1 CARTOGRAFANDO ATRAVESSAMENTOS PELO LEITO FÉRREO DE BAURU-SP CAROLINA SILVA TAROCCHI ORIENTAÇÃO: PROF. DR. HELIO HIRAO 2 Os lugares são histórias fragmentadas e isoladas em si, dos passados roubados à legitimidade por outro, tempos empilhados que podem se desdo- brar mas que estão ali antes como histórias à es- pera e permanecem no estado de quebra-cabe- ças, enigmas, enfim simbolizações enquistadas na dor e no prazer do corpo (Certeau, 1998, p, 189) 3 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” CAMPUS BAURU ARQUITETURA E URBANISMO CAROLINA SILVA TAROCCHI LINHA EM MOVIMENTO: CARTOGRAFANDO ATRAVESSAMENTOS PELO LEITO FÉRREO DE BAURU -SP BAURU 2025 4 CAROLINA SILVA TAROCCHI LINHA EM MOVIMENTO: CARTOGRAFANDO ATRAVESSAMENTOS PELO LEITO FÉRREO DE BAURU -SP Dissertação apresentada como parte dos requisi- tos para obtenção do título de mestre ao Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mes- quita Filho”, Campus Bauru Orientador: Prof. Dr. Hélio Hirao BAURU 2025 5 Tarocchi, Carolina Silva Linha em movimento: Cartografando atravessamentos pelo leito férreo de Bauru - SP / Carolina Silva Tarocchi. - Bauru, 2025 150 f. : il Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista (Unesp) , Faculdade de Artes, Comunicação e Design, Bauru Orientador: Helio Hirao 1. Cartografia. 2. Caminhar. 3. Patrimônio ferroviário. 4. Cidade Singular. I. Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Artes, Comu nicação e Design . II. Título 6 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA CCââmmppuuss ddee BBaauurruu ATA DA DEFESA PÚBLICA DA DISSERTAÇÃO DE MESTRADO DE CAROLINA SILVA TAROCCHI, DISCENTE DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO, DA FACULDADE DE ARQUITETURA, ARTES, COMUNICAÇÃO E DESIGN - CÂMPUS DE BAURU. Aos 06 dias do mês de março do ano de 2025, às 14h30min, no(a) meet.google.com/tkw- tdqx-dof, realizou-se a defesa de DISSERTAÇÃO DE MESTRADO de CAROLINA SILVA TAROCCHI, intitulada Linha em movimento: cartografando atravessamentos pelo leito férreo de Bauru-SP  . A Comissão Examinadora foi constituída pelos seguintes membros: Professor Doutor HÉLIO HIRAO (Orientador(a) - Participação Virtual) do(a) Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo / Universidade Estadual Paulista , Professor Associado EDUARDO ROMERO DE OLIVEIRA (Participação Virtual) do(a) Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo / Universidade Estadual Paulista - Faculdade de Arquitetura Artes Comunicação e Design - Câmpus de Bauru , Professora Doutora LILIAN DO AMARAL NUNES (Participação Virtual) do(a) Programa de Pós- graduação em Humanidades, direitos e outras legitimidades / Universidade de São Paulo. Após a exposição pela mestranda e arguição pelos membros da Comissão Examinadora que participaram do ato, de forma presencial e/ou virtual, a discente recebeu o conceito final:_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ . Nada mais havendo, foi lavrada a presente ata, que após lida e aprovada, foi assinada pelo(a) Presidente(a) da Comissão Examinadora. Professor Doutor HÉLIO HIRAO Faculdade de Arquitetura, Artes, Comunicação e Design - Câmpus de Bauru - AV. Eng. Luiz Edmundo Carrijo Coube , 14-01, 17033360 http://www.faac.unesp.br/#!/pos-graduacao/mestrado-e-doutorado/arquitetura-e-urbanismo/CNPJ: 48031918002925. APROVADA 7 AGRADECIMENTOS Este trabalho só foi possível graças ao aprendizado de me permitir sentir, escutar, ver, tocar e aprender. Em outras palavras, permitir-me ser um corpo aberto aos afetamen- tos. Foram inúmeras angústias, desconstruções, reconstruções, caminhos percorridos e conversas trocadas. A todas as pessoas que cruzaram meu caminho durante essa jor- nada, dedico este trabalho. Agradeço, em especial: Ao meu orientador, Hélio, pelo acompanhamento ao longo desses anos de pesquisa, pelas conversas enriquecedoras, pelos ensinamentos e pela prática coletiva e não hie- rárquica. E, principalmente, por sempre me lembrar, com seus gestos, que não existe arquitetura sem arte e expressividade. A todos os integrantes, ex-integrantes e amigos do grupo de pesquisa NePP, pelo cresci- mento coletivo e pela dedicação em se abrirem às descobertas. Em especial, às minhas grandes amigas, Ana Clara, Carolina e Marina. Ao meu amigo Guilherme, por aceitar se aventurar comigo nas andanças. Aos alunos e integrantes do grupo Memória Ferroviária, pelo compartilhamento de expe- riências durante as expedições e pesquisas. Em especial, ao Professor Eduardo Romero, pelo acolhimento. À minha família, aos meus pais, Marlene e Celso, por serem meu porto seguro, por me confortarem nos momentos mais difíceis e, acima de tudo, por me apoiarem incondicio- nalmente. E, sobretudo, a todos que encontrei durante as caminhadas descritas neste trabalho e que, em maior ou menor grau, compartilharam suas memórias, gestos, angústias e de- sejos. Por fim, à Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CA- PES), pelo apoio financeiro para a realização deste trabalho. 8 RESUMO A decadência do sistema ferroviário no interior paulista transformou muitos espaços ur- banos em hiatos na rede urbana. Sob o discurso do progresso, esses territórios são silen- ciosamente relegados ao abandono, classificados pela lógica capitalista como vazios, perigosos e improdutivos. No entanto, linhas desterritorializantes em constante movi- mento emergem nesses espaços, desafiando a cidade hegemônica e espetacular. Esses territórios tornam-se lugares de resistência tática, conflitos, pertencimento e memória, regidos por uma temporalidade própria, marcada pela lentidão. A pesquisa investiga dois complexos ferroviários da Companhia Paulista de Estradas de Ferro (CP) em Bauru - SP, cidade fortemente moldada pelo seu entroncamento ferroviário. O estudo analisa as di- nâmicas, vestígios e desvios desses espaços, explorando como linhas de ruptura influen- ciam novos processos de singularização. O desenvolvimento da pesquisa baseia-se no método da cartografia, fundamentado no pensamento rizomático de Deleuze e Guattari. O caminhar é adotado como procedimento metodológico, resgatando sua conexão com movimentos estéticos e artísticos, e se consolidando como uma forma de construção de um corpo sensível e vibrátil, capaz de apreender as diversas atmosferas urbanas. Palavras-chave: Cartografia, Caminhar, Patrimônio ferroviário, Cidade singular. 9 ABSTRACT The decline of the railway system in the interior of São Paulo has transformed many urban spaces into gaps within the urban network. Under the guise of progress, these territories are silently consigned to abandonment, classified by capitalist logic as empty, dangerous, and unproductive. However, deterritorializing lines in constant motion emerge within the- se spaces, challenging the hegemonic and spectacular city. These territories become places of deviation, resistance, conflict, belonging, and memory, governed by their own temporality, marked by slowness. The research investigates two railway complexes of the Companhia Paulista de Estradas de Ferro (CP) in Bauru - SP, a city whose urban growth and identity discourse have been profoundly shaped by its railway junction. The study analyzes the dynamics and temporal traces of these spaces, exploring how deterritoria- lizing lines influence new processes of singularization. The development of the research is based on the method of cartography, grounded in the rhizomatic thinking of Deleuze and Guattari. Walking is adopted as a methodological procedure, reclaiming its connec- tion with aesthetic and artistic movements, consolidating itself as a way of constructing a sensitive and vibrant body capable of apprehending the diverse urban atmospheres. Keywords: Cartography, Walking, Railway heritage, Singular city. 10 Se a aceleração se consolida Nos entres, a lentidão se reivindica. 11 Figura 1: “Saturno devorando um filho” de Francisco de Goya (1819-1823). Fonte: wikipedia.org. Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/ File:Francisco_de_Goya,_Saturno_devorando_a_su_hijo_(1819-1823).jpg 12 Saturno, ou Cronos, a personificação do tempo imortal, devora seus próprios filhos por medo de perder seu poder, especialmente o controle sobre o destino. Estaríamos hoje agindo como Cronos? Consumindo cada instante de forma insaciável e ansiosa? Presos a lógica acelerada do presente onipotente? Devoramos vorazmente o imediato, enquanto o futuro catastrófico é constantemente negado ou invisibilizado por uma lógica que glorifica o que é mais novo, relegando ao esquecimento as implicações do passado que construímos? Não seremos Cronos! Reivindico a lentidão, que insiste em habitar as brechas, como um gesto tático de nega- ção à voracidade do tempo acelerado. Este trabalho percorre uma visão da cidade e do patrimônio como movimentos vivos — não guiados pelo ritmo hegemônico, mas pelas cadências dos corpos lentos, que, em sua silenciosa resistência, reclamam seus espa- ços. 13 SUMÁRIO Introdução - Linha Desorientada.....................................................................13 Capítulo 1 – Linha Construída ........................................................................19 1.1 Cidade Sem Limites?............................................................................................19 1.2 A Companhia Paulista..........................................................................................24 1.2.1 Mecanismos disciplinares.......................................................................25 1.2.2 Declínio do sistema ferroviário.................................................................30 1.3 A Companhia Paulista em Bauru...........................................................................31 1.4 Recorte: os complexos em Bauru..........................................................................37 1.4.1 Complexo Central Paulista......................................................................37 1.4.2 Complexo Triagem Paulista......................................................................40 Capítulo 2 – Linha Emaranhada ......................................................................49 2.1 Labirinto do pensar.............................................................................................. 49 2.1.1 Linhas de mapeamento.......................................................................... 49 2.1.2 Do rizoma ao mapa aberto...................................................................... 53 2.2 Acompanhar processos....................................................................................... 57 2.2.1 A pesquisa intervenção.......................................................................... 57 2.2.2 O papel do cartógrafo............................................................................. 58 2.2.3 Subsídios para o cartófrafo..................................................................... 62 2.3 Caminhar é o meio.............................................................................................. 66 2.3.1 Por que caminhamos?............................................................................ 66 2.3.2 Flânancia.............................................................................................. 69 2.3.3 Flâneuse............................................................................................... 72 2.3.4 Das deambulações às derivas................................................................ 77 2.4 Caminhografia e Corpografia............................................................................... 86 2.4.1Transurbância........................................................................................ 86 2.4.2 O errante............................................................................................... 87 Capítulo 3 – Linha Movimento ........................................................................91 3.1 Complexo Central Paulista – Cartografias..............................................................92 3.2 Complexo Triagem Paulista – Cartografias.............................................................97 3.3 Linhas de Fuga ..................................................................................................102 3.3.1 Habitar linha ........................................................................................102 3.3.2 Feira do rolo.........................................................................................108 3.3.3 Sob os viadutos....................................................................................116 3.3.4 Natureza manifesta...............................................................................121 3.3.5 Vestígios de uma vila............................................................................127 Considerações – Linha Aberta ......................................................................134 Referências bibliográficas ..........................................................................140 14 INTRODUÇÃO Linha Desorientada 15 Introdução Este trabalho adentra o campo da formação de espaços e sua vinculação com os proces- sos criadores de subjetividades. Parte-se do entendimento de que esses aspectos estão profundamente imersos nos modos de produção hegemônicos, os quais regem a forma- ção dos territórios, impondo forças e estruturas temporais específicas. Reconhece-se que, se por um lado, a produção da cidade é resultado das relações de poder, por outro, a própria construção do espaço configura e (re)produz essa estrutura, condicionando os processos de subjetivação capitalísticos (Guattari; Rolnik, 1996). Sintetizando brevemente as relações de tempo e poder e suas materializações no es- paço, Rago (2015), retoma o entendimento de Foucault (1977) e a emergência da socie- dade disciplinar, indicando que a arquitetura e o urbanismo, a partir do final do sécu- lo XVIII, assume contornos que visavam suprir a demanda de vigilância e controle. Na cidade disciplinar, a arquitetura da vigilância desempenha um papel central, impondo um tempo rigorosamente regulado e controlado. Nesse contexto, “o poder se encarrega de todos os momentos da vida dos cidadãos, evitando fugas, desvios, escapes impre- visíveis, encontros inesperados e indesejados, contestações e revoltas” (Rago, 2015, p. 24). Esse processo culmina na produção dos “corpos dóceis” — corpos moldados para serem úteis, produtivos e submissos, que internalizam a obediência e a disciplina como hábitos valorizados e naturalizados, consolidando o controle como parte intrínseca de sua existência. O tempo rigidamente regulado da sociedade disciplinar estava em consonância com uma ordem temporal característica da modernidade. De acordo com Hartog (2023), as ordens de tempo são estruturas imperativas que variam conforme o contexto, lugares e épocas, às quais estamos submetidos sem sequer perceber. A partir do século XVIII, pre- dominou uma ordem temporal centrada no “horizonte de expectativa”, marcada por um olhar vanglorioso voltado para um futuro idealizado. O discurso dessa ordem futurista foi sustentado pela ideia de progresso, que se tornou um pilar do pensamento hegemônico. Muitos pensadores questionaram os riscos e as mazelas associados ao ideal de futuro dominante. Recorda-se Benjamin (2012 [1940]), que em seu último escrito, revelou como o discurso do progresso atuava como uma força destrutiva, ocultando as ruínas do pas- sado para legitimar sua própria narrativa. Se a sociedade disciplinar e a ordem do tempo pautada no futuro dominaram o pensa- mento hegemônico da modernidade, a partir de meados do século XX observa-se uma transmutação desse regime. O discurso hegemônico passa a ser orientado por uma so- ciedade do controle, como aprofundado por Deleuze (1998), ou por uma sociedade de desempenho, como descrita por Han (2010). O regime neoliberal rompe com a disciplina tradicional, promovendo uma produção contínua e exigindo do indivíduo flexibilidade, multifuncionalidade e autogestão. O “corpo dócil” de Foucault dá lugar ao “homem fle- xível”, que deve administrar seu tempo de forma eficiente, enquanto as fronteiras entre lazer e trabalho se dissolvem. 16 A ordem temporal também sofre uma transmutação, passando do futuro idealizado para um presente insaciável. Hartog (2023) propõe o conceito de presentismo como uma nova configuração do tempo, onde o presente se coloca à frente, tornando-se onipresen- te e onipotente, instaurando uma tirania do imediato. Nesse contexto, a cidade genérica, analisada por Koolhaas (1995), se apresenta como um espaço cada vez mais homogê- neo, intimamente ligado à ideia de junkspaces, que “ignora o envelhecimento: só co- nhece a autodestruição e a renovação local, ou, então, uma precariedade habitacional ultrarrápida” (Hartog, 2023, p. 15). No presentismo, observa-se uma transformação in- cessante do espaço urbano em busca de algo cada vez mais novo e inédito, criando um ciclo de efemeridade que apaga as marcas históricas. Quando essas marcas existem, estão sujeitas ao acaso e ao abandono, sendo destinadas à autodestruição ou a projetos de cenários urbanos voltados ao turismo ou ao consumo. Tais noções se atrelam ao que Jacques (2004) denomina de espetacularização urbana contemporânea, um processo que envolve a predominância imagética e de consumo na configuração das cidades brasileiras. Nesse contexto, os patrimônios urbanos são tra- tados como cenários, ou seja, estáticos, rígidos e embelezadores, funcionando como meros espaços de consumo, desvinculados dos sujeitos que usufruem efetivamente desses espaços e que, por consequência, lhes conferem seu significado simbólico. Ao refletir sobre o tempo imediatista e a aceleração compulsória que permeiam tanto o comportamento humano quanto a materialização do espaço, aborda-se também a per- da da capacidade de nos reconhecermos como seres que vivenciam a duração1. Essa compreensão, que deveria emergir de uma vivência mais orgânica do tempo, é obscu- recida por uma aceleração constante, onde cada instante é rapidamente consumido e substituído. Esse ritmo frenético nos distancia do campo do acontecimento e da experi- ência, como possibilidades de pensar criticamente o passado e reinventar formas inven- tivas de futuro. Essas considerações permitem compreender os traçados férreos urbanos do oeste pau- lista e seu patrimônio ferroviário como ruínas da modernidade, cujas formas adquiriram contornos intrigantes ao longo de sua formação e posterior decadência, refletindo a con- figuração desses espaços na cidade. Inicialmente, o traçado férreo que se dirigia para o oeste do estado representava um dis- curso de progresso, levando aos espaços “não civilizados” o futuro idealizado da moder- nização. Esse ideal se concretizou na forma como a ferrovia exerceu um papel determi- nante e impositivo na configuração espacial urbana dessas cidades e funcionou como um modelo para o discurso dominante do progresso. Tais aspectos podem ser observa- dos, por exemplo, na imponente grandiosidade das estações ferroviárias e na edificação 1A duração tratada aqui, se volta ao entendimento bergsoniano. “Trata-se de uma “passagem", de uma "mudança”, de um devir, mas de um devir que dura, de uma mudança que é a própria substância” (Deleuze, 1999, p. 43). 17 de vilas ferroviárias, que se apresentam como representações visíveis de um trabalho disciplinado e da forma como a hierarquia se consolidava de maneira perceptível na or- ganização dos espaços. Ao passar pelo processo de decadência, já na metade do século XX, observa-se a trans- mutação de um espaço antes considerado eficaz para um espaço em degradação e de aparente inutilidade. Não mais integradas nas novas dinâmicas econômicas, as linhas férreas desativadas passam a constituir, nas cidades, uma cicatriz composta por cama- das históricas complexas. Sob a perspectiva da cidade hegemônica, com sua lógica de renovação e utilidade, os traçados férreos urbanos são agora enquadrados como lugares vazios, marcados pelo estigma do abandono, que visa eliminar e transformar esses es- paços, considerados irrelevantes, de acordo com a lógica da cidade formal, acelerada e imediatista. Todavia, esses espaços residuais e abandonados também acolhem práticas e corpos que, assim como eles, são deixados de lado pela cidade produtivista, ou melhor, ativida- des que preferem ser ocultadas a serem enfrentadas. Esses locais refletem um circuito externo à lógica da cidade formal, onde se formam territórios de conflito, seja de maneira direta ou tática, constituindo áreas marginalizadas e de resistência, muitas vezes invisí- veis ao olhar comum. Por isso, os leitos férreos urbanos inativos passam a se constituir também como um cenário de transgressão, abrigo de uma temporalidade distinta, mul- tifacetada e lenta, assim como de corpos e práticas singulares que desafiam a ordem estabelecida. Desse modo, quando tais espaços são vistos sob outras perspectivas, que não o da obsolescência, revelam-se como potentes mecanismos de fuga às lógicas do- minantes, um espaço que abriga tempos desorientados. Essas observações estão relacionadas às questões levantadas por Solà-Morales (2013) ao descrever o conceito Terrain Vague, termo de difícil tradução, mas que engloba as porções de solo urbano com limites precisos no qual a relação de vazio não denota a uma essência negativa, mas soma-se ao sentido de liberdade e expectativa. Estes luga- res apresentam-se como externos ao circuito produtivo das cidades, tornando-se estra- nhos e esquisitos, pois é o espaço do outro, do diferente, que muitas vezes é descoberto em nós mesmos. Terrain vague coincide com a continuidade, não a da cidade legitima- da e homogênea, mas a do tempo livre, dos fluxos, das camadas históricas sobrepostas. O título do trabalho “Linha em Movimento: Cartografando Atravessamentos pelo Leito Férreo de Bauru-SP” apresenta, em primeiro plano, o conceito de “Linha em movimento”. Este termo faz alusão tanto à linha férrea que atravessa espacialmente a cidade quanto a uma reflexão crítica sobre a percepção comum de que esse espaço estaria atualmente vazio ou estático. Ao enfatizar o “movimento”, o título sugere que dinâmicas e interações continuam a ocorrer nesse território, desafiando a ideia de inatividade e revelando sua vi- talidade e transformações. Em outro sentido, o título também reflete a vertente metodo- lógica da pesquisa, que se fundamenta no movimento e na experiência do caminhar. Ao caminhar e experimentar os territórios, o pesquisador se posiciona de forma ativa, tra- 18 çando novas linhas que se entrelaçam e dialogam com o percurso original do leito férreo. Ressalta-se o movimento, não em oposição ao estático nem como algo associado ao insaciável, mas como uma realidade que persiste e existe por si só, e que, por isso, não pode ser ignorada. Jacques (2011), vai descrever o espaço-movimento, como espaços que estão em transformações contínuas, seriam espaços em fuga. Esses espaços es- tariam indissociáveis a seus atores (sujeitos da ação), que tanto são os que percorrem como os que constroem e transformam tais espaços continuamente. Assim, a pesquisa adentra parte do leito férreo da cidade de Bauru-SP, observando como a imposição de um discurso de progresso esteve atrelado a chegada das ferrovias e como tal marcou a formação do espaço urbano dessa cidade, mas que, com a decadência do sistema ferroviário, esses espaços se comportam hoje e se materializam através de uma nova lógica de tempo e de produção. Para sua realização, o estudo fundamentou-se no método da cartografia (Escóssia; Kastrup; Passos, 2009), que, em sua abordagem de hó- dos-metá, destaca a importância de estar em constante processo. Essa perspectiva pro- move um conhecimento mais dinâmico e aberto, que se adapta aos ritmos e movimen- tos dos territórios em estudo. Em consonância com a cartografia adentra-se o recorte de estudo pelo caminhar como um procedimento metodológico, revisando as práticas artísticas que viam no caminhar citadino uma forma de criação crítica. O objetivo da pesquisa é compreender as dinâmicas, ambiências e temporalidades que permeiam dois complexos ferroviários da Companhia Paulista localizados na cidade de Bauru, designados como Complexo Ferroviário Central da Paulista e Complexo Ferrovi- ário Triagem Paulista. Para atingir esse propósito, foram definidos os seguintes objetivos específicos: - Realizar um levantamento histórico, bibliográfico e iconográfico sobre a chegada da fer- rovia em Bauru, evidenciando como ela sustentou o discurso de progresso e se alinhou aos paradigmas das dinâmicas sociais e espaciais da época. - Contextualizar os dois complexos de estudo, destacando sua localização na malha ur- bana, os edifícios que os compõem e as funções desempenhadas ao longo do tempo, até sua configuração e uso na atualidade. - Efetuar uma revisão bibliográfica sobre a metodologia que orienta a pesquisa, desta- A ideia é paradoxal: como é possível conservar o que se move, patrimonializar o movimento? Voltamos a Bergson, ou seja, à ideia de que o movimento no espa- ço só pode ser conservado se não for dividido, cortado como o próprio espaço. [...]. Isso nos leva a pensar na noção de patrimônio de outra forma que não a da consolidação cultural dentro de uma lógica conservadora de museificação. O próprio movimento pode ser proposto como patrimônio a ser conservado (Jac- ques, 2011, p. 154). 19 cando a proposta de uma cartografia voltada à criação de um mapa aberto, articulada a uma abordagem do caminhar como procedimento metodológico. -Explorar o recorte do estudo por meio da prática metodológica, propondo uma experi- mentação de mapeamento expressivo do espaço, com o objetivo de evidenciar as dinâ- micas singulares emergentes ao longo do processo. Dessa forma, o trabalho se organiza em três capítulos: O primeiro capítulo “Linha construída”, recapitula um breve histórico sobre a cidade de Bauru - SP, enfatizando a atuação da Companhia Paulista de Estradas de Ferro. No capí- tulo, discute-se como a construção da “cidade sem limites” está atrelada a um discurso progressista típico do século XX e da sociedade disciplinar industrial. Em diálogo a esse processo, o capítulo também destaca o surgimento de movimentos críticos e reivindica- tórios que questionaram as imposições dominantes, buscando contestar as estruturas de poder e suas implicações na vida social e urbana. O segundo capítulo “Linha emaranhada” enfatiza a metodologia buscada na pesquisa, dialogando com a pretensão de entender novas formas de leituras urbanas, rastreando uma aproximação com um mapeamento das linhas dos acontecimentos e das experiên- cias. Essa perspectiva penetra o campo da micropolítica e da produção da subjetividade e se vincula ao ato de caminhar pelos espaços urbanos banais como forma de produzir um corpo-pesquisador vibrátil e crítico. Trata-se de um estudo que explora as linhas tra- çadas no cotidiano, linhas rizomáticas que não seguem pontos predeterminados, mas sim o percurso de um conhecimento em constante transformação, fluido e mutável. O terceiro capítulo, intitulado “Linha Movimento”, aborda a parte prática da pesquisa, detalhando o processo de imersão nos espaços estudados. Nele, são descritas as práti- cas de caminhada e os encontros que foram mapeados ao longo de 2023 e nos primeiros meses de 2024. Essa seção culmina em uma análise sobre as linhas de fuga, entendidas como multiplicidades contra-hegemônicas que atravessam movimentos táticos, memó- rias ocultas e a rica banalidade da vida cotidiana. A análise se expande para discussões sobre o patrimônio habitado encontrado, investigando como o traçado ferroviário conti- nua a ser ativado por essas zonas de conflito e resistência. Por fim, são apresentadas as conclusões da pesquisa, nas quais são discutidas as ques- tões levantadas ao longo do estudo, abordando também as in(conclusões) que perma- necem em aberto. Esse espaço de reflexão propicia uma discussão sobre os resultados obtidos e as questões que surgiram durante o percurso tortuoso da pesquisa. Como pro- põe o próprio estudo, não se busca fornecer respostas definitivas, mas sim delinear inda- gações que estimulem o exercício de uma experimentação aberta e difusa, convidando à continuidade da reflexão e da investigação. Boa leitura. 20 CAPÍTULO 1 Linha Construída 21 1. LINHA CONSTRUÍDA A formação e consolidação da cidade de Bauru-SP esteve profundamente entrelaçada à história das cidades que surgiram no contexto do avanço da produção cafeeira no oeste do estado de São Paulo. Esse processo de adentramento “civilizatório” foi fortemente influenciado pela promulgação da Lei de Terras de 1850, que consolidou a vinculação da terra à propriedade privada. Nesse cenário, diversas práticas de apropriação ilegal de terras devolutas tornaram-se comuns, incluindo grilagens e aquisições irregulares, muitas vezes realizadas sem a ocupação legítima. O progresso imposto foi marcado por violência e derramamento de sangue. Os conflitos entre indígenas e invasores eram fre- quentes, resultando em atos violentos que transformavam a terra: de um meio essencial para a sobrevivência em uma mercadoria manchada de sangue. Inserida nesse contexto, surge a cidade de Bauru, que adquiriu sua autonomia formal- mente por meio da Lei Estadual nº 428, de 1º de agosto de 1896 (Ghirardello, 2020). Essa autonomia fortaleceu os interesses da elite latifundiária bauruense, que passou a admi- nistrar diretamente a nova cidade, reproduzindo o típico modelo coronelista da Primeira República. As políticas voltadas para a implantação das ferrovias tornaram-se prioritá- rias, refletindo os interesses voltados ao progresso local. Em 1905, a Companhia Soro- cabana foi a primeira a se estabelecer em Bauru. No mesmo período, iniciou-se a cons- trução da linha da Companhia Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, com os primeiros 100 quilômetros inaugurados em 1906. Posteriormente, em 1910, a Companhia Paulista tornou-se a terceira empresa ferroviária a se instalar na cidade (Ghirardello, 2020). 1.1 Cidade sem limites? Ao longo da história de Bauru, diferentes slogans foram predominantes, cada um refletin- do a representação construída pela elite local em respectivos períodos. Identificam-se cinco slogans associados à cidade: “Arraial da Boca do Sertão” (1880-1890); “Sentinela Avançada do Sertão” (1900-1910); “Metrópole Noroestina” (1906-1925); “Capital da Terra Branca” (1925-1940); e “Cidade Sem Limites” (1940-). O último slogan, “Cidade Sem Li- mites”, continua sendo associado à cidade até os dias atuais. Essas representações são totalizadoras, ou seja, correspondem a um discurso adotado pela elite de Bauru para promover uma visão glorificada da cidade, vinculando uma no- ção de identidade ao progresso. Essa abordagem tende a impulsionar uma visão única e excludente, ignorando e apagando aspectos contraditórios que se tornam evidentes quando se revela o que está por trás das perspectivas de crescimento e desenvolvimen- to. Os slogans dos primeiros períodos da formação da cidade de Bauru — “Arraial da Boca do Sertão” (1880-1890), “Sentinela Avançada do Sertão” (1900-1910) — representam uma visão de avanço civilizatório que glorifica as figuras dos pioneiros. Esses personagens eram vistos como os responsáveis por desbravar o sertão, uma área inóspita e carente 22 de um processo civilizatório. A própria ideia de sertão tendia a direcionar uma imagem de atraso, ignorância, selvageria em contraste com o avanço. Nesse contexto, a figura dos pioneiros foi associada à imagem dos coronéis, que eram destacados pelos seus enobrecedores feitos em prol do desenvolvimento da região. Essa associação não se limita apenas à cidade de Bauru, mas está profundamente li- gada a várias cidades do interior paulista. Ela reflete os desdobramentos do período da Primeira República, quando o crescimento e a formação das cidades no interior paulista estavam intimamente associados às oligarquias agrárias. Losnak (2004), destaca a pers- pectiva memorialista muito adotada durante o século XX, na qual se privilegiava a figura do pioneiro e seu papel civilizatório. O autor cita, por exemplo, o papel da imprensa local, que era a principal difusora dos escritos sobre a história de Bauru, ele cita nomes de es- critores como: Alcides Silva, Correia das Neves, Carlos Fernandes de Paiva, Gabriel Ruiz Pelegrina e Luciano Dias Pires. Essa perspectiva histórica serviu como um mecanismo para justificar as graves violên- cias cometidas pelos “pioneiros” e pelas grandes companhias ferroviárias em nome do progresso. Essa visão não só minimizava o massacre da população indígena, mas tam- bém encobria a exploração severa dos trabalhadores nas ferrovias, que enfrentavam condições precárias e perigosas. É importante destacar que o discurso do progresso não se manifestou apenas em nar- rativas e documentos, mas também se refletem em inúmeras homenagens nas cidades paulistas. Monumentos, nomes de vias, praças e edifícios institucionais, como escolas e hospitais, são frequentemente dedicados a figuras e eventos que perpetuam essas perspectivas, solidificando sua presença no espaço urbano. São diversos os exemplos de homenagens que destacam os nomes de coronéis e engenheiros ferroviários, figuras fortemente vinculadas aos interesses da antiga oligarquia. Para Hatuka (2017), grupos sociais -famílias, organizações políticas e religiosas e outras comunidades - desenvol- vem estratégias para especializar e manter sua imagem. Uma estratégia é a homenagem, criação de monumentos que constroem memórias e visam lembrar o poder social de um grupo. “Muitas vezes a homenagem é criada para lembrar uma versão formal (nem sempre concordante) de um acontecimento, pessoas ou ambos” (Hatuka, 2017, p.52). O slogan “Metrópole Noroestina” (1906-1925), evidencia o papel marcante da constru- ção da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, transformando o antigo sertão em uma cida- de próspera e influente, a metrópole da noroeste. Entretanto, o progresso criado pela fer- rovia foi construído a base de processos marcadamente violentos. Segundo Ghirardello (2002), as condições de trabalho dos operários envolvidos na construção da linha eram subumanas, com jornadas diárias de dez horas, sem nenhum dia de descanso. Além dis- so, os operários se viam atrelados a um sistema de dependência, eram forçados a com- prar bens e suprimentos em armazéns vinculados ao empregador, onde se endividavam. O avanço da construção do leito férreo também foi responsável pelo extermínio da popu- 23 população indígena que habitava a região. Neste cenário, reaparecem as tropas de bu- greiros, contratadas pela companhia ferroviária para matar os habitantes das áreas. As respostas indígenas eram marcadas por ataques as obras, que lutavam com o propósito de preservar sua independência e seus domínios. A resistência era forte, através das lu- tas intensas em guerrilhas, emboscadas e retiradas. Entretanto, o poder de fogo dos bu- greiros, combinado com métodos como envenenamento de alimentos e fontes de água, além da propagação deliberada de doenças como a varíola e os massacres durante inva- sões de aldeias, culminou na morte exacerbada dos povos originários (Lima, 1978). Criado em 1910, o Serviço de Proteção ao Índio e de Localização do Trabalhador Nacio- nal (SPI), que tinha como nome de frente o Coronel Candido Mariano de Silva Rondon, marca o processo de uma “pacificação”. A “pacificação” também estava vinculada a um processo de “civilizar” a população indígena, ou seja, tentar enquadrá-los nos paradig- mas da sociedade branca. A “pacificação” na região ocorreu em um momento em que a população indígena já estava com seus números extremamente reduzidos e suas forças amplamente enfraquecidas pelo violento processo promovido pela construção da fer- rovia. “A “pacificação” valorizara também, notavelmente, o preço da terra, permitindo avultados lucros na sua comercialização” (Lima, 1978, p. 190). O choque violento é intrínseco ao avanço das forças capitalistas e, por meio dessas ações, afirma-se o progresso civilizatório. O extermínio indígena era glorificado pelas companhias ferroviárias e por aqueles que viam nisso a vitória do progresso sobre a sel- vageria. Todavia era a civilização que se dilacerava por si mesma: o maior número de mortes nas obras resultava das péssimas condições de trabalho, ultrapassando 1.600 óbitos (Ghirardello, 2002). Nessa fase, o movimento operário começou a lançar campa- nhas para boicotar a Noroeste e protestar contra as condições desumanas de trabalho promovidas pela empresa ferroviária, resultando na primeira greve em 1913. A chegada das ferrovias intensifica o processo econômico e urbano da cidade de Bauru, o entroncamento ferroviário composto pelo encontro das três companhias, estabelece elementos que motivam o desdobramento do setor terciário, voltado ao oferecimento do comércio e de serviços. Por consequência, o número de habitantes saltou de “7.815 habitantes em 1900, para 19.000 em 1907 e 35.000 em 1922” (Losnak, 2004, p.63). Em primeiro momento, Bauru fortaleceu-se como ponto de conexão, contribuindo para a chegada de muitos passageiros. Muitos desses permaneceram em Bauru, consideran- do as perspectivas de trabalho na ferrovia. Posteriormente, conforme o crescimento e prolongamento das linhas ferroviárias e o estabelecimento do papel de transporte e co- municação, criaram-se povoações em cada estação, compreendidas por trabalhadores em geral, loteadores, comerciantes e empresários que buscavam novas oportunidades (Losnak, 2004). Para Inoue (2016), além de mercadorias e pessoas, a ferrovia transportou ideais, valores e comportamentos. O modo de vida urbano é um desses elementos, em Bauru, por 24 exemplo, após a entrada da ferrovia, observou-se o surgimento de infraestruturas, como a instalação de serviços de telefone (1907), água e esgoto (1910) e luz elétrica (1912) (Losnak, 2004). Dentre as alterações derivantes da chegada da ferrovia, destaca-se o au- mento do custo de vida, refletido no acesso à terra e à moradia. De acordo com Losnak (2004), o rápido crescimento da cidade neste período inicial, começou a ser vinculado posteriormente como o termo “capital”. O sertão inóspito, já explorado pelos pioneiros, começou a ganhar a aparência do progresso. O desenvolvi- mento passou a ilustrar uma imagem de crescimento que se almejava expandir continu- amente, mostrando sua influência. Na década de 1920 surge o slogan “Capital da Terra Branca” que agregava a alusão do solo arenoso da cidade com a intenção da elite local de vincular a importância de Bauru a uma imagem de capital regional. A partir da década de 1930, o Brasil enfrentava a decadência na produção cafeeira, jun- tamente com o início da intervenção do Estado na regulação das relações sociais de produção e o incentivo à industrialização e ao capital industrial. Em reflexo, a cidade de Bauru passa a abrigar a indústria SANBRA, que se instaura nas proximidades da linha férrea. Assim, Bauru mantem sua estabilidade econômica a partir da produção algo- doeira e através do setor terciário, já que a ferrovia também potencializava esse setor. Esse novo cenário também passa a induzir um movimento de reestruturação urbana na cidade. Com a transição das atividades agrícolas para as industriais, intensificou-se a chegada de operários e novos trabalhadores, aumentando a demanda por moradias e, consequentemente, a expansão da malha urbana (Catelan, 2008). Vinculado à nova imagem da industrialização, o art déco emergiu como a principal ex- pressão desse movimento na região do oeste paulista. Essa linguagem não só captura- va a visão futurista da época, mas também atendia às necessidades econômicas, uti- lizando materiais nacionais e oferecendo menores custos devido à sua simplicidade e eficiência, em contraste com o estilo eclético, por exemplo. Nesse contexto, em Bauru destaca-se a construção da nova estação da NOB, projetada com tal linguagem. Apesar de pertencente a Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, o prédio também abrigaria as ativi- dades da Estrada de Ferro Sorocabana e da Companhia Paulista de Estradas de Ferro. A grandiosidade da nova edificação impunha-se na cidade como um símbolo da nova fase do progresso. Anos mais tarde, ainda com a pretensão de vincular a cidade a uma ideia de grandiosida- de, surge o slogan “Cidade Sem Limites” escrito pela primeira vez no poema de Euzébio de Carvalho Guerra, publicado em 1953 no jornal “Diário de Bauru”. Nas palavras de Los- nak (2004, p. 71): “Guerra incorporou e manteve a tradição, [...], de realçar o constante arrojo aventureiro dos pioneiros, produzindo a incessante transformação de crescimento da cidade e revelando as potencialidades ilimitadas a ela”. A partir daí, o slogan passou a representar as vontades políticas locais desenvolvimentistas. Exemplo disso, foi que em 1956 assumiu a prefeitura de Bauru o empresário Avallone Junior, que além de ser dono do Diário de Bauru era um empresário no ramo imobiliário, responsável pela implantação 25 Estas são duas fotografias interessantes retiradas durante a década de 1930, período da construção da nova Estação Central de Bauru, finalizada em 1939. A primeira imagem mostra a fachada do novo edifício com os trabalhadores posando sobre a marquise. A segunda fotografia exibe a nova estação ao lado da antiga estação da Noroeste, evidenciando a disparidade de dimensões entre os dois edifícios e a grandio- sidade da nova construção. Figura 2: Estação Central de Bauru – década de 1930 Fonte: Acervo Museu Ferroviário Regional de Bauru Figura 3: Estação Central de Bauru II – década de 1930 Fonte: Acervo Museu Ferroviário Regional de Bauru 26 de loteamentos urbanos na cidade (Catelan, 2008). Nos próximos anos, o conceito de modernidade e progresso continuará sendo uma diretriz fundamental, com o slogan “ci- dade sem limites” permanecendo amplamente utilizado e associado à cidade de Bauru. Losnak (2004) vai enfatizar que, entre 1957 até meados nos anos 1970, a produção dos escritos memorialistas se difundiu e se consolidou, segundo o autor essa perspectiva da história local foi usada como fonte oficial, perpetuando uma visão tradicional e dominan- te totalmente ligada ao discurso de desenvolvimento e progresso. Essas versões não só legitimavam uma versão de passado, mas interligava as pretensões do momento em que estavam sendo escritas, legitimando projetos político-sociais que foram sendo constru- ídos para a cidade, refletindo-se sobre a espacialização urbana. Entretanto, apesar de dominantes, essas perspectivas não era unanimes, os grupos su- balternos da cidade, que passaram por processos de controle e exclusão, persistiam contradizendo as visões propagadas pela elite local. Nesse sentido, o movimento de opo- sição que teve participação massiva dos trabalhadores ferroviários, exemplifica como os regimes de progresso não eram tão pacíficos e gloriosos. Os escritos de Antônio Pedroso, que publicou o livro “Subsídios para a História da Repressão em Bauru” durante o regime militar, indicam um outro discurso, escrito nos interstícios da narrativa de progresso di- fundida. A luta trabalhista e o embate político são aspectos que estiveram presentes de forma significativa na contramão da “cidade sem limites.” 1.2 A Companhia Paulista Fundada em 1868, a Companhia Paulista de Estradas de Ferro (CP) foi a segunda ferrovia implantada no estado de São Paulo, seu surgimento liga-se a necessidade de conexão entre as grandes propriedades de café com a São Paulo Railway, ferrovia que comunica- va o litoral do estado, partindo de Santos, com o interior paulista, na cidade de Jundiaí. A Companhia Paulista surge para suprir o prolongamento da migração da produção cafeei- ra, que partia do vale do paraíba rumo ao interior. Posteriormente, esse tipo de captação da produção de café em relação ao adentramento da ferrovia tornou-se conhecido como “cata-café”. Outro motivo do prolongamento ferroviário realizado pela CP era a impor- tância na época do município de Campinas, já destacado centro agrícola e de serviços (Morais, 2002). Diferentemente da São Paulo Railway, a Companhia Paulista foi formada pelo capital na- cional, derivado dos grandes fazendeiros de café. A Companhia Paulista estabeleceu-se como a primeira empresa de capital nacional de sociedade anônima, dividida entre 654 acionistas (Morais, 2002). Ao analisar a lista de acionistas, Inoue (2016) destaca a pre- sença de árvores genealógicas, incluindo nomes de mulheres e filhos de fazendeiros de café. A rede de poder familiar ligada aos capitalistas do café é evidenciada pelos nomes dos engenheiros ferroviários, que frequentemente pertenciam a famílias de cafeiculto- res. É importante ressaltar que o capital dos acionistas não se restringia apenas às fa- zendas de café; os fazendeiros também atuavam em setores industriais, comerciais e bancários. Destaca-se, portanto, a interconexão entre o planejamento territorial, político 27 e social e as ambições da elite cafeeira, que consolidaram os interesses privados com os do Estado. Em 1895 e 1896 são assinados os Decretos nº 317 e nº 373, que concediam o cresci- mento da Companhia Paulista rumo a margem esquerda do Rio Tietê, no espigão entre os rios Aguapeí e Peixe. Os decretos permitiram o avanço a partir de Dois Córregos até as vilas de Pederneiras, São Paulo dos Agudos e Santa Cruz dos Inocentes (Campos; Inoue, 2020). Em 1897, foram assinados outros decretos, nº 493 e nº 504, que aprovavam os estudos definitivos para o percurso de Dois Córregos até Bauru (Ghirardello, 2020). A construção dessas últimas linhas não ocorreu imediatamente após a emissão dos de- cretos, pois a economia enfrentava um período de instabilidade, com a queda acentuada dos preços do café no mercado internacional, levando a Companhia Paulista a suspen- der a construção desse ramal. Os projetos de construção foram retomados em 1901, após o Estado brasileiro implementar uma política de empréstimos internacionais. Em 1903 foi inaugurado o trecho mais complicado do percurso, a passagem sobre o Rio Tie- tê, e em 1904 o trecho de Pederneiras a Agudos (Campos; Inoue, 2020). Uma bifurcação do ramo oeste da Companhia Paulista foi finalizada em 1910, com a chegada da linha a Bauru, partindo também de Pederneiras. É no ramal de Bauru que foram construídas posteriormente a Estação de Aimorés em 1928 (1933), e a Estação de Triagem em 1937. No pátio ferroviário de Triagem, realizavam-se a manutenção dos equipamentos rodantes (vagões e locomotivas) e as manobras para a troca de trens de bitola larga para métrica21. A Companhia Paulista continuou sua expansão para o oeste com um novo trecho que começava em Piratininga. Durante o período dessa expansão, entre as décadas de 1920 e 1930, a Companhia Paulista adquiriu a CAIC – Companhia de Agricultura, Imigração e Colonização em 1928, evidenciando a integração entre a ferrovia e a estruturação urbana da região da Alta Paulista (Campos; Inoue, 2020). Em 1930, a extensão da Companhia Paulista alcançava os limites do estado de Goiás, totalizando 1.475 km. A ferrovia tam- bém avançava em direção aos limites do Mato Grosso e, em 1950, chegou ao extremo oeste do estado de São Paulo com a inauguração da estação de Panorama (Inoue, 2020). 1.2.1 Mecanismos disciplinares Muitos trabalhadores ingressavam na empresa ainda muito jovens, com idades entre treze e quinze anos. Inicialmente, trabalhavam como aprendizes por alguns meses sem receber salário. Após esse período, muitos deles permaneciam na empresa por longos anos (Lanna, 2020). Aliado a isso, destaca-se que a Companhia Paulista criou outro me- canismo para a qualificação formal de seus funcionários: a Escola de Aprendizes, criada 2 Segundo Losnak (2003, p. 399) bitola é a “distância entre os trilhos de uma via férrea”. Em triagem era feita a manobras das locomotivas entre as bitolas métricas (1 m) e largas (1,6 m). 28 em 1910. Nesse contexto, também se destaca a criação do Centro Ferroviário de Ensino e Seleção Profissional (CFESP)31em 1934. A prática adotada nas escolas ferroviárias tinha como cerne a disciplina rigorosa. A for- mação oferecida não se restringia apenas ao desenvolvimento de habilidades técnicas específicas; ela também visava preparar os alunos para assegurar a ordem e a eficiência no ambiente de trabalho. Isso incluía a implementação de códigos de conduta que refle- tiam os valores da empresa. Destaca-se, por exemplo, a rigorosa intolerância em relação a atrasos e faltas. Nos ambientes ferroviários, o controle do tempo era essencial e se manifestava de várias maneiras: na paisagem material, com a presença dos relógios nas estações, e na sono- ra, com os apitos dos trens e das oficinas. Essas formas de disciplina não só regulavam a execução das tarefas, mas introduziam uma “moral patronal”, conforme descrito por Segnini (1982). A “moral patronal” refere-se à internalização dos valores e expectativas da empresa pelos funcionários, que passavam a adotar esses valores em todos os as- pectos de suas vidas. Outro mecanismo estratégico e disciplinar42 adotado pelas companhias ferroviárias, e desenvolvido pela Companhia Paulista, foi a construção de vilas ferroviárias53 . Segun- do Morais (2002) a Companhia Paulista construiu o total 1.612 casas ferroviárias, sendo 115 casas para funcionários em Bauru. As vilas ferroviárias surgem devido à ausência de infraestrutura encontrada pelas ferrovias nos locais em que se instalavam. A construção de residências foi uma estratégia adotada para assegurar a operacionalização e expan- são das linhas, além disso, funcionava como mecanismo de controle do funcionário, 3 O Centro Ferroviário de Ensino e Seleção Profissional (CFESP) era uma aliança entre o setor público (go- verno estadual de São Paulo) e privado (companhias ferroviárias). Além da participação da Companhia Paulista de Estradas de Ferro, o CFESP envolvia a colaboração de diversas outras companhias ferroviárias. O CFESP durou até 1948, quando houve o rompimento da parceria entre o setor público e o privado. Após essa data, as empresas ferroviárias continuaram a operar suas próprias escolas de formação. 4 Segundo Segnini (1982), a construção das vilas ferroviárias se inicia na fase que a autora denomina “pa- ternalista” (1885 a 1928). Nesse período, observam-se a criação de instrumentos paternalistas destinados a assegurar o controle sobre a mão-de-obra. Entre esses mecanismos, além das casas ferroviárias e das escolas de aprendizes, destacam-se também as sociedades beneficentes e as cooperativas de consumo. 5 Em relação a terminologia, é recorrente o uso de diferentes termos alusivos às vilas. Discorrendo breve- mente, comumente os núcleos habitacionais são referidos como colônias ou casas de turma. Para Los- nak (2003, p. 400), colônia concerne a “conjunto de casas construído em área pertencente à ferrovia, ge- ralmente próximo à linha férrea, destinado à moradia dos ferroviários”, portanto, o termo é abrangente e condiz com quaisquer conjuntos construídos pelas ferrovias. Por outro lado, as “casas de turma” tangem especificamente às residências construídas ao lado ou paralelas a linha férrea, frequentemente são casas mais simples e geminadas, segundo Morais (2002, p. 196 e 197) “os funcionários que ali residiam eram res- ponsáveis pela manutenção de um determinado trecho da ferrovia, próximo ao local onde se encontravam as instalações e depósitos de combustíveis”. 29 que deveria estar devidamente posto para qualquer exigência do ofício. Segundo Finger (2009), diferentemente do contexto europeu, em que a construção de vilas servia para oferecer melhores condições de vida aos funcionários, no Brasil as vilas eram um meio para afastar os operários dos antigos hábitos rurais e “treiná-los para o trabalho regrado nas indústrias” (Finger, 2009, p.9). Para Morais (2002), a alta dos preços dos aluguéis, derivada do aumento do custo de vida proveniente do estabelecimento da ferrovia, justificaria a reivindicação do acrés- cimo salarial pelos funcionários, assim, a construção das casas tornou-se instrumento para amenizar as solicitações. Muito além de um aparato social, as casas atuavam na fiscalização e subordinação trabalhista, os simbólicos aluguéis cobrados, funcionavam “como forma de salário não-pago, criando uma grande dependência entre a empresa e os ferroviários” (Morais, 2002, p. 91). As casas operavam como intermediadoras das relações de produção, na medida em que o fornecimento de moradia ao trabalhador representava uma forma de redução salarial, ampliando a capacidade de acumulação da empresa e induzindo o empregado a perma- necer no emprego, o qual pelo menos lhe oferecia condições mínimas de habitação (Mo- rais, 2002, p. 78). O maior interesse da empresa em prover habitação era o aparelhamen- to da companhia e a produção de capital: “o que realmente interessava eram as formas como aquele capital ali empregado garantiria seu retorno, na confecção dos produtos industriais e na operacionalidade da empresa” (Morais, 2002, p. 21 e 22). A vista dos beneficiários, revela-se o baixo número de funcionários contemplados com as habitações. De acordo com Morais (2002), os critérios para escolha dos moradores eram os mais variados possíveis, sendo que poucos eram trabalhadores comuns. Inoue (2016) presume que as “casas de turmas”, residências construídas conexas a linha fér- rea, eram destinadas aos trabalhadores da seção linha, encarregados das manutenções da linha férrea. Além disso, destaca-se as casas atribuídas aos chefes das estações, co- mandantes da seção tráfego, tais residências eram maiores, bem como, seus terrenos, refletindo o nível hierárquico da empresa. As casas alugadas eram devolvidas à empresa quando o trabalhador se aposentava ou, no caso das “casas de turma”, quando deixava uma posição de manutenção nas linhas (Inoue, 2016). “Acolhidos em uma atitude pater- nalista, camuflando o verdadeiro aspecto de controle, os funcionários eram enxotados das residências quando não mais serviam às Companhias” (Morais, 2002, p. 95). A difícil obtenção das residências nas vilas ferroviárias em Bauru é destacada em rela- tos dos ferroviários da Companhia Paulista coletados por Losnak (2003). Nos depoimen- tos, reafirma-se que as casas eram destinadas aos funcionários com cargos elevados, incluindo parte dos funcionários do escritório. As informações confirmadas pelas de- clarações indicam que as habitações eram destinadas principalmente a homens com famílias, excluindo as funcionárias mulheres, que eram mais raras entre os contratados, ou inexistentes, especialmente durante o período inicial da empresa. O trecho a seguir é uma citação de Maria Leoni, funcionária contratada pela Companhia Paulista em 1953 30 como telegrafista em Bauru: A forma mais comum de obtenção de casas ferroviárias era o pagamento de aluguel à companhia. No entanto, após a década de 1930, surgiram dois mecanismos menos co- muns para a obtenção de habitação. Um deles era a assistência da empresa no forneci- mento de materiais de construção e plantas técnicas, com o custo sendo pago em pres- tações mensais descontadas diretamente do salário. Outro era a venda de habitações construídas pela empresa (Inoue, 2016). Existem exemplos desse último tipo em Bauru, como algumas residências no bairro Mondevale, que ainda podem ser identificadas. O depoimento a seguir ilustra um exemplo desse caso: Em análise particular da arquitetura, as vilas ferroviárias da Companhia Paulista se des- tacam pela simplicidade das moradias. Morais (2002), ressalta o descontentamento dos trabalhadores da Paulista com seus salários e com as residências, que por ele são clas- sificadas como “mais modestas que as construídas pela Sorocabana e Araraquarense” (Morais, 2002, p.180). Existem muitas casas geminadas, que incluem duas ou mais uni- dades residenciais. Finger (2009) denomina as construções com mais de duas unidades como “habitações em fita”, destacando que esse estilo é mais comum nas casas de tur- ma situadas à beira da linha. Esse tipo de modelo era bastante empregado pois permitia a economia de material, devido às paredes em comum. É frequente encontrar tipologias em que o banheiro era construído de forma isolada em relação ao restante da casa. Um exemplo disso são as residências da colônia de Triagem em Bauru. Esse recurso era em- pregado para economizar em áreas sem acesso a redes de encanamento, especialmente em regiões rurais, ao reduzir o número de paredes e otimizar o uso da fossa. Os mecanismos disciplinares estavam intimamente ligados à promoção da ideia de uma “família ferroviária”. Sublinha-se que uma quantidade significativa de trabalhadores con- seguiu empregar seus filhos na companhia, estabelecendo uma continuidade familiar no quadro de funcionários. Esses fatores influenciaram a construção de um discurso de per- tencimento à uma “família ferroviária”, criado pela gestão da empresa, conforme apon- tado por Ferreira (2022). Nessa trama são tecidos complexos planos de agenciamentos. A empresa via uma estratégia de promover um discurso de proximidade e lealdade, es- Eles não davam casa pra telegrafista mulher, só para telegrafista homem que tivessem família. [...] moravam inspetores, chefes, o pessoal que trabalhava no Transporte, chefes de Transporte, chefes da Tração, muitos moravam ali. De- pois, foram fazendo casa, porque quando aposentava tinha que sair da casa (Depoimento de Maria Leoni, in Losnak, 2003, p. 229). Ela construiu esse núcleo de casa para vender pros ferroviários. Então meu pai, com muito custo e sacrifício, conseguiu comprar uma também e até hoje nós temos. E aí, depois, nós mudamos da roça e viemos morar na casa. Ela é aqui na Avenida Rodrigues Alves. Ainda tem a casa, inclusive quem mora nessa casa é minha irmã (Depoimento de Nelson Franco in Losnak, 2003, p. 247) 31 Entre as habitações ferroviárias construídas pela Companhia Paulista em Bauru, verificam-se alguns exemplares localizados no Bairro Monlevade, adjacente à Avenida Rodrigues Alves. Essas residências fo- ram erguidas em 1951 para apoiar o Complexo de Triagem. Hoje em dia, ainda é possível identificar algu- mas dessas residências. Figura 4: Construção colônia da paulista em Bauru (1951) Fonte: Acervo Museu Ferroviário Regional de Bauru Figura 5: Construção colônia da paulista em Bauru II (1951) Fonte: Acervo Museu Ferroviário Regional de Bauru 32 tiando e negando os conflitos de classe. A ideia de uma “família ferroviária” promovia um profundo apreço pela ordem e pela hierarquia, valores que se consolidaram ao longo de muitos anos, mesmo após a transferência da empresa para o estado e a criação da FEPASA (Inoue, 2020). Isso, no entanto, não impediu a emergência de movimentos coletivos de contestação e reivindicação por parte dos trabalhadores. Concomitantemente existia uma certa apropriação pela classe trabalhadora, vínculos de contato entre os trabalhadores, que atuavam no desperte de uma consciência de classe, exemplificada pela formação de sindicatos, que foram tanto perseguidos quanto não reconhecidos pela empresa. Ade- mais, a noção de “família ferroviária” era frequentemente usada pelos funcionários ao solicitarem aumentos, licenças ou contratações de parentes, e para se diferenciarem de trabalhadores sem esse vínculo. 1.2.2 Declínio do sistema ferroviário Segundo Morais (2002), o declínio do sistema ferroviário é verificado em 1940, quando a malha ferroviária começa a perder sua força em virtude da crise do café e da Segunda Guerra Mundial. A isso se soma o crescimento da política rodoviarista, que colocou os dois sistemas de transporte em concorrência. Ademais, Saes (1974) agrega outros fato- res que interferiram na decadência do sistema ferroviário, como a existência de zonas de privilégio pelas companhias que dificultavam as interações dos ramais e produziam problemas nas comunicações. Apesar dos desafios, a Companhia Paulista conseguiu se manter por mais um tempo. Segundo Inoue (2020), isso se deve, em parte, aos diversos investimentos realizados pela Companhia, bem como à sua política de gestão e admi- nistração. Como tentativa de sustentar o sistema ferroviário, que ainda possuía espaço na econo- mia do país, iniciou-se o processo de estatização das companhias em meados do século XX, neste contexto, a Companhia Paulista é estatizada em 1961. Na década de 1970, emerge uma nova tentativa de resguardar a ferrovia com a proposta de unificação das companhias do estado de São Paulo, de tal conjuntura surge a Ferrovia Paulista Socieda- de Anônima (FEPASA), união da Paulista, Mogiana, Sorocabana, Araraquara e São Paulo- -Minas. Para Morais (2002), mesmo com devidas vantagens, como a interligação e eliminação da concorrência, a união das ferrovias refletiu na descaracterização das empresas e em dificuldades comunicativas, posto que “cada uma possuía seus próprios métodos e suas sedes administrativas localizadas no interior – o que, por outro lado, também acabou por dificultar uma perfeita unificação” (Morais, 2002, p. 50). A privatização da FEPASA, juntamente com a Rede Ferroviária Federal (RFFSA) ocorreu em 1998, culminando na depreciação posterior das ferrovias. Como enfatizado por Mo- rais (2002), já no início dos anos 2000, as ferrovias já se encontravam “abandonadas”. 33 Em relação a Bauru, após a desativação da RFFSA as malhas férreas foram transferidas da União para a empresa América Latina Logística (ALL), através de processo licitatório. Em 2015, a concessionária foi fundida com a Empresa Rumo Logística (RUMO), perten- cente ao grupo Cosan, que teve concessão renovada em 2020. Com o desmonte da ferrovia, as habitações ferroviárias passaram a se enquadrar em algumas situações. Houve casos em que as residências foram vendidas, com prioridade oferecida aos moradores que já ocupavam os imóveis. Segundo Inoue (2020), o número de vendas foi relativamente pequeno, conforme dados fornecidos pela Superintendên- cia do Patrimônio da União em São Paulo. A situação mais comum envolveu a continui- dade na cobrança de aluguéis, com os imóveis sendo transferidos para a FEPASA e, pos- teriormente, para a Rede Ferroviária Federal S.A. Com as privatizações subsequentes, os imóveis foram transferidos para a Superintendência do Patrimônio da União (SPU), que assumiu a responsabilidade pela gestão das vilas e dos demais edifícios ferroviários quando as empresas privadas não manifestaram interesse. Nesse caso, os aluguéis con- tinuam sendo cobrados pela união, no qual os moradores continuando pagando o DARFs (Documento de Arrecadação das Receitas Federais). Muitos moradores ainda esperam uma definição mais clara sobre suas habitações. Fa- mílias que vivem nesses imóveis há anos permanecem à mercê do órgão responsável, com esperança de obter a posse definitiva dessas propriedades. Essa regularização é es- sencial para assegurar a permanência dessas famílias em suas casas, onde fortemente sobrevivem, estabelecendo vínculos profundos com o espaço e com os outros morado- res. Em relação à questão que versa sobre patrimônio e seus paradigmas atuais nos leva a refletir sobre um ponto central da pesquisa: qual é o valor de um patrimônio material que não é habitado? 1.3 A Companhia Paulista em Bauru Como já mencionado anteriormente, a Companhia Paulista é a terceira empresa ferrovi- ária a se instaurar na cidade de Bauru, em 1910. A primeira estação instaurada foi loca- lizada nos limites da atual rua Agenor Meira, próxima as estações da Noroeste e da So- rocabana. Os trilhos da CP vieram da parte leste do patrimônio, cortando ruas da época. Em 1910, a empresa formaliza um pedido direcionado a câmara de Bauru, alegando que: “[...] não prejudica a cidade, portanto a comunicação com a pequena parte situada entre a linha e o Ribeirão Bauru, se poderia fazer pelas ruas Araujo Leite e Antônio Alves, que são as únicas edificadas e continuarão abertas ao tranzito público” (Arquivo da Câma- ra Municipal de Bauru apud Ghirardello, 2008, p.39). Tal solicitação ocorreu meramente para cumprimento formal, uma vez a construção já estava consumada. Entretanto, a pre- feitura ressalta que a empresa deveria construir uma passagem sobre os trilhos, na Rua Araújo Leite. Tal acesso foi construído, e trata-se da ponte ainda existente sobre o trecho proposto. A ponte tornou-se a primeira de maior porte na cidade (Ghirardello, 2020). 35 Para Ghirardello (2008), o corte na trama urbana realizado pela Companhia Paulista re- forçou a barreira que já existia devido ao fundo de vale do Rio Bauru, que separava o setor oeste e norte da cidade em relação ao setor sul e leste. Esse recorte da cidade, acen- tuado pela ferrovia, condiz também com a segregação socioespacial inicial da cidade, que por consequência se propagou ao longo dos anos. Devido à continuidade da malha urbana e das infraestruturas já existentes, a parte sul começa a ser ocupada pelas clas- ses sociais mais privilegiadas, começando a abrigar os bairros destinados à elite local. Em contraste, a classe mais baixa começou a ocupar áreas mais dispersas e de difícil acesso, além de estarem localizadas além dos cursos d’água, cuja acessibilidade foi pre- judicada pelo corte da ferrovia. Dessa maneira, surge um dualismo entre a “parte alta da cidade”, referente a zona sul, e as “áreas baixas da cidade”, referente a zona norte. A zona norte da cidade será inicialmente ocupada pela Vila Falcão, um bairro que abrigava majo- ritariamente trabalhadores ferroviários. Situado fora dos limites urbanos iniciais, o bairro oferecia áreas mais baratas, sem infraestrutura e com acesso mais difícil. Observa-se uma relação de proximidade entre o traçado da ferrovia e os cursos d’água, que, como mencionado anteriormente, acentuava a segregação da malha urbana. A ocu- pação das áreas próximas aos cursos d’água, especialmente no traçado do leito férreo, foi uma decisão inadequada desde o início. Eram frequentes as enchentes nas áreas bai- xas do Ribeirão Bauru e do Córrego das Flores, que destruíam pontes que interligavam os lados da cidade. Além disso, as inundações frequentemente cobriam outro acesso construído, uma passagem abaixo dos trilhos da Companhia Paulista, localizada no pro- longamento da Rua Azarias Leite e que dava acesso ao Jardim Bela Vista. Esta passagem foi construída em uma cota inferior ao nível do Rio Bauru, o que já expunha a área a um risco significativo. Como resultado, a cidade ficava isolada, com os acessos entre as re- giões norte e sul comprometidos (Ghirardello, 2020). Como medida para contornar a situação, optou-se pela canalização dos cursos d’água. No caso do Rio Bauru, além da canalização, também foi realizada a retificação de seu curso nos anos 1960. Como exemplo dessa intervenção aponta-se o trecho ocupado pela Avenida Nuno de Assis. Nessa parte, felizmente, o rio permaneceu com seu leito a céu aberto, devido ao alto custo do tamponamento. Apesar de uma situação melhor em relação ao tamponamento, a construção da Avenida Nuno de Assis ocorreu margeando o leito do rio, sem nenhum tipo de afastamento. Essas práticas podem ser compreendidas dentro do contexto do pensamento predominante do século XX, ainda sob influência das reformas urbanas higienistas do início do século. Quando as águas urbanas não eram mais adequadas para a captação de água potável, passaram a receber os resíduos do esgoto. Nessas condições, eram consideradas insalubres e um problema a ser resolvido. Destaca-se que tudo isso estava alinhado com a visão de progresso da época, que via na dominação da natureza o inevitável para o desenvolvimento. Em relação aos acessos, entre os bairros localizados ao sul e aqueles ao norte. Pode-se dizer que o primeiro viaduto, de forma mais simples, seria a passagem acima dos trilhos, 36 As fotografias a seguir documentam o Rio Bauru antes de sua canalização e retificação. A primeira ima- gem, datada da década de 1940, revela a área onde hoje se localiza o viaduto Juscelino Kubitschek. Nela, é possível observar o acesso que existia antes da construção da passagem subterrânea dos trilhos da CP, destacando a proximidade do traçado ferroviário com o leito do rio. A segunda imagem retrata a mesma passagem durante um período de cheia do rio, mostrando como a cidade se dividida e a população isolada entre os dois lados da cidade. Figura 6: Acesso ao bairro Bela Vista – Aproximadamente 1940 Fonte: Carlos Augusto Shajarat Abdalla, 2021. Disponível em: https://www.facebook.com/ photo/?fbid=1403675269991927&set=gm.1916403061849593 Figura 7: Acesso ao bairro Bela Vista II – Aproximadamente 1940 Fonte: Histórias de Bauru, 2024. Disponível em: https://www.facebook.com/photo. php?fbid=423676153522264&set=pb.100076396475228.-2207520000&type=3 37 construída na Rua Araújo Leite, pela Companhia Paulista, no início do século. Em rela- ção a passagem sob trilhos, destaca-se a construção do viaduto Juscelino Kubitschek no governo municipal de 1956 a 1959. Próximo a este, foi construído um viaduto no prolon- gamento da Rua Treze de Maio em 1973, que dá acesso à então recente Avenida Nuno de Assis. Este viaduto recebeu o nome de João Simmoneti e foi construído acima das casas de turma dos funcionários da Companhia Paulista, na época administradas pela FEPA- SA. Para dar espaço ao viaduto quatro casas foram destruídas, as de número 12 a 15. Segundo (Ghirardello, 2020), o viaduto Juscelino Kubitschek e o viaduto João Simmoneti garantiriam a viabilização da implantação do Centro Cívico no bairro Jardim Bela Vista. Essa construção foi proposta no Plano Diretor de Bauru, idealizado pelo Centro de Pes- quisas e Estudos Urbanísticos na Universidade de São Paulo (CPEU/USP) em 1967. A construção do Centro Cívico proposto resultaria na desapropriação de várias áreas ocu- padas na região, incluindo as edificações ferroviárias, restando apenas a estação central da NOB. No entanto, o projeto não foi concretizado e permaneceu apenas no plano for- mal. As construções dos viadutos contribuíram para a valorização imobiliária das áreas ao norte da cidade, com os bairros operários passando por um processo de gentrificação. Os viadutos, ao conectar os dois setores da cidade e facilitar o deslocamento para o cen- tro, acabaram por enfraquecer o comércio local nos bairros do setor norte (Ghirardello, 2020). Saindo das delimitações mais centrais de Bauru, e continuando o traçado férreo da Companhia Paulista, ressalta-se um segundo complexo ferroviário construído pela com- panhia ao leste do município. O complexo de triagem começou a ser implantado no final da década de 1930, sendo a construção da estação ferroviária de triagem inaugurada em 1937. Destaca-se a grandiosidade do complexo de triagem, um dos principais pátios fer- roviários da Companhia Paulista. O complexo incluía grandes oficinas de manutenção, trechos de manobra entre bitolas e facilitava a transferência de trens de carga, produtos agrícolas e pecuários, além de passageiros. Também estava situado próximo ao Horto Florestal de Bauru, criado em 1929, que, além de distribuir mudas, fornecia carvão e le- nha para as locomotivas. Essa localização estratégica era fundamental para abastecer a Usina de Tratamento de Dormentes da Triagem Paulista. A instalação do complexo de triagem impulsionou a ocupação da região, principalmente devido aos muitos funcionários que trabalhavam para a Companhia Paulista. Surgiram os bairros Mondevale, com casas construídas pela CP, e Santa Luzia. Além disso, desta- ca-se a colônia de triagem, que contava com 74 casas. Nos primeiros anos de ocupação, a área tinha um caráter fortemente rural, devido à sua distância do centro da cidade. O acesso ao local era predominantemente feito por trem, utilizando a locomotiva conheci- da como “borboleta”. 38 Figura 8: A passagem sob trilhos - Década de 1950 Fonte: A Bauru Que Não Vivi, 2015. Disponível em: https://www.facebook.com/pho- to/?fbid=1676648105951026&set=a.1665167073765796 Figura 9: O viaduto Juscelino Kubitschek – Década de 1960 Fonte: A Bauru Que Não Vivi, 2015. Disponível em: https://www.facebook.com/photo/?fbi- d=1654117788204058&set=a.1664900550459115 Ainda sobre a evolução dos acessos da Rua Azarias Leite, verifica-se na primeira fotografia, datada da dé- cada de 1950, a passagem sob os trilhos, evidenciando que sua cota estava abaixo do nível do rio Bauru. Na segunda fotografia, observa-se o viaduto Juscelino Kubitschek próximo da data de sua inauguração, com a passagem sob os trilhos ainda não aterrada, ao contrário da condição atual. 39 A Companhia Paulista ainda instaurou a estação intermediária de Aimorés em 1928 (ou 1933). Atualmente inexistente, a estação estava localizada no que hoje são as bordas do perímetro urbano de Bauru. Na época de operação, Aimorés, configurava um pequeno assentamento rural, ainda mais remoto do que o de triagem. Atualmente, ainda existem casas de turma da Companhia Paulista na região. Esse recorte não será adentrado pelo trabalho. Os tópicos a seguir exploram mais detalhadamente questões relacionadas ao Complexo Central Paulista e ao Complexo Triagem Paulista, com o objetivo de contextualizar os espaços investigados durante a parte prática da pesquisa. 1.4 Recorte: os complexos em Bauru 1.4.1 Complexo Central Paulista O primeiro Complexo Ferroviário da Companhia Paulista em Bauru (Complexo Central Paulista), expandido nas proximidades da primeira estação implantada em 1910, locali- za-se nas confluências da rua Virgílio Malta e rua Araújo Leite, dentro das delimitações do centro do município. O complexo é composto pela estação ferroviária, um armazém, as casas de turma dos funcionários, a antiga casa do diretor da Companhia Paulista de Bauru e outros anexos como o barracão metálico ao lado do armazém e as guaritas e portarias de acesso. Juntamente com a construção da estação ferroviária da Companhia Paulista, foram construídas as casas de turma margeando o leito férreo, durante os primeiros anos da chegada da empresa na cidade. Estas primeiras residências apresentam uma tipologia ainda presente na colônia, com núcleos habitacionais simples em alvenaria e cobertura em duas águas. Cada núcleo é composto por duas habitações geminadas, com uma pe- quena escada de acesso para cada uma. Atualmente, as casas numeradas 6, 7, 8, 9, 10, 11, 16 e 17 mantêm essa tipologia. Lembra-se que os núcleos 12 a 15 foram destruídos na década de 1970 devido à construção do viaduto na Rua Treze de maio. Após essas casas, há um núcleo em fita com quatro residências. A data exata de sua construção não é conhecida, mas estima-se que tenha ocorrido antes da década de 1940. Em seguida, encontram-se três habitações em madeira, seguindo a tipologia da colônia de triagem. Segundo relatos de um ex-morador da vila de triagem, essas casas foram instaladas durante a implantação da colônia, um processo que ocorreu de forma gradual ao longo dos anos. Portanto, é provável que essas casas tenham sido introduzi- das na colônia central na década de 1940. Todas as casas, estão atualmente ocupadas. Também foram adaptadas para habitação algumas casas que durante a administração FEPASA, funcionavam como sedes dos escritórios municipais da empresa e outros servi- ços de amparo aos funcionários, como assistência social e médica. Durante esta época, o armazém era utilizado pelo Banco do Estado de São Paulo (Banespa) e como centro de treinamento, com duas salas de aula. Esses dados podem ser confirmados tanto pelos 40 As duas fotografias a seguir foram retiradas do Complexo Central da Paulista em Bauru e, embora não te- nham datas definidas, acredita-se que sejam do início da implantação das edificações, por volta de 1910, antes de 1918. Isso se deve à ausência do armazém nas imagens, cuja presença é confirmada em uma fotografia de 1918 do álbum ilustrado da Paulista. Na primeira imagem observa-se a estação e na segunda as primeiras casas da colônia. Figura 10: Primeira estação ferroviária da CP em Bauru Fonte: estacoesferroviarias.com.br. Disponível em: http://www.estacoesferroviarias. com.br/b/fotos/bauru_cp20.jpg Figura 11: Primeiras casas ferroviárias da CP em Bauru Fonte: Acervo Museu Ferroviário Regional de Bauru 41 42 relatos dos moradores da colônia quanto pela “Planta dos Edifícios da Regional de Bau- ru da FEPASA” de 1989, disponibilizada pelo Museu Ferroviário de Bauru. Atualmente, o armazém está fechado e não abriga nenhuma atividade em seu interior, funcionando apenas como depósito municipal. Durante o período da pesquisa, a casa do antigo diretor e o interior da estação ferroviária estavam sendo utilizados para abrigar o Museu Histórico Municipal de Bauru, que passa por um longo período de reforma61. A abertura do processo de Tombamento do complexo pelo Conselho de Defesa do Patri- mônio Cultural de Bauru (CONDEPAC), consta-se no processo 10.564 de 2010, o docu- mento que compreende como integrantes do complexo, além da estação (tombada pelo processo 18.049/1996), os outros edifícios já mencionados, incluindo o armazém, as ca- sas de turma e os demais anexos. Em 2018, através da Resolução 22 de 22 de março de 2018, o complexo é tombado pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueo- lógico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (CONDEPHAAT) como parte integran- te do perímetro de tombamento e da área envoltória do Complexo Ferroviário de Bauru72. 1.4.2 Complexo Triagem Paulista Como mencionado anteriormente, a estação de triagem foi inaugurada em 1937 e está estrategicamente posicionada próxima ao entroncamento ferroviário, à Rodovia Mare- chal Rondon e ao Horto Florestal. A área de triagem, localizada a leste do município, começou a ser ocupada além dos predominantemente bairros ferroviários, como o Mon- levade, somente a partir da década de 1960, com a construção do primeiro grande con- junto habitacional da cidade, o Jardim Redentor, que foi implantado além do Horto Flo- restal. Portanto, a área de triagem permaneceu por muito tempo desconectada da malha urbana, sendo o principal acesso ao centro da cidade realizado pelo trem “borboleta”. O Complexo Ferroviário de Triagem incluía diversos edifícios, alguns dos quais já foram demolidos, como a antiga Usina de Tratamento de Dormentes. Dentre as edificações que ainda margeiam a linha férrea, destacam-se: a estação, as casas de turma, a residência do chefe da estação83 , a antiga oficina de locomotivas, a antiga oficina de vagões, além de outros anexos de suporte. Ademais, o complexo contava com uma vila ferroviária pertencente à Companhia Paulis- ta, denominada formalmente de Colônia Baldeação de Triagem Paulista . Os funcionários 6 O último plano museológico pode ser acessado em: https://sites.bauru.sp.gov.br/museuferroviario/pla- no_museologico.aspx 7 A resolução do CONDEPHAAT pode ser acessada em: https://encurtador.com.br/UDaJO 8 Destaca-se a inexistência de documentação sobre a colônia; as informações apresentadas neste tra- balho foram obtidas por meio de relatos orais fornecidos por um ex-morador. Detalhes adicionais sobre o encontro com o morador serão descritos no quarto capítulo. 43 As edificações do complexo ferroviário de triagem mantiveram-se em bom estado de preservação até o início dos anos 2000, quando ocorreu a privatização das ferrovias. A primeira fotografia mostra a Estação Ferroviária de Triagem em seus primeiros anos de construção, na década de 1940. Já a segunda fotografia retrata a mesma estação em 1999. Figura 12: A estação de triagem - aproximadamente 1940 Fonte: estacoesferroviarias.com.br. Disponível em: http://www.estacoesferroviarias.com. br/t/triagem.htm Figura 13: A estação de triagem - aproximadamente 1999 Fonte: estacoesferroviarias.com.br. Disponível em: http://www.estacoesferroviarias.com. br/t/triagem.htm 44 que residiam na colônia viviam sob o típico sistema de aluguel descontado na folha de pagamento, assim como os das casas de turma e os da colônia central. A colônia abri- gava 74 casas, sua arquitetura era de madeira, e podia ser desmontada e remontada, apenas a cozinha era feita em alvenaria. As casas eram modulares, com cada parede identificada por uma numeração específica para facilitar a montagem. A vila era organizada em grupos de casas, chamados “lotes”, com cada grupo destinado a diferentes ocupações na empresa. Havia um lote destinado aos trabalhadores da bal- deação, responsáveis pela movimentação das mercadorias; outro para os encarregados da manutenção da linha; e ainda outro para os responsáveis pela manutenção de vagões e locomotivas. Portanto, a vila atendia principalmente os funcionários envolvidos em ser- viços que exigiam uma resposta imediata, suprindo qualquer demanda urgente que sur- gisse, independentemente de horário. A colônia era itinerante e acompanhava as necessidades da CP, com os funcionários deslocando-se conforme as demandas da empresa. A vila surge em Itirapina, passou por Pederneiras e acabou sendo fixada em Bauru. Em Bauru, a vila não foi instalada de uma vez; ela chegou gradualmente através da ferrovia, e sua montagem foi realizada de forma progressiva a partir de 1940. Enquanto a vila estava em processo de instalação, os moradores que ainda residiam em Pederneiras se deslocavam para trabalhar em Bauru utilizando uma locomotiva, a qual eles chamavam de “baratão”. Nas proximidades das habitações da colônia, havia uma escola chamada Grupo Escolar Dr. Carlos Chagas, que atendia principalmente os filhos dos funcionários, e um salão, o clube, que servia para diversas atividades. Próximo à colônia, também havia um campo de futebol. Uma curiosidade é que os funcionários de triagem acabaram formando times de futebol amador ao longo dos anos, um exemplo é o G.R.E. TRIAGEM. Nos relatos de ex-funcionários da Companhia Paulista, coletados por Losnak (2003), re- vela-se que havia uma horta da Companhia Paulista situada próxima às casas de turma, ao longo da linha férrea, nos fundos da residência do chefe da estação. Alguns trabalha- dores eram responsáveis não apenas pelo cuidado da horta, mas também por prestar assistência na residência do chefe. A seguir, encontra-se o relato de Sebastião Braz, que atuou na Companhia Paulista em Bauru a partir de 1951 e foi um dos funcionários res- ponsáveis pela manutenção da horta. Em seguida, apresenta-se o testemunho de Nicola Gonçalves, que ingressou na companhia em 1952 e também compartilhou suas experi- ências sobre a horta de triagem: Eu trabalhei na horta, na casa do chefe. Cada chefe, naquela época, tinha o direito de ter um trabalhador para ele. [...]. Eu trabalhava lá fazendo as coisas do quintal, um canteirinho de cebola, de couve, qualquer coisa que a gente qui- sesse plantar. [...]. E quando a esposa dele, a dona Olga, precisava de mim pra comprar qualquer coisa na cidade, eu pegava a borboleta e vinha pra cidade, comprava o que ela queria, às vezes era coisinha de nada, mas precisava né? Eu 45 A seguir, são apresentadas duas fotografias que destacam os Ferroviários, trabalhadores do complexo de triagem. A primeira imagem mostra um grupo de trabalhadores durante um movimento de greve, com mui- tos deles sentados sobre os trilhos. A segunda imagem retrata a equipe “Tração” no campo de triagem, composta pelos lavadores de locomotivas responsáveis pela manutenção das máquinas. Figura 14: Trabalhadores em Greve – Década de 1950/60 Fonte: Acervo Museu Ferroviário Regional de Bauru Figura 15: Time “Tração” no campo de triagem - 1958 Fonte: Nos tempos do amador - com Mirtola, 2018. Disponível em: https://www.facebook. com/photo/?fbid=278949202736919&set=a.139654493333058 46 comprava, levava pra ela, ficava lá no quintal trabalhando, fazendo canteirinho (Depoimento de Sebastião Braz in Losnak, 2003, p. 158) Triagem também foi palco de greves e reivindicações trabalhistas por parte dos funcioná- rios da Companhia Paulista de Bauru. Uma dessas greves ocorreu em 1949, culminando em um desfecho trágico91. O bairro mais próximo da antiga estação de triagem é o Guadalajara, um empreendimen- to particular inaugurado em 1972. Localizado ao sul da linha férrea, o bairro estava próxi- mo à antiga colônia de triagem. Além do Guadalajara, as áreas habitadas mais próximas, situadas também ao sul, surgiram após a Avenida Rodrigues Alves, em bairros próximos ao Monlevade. A ocupação da área ao norte de triagem, além do rio Bauru, começou com a implantação de conjuntos habitacionais de interesse social, sendo o primeiro o Jardim Eldorado, criado em 1978. Assim, a expansão da área ao norte só começou a ocorrer efe- tivamente a partir da década de 1980. Com o agrupamento das ferrovias, a colônia de triagem passou a ser administrada pela FEPASA. Gradualmente, a vila começou a ser desocupada: à medida que os funcionários da FEPASA se aposentavam, eles tinham que desocupar as casas, e novas pessoas não estavam se mudando para o local. Assim, as casas desocupadas foram sendo gradual- mente demolidas. A última casa que restou, de número 74, foi entregue em 1989, após seu último morador se aposentar. A casa foi remontada, juntamente com a caixa d’água da vila, em uma nova localização próxima ao clube de triagem, nas imediações dos cam- pos de futebol do atual Estádio Mirante Ferroviário. Com a privatização da ferrovia, os prédios do complexo de triagem — incluindo a esta- ção, as oficinas e seus anexos — deixaram de receber uso formal. O pátio começou a abrigar locomotivas sucateadas provenientes de leilões da antiga Rede Ferroviária Fede- ral (RFFSA), formando um extenso “cemitério de locomotivas”. Atualmente, essas loco- 9 Em 1947, os funcionários da Companhia Paulista reivindicavam melhores salários, pois ganhavam me- nos da metade do salário inicial de um funcionário da Sorocabana. A empresa respondia com demissões e repressão. Em 20 de janeiro de 1949, ocorreu uma greve iniciada na estação de triagem em Bauru, com a expectativa de que se tornasse geral, o que não aconteceu. A Companhia respondeu com força policial para desobstruir a linha, resultando em confrontos. Setenta trabalhadores resistiram, mas a repressão policial deixou feridos, quatro demitidos e oito multados e detidos. Apesar do desfecho trágico, a greve impulsionou futuras mobilizações (Pedroso Junior, 1999). Teve um tempo em Triagem que tinha uma grande horta pra baixo da estaçãozi- nha lá, onde passava a linha do trem de passageiro. Do lado de baixo tinha uma horta grande. Era horta que, um dia por semana, eles davam sacolada, cestada de verdura pros funcionários: verdura, almeirão, alface, rúcula, tomate. E era tratada pelos empregados, eles molhavam, plantavam as mudas, faziam e cui- davam (Depoimento de Nicola Gonçalves in Losnak, 2003, p. 136) 47 Disponibilizadas por um ex-morador de Triagem, as fotografias a seguir ilustram a Colônia de Triagem du- rante o processo de desconstrução. A primeira imagem mostra a última casa da colônia em sua localiza- ção original, oferecendo indícios da atmosfera do local com suas ruas de terra, anexos de áreas molhadas em alvenaria e um pequeno varal de roupas. A segunda imagem retrata o salão da colônia, já com a logo- marca do G.R.E. Triagem. Figura 14: A última casa da colônia – Década de 1980 Fonte: : Acervo particular disponibilizado para a Autora (2024) Figura 15: O salão da antiga colônia – Década de 1980 Fonte: : Acervo particular disponibilizado para a Autora (2024) 48 49 motivas estão sob a responsabilidade do DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes). Vale destacar que parte do leito férreo do pátio de triagem está integrado às operações da empresa RUMO (Almeida; Gomes, 2020). 50 CAPÍTULO 2 Linha Emaranhada 51 2. LINHA EMARANHADA Apreender desvios, movimentos nômades da cidade transumante (Certeau, 1998 [1980]), que se encontram nos entres dos fazeres cotidianos, pulsando sobre os estratos rígidos da cidade hegemônica, planejada e visível, torna-se um objetivo inalcançável para as leituras urbanas convencionais, que tendem a setorizar áreas, traçar distâncias, eixos e diretrizes. Em vista disso, Certeau (1998 [1980]) reflete sobre uma leitura panorâmica da cidade realizada por aqueles que a contemplam do alto de uma torre, sob um olhar quase divino. Tal perspectiva pode fascinar ao propiciar uma visão totalizadora, mas con- diciona um saber hierarquizante ou utópico, assim como no mito de Dédalo, no qual seu filho Ícaro é levado pela ambição a uma altura que o levou à morte. Ao descer da torre e adentrar a cidade, as perspectivas se transformam. Gestos se mo- vem por toda parte, e a experiência é ativada por um conjunto de possibilidades. É nesse plano que os jogos de força não são apagados, os conflitos não estão contidos em com- partimentos separados. Eles estão agindo uns sobre os outros, em um jogo de trocas e mutações, no qual forças tentam reafirmar sua superioridade, condicionando e estratifi- cando. Simultaneamente, outras, resistem, irrompendo em linhas de fuga. Seja por meio de confrontos diretos ou por táticas, essas dinâmicas sobrevivem, impossíveis de serem descartadas, apagadas ou encobertas. Assim, a pesquisa se baseia em uma cartografia que difere dos traços geométricos e planejados, abordando-a como prática, e não como representação. Essa cartografia manifesta-se na filosofia da diferença, exposta pelos filósofos Deleuze e Guattari (1995 [1980]), surgindo das discussões pós-estruturalistas, que irromperam na filosofia fran- cesa do século XX. Essa corrente passa a questionar as estruturas fixas da realidade, como a busca incansável pela origem e pela verdade absoluta que, frequentemente, re- afirmam as manifestações do poder nas práticas discursivas do conhecimento. Os es- tudos influenciaram pesquisadores brasileiros, resultando em obras como “Cartografia Sentimental” (Rolnik, 2006) e as coletâneas “Pistas do Método da Cartografia” (Passos, Kastrup, Escóssia, 2009). Atrelado ao método da cartografia, a pesquisa acompanha o adentramento urbano atra- vés da prática do caminhar. O caminhar, como procedimento metodológico, considera um caminhar ativo e não passivo. Questiona, portanto, o caminhar como simples passeio ou como puro ato de ir de um ponto a outro, em que o meio é ofuscado pela ansiedade da chegada. O caminhar como procedimento infere uma caminhada atenta, apoiada pelo rastreio, toque, pouso e reconhecimento atento (Kastrup, 2009). Tal forma de caminhar descende de um estudo de formas de caminhar que, em seus respectivos contextos, viam o caminhar nas cidades como fazer estético ou crítico. 2.1 Labirinto do pensar 2.1.1 Linhas de mapeamento 52 Etimologicamente, a palavra cartografia é formada pela combinação de duas partes: car- ta e grafia. Carta deriva do latim charta e do grego krartes, que se refere a uma “folha de papel” ou um “documento escrito”. “Grafia” tem sua origem no grego graphein, que significa “escrever”. Segundo Bueno (2004) a palavra surge no século XIX, criada pelo historiador português Manoel Francisco de Barros e Sousa. A expressão é mais frequen- temente utilizada para se referir às práticas representativas do espaço físico, geralmente associadas à produção de mapas e cartas geográficas110. Martinelli (2010) destaca que a construção de mapas está intrinsecamente ligada a um produto social do poder, refletin- do interesses, simbolismos e influências de determinados períodos. A prática de produzir mapas, ou melhor, utilizar grafismos para expressar relações com o meio físico, acompanha a humanidade a muito tempo. Freire e Fernandes (2010) indicam que os primeiros mapas foram criados antes do domínio da escrita. Entretanto, tais ma- pas diferiam das cartas geográficas. Para Careri (2013) os menires, primeiros objetos im- plantados pela humanidade na paisagem, não eram apenas megalíticos com significa- dos isolados, mas também se assemelhavam a orientadores de percursos: indicadores territoriais. Funcionavam como lugares de pausa ritualística e manifestavam caminhos a serem seguidos, concebendo um tipo de mapeamento a céu aberto, no qual os traços eram os próprios caminhos vincados no mundo. Careri (2013) também menciona o conjunto de gravuras rupestres de Val Camonica, lo- calizado ao norte da Itália, destacando especificamente o mapa de Bedolina, datado de aproximadamente 10.000 a.C. Na gravura sobre rocha, observa-se um sistema de cone- xões de um vilarejo, repleto de ilustrações da vida cotidiana, que compõem, juntamente com as linhas e vazios, diversos territórios. O mapa retrata figuras humanas interagin- do, cabanas, escadarias, animais e áreas de pastoreio. “Mais que decifrar os objetos, o mapa representa a dinâmica de um sistema complexo em que as linhas dos percursos no vazio entrelaçam-se para distribuir os diversos elementos cheios de território” (Careri, 2014, p.44). Ingold (2022 [2007]), revela que a maioria dos mapas desenhados pelos seres humanos foram marcados por sua efemeridade. Ao narrarem histórias de suas jornadas ou des- creverem mitos para compartilhar direções ou caminhos, os contadores traçam linhas em qualquer superfície disponível, como barro, areia e neve. “Comumente, assim que são feitas elas são apagadas, lavadas ou amassadas e jogadas fora” (Ingold, 2022 [2007], p.112). Assim são os mapas-rascunhos, descritos por Ingold (2022 [2007]), compostos por linhas de movimento, traçadas no desenvolvimento dos gestos e não através de uma superfície fixa. Portanto, as linhas dos mapas-rascunhos são as linhas do mundo habita- do, que se reconfiguram a partir do movimento da vida que transita entre elas. As linhas de movimento não são linhas que ligam pontos e criam redes conectoras (network), mas são tecidas em entrelaçamentos (meshwork) (Ingold, 2022 [2007]). 10 De acordo com Bueno (2004 apud Jacob, 1992), a carta geográfica trata-se de uma imagem plana da ter- ra ou de suas regiões e é composta por linhas e códigos simbólicos criados a partir de convenções gráficas. 53 O Mapa de Teozacoalco é um exemplo de mapeamento territorial muito intrigante. Composto por elemen- tos pictográfico mixteca, foi elaborado nas décadas seguintes à invasão espanhola (cerca de 1580), por- tanto, apresenta a influência europeia na paisagem. Com dimensões de 140 cm de altura por 176 cm de largura, a composição principal do território é apresentada em forma circular. A composição inclui uma narrativa genealógica de uma dinastia que se inicia no século X até o século XVI, e é permeada por ele- mentos da vida cotidiana e da natureza. Entre diversos grifos intrigantes, destaca-se as rotas traçadas em vermelho que interiorizam pegadas. Figura 16: Recortes do Mapa de Teozacoalco Fonte: Acervo Coleção Latino-Americana Benson da Universidade do Texas em Austin. Disponível em: https://collections.lib.utexas.edu/catalog/utblac:059d9312-d77c-41d9-81ed- -da65bda50a15 54 De acordo com Bueno (2004), no ocidente, a história da convenção na criação de mapas vincula-se às obras gregas escritas por Ptolomeu, as quais foram retomadas durante o Quattrocento. A introdução fundamental de tal estudo foi a trama ortogonal, que permi- tia a representação técnica do globo terrestre em uma superfície plana. A partir disso, surgiram também as convenções gráficas, que foram progressivamente aprimoradas pe- los tratados de agrimensura. Ocorreu, então, uma transição de uma representação natu- ralista para o uso de pictogramas e ideogramas. Assim, a dimensão decorativa foi sendo suprida pela função informativa (Bueno, 2004). A invenção da imprensa no século XV não apenas possibilitou a reprodução de mapas e sua difusão, mas também configurou a passagem de um mapa registro (mapa memória) para um mapa mercadoria (Martinelli, 2010). No início do século XVI, os interesses pela expansão do mercantilismo europeu impulsionaram ainda mais a entrada da cartogra- fia na manufatura, “passo decisivo para ela integrar o processo capitalista de produção” Martinelli (2010, p.4). O avanço na elaboração dos mapas continuou. No século XVII, atrelou-se a um domínio científico a partir das instituições das academias científicas. Desenrolou-se a serviço das reformas urbanas e das incursões exploratórias do imperia- lismo no final do século XIX. Serviu-se das novas geotecnologias do século XX, como o mapeamento aéreo e, posteriormente, do sensoriamento remoto. E continua avançando na era digital da contemporaneidade, com os diversos sistemas informatizados de mani- pulação e armazenamento de dados. Assim, os mapas-rascunhos foram sendo suplantados por rigorosos princípios matemá- ticos e projeções geométricas, nos quais a linha percorrida foi sendo reduzida a pontos interligados. Os mapas passaram a representar limites de uma localização demarcada, sendo envolvidos por bordas, seja pelas molduras que os sustentam nas paredes, seja pelas delimitações das telas dos celulares e computadores. A métrica e o domínio de uma certa forma de configurar mapas reforçaram a cartografia como uma ferramenta de manipulação do saber. Ingold (2022 [2007]), considera as linhas que compõem os mapas cartográficos moder- nos como linhas de ocupação, e não de habitação. “Isso porque a linha cartográfica não é o traço de um gesto, nem o olho; ao lê-la segue a linha como seguiria um gesto” (Ingold, 2022 [2007], p.114). As linhas do mapa cartográfico tornaram-se linhas conectoras, usu- almente retas e regulares e que apenas culminam em pontos nodais de poder. Tais linhas além de conectoras são linhas de fronteira, possuem ordem, uma hierarquia entre elas, e assim dividem e massacram territórios. Diferentemente, a linha de movimento e de habitação do mapa-rascunho, conforma uma narrativa coletiva, na qual os participantes ao descreverem suas diversas jornadas, adi- cionam novos traços aos traços dos gestos anteriores. Por isso o mapa-rascunho cresce no entrelaçamento de linhas e nunca está verdadeiramente completo. Já a cartografia moderna supre demandas, infere um conhecimento que é montado a partir da união de pontos fixos em uma representação complexa, não valoriza um conhecimento do ir “ao 55 longo”, mas do amontoar para cima, unificando fragmentos em compartimentos. 2.1.2 Do rizoma ao mapa aberto Deleuze e Guattari (1995 [1980]), subvertem a cartografia ao introduzi-la como um dos princípios do rizoma. Os filósofos descrevem o rizoma como um pensamento subver- sivo em relação às estruturas rígidas estabelecidas, que implantaram a árvore como a imagem ditatorial do mundo. “Muitas pessoas têm uma árvore plantada na cabeça, mas o próprio cérebro é muito mais uma erva do que uma árvore” (Deleuze; Guattari, 1995 [1980], p. 25). A árvore-raiz segue uma equação devidamente estruturada, as origens são valorizadas, assim como o fim pretendido, o percurso é apático, apenas supre expecta- tivas. Pensar transfigurou-se em radícula, raiz pivotante ou