UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS CAMPUS DE MARÍLIA DANILA FARIA BERTO À BEIRA DO ABISMO: Entre literatura e escrita de si em Clarice Lispector Marília 2018 DANILA FARIA BERTO À BEIRA DO ABISMO: Entre literatura e escrita de si em Clarice Lispector Tese apresentada à Banca Examinadora para obtenção de título de Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista – UNESP - Campus de Marília. Orientador: Prof. Dr. Luís Antônio Francisco Souza Marília 2018 B545b Berto, Danila Faria À beira do abismo: : entre literatura e escrita de si em Clarice Lispector / Danila Faria Berto. -- Marília, 2019 167 p. Tese (doutorado) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Filosofia e Ciências, Marília Orientadora: Luís Antônio Francisco de Souza 1. Michel Foucault. 2. Clarice Lispector. 3. escrita de si. 4. subjetividade. 5. literatura. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca da Faculdade de Filosofia e Ciências, Marília. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. DANILA FARIA BERTO À BEIRA DO ABISMO: Entre literatura e escrita de si em Clarice Lispector Tese apresentada como parte do processo para obtenção do título de Doutora em Ciências Sociais, da Faculdade de Filosofia e Ciências – UNESP – Campus de Marília. BANCA EXAMINADORA Orientador: ______________________________________________________________ Prof. Dr. Luís Antônio Francisco de Souza Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Filosofia e Ciências, Campus de Marília. 2º Examinador: _______________________________________________________ Livre Docente Pedro Ângelo Pagni Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Filosofia e Ciências, Campus de Marília. 3º Examinador: _______________________________________________________ Prof. Dr. Rodolfo Arruda Leite de Barros Universidade Federal de Grande Dourados 4º Examinador: _______________________________________________________ Prof. Dr. José Geraldo Alberto Bertoncini Poker Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Filosofia e Ciências, Campus de Marília. 5ª Examinadora: _______________________________________________________ Profª. Dra. Alessandra Teixeira Universidade Federal do ABC Marília, 18 de janeiro de 2019. AGRADECIMENTOS Gosto da palavra Gratidão. Ela me inspira. Devemos ser gratos todos os dias por tudo o que somos capazes de fazer, diante do muito pouco que realmente realizamos. Agradecer àqueles que permitiram que o caminho fosse percorrido é sinal de humildade, e tenho muito a quem agradecer para que tudo isso fosse possível: Agradeço imensamente ao meu orientador e grande amigo, Prof. Dr. Luís Antônio Francisco de Souza, pela parceira de tantos anos (muitos mesmo!), por sua fé em mim, por acreditar que o projeto se tornaria algo possível, por todo respeito à minha liberdade e por estar sempre de prontidão quando eu precisava de orientação ou mesmo de uma palavra amiga. Obrigada, muito obrigada! Agradeço a cada professor que compõe essa banca: Prof. Dr. José Geraldo Alberto Bertoncini Poker, Prof. Dr. Pedro Ângelo Pagni, Prof. Dr. Rodolfo Arruda Leite de Barros e a Profª. Dra. Alessandra Teixeira pelas suas presenças, por se dispuserem a ler minhas palavras e debatê- las. Pesquisadores que conhecem muito mais do que eu e que gentilmente se propuseram a discutir comigo as ideias apresentadas nessa tese. É só a partir do debate que podemos encontrar saídas para nosso futuro. É uma honra tê-los comigo! Agradeço a minha irmãzinha, que mesmo de longe se fez tão perto, acompanhou minhas lágrimas, que não foram poucas, dariam para formar um rio, como Alice no país das Maravilhas. Obrigada Tatiana por não me deixar afogar nas lágrimas e por puxar minhas orelhas quando o drama era demais. Amo você, tanto que até dói, e será sempre minha irmãzinha! Agradeço a minha mãe e irmã mais velha, Vera e Vanessa, por serem meu suporte, por toda a paciência, por todas as palavras de sabedoria, por me darem a força necessária para continuar, inclusive me lembrando de descansar quando era preciso e não me deixarem chegar à exaustão. Não só de tese vive um professor. Eu as amo tanto e vocês três sempre serão meus motivos! Agradeço ao amor da minha vida, Renato, por ser a cor dos meus dias. Obrigada por compreender cada um dos meus momentos, meus ataques, meus silêncios, minhas distâncias. Você é a única e melhor pessoa para ter ao meu lado, meu companheiro, meu porto onde atraco meu barco. Não dá para agradecer tudo o que faz por mim! Impossível não agradecer a essas duas pessoas incríveis, Emerson e Sílvio, não só pela leitura crítica ao trabalho, mas também todas as palavras de apoio e força para que eu não desistisse no meio do caminho e por todas as conversas ao longo das madrugadas. Como diria Clarice, ―Amizade é matéria de salvação‖. Elas realmente me salvaram. Obrigada, queridos! Não poderia deixar de agradecer a minha segunda família, a equipe da EMEF Prof. Olímpio Cruz, lugar que tanto amo e que trabalho há dezoito anos. Somos mesmos uma família. Obrigada à equipe maravilhosa que me acompanharam nesse processo, aos meus diretores Fabiano Todisquini e Samara Sossai Arle, por me apoiarem e facilitarem o processo sempre que podiam, uma vez que não houve qualquer apoio ou incentivo por parte da SME. É preciso agradecer também a cada um dos amigos e professores que se preocuparam com minha saúde (sim, escrever uma tese adoece, principalmente tendo dois empregos), pelos abraços recebidos e por todo carinho sempre que falavam que eu conseguiria. Vocês são os melhores! E por fim, mais não menos importante, é preciso citar alguns nomes que fizeram a diferença nessa trajetória: Paula (minha inspiração para o quarto capítulo), obrigada por toda troca de ideias e todas as discussões sobre o feminismo e Clarice Lispector; Sandra Márcia, Michelle e Milena (Vocês não são só legais, são maravilhosas!); Sandra Barros, Sandra Bassetto e Soraia, minhas companheiras de alfabetização que tanto me auxiliaram e me escutaram; Shauma, Érica e Daniela Maia, sei que as viagens para Tupã se alongavam quando me ouviam falar sobre a tese, mas vocês tornavam minhas viagens mais leves com nossas risadas, obrigada por toda amizade! Que estou eu a dizer? Estou dizendo amor. E à beira do amor estamos nós. (Clarice Lispector) RESUMO Neste trabalho pretendeu-se uma discussão a respeito do que Foucault compreende por processos de subjetivação para a constituição do sujeito contemporâneo, procurando conceber a escrita sob um novo viés, qual seja, a possibilidade de ser entendida também como uma técnica de si que permita aos sujeitos comporem suas subjetividades. Na experimentação da forma de se conceber os textos literários, sob a perspectiva teórico-metodológica de Michel Foucault, realizou-se uma leitura dos escritos de Clarice Lispector de forma a esquadrinhar em suas palavras a possibilidade da escrita ser mais do que uma técnica de governamento, mas uma prática de composição de subjetividades. É no espaço da autora de criação literária, de reinvenção da escrita que a hipótese desse trabalho se encontra, buscando enxergar a escrita como processo de subjetivação e de prática de si que autorize que esse sujeito encontre seu espaço de liberdade, resistindo aos poderes disciplinares e biopolíticos de nossa sociedade atual. Palavras-chave: Foucault, Clarice Lispector, escrita, subjetividades, literatura. ABSTRACT In this work we intend to discuss what Foucault understands by subjectivation processes for the constitution of the contemporary subject, trying to conceive writing under a new bias, that is, the possibility of being understood also as a technique of self that allows subjects to compose their subjectivities. In the experimentation in the form of conceiving the literary texts, under the theoretical-methodological perspective of Michel Foucault, a reading of the writings of Clarice Lispector was realized in order to scan in his words the possibility of the writing to be more than a technique of governing, but a practice of composition of subjectivities. It is in the space of the author of literary creation, of reinvention of writing that the hypothesis of this work is found, seeking to see writing as a process of subjectivation and self-practice that allows this subject to find his space of freedom, resisting the disciplinary and biopolitical powers of our current society. Keywords: Foucault, Clarice Lispector, writing, subjectivities, literature. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 9 CAPÍTULO I: Da filosofia à literatura - a produção ética de Clarice Lispector .................................. 24 I.1 Nas curvas da filosofia: A ética e o cuidado de si ...................................................... 24 I.2 Nas curvas das palavras: A escrita como uma prática de si .................................... 38 I.2.1 Hypomnemata: ............................................................................................................ 40 I.2.2 Correspondência: ......................................................................................................... 41 I.3 A composição Clarice................................................................................................... 43 I. 3.1 A verdade na escrita de Clarice Lispector .................................................................. 50 CAPÍTULO II: O segredo da escrita: o processo de subjetivar-se pelas palavras ................................ 56 II.1 A palavra queimando ................................................................................................. 62 CAPÍTULO III: Nas tessituras do corpo ..................................................................................................... 79 III.1 A aprendizagem do prazer ...................................................................................... 83 III.1.1 Da espera à entrega, do verbo à carne .......................................................... 88 III. 2 Pela via do corpo ...................................................................................................... 94 III.2.1 A publicação e a recepção crítica do livro A via crucis do corpo ..................... 94 III.2.2 Por dentro do livro: apresentação de A via crucis do corpo .............................. 96 CAPÍTULO IV: Entre gritos e sussurros ou a subjetivação do feminino ................................................. 116 IV. 1 O feminino se corporifica ........................................................................................ 125 IV. 2 Os laços que subjetivam o feminino ....................................................................... 127 IV. 3 O corpo-texto em Laços de família ......................................................................... 133 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 144 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................ 151 “Quando se olha muito tempo para o abismo, o abismo olha para você.” (Friedrich Nietzsche) “Quem me acompanha que me acompanhe: a caminhada é longa, é sofrida, mas é vivida. Porque agora te falo a sério: não estou brincando com as palavras.” (Clarice Lispector) “Quando eu escrevo, faço-o acima de tudo para transformar a mim mesmo e não pensar a mesma coisa que antes.” (Michel Foucault) 9 INTRODUÇÃO Porque há o direito ao grito. Então eu grito. (Clarice Lispector – A hora da estrela, 1998d, p. 13) Quando cheguei nesta fase de escrever minha introdução a esse trabalho recebi a seguinte sugestão/orientação: ―Deixe explícita sua tese, assim, logo no início, para não levar seu leitor a qualquer caminho dúbio ou mal interpretado‖. Fiquei com receio de seguir tal conselho e deixar meu leitor meio assustado a ponto de fazê-lo desistir da leitura já no primeiro parágrafo. Na literatura, e na escrita, em geral, temos a estranha mania de criar climas, explicações e floreios antes de chegar onde realmente queremos levar nosso leitor. Mas desafio lançado é desafio aceito, e sendo assim, a tese dessa escrita é a compreensão dos textos claricianos como formas de exercícios de si, onde a escrita deixa seu caráter discursivo em segundo plano para tornar-se processo de subjetivação, prática de si essa que é compreendida a partir de uma leitura foucaultiana. O objetivo é apresentar a escrita de Clarice como antiliteratura, ou melhor, a sua escrita como uma nova forma de conceber a literatura, como prática de si, utilizando as leituras de Foucault como suporte (ou ferramenta, como diria o próprio Foucault). Sendo sua escrita uma técnica de si, Clarice deixa de preocupar-se, pelo menos de modo completo, com sua literatura e função-autor como dispositivo de poder biopolítico, como veremos adiante, para se assumir produtora de sua própria subjetividade. Claro que isso não é simples. Muitas também foram as escolhas a serem feitas para tais afirmações. Uma delas foi a forma de ler Clarice, não como parte de uma literatura canônica, nem como crítica literária, mas sob o ponto de vista do próprio ato de escrever propriamente dito. Não era a forma e a estilística da literatura o foco desta tese, mas o ato da escrita, onde Clarice exercia tão bem esse tipo de atitude literária. Era o fazer a escrita que importava. A escolha foi enxergar em cada romance, cada novo conto, sempre um renascimento, um exercício, uma prática, ou seja, uma leitura da literatura como escrita de si. E nesse exercício, o que Clarice trazia de novo para a literatura, ou mais, para nosso tempo? Realizar tais leituras sob esse enfoque me levou a algumas descobertas e considerações: 1ª. Ler Clarice, seja por prazer, seja como objeto de estudo, é sempre um processo doloroso, mas também profícuo e de suas leituras não se sai incólume (o processo de ler e reler Clarice 10 criou feridas ainda não cicatrizadas, cansaços e muitas descobertas e mapas de tesouros escondidos entre as palavras. Com certeza, para mim, daqui nascerão outros projetos); 2ª. Em seus livros, temas éticos são apresentados e trazidos ao nosso tempo presente e são relidos a partir da ideia de uma ética que constitua sujeitos e dos processos de subjetivação, tais como: o governo de si e do outro, a linguagem, o corpo, o feminino; 3ª. Essa potência que eleva a autora à esfera da arte de si demonstra que Clarice tem a intenção de levar seus leitores consigo a uma experiência-limite, ao auge do possível das palavras que são escritas; 4ª. Ao chegar ao limite das palavras, à experiência-limite da escrita, há uma advertência de que, ao contrário do que alguns críticos escreveram a respeito da escritura de Clarice, não há um fracasso da linguagem (NUNES, 1973; WALDMAN, 1992) ou a impossibilidade de se fazer um relato de si pelos motivos que veremos adiante (BUTLER, 2017), mas a percepção da autora de que as palavras chegam a um estágio onde não se é mais possível responder a essa constituição contínua do ser pela linguagem e assim, chega à ideia do silêncio, àquilo que é indizível. Porque o indizível também fala, no silêncio, nas entrelinhas, naquilo que ficou prestes a ser escrito, mas não se escreveu, como Clarice consegue apresentar tão bem em seus textos; 5ª. A experiência de si feita pela escrita é sempre uma relação com os outros, nunca individual, nesse caso, a relação da autora e seus leitores, ou seja, a escrita como técnica leva a um governo de si e também do outro, numa relação prática de correspondência; 6ª. A escrita clariciana carrega em si uma relação com um corpo que precisa ser escutado e compreendido, mais do que um corpo somente físico, mas um corpo-texto que tem vontades e desejos, um corpo que vê na escrita sua extensão; 7ª. Essa relação com o corpo, que na maior parte das vezes, em Clarice, trata-se do corpo feminino é fundamental para decifrar o lugar desse feminino na sociedade patriarcal machista, que a autora vai desfazendo, como o desfiar de uma peça de lã, para um novo construto do feminino, agora como lugar de encontro consigo mesma; 8ª. O feminino em Clarice foi suporte de construção de minha subjetividade como mulher, como feminista, como resistência. Esse novo feminino, que Clarice propõe como descoberta em suas personagens me faz compreender minha própria construção do feminino e modifica minhas ações referentes a esse construto. Ufa! Enfim, explicitada a tese, que será melhor delineada no decorrer dessa pesquisa, coloco o leitor à beira do abismo, aquele que tem o poder de seduzir e nos fazer cair no mais 11 profundo escuro. Consegue escutar a voz de seu eco, que nunca é igual à voz de origem daquele que grita? Há coragem para dar o passo final e precipitar-se ao mais profundo breu da noite e enfrentar aquilo que dali virá? Tive que me fazer essa mesma pergunta por diversas vezes, e rastejando-me, aceitar olhar o escuro sabendo que o abismo olhava de volta pra mim. Para isso é preciso deixar explícita as minhas escolhas: por que Clarice? Por que Foucault? Afinal, ao optar por ler a autora aos olhos de Foucault, optava também por abrir mão da leitura de outros autores, em nome de uma leitura que fugia das leituras tradicionais literárias. Era pensar a escrita literária de alguém que se se constitui como sujeito literário, e só a leitura de Foucault possibilitaria tal olhar. Clarice Lispector reside e resiste em minha vida a mais tempo do que posso contar. Quando ainda menina, li pela primeira vez o conto ―Felicidade clandestina”, presente em livro do mesmo nome (1991), que narra a história de uma garota que vivencia clandestinamente a felicidade ao conseguir acesso, depois de tantos percalços, de um estimado livro de Monteiro Lobato. Nunca fui muito fã de Monteiro Lobato, mas me reconheci na paixão da garota em ter o livro nas mãos. Minha infância e adolescência sempre estiveram toda envolta de grandes paixões literárias. Pronto! Estava batizada nas águas turvas de Clarice para todo o sempre. Daí em frente devorei de forma insaciável tudo o que chegava a minhas mãos sobre e da autora. Passei por todas as fases: contos, crônicas, romances, entrevistas. Era todo um mistério que a circundava, um desafio, um fantasma, que eu não conseguia desvendar. De onde vinha o mistério de Clarice? Que tipo de feitiço se espalhava por suas páginas que a diferenciava de tantos outros escritores? O que eu questionava já naquela época não era sua literatura, mas a forma e a escrita propriamente dita. Tempos se passaram. Os anos de formação universitária (1997-2001) exauriam com meu pouco tempo para a leitura literária. Clarice dormia em sono profundo nas páginas de minha estante. Era tempo de novas leituras e novas descobertas. Acreditava, jovem e tola que era, que esse tempo havia se esgotado. Mal sabia que a autora viria a ocupar, futuramente, parte de minhas preocupações e pensamentos. Foucault também já me acompanha há um bom tempo. Lembro-me bem da sensação de horror e encantamento que tive quando da leitura de seu livro ―Vigiar e Punir‖ (de 1977), primeiro livro que lia do autor. Ainda guardo nas lembranças a narrativa – que abre o livro – dos suplícios que o condenado passa (é torturado, esquartejado, queimado e reduzido às cinzas), como parte do processo de sua condenação, antes de ser morto. Seus escritos foram- 12 me apresentados quando ainda participava do grupo de estudos PET/CAPES (Programa de Educação Tutorial/ Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), como bolsista, durante o curso de Ciências Sociais, nos idos anos de 1998/ 2000, sob a coordenação do Prof. Dr. Marcos César Alvarez. Durante muito tempo o grupo discutiu questões levantadas por Foucault acerca do poder e das instituições disciplinares, e de como as relações entre poder e saber eram entrelaçadas e profundas. Também se discutiu sobre quais as possibilidades de nos tornar sujeitos dotados de subjetividade. Não fora fácil e não o era porque o filósofo convidava (e sempre fora apenas um convite) a percorrer caminhos desconhecidos, e mais, à desconstrução de crenças mais caras, num abandono de minhas serenas certezas, em troca da angústia das inquietações e inseguranças. Foi através deste livro e do debate proporcionado a partir dele, que tomei contato com a ideia de poder que, para além de sua compreensão vinculada à presença do Estado, era compreendido como capilar e microfísico e que, a partir de práticas de disciplinarização, agia sobre os indivíduos, não como forma de reprimi-los, mas de torná-los governados e governáveis. Dessas discussões com o grupo PET teve fruto minha monografia 1 em que eu me propunha a discutir sobre a sociedade disciplinar e suas características e como o filósofo Gilles Deleuze 2 vinha dialogar com a análise foucaultiana ao discorrer sobre a sociedade de controle. Este trabalho de conclusão de curso, sob a orientação do Prof. Dr. Marcos César Alvarez, abriu as portas para novas leituras, ainda mais completas e complexas, sobre e de Foucault. Para Foucault todo discurso é instrumento e efeito de poder, e por isso histórico, ou seja, é preciso determinar suas condições históricas de existência, sua relação com outros enunciados, seus silêncios e suas falas, que acaba por se tornar efeito de poder e discurso. Era o ano de 2005 e isso era o que se questionava e debatia no grupo do qual participava – GESP 3 1 Monografia defendida no ano de 2002, sob o título ―Sociedade disciplinar ou sociedade de controle? Reflexões acerca do poder na sociedade contemporânea‖. 2 Gilles Deleuze (Paris, 1925 - 1995) Filósofo da diferença. Sob a influência de Nietzsche, procurou estabelecer o conceito de diferença, como verdadeiro princípio da filosofia. Autor de A Filosofia Crítica de Kant (1962), Diferença e Repetição (1968), Apresentação de Sacher–Masoch (1971), Foucault (1986) e, com Félix Gattari, O Que é Filosofia? (1991), entre outros. 3 GESP - Grupo de Estudos em Segurança Pública da UNESP, em atividade desde 2005, desenvolve pesquisas, discussões, e encontros sob a temática dos problemas enfrentados pela Segurança Pública. Entre outros autores discutidos (Agamben, Deleuze, Thompson, entre outros), tem em Foucault sua principal fonte bibliográfica, por abranger grande parte dos temas em discussão. Temos uma página na internet – OSP – Observatório de Segurança Pública que trata de tais propostas: http://www.observatoriodeseguranca.org/ http://www.observatoriodeseguranca.org/ 13 – sob a orientação do Prof. Dr. Luís Antônio Francisco de Souza, que viria, um ano depois, a ser meu motivador e orientador em minha dissertação de mestrado. Ali, uma nova parceria surgiu e que já se estende por mais de dez anos. E uma nova inquietação nascia, ao me questionar sobre os discursos pedagógicos, uma vez que agora percebia que também eles eram sustentados por regimes de poder e saber. Isso me incomodava, uma vez que exercia a profissão de professora (ensino fundamental municipal de Marília, professora alfabetizadora, desde o ano de 2000), e isso afetava minha realidade diária. Os discursos de minha formação no magistério (1994-1997) me ensinavam a enxergar uma criança livre e a espera do grande conhecimento que eu iria transmitir. Porém, se todo discurso é criação humana e estratégia de poder, não haveria uma verdade a ser revelada sobre a criança, mas estes serviriam de suporte e instrumento para a produção de um conhecimento sobre as mesmas. Não ensinávamos às crianças, mas aprendíamos com os enunciados sobre elas. Essas indagações me fizeram pensar de forma diferente, para além de todas as teorias e formações educacionais, em direção a um questionamento de tudo o que tinha aprendido. E foi assim, com mais dúvidas que certezas, que se delineava o tema de minha dissertação de mestrado, onde o objeto de estudo eram as próprias crianças. Observando as práticas disciplinares e biopolíticas que levavam a um governo dos homens, eu passava a interrogar o papel da escola em tudo isso. A sociedade seria todo um grande conjunto de homens submetidos em suas relações de poder? A biopolítica criava uma grande produção de saberes sobre esses homens, que não se manifestavam, que não se rebelavam? Isso tudo me incomodava. Foi quando, em minhas pesquisas, tive contato com as leituras das últimas obras e aulas de Foucault e também com as discussões atuais acerca do pensamento foucaultiano, a partir da linha do pós-estruturalismo, autores (COSTA, 1996, 2002; FONSECA, 1995; GALLO,1995; SILVA, 2002; VEIGA-NETO, 1995, 2000) cuja linha de pensamento apontam para as práticas educacionais, currículos e pedagogias a partir de suas transgressões, subversões, a multiplicação de sentidos e para as diferenças 4 . 4 Hoje há uma infinidade de estudos que buscam identificar e descrever formas de subjetivação e de cuidados de si no mundo contemporâneo, seja na Psicologia, na área da Educação ou da própria Sociologia, entre ouras áreas. Na medida do possível, faço referência a alguns desses autores no transcorrer desse trabalho. Mas há ainda outras sugestões de leitura que irão tratar dos processos de subjetivação, relacionados com a pedagogia, o 14 E enfim, encontrava alguns apontamentos aos meus questionamentos quando via Foucault discorrer sobre as práticas gregas, que defendiam que, a partir de uma áskesi sobre si mesmo, era possível constituir-se enquanto sujeito. Para o autor cada pessoa constitui-se como sujeito a partir de práticas que o subjetivassem, chamadas de técnicas de si, onde o sujeito pode se ver como uma obra de arte a ser formada continuamente. Enfim, tinha a tese de minha pesquisa de mestrado 5 : em uma instituição onde práticas disciplinares e biopolíticas eram postas em funcionamento a todo o momento, como era possível que se produzisse a subjetivação das crianças? Foucault respondia a essa questão, quando dizia que o sujeito também era produto de um trabalho sobre si mesmo. O grande desafio apresentado foi como perceber onde se davam essas subjetivações, o que me fez olhar de forma microscópica para o cotidiano dessa realidade escolar, buscando nas reações infantis e em seus silêncios as respostas. Após a defesa de mestrado, outros foram os caminhos. Exigências profissionais acabaram por me afastar do campo da pesquisa acadêmica. Tornei-me coordenadora pedagógica da escola, onde ainda leciono, por um período de cinco anos, além de lecionar também em duas faculdades particulares 6 . Após um afastamento de alguns anos, voltei a frequentar o grupo GESP (2013) e com as leituras realizadas pelo grupo novas indagações passaram a me perseguir. Minhas dúvidas e questionamentos agora se voltavam para as diferentes práticas de si e quais delas ainda se encontravam postas em nosso mundo atual. Como subjetivar-se a partir dos exercícios de si na atualidade? E por que Foucault? O autor ousou ir além de qualquer pensamento filosófico tradicional, pensando o sujeito como um produto histórico e social, construído por relações de poder e saber, a partir das práticas disciplinares e biopolíticas, de um governo dos outros. Assim, Foucault avança em seu próprio pensamento: o sujeito também era produto de um trabalho sobre si mesmo (governo de si), mas isso só se daria se o sujeito se dedicasse a um verdadeiro cuidado de si, sob o que chamaria de práticas de si. feminismo, a política, etc. São eles Muchail (2004, 2011), Duarte (2010), Kraemer (2011), Candiotto (2010), Cardoso Jr (2011), Fonseca (2011), Rago (2008, 2013). 5 Dissertação de mestrado defendida em 2007, cujo título é “Processos de subjetivação no espaço escolar: práticas e discursos pedagógicos numa escola pública de ensino fundamental a partir de uma perspectiva foucaultiana‖, sob orientação do Prof. Dr. Luís Antônio Francisco de Souza, tendo como banca avaliadora os professores Dr. Marcos César Alvarez, Dr. Hélio Rebello e Dr. Pedro Ângelo Pagni. 6 FAFIP- Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Piraju. FADAP/ FAP – Faculdade das Altas Paulista – Tupã. 15 Para o autor a escrita é vista como uma poderosa prática de si. Em obras como História da sexualidade, O uso dos prazeres (de 1984) e O cuidado de si (também de 1984), bem como em suas aulas e palestras, em seus ditos e escritos na década de 80, Foucault desloca sua discussão sobre a questão do poder-saber para a questão da constituição do sujeito. Nos gregos encontra exemplos para uma prática de uma formação ética do sujeito. Ainda que não veja contradição entre técnicas de disciplinarização e biopolíticas e técnicas de subjetivação, é no cuidado de si que enxerga as possibilidades de resistências. As práticas de si são exercícios ascéticos onde ao sujeito é permitida uma elaboração de sua existência como uma obra de arte. Essas práticas não são as mesmas, mas variam de acordo com a sua historicidade. O autor se interessa pela forma como os gregos constituíam- se a si mesmos, a partir de suas regras e suas liberdades, de escolherem e legitimarem essas regras. Ao falar das possíveis práticas de subjetivação, utiliza um conceito de escrita como escrita de si. Ao fazer a leitura do texto de Atanásio 7 , apresenta o conceito vista como exercício de uma ascese, não sobre o corpo, mas sobre os pensamentos, exercício que se aproxima à confissão pastoral cristã, uma forma de afastar os maus espíritos. Mas nas leituras dos pitagóricos, socráticos e cínicos, a ascese é um treino de si sobre si, e a escrita seria um exercício necessário de escrita de si para si e de si para outro, em sua função etopoiética, em busca da formação de um ethos. A escrita torna-se possível forma de liberdade do sujeito, seja ela em forma de um hypomnemata ou das correspondências 8 , pois atua não somente sobre as ações, mas também sobre os pensamentos dos homens. O autor nos lembra que o sujeito é composto por práticas discursivas, entremeadas de relações de poder-saber, mas também que a escrita pode ser vista como possibilidade de liberdade e resistência. Esses conceitos serão melhor detalhados no capítulo 1. A escrita sempre fez parte de minha vida, seja por seu uso cotidiano, seja pelo meu professorado, ou mais do que isso, pelo gosto em escrever, de deixar a imaginação fluir e tornar a escrita uma forma de soltar sentimentos e emoções 9 . Ainda não compreendia que poderia fazer disso uma prática de si. 7 Santo Atanásio, 1989. 8 É na leitura de A hermenêutica de si (2010) e O que é um autor? (1992a) que se encontram os conceitos de hypomnematas e correspondências como práticas de si de forma mais detalhada. Também no texto A escrita de si (1983), Foucault trata especificamente sobre o tema. 9 Escrevo em um blog chamado ―A gaveta‖, título inspirado em uma história sobre Clarice Lispector (confirmada no livro de Olga Borelli, 1981) que guardava em uma gaveta pedaços de papel com rabiscos de 16 Pela ótica foucaultiana, parte-se do princípio de que a escrita é compreendida como um procedimento também capturado pelas malhas do poder, (em condições que prescrevem, determinam e disciplinam o tecer das palavras), onde o grafar se constitui como prática de objetivação dos indivíduos, transfigurados em relatórios e receitas, em arquivos, típicos do saber moderno. É no ato de narrar-se que o sujeito passa a enxergar a si mesmo como sujeito de verdade. Mas não é qualquer escrita que pode ser considerada com prática de si, e sim a escrita que possibilita a experimentação, como ferramenta para pensar sobre si mesmo e também está em consonância com o outro. Por isso, talvez, a importância de se pensar a literatura, afinal, esta está sempre em relação íntima entre leitor e autor, ou quem escreve e quem lê, relação entre verdade e ficção. Quanto mais eu lia sobre a escrita como prática de si, mais eu pensava a respeito do papel da literatura e onde ela poderia ser posta nesse jogo de verdades a partir das palavras, porque, afinal, nem toda literatura é uma escrita de si. Então, era preciso pensar o relacionamento entre sociologia e literatura. Nesse diálogo manteve-se por muito tempo a ideia, por vezes reducionista, de que a literatura seria mero reflexo do que se passa no âmbito social que a circunda, como ilustração de uma realidade. Essa perspectiva analítica pensava a literatura e seus autores a partir de seu contexto histórico- social (OSBORNE, 1986). Sílvio Romero (1888) já indicava que o estudo da literatura passaria por seus fatores externos e a personalidade do autor, vinculando a história literária a uma teoria da sociedade e da cultura. Não haveria problemas nisso, uma vez que é impossível desvincular as vivências do autor e o campo social que demarca seus escritos e atravessa suas obras, se não fosse a questão apontada por Candido (1981) em perceber que esse método reduzia a literatura a simples documento de um tempo vivido. Essa característica, no domínio da teoria literária, acabou por tornar-se padrão estético formal, ou seja, as obras eram avaliadas a partir do grau de fidelidade com a realidade que as mesmas apresentavam. Se no campo da teoria da literatura isso acontecia, a partir da segunda metade do século XIX, as contribuições para a formalização de uma sociologia da literatura são consideráveis. A sociologia interessa-se pela literatura quando enxerga nessa uma possibilidade de compreensão do próprio movimento da sociedade (CANDIDO, 1967). inspirações e depois de lá tirava suas ideias para contos e romances. O blog funciona desde 2012, com cinco autores fixos e outros convidados. Atualmente ele não é muito atualizado. Endereço do blog para quem se interessar: https://revistagaveta.wordpress.com/ https://revistagaveta.wordpress.com/ 17 Para fazer da literatura objeto de estudo da sociologia foi preciso que esta existisse como veículo de intercâmbio social a partir de um espaço de interação entre valores sociais e históricos e os sujeitos aí envolvidos, espaço esse que não se assemelha a nenhum outro. Isso não significa afirmar que autores não possuam liberdade de ação criadora, mas que esse trabalho transita entre a criação literária e o social, centrais para se compreender as manifestações dos sujeitos. A escrita literária passa, então, a ser vista como uma apreensão de diversos aspectos sociais da realidade, seja através da relação autor-público, seja através da veiculação da obra no meio social, seja por meio da identificação com os personagens ou mesmo da forma narrativa com que isso é feito. A leitura desses estudos sociológicos no campo da literatura foi a mais utilizada em análises da relação entre a obra e seu meio social, desde a segunda metade do século XIX (CANDIDO, 1967). A grande crítica a esse método, denominado de sociologismo crítico, foi reduzir as possibilidades de análises de obras onde as referências ao fantástico eram constantes ou, dito de outro modo, não seria suficiente a uma crítica literária relacionar a obra com sua realidade exterior, sem correr o risco de simplificação causal. Frente a essas questões foi possível pensar em uma nova forma de a sociologia compreender a literatura a partir de uma análise que levava em consideração as visões de mundo transformadas em textos literários, investigando aí tanto as condições de produção quanto a situação sócio histórica de seu autor (FACINA, 2004). Dessa forma, as visões de mundo estão vinculadas em uma criação literária, que não podem ser compreendidas somente como fruto de um sujeito isolado (o autor) e nem mesmo como mero reflexo de seu contexto social. É nessa relação recíproca entre o autor e as experiências do grupo social que se constitui o conteúdo da obra literária. O interesse da sociologia pela literatura se dá pela relação entre a visão de mundo do grupo social a qual o autor literário pertence e a estrutura histórica do texto em questão, veiculando-os a unidades coletivas (GOLDMANN, 1989). Sob essa perspectiva os estudos sociológicos sobre a produção literária estabelecem homologias entre a obra de arte e as dimensões da realidade social em que está inserida, os atores envolvidos na atividade intelectual e as visões de mundo presentes no período histórico em que a narrativa literária foi escrita. Há um novo olhar sociológico que tem por objetivo uma análise mais complexa do objeto literário, que se baseia não só na observação das práticas sociais do período, mas também no intuito do autor e dos diferentes agentes culturais envolvidos na produção do texto 18 literário, de modo a perceber as interações e influências entre escrita, autor e público, ou seja, entre obra de arte e meio social há relações dialéticas e recíprocas (CANDIDO, 1967; NORITOMI, 1995; Bakhtin, 1988). Nessa relação dialógica o conteúdo estético e o social são elementos que se complementam e nessa mediação o autor realiza, no campo literário, sua concepção de mundo, como no caso de autores que se utilizaram do fluxo de consciência e dos experimentalismos linguísticos, como forma de novas vivências entre arte literária e a temporalidade da sociedade moderna. E aqui me deparei com um grande desafio, afinal como a literatura torna-se uma escrita de si e possibilita um estado de liberdade do sujeito que escreve? Foi preciso definir que meu objeto de estudo não era a literatura em si, seu papel na sociedade e sua função nas Ciências Sociais, mas o ato da escrita, o escrever como prática laboral de um subjetivar-se a si e aos outros, uma análise preocupada com a relação de seus autores com o processo de escrita. A linguagem de resistência da escrita recusa a possibilidade de tradição literária e se recusa em ser a mesma. Assim, é no próprio ato de escrever que se encontra sua liberdade, uma escrita ativa. A palavra deixa de designar as coisas do mundo, para ter outra função, como fundação de outro mundo. Como dito, Clarice Lispector sempre foi minha autora de cabeceira e seus livros me acompanham desde minha adolescência. Conheço suas obras pelas diversas leituras feitas a elas. Acredito que a cada leitura eu florescia em minha juventude. Mas escolher a escritora como objeto de estudo nada teve a ver com meu gosto pessoal por sua literatura e esse foi o primeiro grande desafio: ler Clarice com novos olhares e ir aos poucos descobrindo uma nova autora da qual eu ainda não conhecia. Clarice se desnudava diante dos meus olhos. Claro que a autora já ocupava um lugar determinado na literatura, com seus próprios discursos, uma vez que seus livros são comercializados até hoje. Posto isso, realizei aqui um recorte histórico, ao me interessar por um período da produção literária brasileira, qual seja, o modernismo, mais especificamente em sua terceira fase (1945-1960), movimento esse que possibilitou uma profunda transformação na forma de se conceber e promover literatura no Brasil. Seus idealizadores caracterizavam-se por defenderem a liberdade de criação e experimentação, bem como combatiam as formas convencionais da escrita acadêmica, seus lirismos e suas distinções de gênero, recorrendo à poesia, ao primitivismo brasileiro e ao regionalismo, de modo a resultar numa produção literária mais viva e criadora. 19 Clarice Lispector faz parte dessa terceira fase modernista e surge, com seu livro de estreia, Perto do coração selvagem (de 1943), com uma escrita que dá expressividade aos fatos corriqueiros e cotidianos. A força das palavras torna os detalhes peça central de seus escritos, com uma sondagem intimista e introspectiva (CANDIDO, 1999). O que se pretendeu demonstrar é que, para além de seu papel de escritora, mãe e esposa de diplomata, papel esse de subordinação da mulher na sociedade da época, a autora encontra um jeito próprio de fazer literatura a partir de uma voz muito particular, voz essa intuitiva e pessoal, onde seu elemento social é o próprio ato da escrita. Ainda em textos onde deixa mais explícito seu posicionamento social tão cobrado pela crítica, seja em seus escritos jornalísticos (1967-1973) compilados em livros como A descoberta do mundo (de 1984), seja em seu último livro publicado em vida, A hora da estrela (de 1977), onde tem como personagem central uma nordestina/sertaneja, órfã e retirante, a autora não abdica de sua postura estético-literária e é a partir da escrita poética e cotidiana que insere-se no contexto social de seu tempo e usa a linguagem literária como prática social, apresentando seu posicionamento frente a uma sociedade controlada e padronizada. Se a pesquisa em sociologia da literatura leva em conta o movimento de interação entre o conteúdo estético e o social, é na própria escrita, mais do que em seus personagens, conflitos e enredos, que encontrei em Clarice Lispector seu espaço de criação e reinvenção literária como partes de um processo de subjetivação que perpassa a escrita. A partir da constituição de si e de seus personagens, inventa novos modos de existência e contrapõe-se à produção de uma subjetividade pautada na submissão aos códigos normativos, escapando das formas biopolíticas de produção do indivíduo. Há um grande diferencial em Clarice ao se aprofundar em suas leituras, pois sua escrita é uma escrita única, onde, a partir das palavras, procura compreender sua relação consigo mesma. Se Foucault é minha base teórica, é preciso ler os escritos de Clarice Lispector a partir dos conceitos foucaultianos e dessa forma, perceber que a autora faz uma escrita de si em cada uma de suas obras. Essa forma de conceber a escrita como forma de liberdade, trouxe alguns prejuízos à escritora, em sua época. Como apresentei na fortuna crítica de cada livro a ser trabalhado, nos capítulos que se seguem, Clarice não criou um público que a lia rapidamente. Por muitos era considerada incompreensível. Mas ela continuava fiel à sua forma de escrita, uma vez que tinha conhecimento que sua linguagem trazia um ―algo a mais‖. 20 Parece haver na autora uma necessidade de não sentir as amarras literárias da época das quais se sente presa, e procura transformar sua literatura em algo novo, onde as palavras escritas a levem a um processo de subjetivação. Clarice não lê Foucault, assim como, Foucault também não lê Clarice. E apesar disso, suas obras são deixadas como testamento que se complementam. A escrita da autora é um exercício de liberdade e uma verdadeira reflexão sobre o gênero humano. Procurando desconstruir os ditames literários em suas obras, a partir da criação de muitos títulos, desconstrução de regras de pontuação e parágrafos, criação de personagens-autores, entre tantas outras regras que vai quebrando, faz de suas palavras fonte de reflexão de si mesmo. Ela é sempre sua melhor personagem. Assim, este trabalho faz-se relevante ao propor alguns questionamentos frente à escrita como objeto de poder: Pode-se pensar a escrita como fruto de relações vividas pelo homem que possibilitam a formação de uma vivência significativa e uma compreensão da realidade que o cerca? E mais: como pensar a escrita como uma prática de si que se incide sobre o corpo e sobre ele confessa, fala, narra? Pensar os modos de uma estética da existência e as relações de poder, procurando desloca-las, ainda que nunca ultrapassando-as, de modo a ficar no seu limiar. Acredito que a análise aqui proposta responde a essas perguntas. A autora nos possibilita a leitura de uma escrita livre, decomposta, que recria suas próprias condições de existência. É nesse contexto do estudo foucaultiano que essa pesquisa se fundamentou. Os conceitos de subjetivação e prática de si, particularmente, foram de importância muito grande para este trabalho e são os eixos principais de análise, uma vez que se tornaram o principal pretexto para criar-se um espaço de aproximação e de vizinhança entre a escritora e o filósofo francês. Os maiores críticos e estudiosos de Clarice Lispector aqui trazidos, tais como: Nunes (1973), Waldman (1992), Sá (2000), Nolasco (2004), Rosenbaum (2006), Moser (2009), Gotlib (1995, 2014), entre tantos outros, servem para apresentar as leituras realizadas e criar debates com a minha e de forma alguma impedem ou contradizem a leitura foucaultiana da pesquisa. Eles muito contribuem para compreender seja o contexto histórico e biográfico da autora, seja o universo de sua escrita autoral. Utilizei como estratégia metodológica realizar a fortuna crítica das obras de Clarice no decorrer de suas leituras e análises, de acordo como é apresentada nos capítulos que se seguem. Assim, é apresentada sempre a forma como a crítica e o público recebia a obra, a 21 forma como era composta e organizada para publicação e as análises que essas obras possibilitam, a partir dos conceitos foucaultianos propostos, tais como de escrita de si e de subjetividade. Sendo esse o ponto de partida e pensando nas práticas de subjetivação possíveis ao sujeito, logo a escrita ganha destaque ao ser compreendida como uma técnica de si por excelência, ao fazer esse corpo falar. Assim, é em Clarice Lispector e sua literatura que se encontra a escrita como uma técnica de si que possibilita novas formas de expressão e constituição dos sujeitos. O objetivo desse trabalho é examinar a escrita como prática de si, de subjetivação a partir da análise dos escritos de Clarice Lispector, entre 1945-1960. É a partir da leitura de seus livros e da reflexão sobre eles, como se pretendeu aqui nessa tese, é possível compreender a possibilidade de enxergar na literatura uma forma de constituição do sujeito moderno, caminho para as práticas de si, para um subjetivar-se para além das dinâmicas das disciplinas e da biopolítica, para tornar-se sujeito. Assim, no capítulo I, com o título Da filosofia à literatura: a produção ética de Clarice Lispector, tive a preocupação em apresentar, da maneira como aconteceu a concepção do projeto desta tese, a teoria foucaultiana que embala esse trabalho, seus principais conceitos utilizados, como processos de subjetivação e o cuidado de si. Era preciso que meu leitor compreendesse sobre que solo se finca esse trabalho e conhecer o que Foucault compreende como subjetivação do sujeito e suas principais técnicas de subjetivação, o que possibilitava a compreensão do objeto escolhido para análise. Ainda nesse capítulo apresento o objeto a ser debatido, qual seja, a escrita de Clarice Lispector, suas características únicas, que fazem dela, não uma autora qualquer, mas uma escritora que, em seus escritos, põe em prática a escrita como forma de subjetivação. Em seu campo de escrita cria possibilidades para a constituição do eu. No capítulo II, intitulado O segredo da escrita: o processo de subjetivar-se pelas palavras, o objetivo foi aproximar-se mais da obra da autora e fazer dela um objeto de análise. Esse capítulo inicia-se com uma discussão sobre a forma como Foucault compreende a linguagem, principalmente em sua pesquisa na década de 1960, enquanto experiência limite, e assim, a possibilidade de novas formas de se conceber a escrita enquanto livre, bem como a leitura foucaultiana sobre um texto seu O que é o autor? (1992) que permite debater a respeito da escrita como parte de uma discursividade, enredada por relações de poder/saber e como se posiciona Clarice frente a esses ditames discursivos. 22 A obra escolhida foi Água viva (de1974), obra que, segundo esta tese, é marcante na trajetória literária da autora, por apresentar, mais do que em outros escritos, o caráter libertário da escrita e a sua potência criadora. Além disso, a análise dessa obra nos leva a descoberta de uma preocupação nos escritos claricianos: qual é o limite da palavra? Há um fracasso da linguagem? E a resposta que se encontra é o que se esconde nas entrelinhas do texto, o indizível. O capítulo III, sob a denominação de Nas tessituras do corpo, apresentei o estudo de duas obras da autora, Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres (1969) e A via crucis do corpo (1974), que consegue perceber o corpo como via de um caminho que leve a constituição do sujeito. Nessas obras, não se fala sobre um corpo qualquer, quase sempre feminino, esse corpo é objetificado pelas relações de poder/saber e onde a biopolítica faz dele estatística. Mas também é um corpo que, entre falas e silêncios, procura resistir esse processo de disciplinarização. É ainda pela escrita, ao escrever sobre esses corpos, que Clarice possibilita que eles se subjetivem e se libertem e percebe-se que esse corpo pode ser estendido a um texto, seu corpo-texto. No IV e último capítulo dessa tese, denominada Entre gritos e sussurros ou a subjetivação do feminino, foi preciso a última escolha das obras. Não foi fácil escolher um ou outro livro escrito pela autora para falar sobre o feminino. Sempre fui muitíssimo influenciada por sua leitura, não somente por meus gostos pessoais literários, mas também por minha militância feminista. Assim, como escolher entre tantas personagens criadas pela autora que se manifestaram fortes e corajosas, que confrontaram a sociedade em que viviam e que se mostraram capazes de serem mais, muito mais do que o que era esperado por elas? Mas, foi exatamente aí que minhas leituras se encontraram com o livro Laços de família (de 1960), de onde partiu minha escolha. Entre tantas mulheres sobreviventes, de suas dores e de si mesmas, por que fui escolher justamente uma obra onde Clarice apresenta a mulher em seu estado de dominação por um espaço confinado ao feminino, de casamento/maternidade, a dona-de-casa presa a uma rotina de cuidados com o marido e filhos, espaço no qual me encontro sempre em eterno embate? E é justamente por isso minha escolha. No livro Laços de família, a autora coloca suas personagens frente a um momento de tensão, momento epifânico, onde aquela existência cotidiana do que é ser mulher e do que lhe cabe na sociedade é posta em questão. E neste momento, suas personagens vivenciam experiências-limites, ganham vida e fazem escolhas, num eu feminino de Clarice que se afirma em sua escrita. Eu não escolho as personagens que 23 já são livres, escolho aquelas que precisam da minha companhia como leitora para passarem pelo processo de subjetivação acompanhadas por mim, e assim, possibilito minha própria subjetividade ser posta à flor da pele. Veja, o processo é duplo, enquanto lhe dou a mão e as conduzo nessa passagem a um novo olhar sobre o feminino, também eu começo a vivenciá-lo. Talvez se possa dizer que, além da compreensão da escrita como forma de subjetivação, essa seja a maior contribuição de Clarice para nosso tempo, um novo olhar sobre conceitos éticos, como o feminino, que se dimensiona no processo de governo de si e do outro. Dessa forma, seguindo os passos dos escritos de Foucault, caminhando sobre pedras amarelas, como Dorothy em O mágico de Oz, faço o convite a me acompanharem nas escrituras de Clarice Lispector, buscando respostas para as possibilidades da prática da escrita nos ser libertadora e nos levar a sermos sujeitos nessa sociedade contemporânea. Convido a se aproximarem, chegar mais perto do abismo, olhar de perto e soltar seu grito, mesmo sob o risco de serem observados e receberem um novo grito de volta. Mas se eu gritasse uma só vez que fosse, talvez nunca mais pudesse parar. Se eu gritasse ninguém poderia fazer mais nada por mim; enquanto se eu nunca revelar minha carência, ninguém se assustará comigo e me ajudarão sem saber; mas só enquanto eu não assustar ninguém por ter saído dos regulamentos. Mas se souberem, assustam-se, nós que guardamos os gritos em segredo inviolável. Se eu der o grito de alarme de estar viva, em mudez e dureza me arrastarão pois arrastam os que saem para fora do mundo possível, o ser excepcional é arrastado, o ser gritante. (LISPECTOR, 2009, p.62) 24 CAPÍTULO I: DA FILOSOFIA À LITERATURA - A PRODUÇÃO ÉTICA DE CLARICE LISPECTOR Será preciso coragem para fazer o que vou fazer: dizer. (Clarice Lispector- A paixão segundo G.H., 2009, p.18) Neste capítulo a preocupação é apresentar, de forma didática, a teoria foucaultiana, no que tange a uma ética e um cuidado de si. Mas seria possível falar na constituição de uma estética e ética do eu? É a pergunta que se faz Foucault em textos como A hermenêutica do sujeito (FOUCAULT, 2010) ou mesmo os dois últimos volumes da História da sexualidade (2014). Para isso acompanha-se rapidamente a trajetória do autor em seus estudos sobre a ética, apresentando uma distinção entre o que se compreendia na antiguidade clássica por gnôthi seautòn e epiméleia heautôu. Com o conceito de epimeléia perceber-se a necessidade de que, para se chegar a uma verdade sobre o sujeito é preciso práticas de um cuidado voltado a si mesmo. Mas que práticas seriam essas? Entre tantas apresentadas pelos gregos, nesse trabalho o olhar volta-se para a prática de um exercício de escrita, não por acaso, mas por compreendê-la como prática de resistência, reveladora do sujeito. Logo em seguida, o propósito é apresentar essa prática na literatura, campo e espaço da escrita e do escrever, com uma autora que transforma essa tarefa em uma prática real de si que leve a liberdade do eu. Clarice Lispector escreve sobre si mesma, como liberdade de estilização da sua própria existência. Sua escrita torna-se experiência de si pela expressão de sua forma de ver o mundo, bem como as coisas que vivia e sentia, pelas suas rupturas e confrontos com a palavra escrita e seus silêncios, numa busca por se deslocar da literatura convencional e inventar seu próprio eu e sua própria linguagem a partir das palavras. Ao criar suas personagens, Clarice cria uma forma de constituição do eu possibilitada pela escrita. I.1 Nas curvas da filosofia: A ética e o cuidado de si Michel Foucault dedica grande parte de sua vida a estudar as formas como se é levado, por práticas de objetivação e subjetivação, a ser sujeitos (FOUCAULT, 2010). Através de uma analítica das relações humanas ele identifica um poder que escapa dos braços da política e do Estado e percebe que esse poder é muito mais microfísico. Faz da genealogia seu método de estudo e busca na História, quase sempre também fugidia da história contada por grandes personagens, as técnicas e procedimentos utilizados por esse poder. Caracteriza a sociedade moderna como disciplinar pelos efeitos causados por um poder que disciplina e normaliza os corpos dos indivíduos. Porém, Foucault positiva esse 25 poder ao perceber que, para além dos corpos objetivados, ou como um novo aspecto desses, há um saber que se produz a respeito desses mesmos indivíduos e sociedade e, assim, poder e saber se produzem mutuamente. Além disso, essa sociedade moderna, a partir das relações de um governo de si e um governo dos outros, dá condições da produção desse corpo tornar-se sujeito. Foucault realiza o estudo de um poder que tem função específica: o disciplinamento dos sujeitos a partir de um sistema que fabrica corpos dóceis, submissos e produtivos, através de mecanismos que permitem o controle e a vigilância incessante. A partir de seus estudos sobre a história da loucura e dos sistemas prisionais, enxerga esse poder que se compõe em redes, forte o bastante para esquadrinhar a vida dos indivíduos, poderoso o suficiente para conduzir e normalizar comportamentos, mesmo sendo um poder que não necessariamente precisa ser visto, mas sentido, a partir de suas técnicas de exame e vigilância. A sociedade disciplinar tem no modelo do Panóptico 10 seu ideal de realização. Modelo arquitetônico criado por Jeremy Betham, jurista do século XVIII, que concebe a arquitetura do Panóptico como um modelo ideal de sistema prisional, circular, onde um observador central pode manter vigilância constante sem ser visto. Este modelo pode também ser aplicável a muitos outros domínios, como fábricas, hospitais ou escolas, de modo a disseminar os dispositivos disciplinares, a partir de um poder que se distribui pelos corpos dos indivíduos. Seu princípio geral de funcionamento é um dispositivo de vigilância, como uma máquina óptica e serve para corrigir os prisioneiros, cuidar dos enfermos, disciplinar os estudantes, fiscalizar os operários. Tem com instrumento primordial a arquitetura que se configura para permitir esta vigilância. Instrumento que funciona como um microscópico do comportamento humano, este é discreto o suficiente para não ser visto, mas para ser percebido, possuindo um controle intenso sobre os corpos, de modo a torná-los produtivos. Dispositivo importante, pois automatiza e desindividualiza o poder. Este tem seu princípio não tanto numa pessoa quanto numa certa distribuição concertada dos corpos, das superfícies, das luzes, dos olhares: numa aparelhagem cujos mecanismos internos produzem a relação na qual se encontram presos os indivíduos. (...) O Panóptico é uma máquina maravilhosa que, a partir dos desejos mais diversos, fabrica efeitos homogêneos de poder. (...) O Panóptico funciona como uma espécie de laboratório de poder. Graças a seus mecanismos de observação, ganha em eficácia e em capacidade de penetração no comportamento dos homens: um aumento de saber vem se implantar em todas as 10 Para aprofundamento sobre o assunto e uma descrição detalhada a respeito do que venha a ser o sistema do Panóptico, vale a leitura da terceira parte do livro ―Vigiar e punir: nascimento da prisão‖ (1988), intitulada Disciplina, capítulo III: O Panoptismo, p.162. 26 frentes do poder, descobrindo objetos que devem ser conhecidos em todas as superfícies onde este se exerça. (FOUCAULT, 1988, p.191, 192-194) Assim, as relações de poder passam a ser compreendidas como formas de um governo dos outros, como um conjunto de ações que condicionam as ações dos outros. Compreende-se por governo não a ação política do Estado, mas refere-se ―à maneira de dirigir a conduta dos indivíduos ou dos grupos: governo das crianças, das almas, das comunidades, das famílias, dos doentes‖ (FOUCAULT, 1995, p.244). Essa definição de governo11 destaca a forma como os indivíduos se deixam conduzir, ou de outra forma, como eles se deixam governar, conseguindo o máximo de resultado com uma aplicação mínima de poder. Segundo Seixas ―O termo governo (ou governamento) pode ser entendido no sentido de um exercício de ato - poder para condução das condutas dos indivíduos e, principalmente, na gestão das coisas.‖ (SEIXAS, 2014, p. 02). Mas Foucault foi além ao perceber que os olhares vigilantes do poder disciplinar também se expandem e complementam. O autor identificou um novo tipo de poder que, mais do que agir sobre os corpos, enxerga os indivíduos a partir de um novo olhar: eles compõem uma população. E, dessa forma, novas tecnologias e procedimentos passam a incidir sobre a vida dos indivíduos, regulamentando-os. Assim, Foucault se preocupou em apresentar quais as características que compunha o que ele denomina de biopoder 12 . 11 Foucault em sua obra ―Segurança, território e população‖ (curso no Collége de France em 1977-78, 2008) procura mostrar a maneira como da pastoral cristã, referente ao Estado da justiça da Idade Média, chegamos ao Estado de governo a partir dos dispositivos de segurança da Modernidade, perpassando pelo Estado administrativo das disciplinas e do regulamento no século XV e XVI. Aos que se interessam por saber mais sobre o assunto, sugere-se a leitura do artigo de Veiga-Neto ―Governo ou governamento‖, que procura, de forma muito didática, explicitar o significado e uso de tais conceitos. (Veiga-Neto, A. 2005). 12 Mesmo reconhecendo que o pensamento de Michel Foucault, radicalmente preocupado com as rupturas históricas e epistêmicas dos discursos, nunca poderia se apresentar de modo linear, ainda assim utilizaremos aqui de uma divisão que costuma ser realizada em sua obra, para facilitar a compreensão desse texto para os iniciantes, qual seja, as fases, ou mais comumente, os três domínios a que sua obra se divide: "ser-saber", "ser- poder" e "ser-consigo". Quando se faz a leitura de todas as obras em conjunto percebe-se que essas temáticas se problematizam e complementam-se. A primeira, em que ele chamava seus estudos históricos de arqueologia, é situada em geral nos anos 60: as principais obras desse período incluem ―História da loucura na Idade Clássica‖ (de 1961), ―O nascimento da clínica‖ (de 1963), ―As palavras e as coisas‖ (obra de 1966) e ―A arqueologia do saber‖ (em 1969), onde o autor procura realizar uma arqueologia dos sistemas de procedimentos que objetivam produzir e fazer circular os enunciados, formulando regras de produção dessas práticas discursivas. A fase genealógica — onde Foucault realiza seus estudos sobre o poder — situou-se nos anos 70 e abrange suas obras mais conhecidas: ―Vigiar e punir‖ (de 1975) e ―História da sexualidade‖, volume I (em 1976). Aqui a proposta é avançar na análise sobre o poder disciplinar, que se exerce e produz capilarmente, pensando sua relação com os saberes produzidos a partir desse. Assim, disciplinar pessoas é por sua vez transformá-las em determinados tipos de sujeitos, no sentido de levá-los a agir em concordância com normas e cânones disciplinares. O autor abre um novo debate, com ―Segurança, território e população‖ (curso de 1977), onde nos provoca com outra modalidade de poder, o biopoder, que tem na população seu maior interesse. Somos, assim, colocados na condição de seres viventes, onde a biopolítica é um dispositivo de governo. A terceira fase de Foucault será apresentada em nossa subsequente nota de rodapé, p.23. 27 O biopoder é um poder que se exerce sobre os corpos vivos, não enquanto indivíduos, mas enquanto massa popular, enquanto população, que tem suas tendências e lógicas. São os corpos compostos que interessam. Esse poder não substitui as disciplinas, mas a complementam, como duas dimensões do poder disciplinar: anátomo política do corpo e biopolítica da população, constituindo a população como objeto de governo. De que se trata nessa nova tecnologia do poder, nessa biopolítica, nesse biopoder que está se instalando? Eu lhes dizia em duas palavras agora ha pouco: trata-se de um conjunto de processos como a proporção dos nascimentos e dos óbitos, a taxa de reprodução, a fecundidade de urna população, etc. São esses processos de natalidade, de mortalidade, de longevidade que, justamente na segunda metade do século XVIII, juntamente com urna porção de problemas econômicos e políticos (os quais não retorno agora), constituíram, acho eu, os primeiros objetos de saber e os primeiros alvos de controle dessa biopolítica. (FOUCAULT, 2005, p.289-290) Há uma vinculação entre poder, disciplinar e biopolítico, numa relação perpendicular uma com a outra. Um se constitui no interior do outro, são modelos, modalidades de poder diferentes, não se excluem, mas articulam-se um com o outro, uma vez que ambos são interfaces do poder biopolítico. Essa tecnologia de poder que incide sobre a população enxerga o homem como ser vivo, biológico, onde há uma regulamentação sobre o que se compreende por ―fazer viver e deixar morrer‖. É uma tecnologia que intervém sobre a vida biológica da população enquanto espécie, a partir de mecanismos regulamentadores do como se fazer viver, organizando e multiplicando a vida. Mas, ao final da década de 70, Foucault direciona suas atenções ao que ele definiu como a questão de como nos constituímos sujeitos. O autor compreende como uma complementação de seus estudos: mesmo quando ele debatia sobre o poder psiquiátrico ou o poder disciplinar, em suas relações com o saber e a verdade, a questão do sujeito estava presente. O ponto de partida deve ser a discussão sobre o que se compreende por sujeito. Ele nega a concepção de sujeito da filosofia iluminista, como algo dado, natural e preexistente ao mundo social, econômico e político, mas um sujeito que é constituído. Não há um sujeito transcendente a-histórico, portador de uma verdade e fundamento de todo conhecimento, mas alguém inserido na história e, portanto, fundado por ela. De outro modo, ―o que vemos como essência e como fundamentalmente humano não é mais do que o produto das condições de sua constituição.‖ (BARBOSA, 2014, p.20). O sujeito pode ser constituído por diferentes períodos históricos. Dizer que o sujeito é histórico significa dizer que este pode se tornar diferente das subjetividades vigentes e que 28 essa diferença se inscreve em seu próprio ser histórico. Assim diz Foucault: ―esforcei-me por sair da filosofia do sujeito por meio de uma genealogia que estuda a constituição do sujeito através da história.‖ (FOUCAULT, 1993, p. 205) No texto ―O sujeito e o poder‖, de 1980, Foucault faz referência à palavra sujeito e levanta uma precaução metodológica. A palavra sujeito teria dois sentidos, um que se referiria à ideia de estar sujeito a (alguém), sujeitar-se, e no segundo sentido, um ―sujeito preso a sua identidade e autoconhecimento‖ (FOUCALT, 1995, p. 235). Segundo Fonseca (2011) o sujeito é perene e, portanto, não existe e, por isso mesmo, o que se existe são diferentes constituições de sujeito que não são definitivas. Para Foucault, quando se acredita ter encontrado o homem, o que se encontra são práticas que conduzem os indivíduos às subjetividades. Para o autor o sujeito não é aquele que se encontra a partir de um fundamento universal, mas que se percebe agindo e pensando de acordo com as práticas e tecnologias de poder e saber de sua época, além de constituir tanto pelas subjetividades presentes nessa relação, como pela constituição de novas subjetividades (NOTO, 2009). A princípio, em textos como ―História da loucura‖ (de 1961), ―Vigiar e punir‖ (de 1977) e ―A vontade de saber‖, primeiro volume de História da sexualidade (em 1976) o autor analisa como se deu a constituição do sujeito moderno. Este sujeito é produto de uma multiplicidade de composições de força ou formas de poder: o disciplinar, que lida com o homem-corpo e o biopoder que trata do homem-espécie. Ambos os poderes tornam o indivíduo sujeitado, disciplinado e produtivos para a sociedade. Como já se disse, essas análises tem o objetivo de discutir o indivíduo constituído por práticas institucionais de dominação, a partir de estudos sobre os hospícios e as prisões, por exemplo, onde os sujeitos são demarcados por uma singularidade histórica como doentes ou delinquentes, uma constituição passiva dos sujeitos, como um modo de objetivação do sujeito. É preciso pensar a relação do biopoder com a formação dos indivíduos, pois é um poder que interfere na constituição das subjetividades. A biopolítica leva o sujeito a se ver e produzir um discurso sobre si mesmo a partir da normalização dos comportamentos. O poder biopolítico é um poder normalizador, assim como o poder disciplinar, que age sobre o que se compreende como normal e anormal, o que é ou não aceitável, o que é dito e aceito como verdade, garantindo a permanência daquilo que é considerado uma norma (FOUCAULT, 2008). Assim, através de discursos que são perpassados pelo poder biopolítico definem-se certos tipos de subjetividades, certos tipos de comportamentos normativos, sujeitados pelas 29 redes de poder e saber, ou seja, essas subjetividades estão atreladas a um saber produzido pelo biopoder e pelas suas normas, de forma que os discursos a respeito sobre o que somos nós se reconhecem dentro dessas normas. A forma como os indivíduos se constituem como sujeitos está articulada a determinações históricas do poder-saber que independem deles, sujeitando-se ao como deve relacionar-se consigo mesmo. É isso que passa a interessar Foucault: como nos tornamos sujeitos? Por quais instrumentos o indivíduo é levado a se reconhecer como sujeito? E como pensar essas constituições do sujeito para além das técnicas disciplinares e biopolíticas? Diante dessas práticas discursivas e não discursivas que compõem as formas de pensar e agir do sujeito, como pensar e agir de forma diferente? Ou mais precisamente: quais são nossos espaços de liberdade na constituição de nós mesmos? É preciso usar as formas de resistência, contraponto e complementação das relações de poder, como ponto de partida. Ela seria a denunciadora das formas como esse poder age e se estrutura, não somente pela sua representatividade estatal (FOUCAULT, 1995). Além disso, também seus mecanismos de poder individualizante (poder disciplinar, pastoral), bem como a forma de poder globalizante que enxerga na população outro ponto de análise (poder biopolítico). Sendo assim, o objetivo de Foucault é a busca por uma forma de ser, ―para nos livrarmos deste "duplo constrangimento" político, que é a simultânea individualização e totalização própria às estruturas do poder moderno‖ (FOUCAULT, 1995, p.239). Essa forma de análise leva menos à ideia de confronto, do que à ideia de governo, entendendo por governo a ação sobre a ação dos outros, ou, dito de outro modo, seria uma ―maneira para alguns de estruturar o campo de ação possível dos outros‖ (p. 245). Este termo governo é utilizado por Foucault para designar (...) a maneira de moldar, guiar, dirigir a conduta dos indivíduos ou dos grupos: governo das crianças, das almas, das comunidades, das famílias, dos doentes, dos loucos, das mulheres. Portanto, não é empregado por Foucault exclusivamente no mesmo sentido que adquire na Modernidade – o de gestão e de administração dos Estados –, mas apoia-se na significação que o termo governo tinha no século XVI, qual seja: um modo de ―estruturar o eventual campo de ação dos outros‖, como a ―conduta da conduta‖ (Foucault, 1995, p. 234). Falar em governo, e governo dos outros em específico, é falar sobre liberdade. Não há um confronto, pois um é elemento de existência do outro. Mas governar aos outros implica em ser capaz de governar a si mesmo, e é esse o ponto para se compreender as estratégias da realização de práticas de si, que levem ao processo de subjetivação. 30 Assim, a preocupação está na forma em como se dá esse governo, ou mais, na possibilidade de se escapar dessa arte de governar (FOUCAULT, 1990). Não querer ser governado de determinada forma leva à busca de novos caminhos para a prática de um autogoverno. O caminho para a subjetivação de si se daria pelo questionamento das verdades desse governo dos homens, verdades essas compostas por relações de poder/saber. Há uma relação interativa entre as técnicas de dominação (governo dos outros) e as técnicas do eu (governo de si), mas essas relações estão sujeitas às resistências. O processo de subjetivação pode ser compreendido aqui como uma forma de resistência, afinal as práticas de governo, dos outros e de si, carregam em si os instrumentos da liberdade. Dessa forma, em livros como os outros dois volumes da ―História da sexualidade‖, ―O uso dos prazeres‖ (de 1984) e ―O cuidado de si‖ (também de 1984), bem como em suas aulas e palestras, escritos na década de 80, o autor se volta para a moral sexual da Grécia e da Roma antiga, e anexa à sua obra, até então voltada à questão do poder e do saber, a concepção de um sujeito que produz subjetividades próprias e usa exemplos da cultura antiga, onde é possível encontrarmos testemunhos da importância dada a um cuidado de si, associada à preocupação com um conhecimento sobre si mesmo 13 . O objetivo aqui não é, de forma alguma, um retorno aos gregos, mas uma forma de apontar as possibilidades de transformação do presente, procurando pensar e conceber a noção de sujeito de forma diferente. Tem-se, então, um sujeito constituído pela subjugação às relações de poder e saber, sujeito passivo, mas que também é constituído como um sujeito autônomo e ativo através de sua liberdade. Há um deslocamento no conjunto da obra do autor (livros, cursos e aulas) para compreensão de uma constituição do sujeito que perpasse a uma ética fundada na autorreflexão sobre si mesmo, outra forma de constituição do sujeito, para além dos processos de disciplinamento e objetivação. Trata-se de inventar modos de existência, segundo regras facultativas, capazes de resistir ao poder bem como se furtar ao saber, mesmo se o saber tenta penetrá-los e o poder tenta apropriar-se deles. (DELEUZE, 1992, p. 116). O que se encontra nesses estudos foucaultianos é a possibilidade de liberdade para a formação e transformação de sujeitos éticos. É o fazer facultativo que torna possível pensar a 13 O terceiro domínio que interessa a Foucault diz respeito ao ser-consigo, ou uma fase ética que se deu nos anos 80, onde produziu os dois últimos volumes de História da sexualidade: ―O uso dos prazeres‖ e ―O cuidado de si‖ (ambos de 1984). Tal domínio trata da relação de cada um consigo próprio e de como se constitui e emerge nossas subjetividades. Ou seja, trata da ética entendendo-a como a "relação de si para consigo", onde é necessária uma análise dos modos de subjetivação que nos transformam em sujeitos. Àqueles que tiverem interesse em realizar leitura foucaultiana a partir desses domínios, sugere-se a leitura dos livros de Foucault: O governo de si e dos outros (curso ministrado em 1982-1983, no Collège de France - 2010) e Coragem da verdade (curso ministrado em 1983-1984, no Collège de France - 2011). 31 liberdade como condição ontológica de uma formação ética do sujeito. O autor se interessa pela forma como os gregos constituíam-se a si mesmos, pela forma como conjugavam o respeito às regras e suas liberdades, de escolherem e legitimarem essas regras. Mas, se, como já dito anteriormente, o modo de pensar de uma época se dá a partir das relações de poder e saber, e essas são tradicionalmente seguidas, é preciso também pensar que elas não estão engessadas na história, pois se assim fosse o modo de agir e pensar de um povo seria sempre o mesmo, o que não é verdade. Sabe-se, então, que é possível também, determinar novas formas de agir e pensar a partir de novas regras, constituindo-se regras de conduta que levem a um domínio sobre si mesmo. É no limiar da normatividade que se dá o espaço de liberdade, (...) quando o indivíduo é capaz de assinalar os limites de sua constituição histórica e normativa e dar a si mesmo um novo arranjo, uma nova ordem, uma nova forma; novas formas de subjetividade que respeitam os limites de suas constituições histórias, é certo, mas que, ao mesmo tempo, os ultrapassam, constituindo-se, em certa medida, independentes deles (NOTO, 2009, p.115 – grifos da autora). Liberdade e poder não são conceitos excludentes e não supõe o fim de uma e o início de outro. Em toda relação de poder que age sobre o indivíduo, que produz discursos e saberes, que normatizam singularidades também encontram espaços de resistências, onde se tornam possíveis a criação, a invenção de novas singularidades. A partir do conceito de sujeito como algo que não está dado, mas está em constante processo de formação é que se pode conceber uma participação ativa do indivíduo nessa constituição de si enquanto sujeito, num jogo de forças já dado, dentro de um espaço possível de liberdade. Não há uma contradição entre as relações de poder e a liberdade. Ao contrário, se há poder, há também possibilidades de liberdade aos sujeitos. É ter condições de olhar para si mesmo enquanto possível de um auto governo, como forma de resistência frente a subjetividades subjugadas, subjetividades modeladas por relações de poder e saber. Agora o sujeito constitui-se de forma ativa, fazendo a experiência de si a partir de um modo de subjetivação. Para Foucault há diferentes modos de subjetivação e ele dedicou-se a estudar os modos de subjetivação da cultura antiga para apresentar um sujeito livre que se torna ético a partir de um cuidado de si, de modo que a liberdade está atrelada a um autogoverno e técnicas de autodescoberta para um domínio de si. O termo subjetivação não é contraposição, mas forma de complementação à sujeição que perpassa os indivíduos nas tramas do poder disciplinar e biopolítico. A subjetividade é um processo, pois é constante a sua constituição. Segundo Noto (2009, p. 24) ―será 32 exatamente essa incompletude da forma da subjetividade que deixará em aberto um espaço possível para a constituição de novas formas de subjetividade, para a modificação e transformação daquilo que o sujeito é‖. Foucault pensa a subjetividade como uma atividade constante sobre si mesmo, nunca vista de forma definitiva e completa, mas em constante processo de transformação de si. Desse modo, o que interessa a Foucault é compreender essas formas históricas dos modos diversos que os indivíduos se constituem em sujeitos. Assim, a constituição da subjetividade compreende-se como uma relação que o indivíduo instaura com ele mesmo, ou como os sujeitos percebem a si mesmos, relações que são definidas de si para consigo, a partir de um (auto) trabalho que o capacite a conhecer mais a respeito de si. Somente um sujeito relativamente liberto de algumas determinações do poder –saber externas e já introjetadas pode tornar-se um sujeito do cuidado de si, cujo papel é questionar o sujeito moral que são da ordem do poder e do saber, ou seja, contra toda forma de submissão das subjetividades. Mas o que seria esse cuidado de si? O cuidado de si é um conceito fundamental e bastante complexo encontrado nos textos gregos (Platão, Sêneca, Plínio, Plutarco, Epicteto, Epicuro, entre outros), onde cuidado de si (gnôthi seautòn) é a ação de ocupar-se (e preocupar-se) consigo mesmo (FOUCAULT, 2010). Este conceito não deve ser confundido com a famosa prescrição délfica do conhecer-te a ti mesmo (gnôthi seautòn), pois essa prescrição se tratava de ser endereçado aos que iam ao templo consultar-se com os deuses e devia ser compreendido com espécie de recomendação relacionado ao próprio ato dessa consulta. Essa é uma questão ligada ao oráculo e como e o que devia ser perguntado aos deuses, e de forma alguma, pode ser compreendida como um cuidado de si mesmo. Também para os Antigos o gnôthi seautòn como conhecimento de si era fundamental e uma experiência intelectual acerca de si mesmo, como elemento epistemológico da relação que o indivíduo tem consigo mesmo, ou seja, ―estar atento ao que se pensa e ao que se passa no pensamento‖ (FOUCAULT, 2010, p.10) Foucault observa que em tais autores da antiguidade toda constituição de subjetividade passa pelo conhecimento de si, ou seja, um sujeito que deve conhecer a si mesmo, aquilo que faz consigo e com os outros, mas isso não é suficiente. É preciso também ser um sujeito capaz de ultrapassar esse tipo de conhecimento. 33 Assim, o cuidado de si enquanto um domínio ético tem também a dimensão das práticas onde os sujeitos se constituem como capazes de conhecer a si mesmo. Segundo Noto: Foucault parece inverter a tradicional questão do sujeito de conhecimento que coloca o sujeito como ponto fundador, original ou constituinte do conhecimento, e nos mostra que o indivíduo, para conhecer, deve, antes de tudo se constituir como capaz de conhecimento (2009, p.42). Durante quase toda a cultura grega, helenística e romana (do século V a.c. ao século V d.c.) a noção de epiméleia heautôu contribuiu para caracterizar uma atitude filosófica como princípio fundamental de conduta racional de vida. O cuidado de si, do qual o conhecimento de si é uma parte importante, refere-se a um princípio do domínio da ética, do domínio de uma elaboração de si mesmo, um princípio dentre o qual o conhecimento de si (gnôthi seautòn) é somente um deles. Então, Foucault descreve que no período antigo o sujeito é constituído como parte integrante de um conhecer a si mesmo a partir de suas formas de pensamento e conhecimento de si, bem como de práticas subjetivas de um cuidado de si para a constituição de um sujeito ético, ou em outras palavras, o homem se constituindo como sujeito daquilo que ele conhece. É importante ressaltar mais uma vez, que em contraposição à cultura cristã 14 , na cultura greco-romana o conhecimento de si encontra-se inserido em um contexto mais geral do cuidado de si, subordinado a esse, o que significa dizer que há um imperativo onde o sujeito age sobre si mesmo como um exercício por toda a vida, prescrições sobre as práticas de si, onde já não basta conhecer a si mesmo, mas exercícios que impulsionem à transformação e criação de si. Ou seja, o conhecimento de si com objetivo que leve a uma ação, a um pensar e agir de forma diferente, repensando regras e percebendo-se como uma obra de arte. É o conjunto de um conhecimento de si mais práticas de si que constituem o sujeito. O cuidado de si é um princípio geral, onde conhecimento de si e práticas de si são desenvolvidos para que o indivíduo normalizado se constitua como sujeito ativo de si. Para se constituir como um sujeito de conhecimento, ou seja, um sujeito que conhece a si mesmo é fundamental 14 Na cultura cristã o ―conhecer a si mesmo‖ passa a ser o elemento fundamental para a constituição do sujeito, como um conhecimento com fim em si mesmo, onde a subjetividade é vista como resultado de um procedimento epistemológico. O que se deve examinar não são as ações do sujeito, mas os pensamentos como necessidade de se conhecer a verdadeira substância destes, distinguindo os pensamentos puros e renunciando aos impuros e assim sendo, inspeciona-se cada mínimo pensamento sem jamais tomar posse daquilo que se pertence de fato: ser sujeitos da própria vontade, sem nunca constituir-se enquanto sujeito. Segundo Noto (2009, p. 55) ―o conhecimento de si é central para que o indivíduo possa contemplar a Deus e uma vez que essa contemplação nunca se realiza definitivamente, o indivíduo está em permanente clausura em seus pensamentos‖. 34 que este exerça sobre si algum tipo de trabalho, por procedimentos que o constitua enquanto tal. No pensamento filosófico, a noção de epiméleia heautôu aparece de forma diversa. A dimensão do cuidado de si, em sua forma socrático-platônica, está relacionada com o exercício do poder, governar a si mesmo para bem governar aos outros, um ocupar-se de si para levar ao governo dos outros. Aqui, o conceito de cuidado de si é uma questão estatutária, um cuidado de si como projeto de bom governo, um imperativo aos que querem governar. Não a todos os cidadãos, mas àqueles com boa formação, uma atividade dedicada aos jovens e sua relação com seus mestres, numa relação entre governar e ser governado. Ao jovem cabe a formação dentre a qual ele obtém o conhecimento de ocupar-se de si como forma de chegar à arte de bem governar aos outros. Nos séculos I e II da era cristã, há um deslocamento sobre o conceito do cuidado de si, onde há uma generalização desse imperativo, não mais apenas ao jovem que pretende governar, mas um ocupar-se de si como atividade a ser realizada por toda a vida, ou, nas palavras do autor, ―a epiméleia heautoû aparece como uma função geral de toda a existência‖ (FOUCAULT, 2010, p. 36), ou de outro modo, o cuidado de si ―não é mais um imperativo válido para um momento determinado da existência e em uma fase da vida que é a da passagem da adolescência para a vida adulta. Cuidar de si é uma regra coextensiva à vida‖ (p. 221). Foucault pontua que essa generalização é limitada para uma elite cultural e moral, ou mesmo àqueles ligados a fraternidades e religiões, que se separavam por categorias eruditas ou populares, mas que depois será reivindicada pelos filósofos. O cuidado de si não tem mais função específica de um governo dos outros, mas um ocupar-se consigo como fim em si mesmo, nem mesmo trata-se do plano das ideias, mas de ações reais que levem o sujeito em direção a si mesmo. Há uma busca pela autonomia do sujeito, onde o objetivo maior é o constituir seu eu, de modo a tornar-se senhor de si mesmo. O foco nesse caso são os exercícios, formas de atividades práticas, contínuas e regradas, condutas em relação a si mesmo. Este conceito de epiméleia heautôu se traduz por uma atitude do sujeito para consigo mesmo, onde este passa a se observar e conduzir seu olhar para seu interior. Não só isso, mas significa também ações, práticas e exercícios sobre si mesmo, que levem a uma modificação e transformação de sujeito de si. Enfim, com a noção de epiméleia heautôu, temos todo um corpus definindo uma maneira de ser, uma atitude, formas de reflexão, práticas que constituem uma espécie de fenômeno extremamente importante, não somente na história das representações, nem somente na história das noções ou das teorias, mas na 35 própria história da subjetividade ou, se quisermos, na história das práticas da subjetividade. (Ibidem, 2010, p. 12) Há uma relação entre o conceito de epiméleia heautôu com a verdade, uma vez que a ética é o domínio pelo qual nos relacionamos com a verdade das coisas. Para ter acesso a uma verdade sobre o sujeito é preciso um trabalho de si para consigo, a partir de uma transformação progressiva de si mesmo, ou seja, a verdade é uma construção permanente de si mesmo. Assim, não há um sujeito pronto, mas processos de subjetivação, produzindo suas próprias verdades ou assimilando verdades da sociedade e jogando com elas. Para o pensamento Antigo, é na relação consigo mesmo, numa relação de poder sobre si mesmo, que se encontra a verdade. Ao constituir-se enquanto sujeito de conhecimento é que o indivíduo tem acesso à verdade, ou seja, ao conhecer aquilo que se é torna-se possível se constituir como sujeito ético da verdade. A verdade passa a ser instituída e destituída pelos sujeitos por meio de práticas, essas práticas possibilitam ao sujeito o acesso à sua verdade, ao seu conhecimento. Não há uma busca pela verdade fora do sujeito, mas práticas que levem a sua própria verdade. Ou seja, não é um cuidar de si para se atingir a verdade transcendental, mas um cuidado de si como incorporação de uma verdade que é sua, como dar para si sua própria verdade. Não se trata de uma verdade daquilo que se é enquanto pensamento, mas uma verdade daquilo que é sé enquanto ação, daquilo que se faz e se deve fazer a si mesmo (FOUCAULT, 2010). Assim, para Foucault O conjunto das buscas, práticas e experiências tais como as purificações, as asceses, as renúncias, as conversões do olhar, as modificações de existência, etc., que constituem, não para o conhecimento, mas para o sujeito, para o ser mesmo do sujeito, o preço a pagar para ter acesso à verdade. (Ibidem, p. 15) Para isso é preciso uma áskesis que interligue o sujeito à verdade. Essa áskesis (ascese) não pode ser compreendida como práticas de renúncia, como na pastoral cristã (que levará o indivíduo a um movimento de renúncia sobre si mesmo 15 ), mas como forma de levar o sujeito a ser o que se é, numa relação de si para consigo. É como uma preparação, como procedimentos, a partir de práticas, que levem o sujeito a dizer a verdade sobre si mesmo. 15 A pastoral cristã, desde o século XVIII, é um dispositivo que põe o sexo a falar, a partir da prática da confissão, o sexo era aquilo que deveria ser confessado, e assim fixavam o que era lícito e ilícito. A partir do dispositivo do confessionário, o sexo era falado e visto, criando uma teia de saberes sobre o mesmo, e ao homem cabia a renúncia de certas palavras, a censura de todo um vocabulário e ações não condizentes com os dispositivos sexuais. Para mais informações, vale a leitura do livro: FOUCAULT, 2012. 36 Nessa àskesis, as práticas de si colocam o sujeito como fim de sua própria existência e como objeto da arte de viver. Neste trabalho, a arte, e especificamente a arte escrita, procura demonstrar uma expressividade que talvez a ciência tenha dificuldade de apresentar. É preciso compreender as relações do sujeito consigo mesmo a partir da noção de práticas de si. Para a constituição dos sujeitos faz-se importante o que Foucault nomeou como essas práticas de si: um conjunto de técnicas que levam o homem a falar a verdade sobre si mesmo, constituindo-se como sujeito daquilo que se conhece, bem como sujeito de uma conduta consigo mesmo no campo da ética. A noção de práticas de si está atrelada a ações, é verbo, ou seja, um cuidado de si como ação contínua, permanente e de atitude crítica, que leva a uma ação ética e política, de recusa em ser governado e na possibilidade de ultrapassar os limites desse governo, para uma arte de um governo de si. O ser passa a ser pensado como experiência e como problematização. Essa problematização do sujeito está atrelada a esse conjunto de práticas e técnicas de si. São essas práticas de si, enquanto contracondutas, e aquilo que resulta da constituição de um autogoverno que constituem subjetividades menos sujeitadas (FOUCAULT, 2014a). Essas práticas podem ser compreendidas como experiências racionais e regulamentadas que os homens realizam, onde há um caráter de análise e reflexão sobre esse modo de vida adotado, regulando condutas. Deve-se entender, com isso, práticas refletidas e voluntárias através das quais os homens não somente se fixam regras de conduta, como também procuram se transformar, modificar-se em seu ser singular e fazer de sua vida uma obra que seja portadora de certos valores estéticos e responda a certos critérios de estilo. (Ibidem, p. 16) Essas técnicas de si são diferentes a cada momento histórico, ou seja, estão ligadas a diferentes realidades históricas, diferentes práticas que constituem o modo de ser do sujeito. Isso pode ser compreendido a partir dos estudos feito por Foucault sobre as práticas sexuais gregas, voltadas para um maior ocupar-se de si, levando à prática do prazer e a uma autoconstituição e as práticas da moral cristã, onde as práticas sexuais são marcadas por confissões e purgações (FOUCAULT, 2014a), como será visto no terceiro capítulo. Esses textos gregos e romanos apresentam uma preocupação em compreender suas relações com o sexo e a sexualidade, a partir de um ―uso dos prazeres‖, demonstrando uma ética sexual austera (mas não repressora), que se adota a partir de algumas práticas ascéticas, tais como: desviar-se do prazer, manter-se fiel no casamento, praticar a abstinência sexual, entre outras, como algumas das recomendações para quem deseja ter acesso à verdade de si mesmo. Como fala Noto: 37 A austeridade sexual e, portanto, a constituição de um sujeito moral austero em relação ao sexo, poderia também se dar, por exemplo, por meio de outras práticas diferentes da decifração de si. Práticas de memorização, de controle, de renúncia dos prazeres ou de abstinência sexual teriam sido outras práticas possíveis para a realização de um mesmo tipo de sujeito: um sujeito purificado que domina seus impulsos sexuais. (2009, p. 35). Essa austeridade sexual, não proibitiva, mas facultativa, também passava por atividades de memorização, de renúncia dos prazeres como forma de constituir um sujeito do domínio de si (FOUCAULT, 2014b). A partir dos estudos sobre os gregos, Foucault percebe que os aphrodisia se constituem como ―campo de cuidado moral‖ (FOUCAUL, 2014a, p. 47) com o objetivo de vivenciarem de forma dinâmica o ato, o prazer e o desejo sobre o sexo e sobre as atividades a ele associadas. É a partir dessa reflexão dos aphrodisia que se faz possível, não uma interdição entre proibido e permitido sobre o sexo, mas sim regras de conduta que relacionam a prática sexual como uma prática moral. Aqui a ideia não é anular o prazer, mas encontrar uma dinâmica equilibrada entre prazer e desejo. A enkrateia pode ser compreendida como uma forma de domínio sobre si mesmo, uma forma de trabalho sobre si mesmo em que se desenvolve a temperança. Dito de outra forma, é a garantia da dominação dos desejos e prazeres, relação agonística consigo mesmo. Como o autor nos fala, a ―enkrateia se caracteriza sobretudo por uma forma ativa de domínio de si que permite resistir ou lutar e garantir sua dominação no terreno dos desejos e dos prazeres‖ (FOUCAULT, 2014a, p.77). Há uma batalha a ser travada, de si para consigo, onde se faz uso dos prazeres e desejos sem preconceitos, mas num combate de si para si pela moderação, para que essas forças não dominem o indivíduo, mas que levem a um governo de si. Não há uma negação do desejo, mas uma edificação pelo seu controle. Essa estética da existência enquanto ethos leva o sujeito a uma forma ética de viver, ou seja, não uma conformação com regras de conduta, mas uma relação com a verdade que o subjetiva, de modo a enxergar-se como uma obra de arte a ser produzida e admirada e a constituir-se como sujeito. É a tensão entre as relações e poder e a estética na qual a existência está imersa que formam eticamente o sujeito. Este sujeito é instigado a assumir uma atitude diante da vida, produzindo um ethos de existência. O domínio de si, o governo de si é uma forma de tornar sua produção de subjetividade ativa, diante do que é passivo, é tornar-se livre para constituir-se e isso é alcançado pelas práticas de si. As práticas de si, então, são exercícios ascéticos onde o sujeito pode se 38 elaborar, numa existência como uma obra de arte, para a formação de nosso ethos. Porém, essas práticas não são as mesmas, mas variam de acordo com a sua historicidade. Ao longo da história foram muitas e diferentes práticas que os indivíduos exercem sobre si para se constituírem como sujeitos de si. Nos textos da Antiguidade, 16 Foucault encontra uma série de regras, conselhos e práticas cotidianas como questões de exercício e reflexão sobre seu próprio interior. São práticas de exercícios e procedimentos mentais, bem como corporais, diferentes trabalhos que os indivíduos fazem sobre si mesmos, ou seja, práticas de constituição de subjetividades. Tais práticas de si podem ser exemplificadas como a análise dos sonhos, o cuidado com a alimentação e o corpo, o exercício com moderação, o regime do sexo, a meditação, a escuta e a fala, anotações de conversas, solicitação de conselhos, a leitura, a escrita, entre tantas outras. Interessa-nos sobremaneira a escrita como uma técnica de si como forma do indivíduo constituir-se como sujeito, como veremos a seguir. I.2 Nas curvas das palavras: A escrita como uma prática de si Segundo Foucault, para que o ser humano se constitua como sujeito é preciso exercícios permanentes voltados a um cuidado de si, a partir de práticas e relações onde o sujeito aproxima-se de sua verdade. Nesse processo de subjetivação do indivíduo este vai se constituindo historicamente como experiência. O sujeito aqui, como dito anteriormente, é composto de práticas discursivas, que são constituídas por relações de poder e saber. Mas a escrita 17 , para além desse poder que a perpassa, pode ser compreendida como saída ética, onde o sujeito produz-se a si mesmo. A escrita de si ganha destaques nos estudos de Foucault a partir do curso ―A hermenêutica do sujeito‖ (2010), como parte de uma áskesis grega, um adestramento de si para si, onde a escrita era vista como uma importante prática de si. Na cultura greco-romana a 16 Ao se falar desses textos faz-se referência a autores da antiguidade clássica como Artemiro e a importância da leitura e compreensão dos sonhos, Plutarco e Sêneca e suas referências a momentos de um voltar-se a si mesmo e ver a vida como um labor, Epicteto e as questões dos prazeres, uma alteridade sexual que não repressora, mas um domínio sobre si, Epicuro e Platão tratando a existência como exercício permanente, entre tantos outros. 17 Não será a primeira vez que Foucault irá debater a respeito da escrita. Em O que é um autor? (1992a) a escrita é posta em questão quando discute a respeito do que se pode compreender como autor e obra. Nesse texto, ele fala sobre uma escrita liberta do autor, para além de suas significações e seu campo discursivo, além do ato de escrever e de sua significação e sobre a singularidade da ausência do autor e das funções disciplinares de autor e obra. Será retornado esse tema em outro momento. Nessa pesquisa, o foco será num novo sentido da escrita, pensada originalmente pelo mundo grego, específico para os estudos foucaultianos, que é a escrita de si. 39 escrita de si tem relação com a vida ascética, a ―ascese como trabalho não apenas sobre os atos, mas, mais prec