usado por falantes escolarizados e com alta renda. O uso do mim tem prevalência em relação ao uso do eu; Gomes (2019) afirma que nesse contexto não há uma variação estável, e sim um indicativo de uma mudança em curso haja vista as poucas ocorrências do eu nas amostras. Sendo assim, a forma oblíqua mim está, de fato, em variação com a forma zero anafórico. 27 3. METODOLOGIA 3.1 Fonte de dados: o banco SP2010 A pesquisa tem como objetivo geral analisar a função sintática que o mim desempenha na oralidade do português paulistano e, também, observar quais são as preposições que antecedem esse pronome no corpus analisado. Para isso, foram utilizadas amostras da fala paulistana do banco de dados do Projeto SP2010 (Mendes, 2013), constituído por pesquisadores em sociolinguística da USP e coordenado pelo Prof. Dr. Ronald Beline Mendes. O projeto contém amostras da fala paulistana registradas por meio de gravações que começaram a ser coletadas no ano de 2009 e, a partir de 2011, receberam auxílio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) (https://projetosp2010.fflch.usp.br/). O corpus reúne 60 gravações com cerca de uma hora de duração. Os informantes são falantes paulistanos entre a faixa etária de 19 até 89 anos, podendo ser de regiões diferentes da capital paulista. Ou seja, a estratificação do corpus varia em sexo, idade, escolaridade e região, como exemplificada no quadro a seguir: Tabela 3: Categorias que caracterizam a estratificação no SP2010 Sexo Idade Escolaridade Região Feminino 24 a 89 anos Ensino Médio Periferia Masculino Ensino Superior Centro velho Centro expandido Fonte: Elaborado pelo autor. 3.2 Procedimentos de coleta e quantificação dos dados A coleta dos dados foi feita com o auxílio do programa R (R Core Team, 2022), um software computacional em que técnicas estatísticas podem ser aplicadas. O R oferece várias possibilidades de funcionalidades estatísticas e gráficas, permitindo aos usuários realizar desde análises simples até análises mais avançadas. Ele inclui uma grande quantidade de pacotes (também conhecidos como bibliotecas) desenvolvidos pela comunidade de usuários, que oferecem funcionalidades adicionais para tarefas específicas, como modelagem estatística https://projetosp2010.fflch.usp.br/ 28 ou análise de séries temporais. Além disso, o R possui código aberto e gratuito, o que significa que qualquer pessoa pode usar, modificar e distribuir a linguagem e seus pacotes livremente (Oushiro, 2014). A extração dos dados do Projeto SP2010 foi feita com um comando para coletar trinta palavras antes e trinta palavras depois de todas as ocorrência do pronome mim, gerando 407 ocorrências. Utilizamos a função “extração()” fornecida pelo pacote “dmsocio” (Oushiro, 2014), que estruturou todas as ocorrências em uma tabela. A quantificação dos dados foi feita com o editor de planilhas Excel, utilizando a ferramenta “filtro”. Ao filtrar os dados, restringimos as ocorrências a serem analisadas, e o próprio editor forneceu informações numéricas sobre a quantidade de registros obtidos. Dos 407 dados totais, alguns foram excluídos por não representarem o caso de variação proposto neste estudo, o que totalizaram 17 dados excluídos, restando 390 ocorrências. No exemplo (1), há um comentário metalinguístico sobre o fenômeno em questão que não cabe como um dado a ser analisado, mas destaca a variação entre mim e eu diante de para e a avaliação que se faz sobre tal construção, já no exemplo (2) a oração é interrompida, o falante não a concluiu, o que impossibilita a interpretação do dado coletado: 1) gente vamos" pra mim me S1 né falo assim nossa isso está doendo o 'pra mim' ou 'pra eu' às vezes é 'pra eu' ou é 'pra mim’ né D1 aham S1 mas posso contar uma historinha talvez você D1 pode S1 em R.H a gente brinca muito S1 então S1 está… ( LeonS, M, 47 anos, ES, centro expandido)¹ 2) mensalão que não me deixa mentir D1 é S1 e por aí afora S1 eu nem gosto muito de tocar nesse assunto de política S1 pra mim D1 ah D1 fica desanimado? S1 ah com certeza Dados Contextuais [risos-D1] D1 é mas é complicado mesmo né S1 está louco D1…( MauricioB, M, 36 anos, EM, centro expandido) Igualmente, foram encontradas construções em que o pronome mim é usado em expressões cristalizadas, ou seja, as formas fixas dos elementos da oração impossibilitam a mudança e combinação com outros elementos, como no exemplo (3). A esse respeito, Vale (2001) afirma que as expressões cristalizadas são frases usuais em que sua configuração semântica é entendida pelos falantes a nível idiomático e não literal. Nesse fenômeno, não existe a possibilidade de variação, sempre haverá pronomes tônicos, por isso não foi computado como um dado junto aos demais: 29 3) S1 as pessoas... eu acho que o meu chefe por exemplo gosta do meu trabalho S1 agora... eu é que acho que eu podia se/ dar mais de mim pra... pra fazer Dados Contextuais [tosse-S1] S1 alguma coisa realmente importante assim D1 e você... gostaria de alcançar assim um cargo... D1 diferente em relação... ao... (ArianeG, F, 36 anos, ES, periferia) A expressão “dar mais de mim” é uma estrutura pronta, sem possibilidade de mudança. Para que essa locução seja interpretada, é necessário que o falante apresente conhecimento de mundo e certa relação com o discurso. Nesse primeiro levantamento, as preposições encontradas acompanhando o pronome foram: a, até, contra, de, em, para e por. De acordo com Ilari et al (2015), no Projeto de Estudo da Norma Urbana Culta (NURC) as preposições frequentemente mais utilizadas são as seguintes: de, em, para, com, por, a e até. Nesse contexto, nos dados coletados para a presente pesquisa, a preposição com não aparece, e, por outro lado, foi encontrada uma ocorrência da preposição contra. A tabela 1 ilustra a distribuição dos dados segundo a preposição presente: Tabela 4- Ocorrência de preposição nos dados analisados Preposições registradas a até contra de em para por Total Número de ocorrências 14 02 01 30 12 326 14 407 % 3.4% 0.4% 0.2% 7.3% 2.9% 80% 3.4% 100% Fonte: Elaborado pelo autor. Em todas as ocorrências, o pronome mim está acompanhado por preposições. Observando a tabela, nota-se que a forma para+mim é a mais recorrente entre os falantes, correspondendo a 80% (referente a 326 dados) de todas as ocorrências. A partir desses resultados foram definidos critérios para analisar a função sintática que o mim desempenha em todos os dados de fala, como apresentamos em 2.3. É válido ressaltar que a forma anafórica zero (Gomes, 2019), mencionada na seção 1 (Fundamentação Teórica) da presente pesquisa, não apareceu em nenhuma ocorrência. Isso se justifica pela metodologia empregada na extração dos dados, detalhada anteriormente, que coletou apenas os usos de mim, com o objetivo de mapear seus contextos de uso. 30 3.3 Análise sintática das ocorrências Ao discorrer sobre as ligações entre constituintes, que indicam as suas funções sintáticas, ou seja, sobre o fenômeno da regência, Perini (2001) diz que a transitividade é meramente sintática. Cunha (1986) afirma que a regência é necessária para se estabelecer relação entre uma palavra que serve de complemento a outra. O autor também afirma que as relações de regência podem ser constituídas pelas preposições por ligarem elementos da oração, subordinando-os uns aos outros . Com isso, compreendemos que a análise sintática das ocorrências possui extrema importância para entender a função que o pronome mim desempenha no falar paulistano. Observando todos os dados, constatamos que a preposição pode reger a oração em que temos o mim como sujeito, como em “eu ia muito pra cidade minha mãe às vezes pedia pra mim pagar alguma conta”(MarietaS, F, 54 anos, EM, periferia)1 e também pode reger somente o pronome, como em “São Paulo tem tudo, mas não é acessível pra mim” (JanainaB, F, 28 anos, EM, periferia). Do conjunto de dados analisados, temos apenas 30 registros de preposição regendo a oração (12%) e 360 registros de preposição regendo o pronome (88%). Por causa dessa diferença evidente entre as duas situações, discorreremos, primeiramente, sobre os dados em que a preposição rege a oração para em seguida passar à discussão sobre os contextos em que ela rege o pronome, o que faremos a seguir, na seção 4. 1 As informações entre parênteses correspondem ao perfil social do falante que produziu o dado, segundo as categorias consideradas na constituição do SP2010. Devem ser assim interpretadas: Nome do falante, sexo/gênero (F = feminino, M = masculino), idade, nível de escolaridade (EM = Ensino Médio, ES = Ensino Superior), região de moradia (periferia, centro velho, centro expandido). 31 4. O PRONOME MIM NA ORALIDADE PAULISTANA: ANÁLISE E DISCUSSÃO 4.1 Fatores linguísticos: preposição e função sintática do pronome Para as ocorrências em que a preposição rege a oração temos presente a construção para+mim+infinitivo. Nesse sentido, foram computados 30 dados em que o mim, sintaticamente, faz papel de sujeito. Abaixo apresentamos algumas ocorrências: 4) na verdade eu quero morar sozinho D1 ah S1 eu já morei sozinho uma vez lá em Perus mesmo morei perto/ próximo da minha mãe pra mim testar como é que era D1 uhum S1 e gostei bastante aprendi bastante amadureci bastante então S1 eu gosto de eu mesmo cuidar da minhas coisas não… (DouglasA, M, 24 anos, EM, periferia) 5) é muito estranho D1 uhum S1 e S1 tem o lance de... de droga S1 eu já tive problema com droga é uma coisa difícil pra mim falar D1 uhum S1 mas é uma coisa que está aí D1 uhum S1 eu sempre que vejo as pes/ o jovem fumando maconha tipo… (RobsonF, M, 31 anos, EM, periferia) Há uma questão central que motiva pesquisas adicionais e que indica a relevância de se investigar a construção para+mim+infinitivo: embora amplamente empregado pelos falantes, o pronome oblíquo mim como sujeito de infinitivas é ensinado como uma forma incorreta pelas escolas. Nas aulas de língua portuguesa, esse emprego de mim como sujeito é usado como indicador de conformidade (ou não) com a norma padrão (segundo Faraco, 2008). Nesse contexto, o sistema educacional no Brasil é, muitas vezes, baseado apenas nos preceitos das gramáticas tradicionais, apresentando um modelo restrito de língua que prioriza a norma padrão e minimiza a variação linguística. As escolas tendem a determinar qual variedade da língua o aluno deve usar e isso corrobora com o aumento do preconceito linguístico. Essa variedade ensinada Faraco (2008) chama de “norma curta”, sendo: Um conjunto de preceitos dogmáticos que não encontram respaldo nem nos fatos, nem nos bons instrumentos normativos, mas que sustentam uma nociva cultura do erro e têm impedido um estudo adequado da nossa norma culta/comum/Standard (Faraco, 2008, p. 92). 32 É possível dizer que o pronome eu é o único recomendado para ocupar posição de sujeito em orações infinitivas, sendo a construção “para+eu+infinitivo” aquela autorizada pela tradição gramatical. Apesar dos dados com eu não fazer parte do corpus, notamos que tais construções ocorrem, o que fica exemplificado em (6) em que o falante inicialmente usou uma construção que possa ter sido avaliada como incorreta ou menos formal (como "para mim fazer") e, em seguida, corrigiu-se para a forma que a gramática tradicional considera correta (como "para eu fazer"): 6) deixa eu pensar quando eu fui pro Rio S1 ai não sei D1 você conhece algum outro sotaque D1 do Brasil que falaria diferente? S1 pra mim falar alguma pra eu falar alguma palavra? D1 é você acha que tem alguma dessas palavras que algum outro sotaque D1 seria diferente? S1 ai S1… (AliceM, F, 30 anos, EM, periferia) Essa situação de variação será objeto de um estudo posterior, mas é válida a reflexão de como os falantes usam formas que podem não ser consideradas corretas de acordo com a tradição gramatical, ao mesmo tempo que tentam se adequar a essas normas. Essa variação reflete a natureza dinâmica e flexível da linguagem, que está em constante evolução e adaptação às necessidades e contextos dos falantes. Isso destaca e reforça a importância de considerar não apenas as regras prescritivas da gramática, mas também como a linguagem é usada na prática pelos falantes. No que se refere às construções em que a preposição rege o pronome, a função sintática do mim é bastante variada, o que proporcionou maior quantidade de resultados. Nesse sentido, fazer uma descrição dos usos desse pronome concretiza o ideal central da pesquisa de que os usos de mim vão além da forma para+mim+infinitivo. Conforme mencionado na seção 2.2 deste estudo, após a exclusão de alguns dados, as ocorrências de preposição regendo o pronome se concentraram em 360 dados, dos quais cada construção foi analisada sintaticamente para entender o papel do mim na oração. A análise resultou em oito fatores linguísticos para a disposição do pronome na oração sendo estes: objeto indireto de interesse, objeto indireto, objeto direto preposicionado, complemento relativo, complemento nominal, complemento adverbial, agente da passiva e adjunto (Berlinck, 2001; Mateus et al, 2003; Duarte, 1986). A primeira função que discorreremos é Objeto Indireto de interesse com maior porcentagem, totalizando 47.5% (171 de 360 resultados) das ocorrências. Aqui o mim 33 apresenta sentido de “em minha opinião” em que a construção pra+mim situa-se no campo de “interesse” do falante, como mostram os exemplos a seguir: 7) S1 são S1 não meu pai ele é... pernambucano S1 mas ele veio pra cá com meses ele nem conhece Pernambuco nem nada então ele é... pra mim é paulistano D1 uhn D1 ah D1 aham Dados Contextuais [risos-D1] D1 sua mãe também então? S1 minha mãe também D1 e eles… (JanainaB, F, 28 anos, EM, periferia) 8) Dados Contextuais [latido] S1 ah acho que sim Dados Contextuais [barulho de pássaro] D1 e por quê? Dados Contextuais [latido] S1 ah sei lá... por mim (xxx) igual a todo mundo aí na rua Dados Contextuais [risos-D1] D1 mas você acha que tem alguma coisa assim em mim que mostra que eu sou daqui?... (DalsonO, M, 24 anos, EM, periferia) Nos casos como os dos exemplos (7) e (8), as preposições encontradas foram para, totalizando 167 ocorrências, e por, totalizando apenas 4 ocorrências. A segunda função identificada foi a de Objeto Indireto (abreviado como OI) com 121 resultados. Para Rocha Lima (2001) e Mateus et al (2003), os OIs são antecedidos pela preposição a e às vezes por para. Em contraponto, os resultados da análise mostram que, nesse contexto, apenas 4 ocorrências têm a preposição a antecedendo o pronome e que há predominância de para, com 92 ocorrências. Também foram encontradas as preposições, de, em e por, que exemplificamos no quadro a seguir: Tabela 5: O mim como O.I e as preposições que o antecede Preposições a de em para por número de ocorrências 4 16 7 92 2 % 3.3% 13.2% 5.7% 76% 1.6% Fonte: Elaborado pelo autor. A seguir apresentamos dois exemplos de ocorrências que consideramos como objeto indireto: 9) eu acho muito feio isso D1 eh Dados Contextuais [risos-D1] S1 mas quem sou eu pra julgar alguma coisa entendeu? eu S1 eu ten/ cabe a mim tentar me corrigir né D1 uhum S1 os outros sabem o que falam D1 tem algum outro jeito de falar que você acha que seja bem paulistano? (RobsonF, M, 31 anos, EM, periferia) 34 10) que te exige posturas e comportamentos o tempo todo... e tudo relacionado a trabalho principalmente S1 mas é uma cidade que S1 oferece S1 oferece uma/ pra mim S1 só se eu fosse no Rio de Janeiro se eu fosse (trabalhar na Globo) S1 fora i/ fora isso aqui em São Paulo mesmo é o lugar (RomuloS, M, 60 anos, EM, centro expandido) As próximas funções sintáticas encontradas são Complemento Relativo (Rocha Lima 2001) que, diferentemente do OI, não é a pessoa que recebe a ação ou é beneficiada por ela, e, sim, a pessoa sobre o qual a ação recai, como no exemplo (11); e Complemento Nominal em que o sintagma introduzido pela preposição complementa o sentido de um substantivo abstrato como no exemplo (12): 11) falei que eu tinha sido culpado que eu mandei ele bater talão de cheque tudo mais"... como se fosse verdade S1 ele virou... o seu {A. P.} chegou pra mim e falou "{F.}" S1 "você vai brigar com o gerente com o {T.} gerente da agência por causa de um contínuo?"... assim D1 nossa S1 "eu briguei (HugoF, M, 63 anos, EM, centro expandido) 12) sabia que tinha S1 ela "você já foi lá?" eu falei "não nunca nem saí daqui" S1 São Paulo tem tudo S1 mas... não é acessível... pra mim S1 tudo eu não tenho tempo disponível pra isso porque eu trabalho o dia inteiro D1 uhum D1 o dia inteiro e a semana inteira quase… (JanainaB, F, 28 anos, EM, periferia) Para o complemento relativo temos 29 ocorrências e para o complemento nominal temos 17 ocorrências. As preposições encontradas são ilustradas no quadro a seguir: Tabela 6: Preposições encontradas nas ocorrências de complemento relativo e nominal Preposições: Complemento relativo Número de registros encontrados % Preposições: Complemento nominal Número de registros encontrados % a 1 3% contra 1 5.8% até 2 7% de 6 35.2 % de 5 17% para 10 58.8 % em 6 21% 35 para 15 52% Fonte: Elaboração do autor. O próximo fator investigado foi o adjunto, constando 16 ocorrências. Bechara (2009) afirma que um adjunto adiciona uma ideia acidental, complementando o substantivo que, a depender do seu sentido, pode se somar a qualquer construção. Nas palavras do autor: Acrescem ideia acidental complementar ao significado do substantivo, independente da função por este exercida. Não mudam a relação do substantivo com o restante da oração e, por isso, exercem a mesma função sintática que o núcleo. (Bechara, 2009, p.449) Nos exemplos (13) e (14) a construção preposição+mim não tem relação de complemento com o verbo, portanto a classificamos como adjunto: 11) então S1 aí depois eu ia pensar em mim D1 que legal S1 é D1 que que você faria assim pra você? S1 pra mim? S1 ah eu compraria um S1 um carro uma casa deixaria guardadinho S1 já S1 investia na minha profissão S1 uma coisa... do gênero… (MilenaF, F, 19, EM, centro expandido) 12) entendi Roteiro TRABALHO D1 e aí agora no seu trabalho você você se sente reconhecida lá? S1 ah agora sim né S1 porque eu progredi por mim mesma né S1 pouco S1 mas perto do que eu não fazia nada não tinha conhecimento de nada fui aprendendo muita coisa D1 uhum S1 né… (MeireC, F, 48 anos, EM, centro expandido) A esse respeito, foram encontradas as preposições a, de, para e por, totalizando 2 ocorrências de a, 2 ocorrências da preposição de, 7 ocorrências de para e 4 ocorrências de por. Com menos frequência foram computadas as ocorrências de objeto direto preposicionado (doravante ODPrep) com duas ocorrências e complemento adverbial, em que apenas uma construção aparece para esse fator linguístico. Na perspectiva tradicional, o ODPrep é um complemento verbal anexado ao verbo transitivo por preposição. Nos exemplos (13) e (14) o verbo da oração é transitivo direto com um complemento humano antecedido pela preposição a: 36 13) como é que é o sotaque paulista? S1 é esse sotaque assim que eu estou falando com você Dados Contextuais [risos-D1-S1] S1 eu não posso imitar a mim mesmo não é verdade? Dados Contextuais [risos-D1] S3 (xxx) S1 é o 'ver/' 'verdade' 'verdade' essas coisa Dados Contextuais [S1 exagera o tepe] S3 eu… ( FredericoV, M, 37 anos, ES, centro expandido) 14) 'porta' Dados Contextuais [/r/ aspirado] S1 pode ser e está certo isso mas do meu ponto de vista que é o você está querendo saber aqui é a mim que você está entrevistando não tem como D1 uhn S1 eh o erre aqui passa lotado D1 uhum S1 entendeu? S1 apesar de ser possível… (RomuloS, M, 60 anos, EM, centro expandido) Já para os advérbios a recomendação tradicional é de que ele atue como um modificador para o verbo, o que costuma classificá-los em classes de critérios nocionais de lugar, tempo, modo, quantidade entre outros (Mateus et al, 2003). No exemplos(15) tem-se o sintagma preposicionado a mim completando um advérbio de lugar 15) em quatro colégios daqui S1 eh S1 faço curso de teatro aqui no bairro D1 ahn S1 e tudo eu profu/ procuro sempre estar próximo a mim S1 por exemplo emprego... eu sempre procuro emprego aqui/ aqui perto D1 uhn S1 trabalhei há pouco te/ até pouco tempo estava trabalhando na Paulista S1 (LucasS, M, 25 anos, EM, centro velho) Por último, temos o agente da passiva com 3 dados analisados. Nesses casos o verbo está na voz passiva (o sujeito recebe a ação do verbo) introduzido pela preposição por, como exemplificamos a seguir: 17) dez anos quando ele nasceu tinha dois anos quando meu vô morreu S1 e ele teve dois filhos temporões também S1 um casalzinho que acabou sendo criado por mim e pelo meu pai então eu tenho uma filha única e mais esses dois primo que são meu/ mais meus filhos que primo S1 é a menina e o… (LucianaN, 58 anos, ES, centro expandido) 4. 2 Fatores extralinguísticos Para os 30 dados de preposição regendo a oração, a principal hipótese que investigamos aqui foi a de que encontraríamos um emprego mais frequente de mim em orações infinitivas iniciadas por para entre os falantes mais jovens da amostra investigada. O 37 quadro a seguir ilustra a distribuição dos dados segundo as características sociais dos informantes. Tabela 7: Distribuição dos usos de “para + mim + infinitivo” segundo os fatores extralinguísticos Idade/ Sexo Escolaridade 20 a 40 40 a 60 60 a 85 M % F % M % F % M % F % Ensino Médio 11 37% 02 7% 04 12% 02 7% 04 12% 04 12% Ensino Superior 02 7% 0 0% 0 0% 0 0% 01 2% 0 0% Fonte: Elaboração do autor. Conforme aponta a tabela, nossa hipótese é confirmada, uma vez que dos 30 dados coletados em que se tem o pronome mim em orações infinitivas iniciadas por para, metade é usada pelos falantes mais jovens (15 dados, correspondendo a 50%). Com essa análise observamos que a forma estigmatizada para+mim+infinitivo tem inclinação para ser reproduzida na fala do gênero masculino. Assim, como demonstrado na tabela, 22 dados foram produzidos por informantes homens, ao passo que se tem apenas 8 dados produzidos por informantes mulheres. Nesse sentido, os resultados da presente pesquisa vão ao encontro daqueles encontrados por Gomes (2019), podendo reforçar tal observação, já que a autora afirma que falantes do sexo masculino costumam a usar mais o mim diante de verbos no infinitivo, enquanto as mulheres tendem a usar as formas da língua com mais prestígio social: Do total de 118 informantes da Amostra Censo que produziram para mim/eu/zero + infinitivo, obtivemos dados de 60 informantes do gênero masculino e 58 do gênero feminino. Uma vez que, no tocante ao fenômeno em estudo, o uso da variante mim é abolido pela norma padrão e estigmatizado socialmente na comunidade analisada, espera-se que as representantes do gênero feminino assumam uma postura mais conservadora e empreguem, com frequência menor do que os informantes do gênero masculino, o pronome mim diante de verbos no infinitivo. (Gomes, 2019, p. 49) Em um segundo momento de sua análise, Gomes (2009) mostra que a variante eu (mais prestigiada) é mais recorrente entre as mulheres (8,1% entre o sexo feminino e 5% entre o sexo masculino), enquanto a variante mim é mais recorrente entre os homens ( 24,4% entre o sexo masculino e 15,4% entre o sexo feminino), assim como ilustra a tabela a seguir: Tabela 8: Ocorrência de eu, mim e zero anafórico nos estudos de Gomes (2019) 38 Fonte: Gomes, 2019, p. 74 Essa concepção de que as mulheres favorecem usos prestigiosos ou tendem a usar as variantes de prestígio inicia-se, portanto, com os estudos sociolinguísticos de Labov (2008 [1972]) em que é evidenciado por ele ao estudar o inglês da cidade de Nova York e observar que o /r/ retroflexo, que é considerada uma forma de prestígio social, ocorre mais regularmente na fala de mulheres. Tal hipótese tem sido replicada por estudos subsequentes na área da sociolinguística. No entanto, Labov (2001) refere-se a uma aparente contradição entre duas observações linguísticas relacionadas ao uso do vernáculo estigmatizado por diferentes gêneros: se por um lado tem-se estudos em que é observado que em muitas comunidades linguísticas, especialmente nas variedades de prestígio socialmente elevado, as mulheres tendem a usar formas mais prestigiosas e linguagem mais formal do que os homens, por outro lado também observou-se que em comunidades em que as variantes não padrão são características do vernáculo local, as mulheres são mais propensas a usar essas variantes estigmatizadas do que os homens. Esse paradoxo coloca em questão a relação entre gênero e variação linguística, mostrando que o papel do gênero na escolha linguística pode variar significativamente dependendo do contexto sociolinguístico. Essa complexidade sugere que a relação entre gênero e linguagem não pode ser reduzida a uma simples associação entre um determinado gênero e uma forma linguística específica, devendo ser entendida dentro de um contexto mais amplo. Quanto ao fator escolaridade, os níveis que aparecem no banco de dados do projeto SP2010 (Mendes, 2013) são apenas Ensino Médio e Ensino Superior. Dentre as 30 ocorrências, 27 delas são de falantes que possuem apenas Ensino Médio (correspondendo a 90%), enquanto apenas 3 ocorrências foram produzidas por falantes que possuem Ensino Superior (correspondendo a 10%). A variável em questão é importante para refletirmos sobre 39 o papel da escola no ensino da língua portuguesa. Por um lado, temos a escola como “defensora da norma padrão”, ensinando a construção para+mim+infinitivo como “inadequada”, e, por outro lado, temos um comedimento maior acontecendo somente entre falantes com nível superior de ensino. Ou seja, a construção pode ser mais produtiva na fala de indivíduos com níveis mais baixos de escolaridade, tendo em conta que se trata de um uso condenado pela norma gramatical. É importante dizer que, concomitante ao fator escolaridade, das 27 ocorrências de falantes que possuem apenas Ensino Médio, 19 são de falantes habitantes de regiões periféricas da cidade (correspondendo a 70%). O fato de que a maioria dos falantes com Ensino Médio está nas regiões periféricas da cidade pode sugerir que essas áreas têm características linguísticas distintas ou padrões de uso da linguagem específicos. Esse resultado também destaca as disparidades educacionais entre diferentes áreas geográficas da cidade. Isso pode ser relevante para políticas educacionais e sociais destinadas a melhorar o acesso à educação em áreas periféricas e reduzir as desigualdades socioeconômicas. 40 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS A presente pesquisa analisou, à luz da sociolinguística laboviana (Weinreich; Labov; Herzog, 2006 [1968]; Labov 2008 [1972], 1994, 2001, 2010), os desdobramentos do pronome mim em dados reais de fala coletados do banco de dados do Projeto SP2010 (Mendes, 2013) com o objetivo de identificar fatores condicionantes linguísticos e extralinguísticos que favorecem (ou não) o uso do pronome mim como sujeito em orações infinitivas iniciadas por para. Os resultados dessa descrição podem representar indícios do que condicionaria uma mudança linguística em relação aos usos desse pronome na referida construção. Para avaliar uma possível mudança, torna-se necessário aprofundar o estudo sobre a variação pronominal nesse contexto e, idealmente, investigar o fenômeno em uma perspectiva futura, aspectos que deverão ser objeto de próximas pesquisas. A análise foi feita levando em consideração fatores internos (funções sintáticas atribuídas ao pronome nos falares paulistanos; preposições que antecedem o pronome) e externos (sexo, idade, escolaridade). Partindo da construção estigmatizada para+mim+infinitivo, a hipótese do trabalho era a de que encontraríamos um emprego mais frequente de mim nessa construção entre os falantes mais jovens da amostra investigada. À vista disso, foram extraídos dados do Projeto SP2010 usando a função "extracao()" do pacote "dmsocio" (Oushiro, 2014), que gerou uma tabela com 407 ocorrências do pronome mim, coletando trinta palavras antes e trinta depois de cada uma delas. Os resultados da análise, de modo geral, mostraram que, das preposições antecedendo o pronome que apareceram nas ocorrências (a, até, contra, em, para e por), a preposição para é a mais usada pelos falantes da amostra. No que se refere à construção para+mim+infinitivo, a análise sintática dos dados mostrou apenas 30 ocorrências (totalizando 12% da amostra) em que o mim possui função de sujeito. Os demais dados revelaram outras oito funções sintáticas desempenhadas pelo pronome na oração, as quais nomeamos como: objeto indireto de interesse, objeto indireto, objeto direto preposicionado, complemento relativo, complemento nominal, complemento adverbial, agente da passiva e adjunto (Berlinck, 2001; Mateus Et Al, 2003; Duarte, 1986;). Para os fatores extralinguísticos, a nossa hipótese foi confirmada, uma vez que, dos 30 dados coletados em que se tem o pronome mim como o sujeito de orações infinitivas iniciadas por para, 50% é usada pelos falantes mais jovens. Dessa forma, podemos afirmar que a construção para+mim+infinitivo é bastante produzida por jovens. 41 Igualmente, aspectos sociais relacionados ao sexo/gênero seguiram os mesmos resultados obtidos por Labov (2008 [1972]). O linguista constatou que as mulheres tendem a usar mais as formas prestigiadas da língua do que os homens. Em nosso estudo, a análise do fator social gênero revelou que 72% dos informantes que usaram a construção estigmatizada para+mim+infinitivo são homens e apenas 28% são mulheres. Alguns registros da amostra não entraram como dados a serem analisados por não configurarem o caso de variação linguística proposto neste estudo, entretanto podem servir para uma discussão sobre a variação entre mim e eu junto de para e a avaliação que se faz sobre essa construção. Em resumo, são dados que contém comentários metalinguísticos em que o falante avalia a posição de para+mim quando acompanhado de infinitivos. Esses registros foram separados para serem analisados posteriormente objetivando a continuidade da pesquisa. 42 REFERÊNCIAS BAGNO, M. A Gramática pedagógica do português brasileiro. São Paulo: Parábola, 2012. 1056 p. BAGNO, M. A língua de Eulália: novela sociolinguística. 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