JULIANA MARIA PADOVAN ALEIXO DANÇA, CORPO E PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADES: ATENÇÃO PSICOSSOCIAL E SEUS TERRITÓRIOS DE CRIAÇÃO ASSIS 2021 JULIANA MARIA PADOVAN ALEIXO DANÇA, CORPO E PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADES: ATENÇÃO PSICOSSOCIAL E SEUS TERRITÓRIOS DE CRIAÇÃO Tese apresentada à Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, para obtenção do título de Doutora em Psicologia (Área de Conhecimento: Psicologia e Sociedade). Orientadora: Elizabeth Maria Freire de Araújo Lima ASSIS 2021 Ao meu querido e amado pai. Que generosamente me transmitiu seu grande amor pela arte do conhecimento, dos vinhos, dos animais e da espiritualidade. Presença eternizada em minha vida. In memoriam AGRADECIMENTOS Este trabalho foi intensamente produzido na vizinhança com atores protagonistas na obra de minha vida. Assim, agradeço imensamente: À minha família: meu pai Luiz, em sua presença imanente, minha mãe Odila, meus irmãos Alexandre e Carol, grandes companheiros de minha existência, que me abraçaram com tantos afetos potentes ao longo da vida, contribuindo, assim, para que eu apostasse em vidas afetivas alegres. Ao meu companheiro de vida, de trabalho, de estudos, de mestrado, de doutorado, meu marido Gilson, sempre presente, me amparando e apoiando em tantos momentos da vida, e compartilhando tantos sonhos. À minha orientadora, Beth Lima, que compartilhou generosamente tantos conhecimentos, respeitando singularidades, apostando e sugerindo palavras e caminhos quando eu não os encontrava. Soube solidariamente construir um grupo de orientação, onde nos fortalecemos nas escritas e escolhas dos caminhos do desejo da produção de conhecimento, em meio ao afeto, aos bons encontros, ao respeito e grande companheirismo. À querida Ana Godoy, que acompanhou cuidadosamente o processo de escrita dessa tese, com delicadeza, sensibilidade, generosidade, fazendo aflorar palavras guardadas e esquecidas dentro de mim, guiando uma tessitura junto ao texto, trazendo a magia dos momentos vividos. Ao querido Silvio Yasui, pelos fundamentais apontamentos e sugestões acerca deste trabalho. Agradeço muito por compartilhar bons encontros no aconchego de seu lar junto com Helô e Niko, regados a vinhos, boa comida, boas conversas e nossa incrível viagem ao Egito, nos ensinando o quanto a produção de conhecimento na academia pode ser afetiva, leve e generosa. Agradecimento especial aos frequentadores e às equipes dos Centros de Convivência Rosa dos Ventos e Portal das Artes, espaços de tantos aprendizados, que vêm há muitos anos me instigando a produzir este trabalho. Muito obrigada a todas as Marias-bailarinas-mulheres, que a cada dia trazem sentidos, fazendo valer a pena cada dia de luta, resistência e insistência no SUS, na saúde mental, no acesso à cultura, saúde, arte. Ao Serviço de Saúde Cândido Ferreira, espaço de minha construção profissional na rede de saúde mental em Campinas. Lugar onde aprendo cotidianamente a resistir e insistir e, sobretudo, lidar com grandes adversidades, entendendo-as como forças da vida em vida. Às minhas cachorras, Trufa, Capitu, Athena e Chiquinha, que em seus afetos caninos colocaram-se sempre ao meu lado, acompanhando o tecer desta escrita, das leituras, apenas estando junto, ao lado. À Terapia Ocupacional, que com frequência me desestabilizou e provocou, alavancando desejos de movimento rumo a tantas possíveis expressões de vida. Profissão que me ensina dia a dia que outras formas de vida existem e pedem passagem... Por fim, a toda minha ancestralidade, todos aqueles que vieram antes de mim e que de muitas formas me possibilitaram estar aqui. Um salve aos meus mais velhos e aos meus mais novos! Que os caminhos estejam abertos e que as encruzilhadas sejam sempre presentes como possibilidades de novas escolhas e direções. Axé!!!! Triste, louca ou má Será qualificada Ela quem recusar Seguir receita tal A receita cultural Do marido, da família Cuida, cuida da rotina Só mesmo, rejeita Bem conhecida receita Quem não sem dores Aceita que tudo deve mudar Que um homem não te define Sua casa não te define Sua carne não te define Você é seu próprio lar Um homem não te define Sua casa não te define Sua carne não te define (você é seu próprio lar) Ela desatinou, desatou nós Vai viver só Ela desatinou, desatou nós Vai viver só Eu não me vejo na palavra Fêmea, alvo de caça Conformada vítima Prefiro queimar o mapa Traçar de novo a estrada Ver cores nas cinzas E a vida reinventar E um homem não me define Minha casa não me define Minha carne não me define Eu sou meu próprio lar E o homem não me define Minha casa… (Francisco, El Hombre. Triste, Louca ou Má) ALEIXO, Juliana Maria Padovan. Dança, corpo e produção de subjetividades: Atenção Psicossocial e seus territórios de criação. 2021. 105 f. Tese de Doutorado em Psicologia e Sociedade. Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, 2021. RESUMO Esta pesquisa cartografa o processo de construção de um modo de fazer, uma forma de conduzir um trabalho com corpo, dança e terapia ocupacional na atenção psicossocial, tendo como campo de pesquisa o grupo de dança do ventre do Centro de Convivência Rosa dos Ventos de Campinas, que a pesquisadora acompanha há cerca de 10 anos como trabalhadora/gestora. Para cartografar a construção desse modo de fazer, dessa possibilidade de trabalho com o corpo e a dança, foram utilizadas diferentes estratégias metodológicas de pesquisa e procedimentos. Valemo-nos, para isso, da construção de narrativas de pequenas histórias de momentos grupais, cenas, imagens e fotografias que marcam acontecimentos de vidas que foram atravessadas pelas práticas expressivas corporais em dança neste grupo, trazendo inclusive a cartografia dos processos vivenciados pela pesquisadora no trajeto com a dança do ventre e a técnica Klauss Vianna, assim como as transformações experienciadas nos encontros com as mulheres-Marias. Buscamos criar mapas do processo de construção de um modo de fazer, cartografando as linhas de singularização suas conexões e agenciamentos intensivos nos territórios do corpo que dança. Assim, a cartografia, a dança do ventre, a Técnica Klauss Vianna, a filosofia da diferença e os autores que constroem o tema do corpo e das atividades expressivas em Terapia Ocupacional como foco de investigação e reflexão, sustentam o trabalho teoricamente e se mostram intrinsecamente conectados à cena de criação dos processos do dançar que nosso campo de pesquisa apresenta, trazendo aproximações, reflexões e elementos que permitem colocar em análise esse espaço como campo de pesquisa-intervenção e criação. Palavras-chave: Dança do ventre. Terapia ocupacional. Técnica Klauss Vianna. Corpo. Produção de subjetividade. ALEIXO, Juliana Maria Padovan. Dance, body and production of subjectivities: Psychosocial Care and its territories of creation. 2021. 105 f. Doctoral Thesis in Psychology and Society. Paulista State University (UNESP), Faculty of Sciences and Letters, Assis, 2021. ABSTRACT This research maps the process of building a way of doing, a way of conducting work with the body, dance and occupational therapy in psychosocial care, with the belly dance group of the Rosa dos Ventos Convivence Center in Campinas as the research field. , where the researcher has been working as a worker / manager for about 10 years. To map the construction of this way of doing, of this possibility of working with the body and dance, different methodological research strategies and procedures were used. For this, we use the construction of narratives of small stories of group moments, scenes, images and photographs that mark life events that were crossed by expressive bodily practices in dance in this group, including bringing the cartography of the processes experienced by the researcher in path with belly dance and the Klauss Vianna technique, as well as the transformations experienced in the encounters with the women-Marias. We seek to create maps of the construction process of a way of doing, mapping the lines of singularization of their connections and intensive assemblies in the territories of the dancing body. Thus, cartography, belly dancing, the Klauss Vianna Technique, the philosophy of difference and the authors who build the theme of the body and expressive activities in Occupational Therapy as the focus of investigation and reflection, support the work theoretically and show themselves intrinsically connected to the scene of creation of the dancing processes that our research field presents, bringing approximations, reflections and elements that allow to put this space in analysis as a field of research-intervention and creation. Keywords: Belly dance. Occupational therapy. Technique Klauss Vianna. Body. Production of subjectivity. SUMÁRIO INTRODUÇÃO 13 1 PERCURSO DE PESQUISA 24 2 ITINERÁRIOS EM DANÇA: EU-MARIA 33 Histórias da dança do ventre: uma Maria no Egito 35 Visita à Vila Núbia 36 Dançando no cruzeiro no Nilo 39 Biblioteca de Alexandria 40 Jantar árabe no Cairo 42 Voando de balão em Luxor 45 Maria-bailarina-pesquisadora em dança: processo criativo na Técnica Klauss Vianna 48 3 MARIAS MULHERES: HISTÓRIAS MENORES 59 Maria-homem-mulher, mulher-homem que-sabia-ser-mulher 60 Maria-encantada e suas presenças 63 Maria-bailarina-de-rodas 65 Maria-tempo-e-coragem 67 4 VIVÊNCIAS EM UM GRUPO DE DANÇA 75 Processos do dançar e suas interfaces 77 No fazer, o corpo se faz 79 Técnica Klauss Vianna 82 Modos de fazer: as chegadas, nossos pés, nossos apoios, articular, alongar, aquecer 84 Nossos quadris, nossos vetores, nossos ventres 86 Experimentações: improvisos, coreografias, festivais, Chá Árabe 90 Coreografias 91 Festivais de Dança do Ventre 93 Chá-árabe 95 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS: TEMPOS DE PANDEMIA 99 REFERÊNCIAS 103 12 Fonte: arquivo pessoal. Fotografia: Letícia Carraro. 13 INTRODUÇÃO Vivenciar ativamente o campo da Atenção Psicossocial, ao longo dos anos, evidenciou o quão diversas e híbridas se apresentam as possibilidades de estar no território do cuidado. As estratégias de acesso, circulação, conexão aos territórios existenciais, compõem itinerários subjetivos de interação com a produção expressiva, artística e corporal de culturas que se encontram. Campo que tanto nos inspirou a inventar e ousar em nossas práticas de cuidado. Os avanços no campo do cuidado em saúde mental conviveram com práticas normatizantes que permaneciam presentes em vários cenários de produção do cuidado. Viés este que foi ampliado com os retrocessos atuais e o movimento de contrarreforma que temos testemunhado, incentivando o desmonte da política anterior pautada na Atenção Psicossocial e desestruturando o Sistema Único de Saúde. O foco da atenção voltou-se para a medicalização e a remissão de sintomas, e os serviços de saúde tradicionais, de característica asilar, passaram a ser vistos como únicos na via do tratamento, assim como a orientação nas abordagens para abstinência aos usuários que fazem uso abusivo de álcool e outras drogas. A saúde está, hoje, cada vez mais, sendo entendida como indicadora de normas a serem seguidas, alinhada às concepções sociais normatizantes e homogeneizantes. Nesse quadro, o sofrimento é tomado como sintoma que precisa ser controlado e eliminado, e o corpo é instaurado como território da norma, vivência de padrões, onde o adoecimento não pode ser visto como possibilidade de transformação, e sim como manifestação sintomática a ser remitida. Os desafios atuais nos colocam diante das estratégias de resistência, direcionando-nos a sustentar apostas nas práticas de cuidado no plano da invenção, da ousadia, da singularidade dos processos, caminhando na contramão da agenda conservadora que se apresenta ao projeto social de governo atual (YASUI, 2016). Como sustentar nossas apostas em modos diferentes de produção de cuidado, de saúde e de vida, em um cenário de forte desinvestimento nas políticas públicas? Como sustentar nosso projeto civilizatório que tem valores como acesso universal, integralidade, equidade, justiça social, em um cenário que setores conservadores jogam forte suas fichas na manutenção e no aprofundamento das desigualdades e das iniquidades? (YASUI, 2016, p.162). 14 Yasui (2016) nos propõe o desafio de retornar a uma Atenção Psicossocial menor ao trabalhar o conceito de literatura menor de Deleuze e Guattari (1977). Uma Atenção Psicossocial menor seria uma aposta nas multiplicidades que se conectam e interconectam na micropolítica, gerando novas multiplicidades. Intensificar a potência dos encontros, criando e ousando novas estratégias de guerrilha, fazendo a política como celebração cotidiana da potência de vida. Eis um imenso desafio: retornar a ser uma Atenção Psicossocial menor e desterritorializar essa prática discursiva majoritária, gaguejando e deixando emergir nossos sotaques, nosso estranhamento de quem fala fora desse lugar, desse não lugar. Reinventar uma língua, um modo de fazer que deixe passar a potência de vida. Nossa arte é uma arte menor, é a arte que se faz no cotidiano nas ruas em coletivos. Arte desterritorializada, nômade, mutante, que se multiplica em conexões rizomáticas. Fazer rizoma, como já experimentamos: com usuários, familiares, amigos, com outras experimentações, com outros lugares. Manter as portas e janelas abertas. Cavar outras aberturas. (YASUI, 2016, p. 174). Dentre diversos cenários de aberturas, resistências e possibilidades de vivenciar uma Atenção Psicossocial menor, encontra-se a experiência que temos sustentado na produção de encontros com a dança, a arte, o cuidado e a vida em suas diversas manifestações, e que esta pesquisa busca apresentar, estudar e discutir. Pensando, então, sobre as práticas artísticas e expressivas no campo da Atenção Psicossocial, observamos práticas que se encontram marginais aos campos da saúde stricto sensu, inserindo-se em territórios híbridos onde arte, clínica, cultura e produção de subjetividade se transversalizam, movimentando-se, compondo, conectando universos, singularizando processos de vida. Notamos nessas práticas movimentos de ruptura com o tradicional estabelecido nas clínicas em saúde mental. A intersetorialidade apresenta-se como protagonista na produção de intensas transformações subjetivas conectando os sujeitos a espaços outros nos cenários sociais, deslocando o investimento do lugar do tratamento da doença, do sofrimento, para lugares de criação, agenciamento e experimentação da vida em composição com as linguagens artísticas e expressivas. Práticas que atravessam a fronteira da saúde, conectando os campos do cuidado, da cultura e da arte, agenciando-os hibridamente, em experiências de difícil nomeação, nas quais a 15 arte se encontra com pessoas-margem que acessam os territórios da Atenção Psicossocial. Território no qual proliferam momentos estéticos, onde subjetividades em obra podem construir-se a si mesmas, configurando e dando forma ao caos e às rupturas de sentido que, muitas vezes, as habitam (LIMA, 2006). [...] Cada sujeito ao construir um objeto, pintar uma tela, cantar uma música, faz algo mais que expor a si mesmo e o próprio sofrimento. Ele realiza um fato de cultura [...] O valor que determinadas produções podem ganhar, passando a interessar justamente por seu caráter de singularidade, dissidência, deriva e inacabamento, e sua circulação num coletivo, provoca um enriquecimento dessas vidas; e aqui estamos tomando a vida, e não a arte como critério. Ao se articularem aos modos de expressão dominantes, modos de expressão dissidentes atravessaram a linha divisória que os separavam da produção cultural, ganhando cidadania cultural [...] e certo poder nas reais relações de forças. (LIMA, 2006, p. 326). Nos encontros instituídos entre arte, cultura e saúde, são acolhidas pessoas que passam por experiências-limite, rejeitadas em alguma medida por sua comunidade ou seu contexto sociocultural. Ao lhes propormos a participação em oficinas e grupos das mais variadas atividades, buscamos proporcionar experiências de criação. Muitas vezes, essas experiências, que se constituem em fragmentos estéticos ou performances que não podem ser reproduzidos, têm a capacidade de fortalecer vínculos, instaurar grupalidades, transformar vidas. São momentos em que arte, saúde, loucura e precariedade se conectam, questionando os limites entre arte e não arte, entre arte e vida, arte e clínica. Observa- se que situações estéticas e artísticas podem se apresentar como momentos clínicos de intensidade ímpar, que não podem ser repetidos, mas que têm a potência de provocar intensas transformações subjetivas, ampliando a capacidade de alguém em ser afetado, sensibilizado, potencializando a vida (LIMA, 2006). Assim, passamos a habitar um território com inúmeras produções híbridas num caminhar em regiões fronteiriças, nas quais arte, cultura e clínica estão implicadas em suas conexões, em suas dissonâncias, gerando um espaço de tensões que provoca desestabilização entre os campos. Vemos como desafio não reduzir essas produções a nenhum dos campos tradicionais, evitando encaixá-las em lugares mais facilmente legitimados e reconhecidos, para manter aberta a tensão que essas produções instauram entre elas. Vivenciar o incerto, o inacabado, o transitório, o efêmero, que 16 comporta as desterritorializações e os desequilíbrios dos sujeitos aos quais se conecta. Foi na perspectiva desse hibridismo entre práticas de saúde e práticas de corpo, arte e cultura, que se constituiu, no Centro de Convivência Rosa dos Ventos, em Campinas, um grupo de Dança do Ventre, campo de nossa pesquisa. Os Cecco trazem, em seu núcleo, estratégias de ação que têm como foco a produção de encontros através de oficinas, grupos e ações comunitárias. Trata-se de um equipamento idealizado a partir das diretrizes do SUS e da Atenção Psicossocial, onde se promove convivência, pertencimento e grupalidade mediados pelo cuidado. Esses parâmetros norteiam as ações das equipes do Cecco e suas relações com o território, com a rede de saúde, com a comunidade, fazendo interfaces com ações culturais e artísticas, buscando construir relações intersetoriais (ALEIXO, 2016). No Cecco Rosa dos Ventos, em Campinas, a equipe desenvolve práticas conectadas às novas formas de produção e de sensibilidade no campo do cuidado na Atenção Psicossocial. Entre elas, oficinas de artesanato, práticas de Yoga, ateliê de artes e o grupo de dança do ventre (ALEIXO, 2016). Assim, a proposta desta pesquisa é cartografar o processo de construção de um modo de fazer, uma forma de conduzir um trabalho com corpo e dança na atenção psicossocial que se deu neste grupo de dança do Centro de Convivência Rosa dos Ventos de Campinas que a pesquisadora acompanha há cerca de 10 anos como trabalhadora/gestora. Para cartografar a construção desse modo de fazer, dessa possibilidade de trabalho com o corpo e a dança, foram utilizadas diferentes estratégias metodológicas de pesquisa e procedimentos. Valemo-nos, para isso, da construção de narrativas de pequenas histórias de momentos grupais, de acontecimentos, de vidas que foram atravessadas pelas práticas expressivas corporais em dança neste grupo, trazendo inclusive a cartografia dos processos vivenciados pela pesquisadora no trajeto com a dança do ventre e a técnica Klauss Vianna, assim como as transformações experenciadas nos encontros. Investigando os processos de agenciamentos subjetivos vivenciados, as intensidades e seus movimentos, bem como articular essa experiência às propostas e práticas de cuidado nos territórios da Atenção Psicossocial. Dessa forma, essa pesquisa almeja dar visibilidade à trama de processos que fizeram emergir essa possibilidade de trabalho de corpo e dança, considerando o 17 caminhar da pesquisadora no encontro com a dança do ventre e suas afetações, seu percurso formativo ao longo dos anos na composição corpo, dança, terapia ocupacional e saúde mental. A experiência da pesquisadora em ir ao Egito vivenciando o solo propício da dança do ventre, as vivências transformadoras ao compor um solo como processo criativo dentro da técnica Klauss Vianna, dirigido por Jussara Miller e as histórias das vidas acompanhadas no grupo de dança, as técnicas utilizadas, e a imersão no trabalho com imagens, fotografias, movimentos, cenas, narrativas de experiências dos atores implicados nesse processo de produção vivenciado no Centro de Convivência. Um de muitos começos: testemunha de acontecimentos Cada existência é tão perfeita quanto pode ser. Um pôr-do-sol, uma fachada de um edifício, uma ilusão de ótica, uma dança de elétrons, um triângulo isóscele, uma ideia abstrata. Nesse plano não há nenhuma hierarquia, nenhuma avaliação possível. Não admite grau, cada existência possui seu modo de ser, intrínseco, incomparável. (David Lapoujade, 2017, p. 27) A experiência da escrita se tornou necessidade de resistência e sobrevivência. Necessidade de afirmação de vidas, experiências, desafios, angústias, alegrias, potências. Em que espaço marcar manifestações de existências tidas, em muitas tramas, como banais, desnecessárias, extermináveis? Escrever é dar força e testemunho a narrativas, histórias, seres, pensamentos, cores, texturas, cheiros, gostos, olhares. Escrever é partilhar, apresentar mundos talvez inalcançáveis. Escrever é deixar de ter para si algo tão precioso. Abrir mão de forças tão intensas que nos compõem, para generosamente poderem compor outros corpos, outras forças, outras existências. É deixar que a experiência se multiplique, se expanda, escape de nossas mãos, atravesse nossos muros e ganhe outros olhares, outras vozes. 18 Apresento neste trabalho, algo que já não é somente meu. É delas. É nosso. Das Marias. De nós Marias. E o desejo é que cada um que possa entrar nessa escrita, seja um tanto Maria. Mas isso não controlo mais. Apenas convido a conhecer a experiência que, durante anos, percebia quão diversa, potente e desafiadora se fazia em minha prática profissional. Perceber que nossos encontros semanais, durante uma hora e meia, produziam tantas possibilidades, tantas conexões e transformações, marcadas por cada Maria, intrigava e me fazia perguntar: mas o que de fato acontece aqui? Como num encontro de dança tantas coisas são possíveis? O que existe para além daquilo que percebo nesse espaço? Lapoujade (2017) nos coloca que por trás do sujeito que percebe, se desenha a figura da testemunha. Certas percepções privilegiadas incitam o desejo de testemunhar a favor da beleza ou da importância do que se presenciou. A testemunha nunca é neutra ou imparcial. Ela tem a responsabilidade de fazer ver aquilo que teve o privilégio de ver, sentir ou pensar. Ela se torna um criador. De sujeito que percebe (ver), torna-se sujeito criador (fazer ver). Mas isso porque, atrás da testemunha, surge outro personagem, o advogado. É ele quem convoca a testemunha, quem faz com que toda criação se torne um discurso de defesa a favor das existências que ela faz aparecer, ou melhor, comparecer. É preciso dar uma força, uma amplitude para aquilo de que fomos a testemunha privilegiada. (LAPOUJADE, 2017, p. 22). Ser testemunha privilegiada dessas existências, experiências e vidas que se conectaram ao meu percurso, remete ao início da vida profissional, dezesseis anos atrás, quando me inseri no aprimoramento em saúde mental, na Unicamp, no núcleo de saúde coletiva. O ano era 2004, e eu recém-formada em Terapia Ocupacional pela Puc-Campinas, bailarina de dança do ventre e professora de piano. O campo do aprimoramento foi o Centro de Convivência e Arte no Serviço de Saúde Cândido Ferreira. Nesse espaço, as primeiras experiências no campo do cuidado já me apresentaram a possibilidade de composição das práticas que me atravessavam, testemunhando existências que se transformavam em meio a essas vivências. Dança, música, terapia ocupacional. Após o aprimoramento, comecei o trabalho em um Caps III de Campinas, onde foi possível construir parcerias com ateliês e fortalecer o nascimento de um Centro de 19 Convivência no território. As danças, nas festas com os usuários do Caps, a música e as múltiplas parcerias sempre se fizeram presentes. Após quatro anos no Caps, cheguei à gestão do Centro de Convivência Rosa dos Ventos em 2009. Novos mundos se abriram, muitos desafios. Ao trabalho de gerenciar um serviço, uma equipe e tantas parcerias também se conectavam diretamente uma prática com os usuários. A escolha foi a dança. E assim teve início o trabalho com a dança do ventre no Cecco em 2011. Desde o princípio, testemunhei a passagem de muitas mulheres, de muitas idades, vindas de múltiplos universos: da saúde, das artes, dos afetos. Essas mulheres chegaram, ficaram, se despediram, voltaram, passaram rapidamente, estão há anos, indo e vindo. Muitas ainda chegam, muitas já passaram por ali. Trouxeram suas histórias, partilharam momentos das vidas, das danças, dos encontros, de muitas formas de estar juntas. Muitas delas se chamam Maria, assim como eu, Juliana Maria, assim como a querida Maria que orienta esse trabalho, Elizabeth Maria. Testemunhar é dar força a essas existências, fazer ver e dar legitimidade à diversas maneiras de ser e viver, como as das Marias que dançam e se encontram, transformando-se. 20 Fonte: arquivo pessoal. Fotografia: Letícia Carraro. Fonte: arquivo pessoal. Fotografia: Letícia Carraro. 21 . Fonte: arquivo pessoal. Fotografia: Letícia Carraro 22 . Fonte: arquivo pessoal. Fotografia: Letícia Carraro. 23 Fonte: arquivo pessoal. Fotografia: Letícia Carraro 24 1 PERCURSO DE PESQUISA Pensar o campo da pesquisa e seu percurso metodológico nos orienta como pesquisadores, contribuindo para a definição de nosso tema, delimitando nossas questões e norteando nossas ações. Nesta pesquisa, a imersão da pesquisadora num campo de intensas mutações, já habitado e conhecido como espaço-trabalho desde a pesquisa de mestrado, traz novas complexidades, transversalizando territórios e trajetórias em constante diálogo: pesquisa, trabalho e, agora, aprofundando, a experiência com a dança. Em nossa dissertação, intitulada Centro de Convivência e Atenção Psicossocial: Invenção e produção de encontros no território da diversidade (ALEIXO, 2016), abordamos a experiência de gestão de um Centro de Convivência em Campinas, dialogando com práticas nos campos das artes, da cultura e do lazer. O Centro de Convivência foi nosso campo de pesquisa e a cartografia de seu plano de produções sensíveis e intensivas nosso principal objeto de interesse, para que fosse possível colocar em análise as produções híbridas que têm lugar nesse território, no plano dos encontros. Trabalhamos as cartografias das produções intensivas dos encontros no Cecco nas vertentes do trabalho, da clínica e da gestão deste equipamento, entendendo essas frentes como eixos inseparáveis dos processos de produções sensíveis e contra-hegemônicos diante dos modelos tradicionais de produção de saúde. Nosso grupo de dança já nos colocou, naquela ocasião, questões relevantes, as quais nos trouxeram até este doutorado. Mantemos, então, nossa pesquisa ainda tendo o Centro de Convivência como espaço singular de experiências que desencadeiam processos que constituem comunidades e subjetividades coletivas, ampliando as possibilidades de cuidado, expandindo a vida. Mas, agora, com o olhar para o grupo de dança com as mulheres- Marias1. Dessa forma, a pesquisa volta-se para os constantes movimentos captados pela sensibilidade, pelo olho molecular, pelo corpo vibrátil que mergulha nas 1 Essa pesquisa foi aprovada pelo comitê de ética da plataforma Brasil CAAE 44453715.4.0000.5401. 25 intensidades que deseja cartografar a partir das experiências com a dança no Centro de Convivência. Os desafios são muitos: como trazer para o universo da pesquisa intensas mutações subjetivas e suas produções no trabalho com o corpo e a dança? Pensando o trabalho no grupo com as mulheres e o trabalho no corpo-próprio da pesquisadora, que ao longo do processo de pesquisa também foi se transformando e se compondo de muitas produções que instigam a investigação a partir do testemunho e vivências cotidianas de experiências vivas e sensíveis. Por isso a pesquisa foi instalada no ethos metodológico da cartografia como pesquisa-intervenção, considerando que toda pesquisa é intervenção, que toda intervenção em saúde é sempre uma atitude clínica-política, e que a análise não se separa da intervenção. Assim, A cartografia é sempre uma pesquisa-intervenção, pois é impossível, no encontro com o objeto de estudo, não haver zonas de interferências e de indeterminações, que podem, ou não, a levar a desestabilizações. Produzir conhecimento é desestabilizar, e isso é intervir. Nesse sentido, pesquisar é transformar, inventar, sempre. (ROMAGNOLI, 2014, p. 50). Diferentemente dos mapas, onde vemos a representação de um todo estático, a cartografia é um desenho que se cria ao mesmo tempo em que os movimentos de transformação da paisagem a ser cartografada. “Paisagens psicossociais também são cartografáveis” (ROLNIK, 2011, p. 23). O ethos cartográfico aponta para um fazer que acompanha processos de mutação, nos quais certos mundos se desmancham, perdem sentido, enquanto outros mundos surgem. “Mundos que se criam para expressar afetos contemporâneos, em relação aos quais os universos vigentes tornam-se obsoletos” (ROLNIK, 2011, p. 23). Assim, compomos com um modo de pesquisa que visa criar, inventar e acompanhar processos em constantes mutações: processos de subjetivação, processos atravessados por linhas de forças, colocando em análise forças de captura e de potência. Exercício ativo de um constante coengendramento entre produção de conhecimento, política e clínica, podendo ser a pesquisa uma via de criação e produção de cuidado, possibilitando a operação de mudanças (BARROS; PASSOS, 2012). As dimensões de cuidado e criação inscrevem a pesquisa em um paradigma ético-estético-político, que considera as implicações da pesquisadora com o campo. 26 Pesquisa implicada, pesquisa-inclinação que produz desvios sobre o campo investigado, pesquisa que não dissocia objeto investigado e sujeito que investiga, sujeito da/na investigação: pesquisa- intervenção. Desvios que podem se dar na alteração da demanda, na emergência do inesperado, nos deslocamentos que podem ser produzidos nas subjetividades que participam do estudo, nos focos de invenção parciais que podem eclodir no processo, eclodir na “pele” a qualquer momento da investigação. (PAULON; ROMAGNOLI, 2019, p. 7). Cartografar acontecimentos, paisagens psicossociais, nos faz buscar a criação da pesquisa em ato, incluindo subjetividades em transformação que acompanhem o caminhar de trabalhos expressivos corporais, em que, ao dançar, se encontra a possibilidade da diferença na diferença, experienciando um corpo-cartógrafo como uma rede intensa de conversações. Pensando que a matéria-prima da cartografia são as marcas experenciadas de um corpo (LIBERMAN; LIMA, 2015), desestabilizações, sensibilizações, afetos e intensidades são agenciados coletivamente nos encontros em nosso campo de pesquisa. Engendrar-se no pesquisar cartográfico em dança, no Centro de Convivência, convoca a construção de um corpo-experiência moldável às afetações. E de que forma produzir e deixar-se produzir um corpo-cartógrafo disponível ao pesquisar? Abrir questionamentos internos para pensar o percurso cartográfico, de certa forma, nos convida a construção de um corpo-pesquisa-cartográfico. Que tipo de corpo é este que se deixa afetar pelo mundo? Que tipo de sensibilidade percorre este corpo para dar conta das intensidades vividas? Tal sensibilidade e abertura surgiriam espontaneamente para todos ou alguns, ou poderíamos provocá-las e exercitá-las? Seria possível, ao cartógrafo, construir um corpo – mesmo por alguns “segundos” – que embarque em seu intento exploratório-inventivo? Que práticas de si seriam possíveis criar para instaurar tal corpo? Como fazer para sustentar a experiência de um corpo “que vibra em todas as frequências possíveis”. (LIBERMAN; LIMA, 2015, p. 2). Questionamentos que, ao longo da pesquisa, não se perdem, mas se atualizam a cada encontro, a cada acontecimento, mobilizando qualidades como atenção, presença, disponibilidade e sensibilidade. O trabalho do cartógrafo é um fazer permanente de si, na experimentação de um corpo que, continuamente, se configura nos encontros com outros corpos. O encontro do cartógrafo com o mundo é criação 27 permanente, delicada e sensível aos silêncios aos ruídos e poroso para que algo possa acontecer (LIBERMAN; LIMA 2015). Preparar terreno para que se possa cartografar, mapear. Esta preparação busca um grau justo de porosidade: um corpo pode estar excessivamente poroso de modo a deixar o mundo atravessá-lo sem, necessariamente, ser tocado por ele. Neste caso, trata-se de criar e densificar contornos, membrana, molduras para uma aventura errante. Trata-se de um exercício permanente de sensibilidade, de vitalização de corpos e relações, com aproximações e afastamentos que ampliam e redimensionam repertórios pessoais, existenciais e profissionais, para que o corpo amplie sua capacidade de afetação. (LIBERMAN; LIMA, 2015, p. 3). Para Suely Rolnik (2011), a tarefa do cartógrafo é dar língua aos afetos que pedem passagem e, para isso, espera-se que esteja mergulhado nas intensidades de seu tempo, atento às linguagens que encontra, devorando as que lhe parecem elementos possíveis para a composição das cartografias que se fazem necessárias: “O cartógrafo é, antes de tudo, um antropófago” (ROLNIK, 2011, p. 23). Para o cartógrafo, tal como proposto por Rolnik, as referências teóricas são produzidas com formas de pensar que podem vir de múltiplas cartografias conceituais. Teoria é sempre cartografia e se faz juntamente com as paisagens cuja formação ela acompanha. Assim, o cartógrafo absorve matérias de qualquer procedência, sem exclusão de linguagens ou estilos. “Todas as entradas são boas, desde que as saídas sejam múltiplas” (ROLNIK, 2011, p. 32). Por isso, o cartógrafo serve-se de fontes as mais variadas, incluindo não só escritas e não só teóricas. Seus operadores conceituais podem surgir tanto de um filme quanto de uma conversa ou de um tratado de filosofia. Ele está sempre buscando elementos/alimentos para compor suas cartografias. Verifica-se, assim, o critério de suas escolhas, que nessa pesquisa envolve eleger o percurso intensivo da pesquisadora em processo com sua dança, seu corpo, uma viagem ao Egito e suas afetações em relação com o trabalho no grupo com as Marias. Descobrir que matérias de expressão, misturadas a outras, que composições de linguagem favorecem a passagem das intensidades que percorrem seu corpo no encontro com os corpos que pretende entender. Nesse sentido, a composição de pensadores, como intercessores para essa pesquisa, também se apresenta de forma híbrida, assim como nosso campo. Autores 28 da filosofia da diferença, da dança e da Terapia Ocupacional, formarão o arranjo teórico-metodológico da pesquisa. Em dança, os referenciais de Klauss Vianna, Angel Vianna e Jussara Miller abrem perspectivas do trabalho corporal e da dimensão dos processos de criação como agenciadores subjetivos-artísticos. Referenciada pela educação somática, onde se compõem diálogos entre arte, saúde e educação, em construção do corpo próprio, a Técnica Klauss Vianna nos apresenta perspectivas como os processos de escuta do corpo; investigação dos princípios dos movimentos; a construção de um corpo próprio; o revelar a dança de cada um. Pensando a dança como modo de existir, produção de vida, expressividade e descobertas dos movimentos e gestos de cada subjetividade (MILLER, 2007). Referências com enfoques didáticos, estéticos e terapêuticos convergem em um ambiente onde todas essas informações dialogam. Busca-se a disponibilidade corporal para o corpo que dança, o corpo que atua, o corpo que educa, o corpo que canta, o corpo que pesquisa, o corpo que vive (MILLER, 2007). Jussara Miller (2007) contextualiza a experimentação da Técnica Klauss Vianna em momentos distintos que se conectam e se compõem a todo instante. Inicialmente, experiencia-se o processo lúdico, no qual são trabalhadas as presenças, a atenção, o presente, o aqui e agora do corpo que se atualiza nos gestos, disponibilizando o corpo para lidar com o instante presente. O foco do trabalho técnico concentra-se nas articulações, peso, apoios, resistências, oposições e eixo global. O olhar para os vetores corporais, nomeados por Klauss Vianna – Metatarsos, Calcâneo, Púbis, Sacro, Escápulas, Cotovelos, Metacarpo, 7ª Vértebra –, são sensibilizados ao longo do trabalho corporal envolvendo improvisos, gestos, silêncios, ritmos, instrumentos musicais diversos, explorando o contato e a entrega com o chão, centro de leveza, explorando apoios, resistências, posições, construindo outras possibilidades corporais e novos repertórios de movimentos. Experiências essas que compõem as vivências nos grupos de dança do Cecco e que trazem pluralidade aos processos dos trabalhos corporais, que também se conectam ao campo de saber da Terapia Ocupacional, onde mergulhamos nos territórios das atividades expressivas e artísticas, dialogando intensamente com autores como Flávia Liberman, Marcus Vinícius Almeida, Eliane Dias Castro, Elizabeth 29 Araújo Lima, que produzem conhecimento significativo referente às práticas expressivas corporais em Terapia Ocupacional. Sobre as práticas artísticas e expressivas corporais, temos os cantos, as escritas, as danças, as leituras, as fotografias, as performances, entre outras artes, como modos distintos de movimento, a fim de reconhecer fluxos e ritmos da vida, compondo vivências de criações singulares (LIBERMAN et al., 2017). Temos conduzido práticas corporais e artísticas que colocam em suspensão modos estratificados de pensar e agir com os corpos, acompanhando o impacto dessas iniciativas que reverberam em várias direções. Os encontros entre corpos nos movimentam e nos incitam ao trabalho expressivo, abrindo diferentes canais perceptivos que ampliam nossas sensibilidades, lugares e tempos. (LIBERMAN et al., 2017, p. 1). Os processos criativos vivenciados nas práticas artísticas, dão sustentação as desestabilizações da vida. Mobilizam espaços de arte, na formação inventiva e nas ações de cuidado engendrando novos territórios existenciais. Práticas que resistem às imposições que anestesiam os corpos, roubando seu caráter inventivo, distanciando-os uns dos outros, produzindo solidão e diminuição da potência de se presentificar no mundo (LIBERMAN et al., 2017). Ao pensar vidas que foram tocadas pelo grupo de dança no Centro de Convivência, que é o campo dessa pesquisa-intervenção, nos perguntamos: como a dança pode potencializar uma vida? Quais possibilidades de trabalho com o corpo e a dança podemos criar para cartografar? Buscamos criar mapas do processo de construção de um modo de fazer, cartografando as linhas de singularização suas conexões e agenciamentos intensivos nos territórios do corpo que dança. Compomos diários de campo, narrativas sensíveis e fotografias como guias que nos direcionam na pesquisa. As imagens que se encontram nesse trabalho compõem de forma expressiva com nossas cartografias. Marca de gestos, momentos, instantes captados que falam por si. Um texto além da palavra, um sub-texto dentro do texto, fotografias que nos abrem outras dimensões da experiência. Quando a escrita se esgotava, as imagens diziam. Corpo que dança Maria-pesquisadora, corpo que dança Marias-mulheres. Criando, cartografando em corpo, em dança, em imagens, em processo. 30 Assim, a cartografia, a dança do ventre, a Técnica Klauss Vianna, os autores que constroem o tema do corpo e a Terapia Ocupacional como foco de investigação e reflexão, se mostram intrinsicamente conectados à cena de criação dos processos do dançar que nosso campo de pesquisa apresenta, trazendo aproximações e elementos que permitem colocar em análise esse espaço como campo da pesquisa- intervenção. Colocar em análise suas potências, suas capturas, suas linhas de força, trazendo à cena a criação de novos regimes de visibilidade. 31 Fonte: arquivo pessoal. Fotografia: Evelyn Santos 32 Fonte: arquivo pessoal. Fotografia: Evelyn Santos Fonte: arquivo pessoal. Fotografia: Evelyn Santos 33 Fonte: arquivo pessoal. Fotografia: Letícia Carraro 34 2 ITINERÁRIOS EM DANÇA: EU-MARIA Grande parte do nosso Universo está em movimento. No espaço cósmico os planetas giram à volta do sol. O nosso próprio planeta, a Terra, roda em torno do seu eixo- este é um exemplo de movimento que se repete em cada átomo, onde os elétrons giram em torno de um núcleo de prótons e nêutrons. Neste cosmo em perpétuo movimento, os nossos corpos reagem de modo natural e instintivo às situações através de movimento e antes de se verbalizar qualquer resposta. Retraímo-nos com medo, erguemos os braços de surpresa ou estendemo-los para abraçar alguém que amamos. Observando o que nos rodeia, verificamos a maravilhosa sucessão das estações e a inexorável evolução de cada vida, desde o nascimento, passando pela maturidade, até a velhice e a morte. A própria vida é movimento. (J. Anderson) Em roda, todas caminhavam elevando o tronco e subindo uma das pernas. Crianças meninas. O nome do passo era em francês. As mães olhavam. Desajeitamento, esquisitice. Não era a dança de casa, dos aniversários, das imitações das apresentadoras infantis, das festas da família, da escola. O que era? Era uma aula de ballet para crianças. Mas a dança acontecia fora das aulas. Em uma aula de jazz, movimento, ginga, músicas diferentes, alongamento, as pernas tinham que chegar na orelha..., mas não chegavam. As festas juninas, os bailinhos, os passinhos sincronizados nas festas do bairro, da família, da escola, os momentos entre amigas meninas imitando os vídeos clipes das bandas preferidas, na cozinha, nos quartos e quintais das casas animadas pelos sons e brincadeiras. A dança estava ali. Outro dia, caminhando pela rua, uma música. Que som é esse? Um convite ao movimento: escalas, ritmos e harmonias diferentes, muitos instrumentos juntos e melodias que contavam uma história. Era música oriental árabe que tocava na aula de dança do ventre. Os ares de mistério e sensualidade da dança do ventre há tempos despertavam interesse. Gostaria de estar ali. Encontro desejado sem muito entender o porquê. Fui fazer uma aula experimental e fiquei. Tinha 16 anos. Muito tempo depois, deparei-me com algumas fotos da minha primeira apresentação de dança do ventre. O ano era 1998. Figurino vermelho com muitas 35 franjas, muitos brilhos, cabelos bem longos, rosto de menina. No batom vermelho e nos olhos pintados, longos brincos, pulseiras e anéis, uma realização: experimentar em-mulherar-se. O encontro com a mulher. Ser mulher. Os movimentos da dança oriental árabe seguem as bordas do corpo, trazem a ancestralidade da mulher em seus rituais femininos com a vida. Há muitas mulheres que dançam ao dançar. Ao descobrir os movimentos, a sensação de chegar a um lugar conhecido. Outras tantas coisas desconhecidas foram se achegando e encorpando um corpo que se fazia no encontro com os movimentos sinuosos, secos, ritmados e melódicos. Ainda há o momento da partilha da dança, da apresentação ao público. Preparação que constrói a mulher que dança. Figurino, maquiagem, cabelo, acessórios, unhas, partilha entre mulheres de um momento coletivo único. Corpos em movimento, transe, palco, luzes, aplausos, amigos e família que descobrem outras mulheres em cena. Desconhecimento e reconhecimento de si ao chegar em cena. Qual é o lugar em que se chega ao dançar? O estado de dança em cena leva a lugares outros onde se descobrem novos corpos. Nas academias, o apelo ao corpo molde, forma perfeita do movimento, a dança acontecendo por valores onde se escolhe o que se pode pagar. Figurinos, shows, “bailarinas fetiches” que enquadram a dança no mercado das casas de shows, espetáculos e empresários que ditam o que é para ser visto dentro da imagem de sucesso na dança árabe. Disputas, confrontos, exclusões, vaidades a qualquer preço. Mulheres violentadas pela busca de padrões. Mas também há surpresas ao chegar aos festivais de danças árabes. Diversidade de mulheres, de corpos, idades, figurinos, grupos, solos, movimentos que se multiplicam e abrem novas formas de acontecer. Espaços em que se abrem brechas, que tomam a forma de muitas mulheres que se transformam ao dançar. Quais espaços se torcem e se transmutam na intensa expressão feminina do dançar? O que o encontro desses corpos provoca no cenário da dança oriental árabe? Pensamos em produções subjetivas que traçam formas, possibilidades de estar em cena, em movimento. Corpos que se impõem no pulsar de experiências que levam a lugares outros. Heterotopias? 36 Histórias da dança do ventre: uma Maria no Egito O avião pousou no Cairo por volta das nove horas da manhã. Foram 20 e poucas horas de viagem. Conexões, escalas, fuso-horários; Maria atravessou dois continentes e, enfim, Egito. Uma viagem sonhada há mais de vinte anos. Cada detalhe da dança oriental árabe, nos leva ao Egito. Terra que se apresenta através da dança, da alegria e hospitalidade de um povo que se caracteriza por descobertas em todos os campos da ciência, e grandes obras, monumentos históricos e artísticos. Maria-bailarina-menina, quando iniciou sua experiência na dança do ventre, já sonhava com o Egito. Avistar ainda do alto do avião os montes intermináveis de areia, em meio às fumaças de nuvens, marcaram ainda mais a experiência do sonho. O calor intenso no Cairo e o barulho ensurdecedor das buzinas no trânsito caótico fizeram Maria acordar. Ruas movimentadas, falas calorosas entre os egípcios, sempre havia dúvida se estavam brigando ou se divertindo uns com os outros. As diferenças sociais e econômicas eram evidentes: havia um Egito para os turistas e outro Egito para os egípcios, além da marca importante da religião regulando a vida pública, como em muitos países muçulmanos. Os olhares masculinos em direção às mulheres estrangeiras eram tão constrangedores que, em algum espaço interno do corpo, Maria se recolheu e apaziguou os estranhamentos culturais vivenciados a cada segundo, ora como encanto, euforia, admiração, ora como invasão, violência, sentindo certo alívio em saber que ali estaria apenas por um curto período. Daqueles lugares que são incríveis por não se fazer parte deles. Mas Maria sentia o retorno a algo do qual também fazia parte. Não se tratava da cultura em sua totalidade, mas algo do corpo que se identificava nos gestos, nas músicas que tocavam nas rádios, nos sorrisos, nos figurinos e acessórios expostos nos mercados, nas cores vibrantes, nos cheiros de óleos, essências e incensos, nos doces e cafés de borra, e na fala melódica, rústica do guia turístico ao falar algo em árabe. Esse familiar chegava à Maria pela vivência da dança do ventre. Estar no Egito, caminhando entre os monumentos e as grandes obras a fez exercitar a memória histórica da dança. Os registros oficiais são escassos, pois muito da cultura árabe é de tradição oral, a língua, a dança e os costumes. 37 Observar a movimentação das areias no Saara, fez Maria entender que muito da história egípcia se parecia com os sopros das areias, algo que se faz e se desfaz com o tempo. Com o movimento dos ventos, se cobrem e descobrem monumentos estrondosos, tumbas imemoriais, patrimônios arqueológicos que revelam e desvelam existências intermináveis da vida humana. Visita à Vila Núbia Maria e o grupo de turistas foram encaminhados a um barco ou feluca (típica embarcação local) para conhecerem a Vila Núbia localizada ao sul do Egito, em Aswan. O passeio pelo Rio Nilo, em meio a paisagens de areia e granito, e às cáfilas de camelos caminhando às margens das dunas, contou com música e canto dos barqueiros, que animavam os turistas ao som dos derbaks, daffs (pandeiro árabe). Aos poucos, a vista das pequenas casas brancas e azuis às margens do Nilo foi se aproximando. Maria estava encantada. Ao descerem pelas pequenas ruas de areia da aldeia, homens e mulheres núbios se aproximaram para oferecer artesanato local, pequenas esculturas talhadas em pedras e madeiras da região, além de especiarias, colares e pulseiras feitos com sementes. O guia turístico Abdull, que acompanhou o grupo de Maria, direcionou os turistas até uma típica casa núbia pintada toda de azul, com animais embalsamados pendurados por todo o teto junto de outros enfeites típicos da região. Abdull ofereceu ao grupo de turistas um narguilé ou shisha, e sentou-se em roda contando mais sobre o povo Núbio. Uma das mulheres que também recebeu o grupo, preparada para mostrar aos turistas partes da vida núbia, sentou-se ao lado do guia fazendo desenhos de hena nas mãos das mulheres enquanto ouviam as contações do guia. Em certo momento, Maria, que buscava entender um tanto da história da dança do ventre contada por um egípcio, perguntou ao guia sobre a história da dança árabe e Abdull pontuou: “O povo daqui é muito alegre, dança muito. Em casa, nas festas com os amigos e até nas ruas, depois do ramadã”. Mas, com um certo constrangimento, o guia disse que as mulheres que dançam em casas e espaços para entretenimento são consideradas prostitutas, pois mesmo 38 sendo uma dança popular característica, havia algo a ser encoberto que a dança não poderia revelar. Bailarinas egípcias não são bem vistas no Egito, já as bailarinas estrangeiras podem dançar e se expor sem grandes problemas. “As estrangeiras não têm a família morando aqui. Tudo bem os outros falarem, elas não ligam...”. Abdull contou que a dança do ventre, ou raqs sharqi como é chamada no Egito, nasceu no mundo árabe, mas é considerada nativa em vários países. Disse que no Egito sua raiz é mais intensa, mas acrescentou que a dança cresceu para além das fronteiras, sendo praticada em vários países de todos os continentes, trazendo algo singular nos diferentes espaços onde acontece. No grupo de turistas que estava com Maria, Liliana, professora arqueóloga de uma universidade do Rio de Janeiro, também contribuiu com informações históricas da cultura egípcia. Estava em sua segunda visita ao Egito e dividiu, em diversos momentos, com o grupo sua grande paixão pela história. Contou à Maria que o processo de colonização do Egito, iniciado em 1778 com a entrada de Napoleãoo, em uma nau batizada Orient, composta por uma tropa de militares, cientistas e artistas, seria o marco da difusão da dança oriental árabe pelo mundo, inclusive tendo os franceses como autores da nomenclatura “dança do ventre”, ou melhor, danse du ventre (SALGUEIRO, 2012). Após os turistas tomarem um chá de hibisco e se entreterem com animais exóticos vivos na casa núbia, o grupo foi caminhando pelas ruas da aldeia em meio aos mercadores e camelos. No caminho, Liliana contou à Maria que, quando a comitiva napoleônica chegou ao Egito, a dança feminina local para entretenimento era praticada por duas classes diferentes de artistas: as ghawazi e as awalim. As ghawazi ou ghazya (singular) eram mais apreciadas por sua dança do que pelos números musicais. A palavra árabe ghawazi vem do verbo “invadir”, o que pode indicar origem árabe, mas também são associadas às ciganas (ghagar). Abdull acrescentou que elas se apresentavam sem véu, em lugares com homens e mulheres, como cafés, casamentos, festas e eventos públicos. Pontuou que essas festas se intensificaram após a chegada da comitiva de Napoleão e que os franceses estimulavam as festas para ter maior acesso às mulheres egípcias. Mas a relativa liberdade de que gozavam as ghawazi rendeu-lhes má fama entre os europeus e, consequentemente, a desvalorização de seu trabalho. 39 Enquanto ouvia Liliana e Abdull, Maria imaginava as ghawazi vestidas de forma exuberante, com uso de argolas no nariz e moedas por todo o figurino, tatuagens no rosto, grossas tornozeleiras, dançando e exalando intenso perfume. Imaginava as bailarinas equilibrando as espadas e os bastões dos soldados em suas cabeças, em suas cinturas, brincando com os lenços das mulheres, pegando as velas das mesas e iluminando partes do corpo, mostrando a agilidade de seus quadris. Também iam até os homens que fumavam a shisha, tragando parte do fumo, além de tomarem um gole roubado das taças de vinho e arak. Maria foi despertada de sua fantasia dançante surpreendida por um movimento de Núbios comemorando a chegada de uma noiva com seu vestido branco brilhante, olhos pretos pintados, brincos no nariz, tornozeleiras prateadas, sorriso marcante, anunciando sua chegada com o som dos guizos e moedas de sua roupa. Maria pensou se não seria esta, talvez, uma das ghawazi que, há tantos anos, tinham má fama. Histórias e realidades se cruzando, mulheres que são e foram tão mulheres como tantas Marias. Continuando a caminhada rumo ao barco, Liliana apresentou à Maria outra classe de artistas bailarinas. As awalim. O termo awalim ou almeh (singular) designava as artistas contratadas para se apresentarem principalmente para o público feminino, em festas e celebrações do harém (área da casa reservada às atividades das mulheres). Entretanto, quando acontecia de os homens estarem nas salas de apresentação, as vozes das awalim eram ouvidas por detrás de uma cortina ou biombo de madeira. O espaço de apresentação eram casas e côrtes. As artistas cantavam, dançavam, escreviam poesias e compunham canções. O significado da palavra almeh (mulher culta, educada) é um indicativo do prestígio da poesia, considerada a mais sofisticada manifestação artística árabe, componente das músicas cantadas por essas artistas (SALGUEIRO, 2012). Bem remuneradas e valorizadas, as awalim performavam majoritariamente para uma audiência feminina. Do interior do harém, onde apresentavam seus shows, estas profissionais eram ouvidas, mas não vistas pelos homens, nem mesmo o dono da casa era autorizado a ingressar no harém enquanto uma almeh performava (SALGUEIRO, 2012). 40 Nesse momento, já no barco que levaria Maria e os outros turistas ao navio, algumas crianças cantando se aproximaram nadando e se seguraram ao navio. Pediam gorjetas aos turistas e cantavam músicas em português com sotaque árabe. Maria, desperta das histórias contadas sobre as awalim, ainda tentava entender sobre mulheres que há tantos anos foram valorizadas e bem remuneradas no Egito por sua arte e intelectualidade, enquanto ali, em meio às águas do Nilo, aquelas crianças no risco, esforço e brincadeira em agradar os turistas, performavam suas músicas em português à procura de gorjetas... Choque de sentidos e realidades permeavam as terras faraônicas. Chegando ao Navio do cruzeiro, os turistas foram apressados para se prepararem para a noite da festa árabe. Maria iria dançar e estava ansiosa. Agora um tanto ghazya, um tanto almeh, um tanto núbia... Dançando no Cruzeiro no Nilo Dançar no Egito seria mais uma grande realização para Maria. Nos preparativos da viagem, a agente responsável pelo programa turístico, ao descobrir que Maria também era bailarina, propôs a dança e combinou com Abdull o momento da performance na festa árabe. Todos os turistas se caracterizaram para a festa e Maria usou um figurino adquirido fazia poucos dias no mercado Khan el khalili. Os acessórios e a maquiagem que compunham a apresentação foram cuidadosamente escolhidos. A música já havia sido escolhida e preparada. Outros turistas se somaram ao grupo de Maria, e os guias foram entretendo, organizando brincadeiras, aquecendo ainda mais a noite árabe. No momento da dança, os turistas generosamente aplaudiram, o que deixou Maria ainda mais animada. Dançar em terras egípcias, ou melhor, em águas egípcias, sob o Nilo, uma performance baladi, estilo popular árabe, que designa minha terra, meu povo, foi mais do que dançar. Foi uma experiência do inusitado ver uma bailarina de dança do ventre performar. Toma-se o expectador de imediato ao entrar em cena e leva-se onde os limites do corpo conseguem, apenas ali, transpor. Público e artista numa certa 41 comunhão de possibilidades se transportam. Uma experiência de transe captado pelos que se permitem fluir por essa dança que é em si intensamente convidativa. A exuberância dos movimentos e a composição da bailarina com a caracterização dos figurinos e acessórios criam uma atmosfera de cena em que dificilmente se desvia a atenção. Dançando, Maria por vezes sentia os pés flutuarem, inebriada pelas ghawazi e as awalin, misturando-se a elas e aos contos de suas danças e suas existências, dando forma a essas mulheres que há tantos anos ali se expressavam e se afirmavam em sua arte e resistência. Os movimentos dos braços e mãos de Maria pareciam tocar o ar, acarinhando e agradecendo o espaço que a acolhia em sua dança. Os quadris marcavam a percussão árabe intensa, presentificando o centro de forças do corpo. As ondulações do ventre sinuosamente se torciam e se emendavam em movimentos outros, criando sons e curvas que se harmonizavam na textura da pele. Os olhos de Maria se conectavam com outros olhos que a olhavam e com seu corpo, buscando-se em cena. Onde estava mesmo? Por alguns momentos Maria perdia-se de si mesma, dançando em certo transe onírico, seguindo a percussão de seu peito e os fluidos de seus ares. Respirava. Lembrava que, sim, estava ali, no Egito, com as ghawazi, as awalin, e tantas Marias que ali dançaram há muitos e muitos anos. Biblioteca de Alexandria Acordada de seu sonho real dançante, Maria correu para pegar o ônibus junto com os outros turistas. O destino era a biblioteca de Alexandria. Uma das mais antigas e influentes de que se tem notícias na história. Algumas horas de viagem e chegaram à região centro-norte do Egito, Alexandria, que se estende por trinta e dois quilômetros de costa mediterrânea. O grande porto, o gás natural e os poços de petróleo em Suez, tornam a região um grande centro industrial, beneficiando também a ligação entre o mar vermelho e o mar mediterrâneo, ponto de encontro entre Europa, África e Ásia. Chegando à frente da estrondosa construção da biblioteca, os turistas foram levados a observar o teto, construído especificamente para aproveitar a luz solar 42 intensa, abrindo e fechando suas partes automaticamente, simulando o formato dos olhos, com desenhos do alfabeto de todas as línguas do mundo. Maria se aproximou de Liliana, aproveitando as informais aulas da professora que tanto agregaram ao conhecimento histórico da cultura árabe. Ao entrarem na biblioteca, em meio às imensas colunas, as incontáveis estantes com livros se abriam como o Mar Mediterrâneo, que encantou a todos ao lado da biblioteca. Abdull percebeu que Maria ainda desejava mais informações sobre a dança e a direcionou para sessão de livros de arte, onde poderia encontrar algo. Liliana e Maria começaram então a procurar algo. Enquanto procuravam informações em meio aos livros de dança, a professora contou que, no final do século XVIII e início do século XIX, a dualidade artística entre as ghawazi e as awalim, começou a se borrar. O financiamento de exércitos mamelucos resultou no esfacelamento da economia egípcia. Numa reação em cadeia, os impostos foram elevados, a população se empobreceu e conflitos populares tornaram-se mais frequentes. Diante de tal cenário, somado à entrada das tropas francesas, as awalim, mais valorizadas, deixaram o Cairo em direção ao sul do país, à região nomeada said, de onde retornariam apenas em 1801, com a saída dos franceses. Liliana estava inspirada em meio aos livros e continuou dizendo que essa espécie de diáspora impactaria grandemente a história da dança solo feminina árabe: artistas que antes não eram consideradas, as awalim passaram a se apresentar como tal; novas categorias artísticas se desenvolveram, e a imagem da dança sofreu uma alteração com grandes questões relacionadas à prostituição das dançarinas regionais (SALGUEIRO, 2012). Com a saída dos franceses, em 1801, comandada pela Inglaterra e pelo império Otomano, e a ascensão de Mohammed Ali ao poder no Egito, os impostos sobre os artistas endureceram ainda mais. O aumento dos impostos levou à dispersão das artistas para fora da cidade do Cairo. Os europeus, cada vez mais presentes no Egito, interessavam-se pela dança e, junto com os militares, alimentavam o mercado de entretenimento feminino local (SALGUEIRO, 2012). Em certo momento, Abdull também se aproximou e, participando da conversa, acrescentou que Mohammad Ali desejava modernizar o Egito, buscando imitar os costumes ocidentais, e assim atacou muito da cultura e dos costumes árabes, em especial a dança. Chegou a proibir dançarinas, cantoras e muitas outras artistas de 43 trabalharem no Cairo. A punição eram 50 chibatadas em público, e se houvesse reincidência, anos de trabalho forçado eram impostos às artistas. O guia se emocionou um tanto ao dizer que muitas mulheres, para não serem pegas, se vestiam de lavadeiras e pedintes para chegar à casa dos estrangeiros que as contratavam. Mas a maioria fugiu do Cairo, indo para as cidades menores, onde a fiscalização era menos intensa. Chegaram, então, no sul, em Luxor, Qenah e Essna. Os europeus sabiam onde as encontrar e viajam para o sul procurando pelas artistas (SALGUEIRO, 2012). Tentando traçar uma rota sobre as artistas no Egito, Maria entendeu que a percepção sobre elas e sua imagem foi mudando ao longo do tempo. Se, em meados do século XVIII, awalim indicava a artista da corte, que recitava e cantava, no começo do século XIX eram apontadas como cantoras e dançarinas e, em 1850, dançarinas prostitutas marginalizadas e proibidas de viverem de sua arte. Já era hora de os turistas se despedirem da incrível biblioteca de Alexandria. Mas Maria gostaria de passar o dia todo por ali, buscando entender mais sobre as mulheres artistas no Egito. De certa forma, as histórias dessas mulheres remetiam à própria história de Maria e de tantas outras mulheres mundo a fora. Jantar árabe no Cairo Ao retornarem ao Cairo, mais um jantar árabe, mas dessa vez em um restaurante flutuante sobre o Nilo. Maria estava ansiosa para ver uma bailarina profissional dançando no Egito. Abdull sugeriu então o Nile Maxim Crusing Restaurant, com performances de bailarinos profissionais ao longo da noite. Dessa vez, o grupo de turistas que acompanhou Maria era menor: duas brasileiras amigas com nomes iguais, as Carinas, e também o companheiro de Maria que, durante toda a viagem, esteve bem presente. Ao chegar ao restaurante, o pequeno grupo de Maria foi bem notado. Brasileiras no Egito são um destaque, mesmo acompanhadas de um homem. Habituadas aos olhares egípcios, todos se sentaram e aguardaram o início das apresentações. 44 Uma banda árabe iniciou o show, cantando e tocando músicas bem familiares para Maria. Muitas delas já dançadas nas aulas e festivais de dança pelo Brasil. O cantor percebeu a empolgação da mesa de brasileiros e convidou Maria para dançar. Mais um momento incrível, dançar novamente, dessa vez, ao som dos instrumentos ao vivo. O cantor também convidou o companheiro de Maria, e então o casal se divertiu no palco do restaurante dançando e comemorando mais uma noite árabe. Ao se sentarem, as performances tiveram início. Um bailarino de dança folclórica Tanoura subi ao palco. Essa dança se originou da dança Sufi de Zikr e está relacionada à invocação e conexão com Deus pelo dervixe rodopiante. Foram alguns bons minutos de dança, em que, sem parar, o bailarino girava, numa espécie de transe, olhos fechados, mãos ora em direção ao alto, ora colocadas sobre o coração, interagindo com suas diversas saias coloridas que se abriam, subindo e descendo pelo corpo enquanto o corpo girava sem pausa. Em certo momento, sua saia se acendia, e luzes coloridas refletiam de seu figurino. Maria ficou impressionada, constatando que os homens árabes são conectados à dança de sua cultura. Seja a tanoura, o dabke ou as danças informais, há grande desenvoltura dos homens ao dançar. Tomada por esses pensamentos, e aproveitando a breve pausa do show, ela e os turistas se encaminharam até a área externa do restaurante. Ali, Maria encontrou com o bailarino Said, que há pouco se apresentara. O grupo de brasileiros elogiou a performance do artista que agradeceu cordialmente, e Maria aproveitou para saber mais sobre os homens na dança. Said, comunicando-se em inglês com o grupo, ofereceu um chá de menta e convidou os brasileiros para se sentarem no café externo do restaurante sobre o Nilo. O grupo aceitou animado. Said comentou que, em relação à presença dos homens na dança, os khawal são os dançarinos que preenchiam o vazio deixado pelas dançarinas mulheres em eventos sociais após elas serem expulsas dos grandes centros urbanos. Mas enfatizou que nunca as substituíram. Também conhecidos como gink (quando estrangeiros), sempre atuaram profissionalmente na dança no Egito, mas sua presença se ampliou com o banimento das dançarinas. Said pontuou que sempre foram presentes em festas, casamentos, circuncisões e celebrações em geral, pois a dança egípcia era mais do que entretenimento para estrangeiros, era parte da estrutura sociocultural egípcia, mas 45 estava abalada pelo projeto de modernização. Na ausência das mulheres, os khawal ampliaram seu campo de trabalho e sua atuação (SALGUEIRO, 2012). Said relatou que os dançarinos se organizavam socialmente a partir de sua profissão, morando nas mesmas áreas e casando-se entre si, formando praticamente uma classe social distinta. Mesmo quando paravam de dançar, casavam-se, tinham filhos e continuavam no mesmo meio, atuando como músicos ou como “orientadores” de outros artistas mais jovens. A prostituição também acontecia entre os khawal, ainda que nem todos se orientassem sexualmente como homossexuais. A troca de sexo por dinheiro era, para muitos, como no universo das mulheres, um meio para tentar conseguir melhores condições de vida (SALGUEIRO, 2012). Nesse momento, os músicos anunciaram a entrada da bailarina estrela da noite, que chegou ao palco com seu véu, exalando perfume por todo o salão do restaurante. Era uma bailarina russa. Figurino impecável, grande habilidade técnica, apresentou aos turistas um lindo repertório egípcio de dança. Em dado momento, também convidou Maria para dançar, que mais uma vez realizada, subiu ao palco, ao lado da bailarina, interagindo com o tahtib, bastão árabe, em meio às palmas e alegria do público presente. A linguagem da dança árabe foi o suficiente para as bailarinas ali se comunicarem e dançarem. Por alguns minutos, as distâncias entre essas mulheres se borraram. Os gestos e movimentos de quadril relacionados à música eram familiares a elas, que dialogaram com suas danças. Brasileiras, russas, em meio à dança árabe se conectavam com intensidade. Afinal, as estrangeiras podiam ali dançar, as egípcias que eram mal vistas. Mas Maria lembrou-se também que foram as egípcias que transmitiram tudo o que sabiam sobre a dança às mulheres de todo mundo que se encantam com essa arte. Os paradoxos da cultura árabe são intermináveis, os efeitos da colonização do Ocidente frente ao oriente e a força do islamismo são incalculáveis. Porém, para Maria, havia uma magia em poder saber algo daquela cultura da dança que tanto amava, mesmo sem nunca ter pisado naquelas terras. Maria se sentiu agradecia às egípcias por poder estar ali dançando. 46 Voando de balão em Luxor Quando o navio do cruzeiro chegou à Luxor, Maria sentia a importância de estar ali. Antiga Tebas, Luxor é considerado o maior museu ao ar livre do mundo. O complexo de ruínas de Carnaque e Luxor, os templos no Vale dos Reis e das Rainhas, são estrondosos e de uma importância ímpar para a história. O passeio de balão deixou Maria ansiosa. Ainda de madrugada, os turistas foram encaminhados ao local do embarque. Ao chegarem, o local estava cheio e muitos balões já estavam embarcando. O fogo acionado e o início do voo são momentos tensos. Quando o grupo de Maria se acomodou na cesta e o balão começou lentamente a deslocar-se do chão, Maria foi contagiada por uma grande alegria. Seu companheiro estava animado e registrava o momento com vídeos e fotos. Ao subirem, o Sol nasceu em tons alaranjados e avermelhados iluminando os templos do antigo Egito na margem ocidental do rio Nilo. O vento empurrava os balões para o alto e soprava nos rostos encantados ao avistarem o Vale dos Reis e o Templo da Rainha Hatshepsut, templos incríveis incrustados em rochas. O condutor do balão, Samir, orientava o grupo e indicava os templos à medida que o balão se aproximava das construções históricas. Samir era egiptólogo e procurava contextualizar historicamente o grupo. Falou espontaneamente sobre a dança árabe ao mostrar para o grupo o templo da Rainha Hatshepsut, local onde se acredita que a dança do ventre tinha sido bastante praticada em rituais religiosos e cerimônias do cotidiano egípcio. Samir colocou para o grupo que a dança foi fundamentalmente impactada pela política colonial. O entretenimento, assim como o restante da vida social egípcia, precisava ser controlado diretamente pelas lideranças no início do século XX. Algumas danças associadas a rituais religiosos foram proibidas e contidas, e, na virada do século, as bailarinas passaram então a dançar em hotéis. A forma de se apresentar, vestir e dançar, em um Egito tomado pela política civilizatória europeia e fixado pelas lentes do cinema, havia mudado e muito a essência da cultura egípcia. Samir pontuou que, no Cairo, por um lado, a dança acontecia nas ruas, como atração de casamentos e feiras, e, por outro lado, acontecia também em boates e teatros de variedades (SALGUEIRO, 2012). Ele revelou que sua avó era artista da dança e lamentava a divisão que havia se criado no Egito: uma dança egípcia para os egípcios, outra dança, a dança do 47 ventre, para não egípcios – fossem estes árabes, europeus ou mesmo egípcios afrangi, ocidentalizados. Foram necessárias inúmeras adequações para sua avó se enquadrar para sobreviver, como a recomendação para cobrir a barriga ou ao menos o umbigo, como se vê em algumas danças das mais famosas artistas de então, Samia Gamal, Tahia Karyoka e, pouco depois, Suheir Zaki (SALGUEIRO, 2012). Samir confidenciou ao grupo que sua avó sofreu fortemente com o conservadorismo nacionalista religioso e o controle sobre o corpo feminino – os quais se relacionam diretamente com o islamismo. Entendia-se que a honra e a soberania nacional eram incorporadas na mulher egípcia. Buscava-se, então, apresentar nos novos meios de comunicação (principalmente o rádio) modelos de comportamento conservadores e “típicos”, que reforçassem o orgulho nacional e o sentimento de partilha de uma coletividade particular, ao mesmo tempo em que se demonizavam comportamentos tipicamente colonizados (SALGUEIRO, 2012). Samir colocou que a dançarina, portanto, uma personagem que transitava entre os mundos com seu figurino orientalizado, não podendo representar o Egito. As mulheres que incorporariam o novo Egito nacionalista seriam a cantora Umm Khaltoum e a bailarina folclórica Farida Fahmy, primeira bailarina da Firkat Reda, companhia de dança estatal. Umm Khaltoum foi uma artista que se engajou no movimento nacionalista árabe e incorporou os predicados de um Egito autônomo, poderoso e orgulhoso de suas tradições. Era uma cantora amada e reverenciada por todo o Egito. A Firkat Reda, companhia de dança da qual a avó de Samir fez parte, assim conseguindo sobreviver e sustentar sua família, integrava a política cultural da república. E a imagem de autenticidade que refletiam para sua audiência era antes a de um egípcio cosmopolita, moderno e ainda assim conectado ao seu folclore, suas tradições (SALGUEIRO, 2012). Samir cantou algumas canções em árabe sobrevoando Luxor, músicas que sua avó dançava com a campainha de dança de Reda, e agradeceu aos céus, tão próximos do balão ao alto, pela dança que sustentou as mulheres de sua família possibilitando que estivesse ali. *** 48 Navegar nesse trajeto histórico, pelo percurso de um corpo que encontrou na visita ao Egito a história da dança oriental árabe, entendendo sua origem, suas influências, interferências políticas e socioculturais, nos amplia a compreensão dos acessos possíveis dessa proposta de dança. No Brasil, nos anos 1950, a brasileira Samira e a palestina Shrerazade iniciaram o trabalho com a dança do ventre, e, em meados dos anos 1970, temos registros da dança em espaços de aulas e entretenimento, mas começou a se difundir de modo mais concreto no início dos anos 1990. A dança do ventre expandiu-se ainda mais após a novela O clone ser exibida em rede nacional e internacional. Muitas pessoas no Brasil se encantaram, buscando os shows e também se profissionalizando, abrindo no mercado da dança espaços específicos para as apresentações e festivais folclóricos. A intensa busca por aulas e apresentações de dança do ventre coloca em evidência a potência dessa forma de expressão, sendo ferramenta importante de acesso ao corpo e descobrimento de novas possibilidades. Os movimentos da dança árabe trazem para o corpo da mulher heranças históricas de múltiplas interferências que as mulheres carregaram ao longo de tantos anos ao dançar. Disputas, violências, potências, fragilidades e lugares inúmeros de possibilidades de a mulher manifestar sua arte e sua presença. Mulheres cultas, mulheres prostitutas, mulheres resilientes, mulheres subversivas, mulheres que também se enquadraram, mulheres que resistiram, mulheres que sobreviveram e de muitas formas puderam dançar e transmitir uma expressão artística que, por tantos anos, se afirma e se atualiza no corpo de cada mulher que dança. As mulheres que, hoje, acessam um trabalho com dança oriental árabe de muitas formas se conectam com mulheres que construíram essa história de luta e sobrevivência com a dança, diante de realidades extremamente aprisionantes, violentas e abusivas. Uma dança ancestral que resgata a possibilidade de superação de cada mulher que a viveu e a dançou. Esses efeitos se fazem presentes com as Marias em nosso grupo de dança. A dança do ventre acessa um espaço de trabalho interno, ao encontro das mulheres que somos e das mulheres que já dançaram e que estão presentes em nós. As Marias. 49 Essas intensidades vivenciadas se estruturam e se ampliam com a composição das propostas da técnica Klauss Vianna e a dança oriental árabe. A técnica Klauss Vianna vivenciada por Maria, Eu-Maria, convida à pesquisa do movimento no corpo das Marias que dançam e se conhecem, reconhecem e se criam a cada possibilidade. Maria-bailarina-pesquisadora em dança: processo criativo na Técnica Klauss Vianna Gente é como nuvem, sempre se transforma... (Angel Vianna) Experimentar a dança oriental árabe através da técnica Klauss Vianna, tem sido um processo novo de constante transformações e criações. Novas formas de acessar movimentos, novas descobertas de gestos e possibilidades corporais. Vivência que transforma a dança de Maria-bailarina-pesquisadora, eu, Maria, minha dança, meu corpo e a maneira de apresentar as possibilidades da dança para as Marias em nosso grupo. O espaço de formação da técnica Klauss Vianna com a dança, no salão do movimento em Campinas, com Jussara Miller, tem possibilitado inúmeras reflexões e vivências do dançar. Com a dança do ventre até os dias de hoje são 22 anos de prática. Há cinco anos a formação na técnica Klauss Vianna. E com a Terapia Ocupacional já somam 17 anos de trabalho. Fazeres que me fazem e que me fazem fazer. Tempos que se conectam e que me possibilitam tantas aberturas e transformações. E assim, muito do que se transforma em mim, ativa transformações por onde posso transitar. Em 2016, após a defesa de mestrado de Maria-bailarina-pesquisadora, as sensações de aberturas se faziam necessárias. O processo de escrita da pesquisa, o mergulho no universo do trabalho, abriram outras necessidades de escrita, outras 50 necessidades de experiências. Um desejo que já se apresentava era de poder perceber o corpo de outras formas. Maria-bailarina-pesquisadora percebia um certo esgotamento da dança do ventre. Não enquanto necessidade de aprofundamento técnico, mas enquanto necessidade de conectar-se com o próprio corpo em movimento. Acessos outros, caminhos outros e possibilidades de me perceber dançando. Pesquisando, fui a uma aula no salão do movimento. Cheguei atrasada, num grande espaço em meio a natureza e todos estavam deitados no chão de madeira. Não era alongamento. Era um momento de entrega do corpo ao chão. Ao deitar, senti que não precisa me preocupar como nas tradicionais aulas de dança, que ficamos observando a professora para ver se estamos certas. Fechar os olhos, perceber o peso do crânio, de cada estrutura corporal. Reconhecer os nomes dos ossos, já esquecidos das aulas de anatomia. Sensação de ter chegado aonde Maria precisava chegar. Aos poucos fui articulando no chão, experimentando movimentos deitada, sentada, de quatro apoios até me levantar. Subir e descer, descer e subir. Seria um preparo para a dança que viria? Apenas um aquecimento? Ouvia sobre os vetores e pensava que até que enfim, alguma coisa das aulas de física fazia algum sentido. Mas apenas aulas e mais aulas depois, descobri de fato como entender os vetores no meu corpo, nos meus pés, bacia, braços e cabeça. Entender os vetores no corpo é a dança. Não era um preparo para algo maior depois, descer e subir, subir e descer se movimentando, é a dança já acontecendo em muitas possibilidades corporais. E apenas os tempos do corpo e dos processos poderiam compreender essa dança. As coisas aconteciam de alguma maneira, e, quando me percebia, já estava ali dançando, alongando, improvisando, descobrindo formas novas de me movimentar e de entender também como os movimentos da dança do ventre aconteciam em meu corpo. Descobertas que permitiram cuidar da minha postura, das dores insistentes, das limitações de meu corpo que ora poderiam ser desafiadas, ora respeitadas. Corpo é esse lugar de escuta e decisão: quando repousar, quando avançar, cruzar os espaços, focar num único ponto, olhar para si, olhar para outro, expandir, recolher, respirar, transpirar... Lugar de experiência e muitas transformações. 51 Então, no ano de 2018, participei do curso de formação em processo criativo. Vivência que, ao longo de um ano, pude trabalhar singularmente um solo de dança construído a partir de estudos trabalhados em tópicos corporais da técnica Klauss Vianna, o solo de dança Sopros. Uma criação ativada pela pesquisa do corpo em movimento, minha dança. A partir dos tópicos estudados, era provocada a criar movimentos. Dança. O estudo do movimento nos leva ao estado de dança. Presença. Encontrar música, silêncio, respiração. O que o corpo pede? Os temas partem do corpo. O peso, apoio, qualidades do movimento: peso em fluência, peso em pêndulos, impulsos. Peso, entrega e recuperação. Lidar com o peso traz leveza. Leveza dos véus e tecidos em movimentos. Apoios ativos e passivos, apoio do olhar. O que se passa no passivo? O que ativa no ativo? Os apoios são necessidades de movimentos. Espaço articular. Liberdade de movimento, liberdade de criação. Sopros São muitas as possibilidades de presenças. Cada posição de cena desperta algo. Cada canto da sala ou palco, estar à frente ou atrás, nas diagonais, no centro. Tem um tanto da posição que não são linhas ou desenhos de palco, são estados. Estados de presença. Às vezes se esvai, às vezes se recupera algo, às vezes não se perde. Chegamos na atenção. Atenção a si, atenção ao espaço, atenção ao outro, atenção ao observador em cena. Para iniciar escolho o chão, escolho o centro, escolho deitar com os pés apoiados e os braços abertos. Inicio o articular dos dedos, pensando o estudo do movimento parcial. Dos dedos, articulo punhos, cotovelos, ombros, interajo com o outro braço, mãos com mãos. Toques, articular, sinto o toque do tecido no chão. Comecei sem o tecido ou véu, depois com o tecido entendi que a movimentação amplificava. Explorando a transição dos movimentos parciais até o movimento global. Vou subindo até o nível alto e articulo movimento global na interação com o véu. No canto da sala vou ao chão novamente. Agora o véu cobre rosto e corpo. Reinicio o movimento parcial dos dedos, punho e lentamente vou me descobrindo de véu... 52 Estou no chão e para o tópico peso escolho rolar atravessando o palco. Soltar o peso, empurrar, amortecer, impulsionar. Lidar com o peso no chão. Sempre fico zonza, enjoo, mal-estar... dançar é sempre bom? O véu se embala nas mãos enquanto rolo. Chego no outro lado do palco. Apoio. Vou me empurrando e apoiando para chegar ao nível médio. Amasso o tecido nas mãos. Apoio mão com mão e o tecido se comprime nesse apoio de mãos no ar-espaço. Subo ao nível alto e caminho de costas articulando e explorando o apoio ativo das mãos no tecido amassado. Retomo o tópico peso explorando uma sequência de peso com entrega e recuperação. Lanço o véu à frente e recupero trazendo-o para trás. Com o véu em uma das mãos, experimento o peso em seu estado de fluidez, com giros na interação com o tecido. No giro, transito do fluido ao estado de resistência. Inicio pelos braços com o tecido sendo puxado, entendendo que a resistência nasce dos pés e chega até as mãos. O tecido é direcionado ao chão e os pés afirmam o estado de resistência pisando no véu. Não desloco muito. Esse estado é bem exigente, me concentro muito nesse momento. O tecido está no chão e num certo momento da música lanço para trás e corro em direção à diagonal. Fundo. Aqui, o tópico oposição direciona a sequência. Corro para a frente e o véu fica para trás. Abandono o véu no chão e chego ao lado oposto da sala de costas. Apoio na parede e olho para o véu. Oposição que vai mudando à medida que me aproximo do véu explorando a movimentação que nasce da caixa torácica e chama braços e mãos. Retomo o contato com o véu e agora permito curtir o toque do tecido na pele. Interagimos assim até o outro lado da sala. Com o véu no pescoço experimentamos o tópico eixo-global nos movimentos simétricos e assimétricos. Os giros com os braços exemplificam essa sequência. Vou passando o véu para a bacia, pensando nos estudos onde os movimentos são puxados pela bacia. No tópico onde se inicia o processo dos vetores, sensibilizando o primeiro vetor, metatarsos, inicio uma vibração na bacia que nasce dos pés. Os tremidos ou shimmies da dança oriental árabe. Com os tremidos caminho até o fundo da sala. Aqui o véu puxa a bacia e os metatarsos vetorizam o chão. Chegando aos estudos do segundo vetor, calcâneo. Meus calcanhares não doem mais. Meu corpo se transforma. Quilos a menos e leveza a mais? Sinto maior presença na dança. Caminho até a outra ponta 53 da sala numa sequência com pernas e equilíbrio, onde os calcâneos vetorizam no chão e no ar. Começando uma nova música início uma sequência com o véu atrás, explorando os efeitos do véu em deslocamento. Desloco. Desloco e ancoro. No ancorar afirmo os vetores dos pés em relação aos vetores da bacia, terceiro e quarto vetores, púbis e sacro. Pausas. Gripe, tosse, pneumonia, imunidade baixa. Reconfigurações do corpo para outros movimentos num corpo em constante transformação. O corpo pede movimento. Pisar sobre o véu, rolar e enrolar sobre o tecido. Desfazer-se dos nós, fluir, cruzar o espaço, braços ativos. Velocidade. Véu ao chão. Liberdade. Dançar é se libertar. Libertar-se norma, descobrir-se Maria. Eu-Maria. Maria é todas e nenhuma. Uma e nenhuma. São mulheres, homens, animais, objetos e caminhos. São encruzilhadas. Múltiplos caminhos. Devires dançantes em movimento. (Trecho retirado do caderno de criação, curso processo criativo, 2018). 54 Fonte: arquivo pessoal. Fotografia: Letícia Carraro 55 56 Fonte: arquivo pessoal. Fotografia: Letícia Carraro Fonte: arquivo pessoal. Fotografia: Letícia Carraro 57 Fonte: arquivo pessoal. Fotografia: Letícia Carraro 58 Fonte: arquivo pessoal. Fotografia: Letícia Carraro Fonte: arquivo pessoal. Fotografia: Letícia Carraro 59 Fonte: arquivo pessoal. Fotografia: Letícia Carraro 60 Fonte: arquivo pessoal. Fotografia: Letícia Carraro 61 3 MARIAS MULHERES: HISTÓRIAS MENORES Narrar histórias vivenciadas nos encontros com as Marias de fato é o que impulsiona essa pesquisa. Dar testemunho às passagens de mulheres e suas vidas, seus momentos, suas dores e alegrias, suas transformações, são estratégias de resistência e sobrevivência em tempos tão sombrios. Dar testemunho é marcar que essas vidas existem e insistem. O trabalho com a dança, o corpo e a arte intensificam essas existências e amplificam suas vozes. O ato de resistência se apresenta ao resistir à morte. As histórias menores das Marias mulheres são expressões de vida que driblam as forças da morte, não a negando, mas deslocando-a nas forças da vida. Como nos diz Deleuze, O ato de resistência possui duas faces. Ele é humano e é também um ato de arte. Somente o ato de resistência resiste à morte, seja sob a forma de uma obra de arte, seja sob a forma de uma luta entre os homens. (DELEUZE, 1999, p.14). As Marias mulheres resistem em suas forças, em sua diversidade de vozes e existências. Os encontros com a dança compõem espaços de luta, engajamento pela vida e afirmação de multiplicidades de expressões. Para muitas Marias, o universo da dança e da arte lhes escapava. Dançar entre multiplicidades femininas, afirmando as diversidades, possibilita recompor corporeidades existenciais. Sair dos impasses repetitivos, dos padrões adoecidos e engessados e embrenhar-se em meio ao novo, ressingulagrizar-se em múltiplas subjetividades possíveis (GUATTARI, 1998). Dançar, criar, experimentar, em meio a tantas formas de degradação da vida, são, portanto, formas de resistir e afirmar. De múltiplas maneiras, elas dizem: estamos aqui existindo. Narrar as Marias, suas diversidades, heterogeneidades e suas histórias menores é afirmar a resistência destas existências. 62 Maria-homem-mulher, mulher-homem-que-sabia-ser-mulher Interessam-nos as rupturas, não o ordinário. (Clarissa Gonzalez e Paulo Lopes) Maria já tinha passado pelo grupo de dança há uns cinco ou seis anos. Naquele momento, estava emagrecida, dizia sentir muitas dores pelo corpo. Saía e entrava da sala várias vezes. Estava junto com o grupo do Caps ad2 que vinha para uma oficina de culinária no Ceco. Foi a música árabe que chamou sua atenção. Entrou um tanto confusa, exalava um cheiro forte. As mulheres do grupo perguntaram: “É homem ou mulher?”. Esse é um grupo para mulheres. Assim fomos construindo esse espaço ao longo do tempo. Em uma conversa com as participantes, tempos atrás, ao colocarmos a possibilidade da participação de homens, algumas das mulheres perguntaram: “Esse espaço pode ser só nosso? Só de mulheres? Eles, os homens, estão em tantos lugares, aqui podia ser só nosso, né?” Aquela era Maria-homem-mulher, mulher-homem-que-sabia-ser-mulher. Veio poucas vezes ao grupo naquele momento. Porém, há poucos meses, Maria voltou. “Tive alta do CAPS ad, não uso mais droga, tô limpa, sou conselheira de saúde, quero um psicólogo, mas não quero voltar para o Caps.” Chegou na sala da dança um tanto apreensiva. Presença marcante. Voz grave, risada forte, corpo escultural. “Paguei trinta mil em cirurgias”. As mulheres a olharam um tanto estranhando, um tanto gostando, um tanto rindo. As dores no corpo, no momento do alongamento, continuavam. Os movimentos um tanto desconectados, enrijecidos, pés descoordenados; mesmo em roda, mantinha o olhar fixo no espelho. Parecia se procurar, se reconhecer, um tanto distante das outras mulheres. Ao final de nosso encontro semanal, em roda, no momento do improviso, cada uma das mulheres ia ao centro dançar e depois convidava outra participante para 2 Centro de Atenção Psicossocial especializado no atendimento a usuários que fazem uso de álcool e outras drogas, serviço especializado que compõe a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). 63 entrar. Maria marcou pela presença. Abrindo a roda e performando para as mulheres do grupo, apresentou outros movimentos de seu repertório de shows na noite. As palmas se intensificaram, e sua presença em cena contagiou o grupo. Ao ir embora, uma das mulheres pontuou “adorei o travecão na aula”. Muitas riram e afirmaram que gostaram. Conversamos. Falamos de gêneros, respeito e da violência que circunda essas mulheres. Violência que também se apresenta nos risos, em expressões pejorativas, em diversas formas de demostrar estranheza e preconceito. Em cada encontro do qual Maria participa, apresenta sua feminilidade intensamente, o que reverbera no grupo, mobilizando as mulheres presentes. “Ela é mais mulher que muitas de nós, né?”, “Como pode um homem ficar mais mulher que muita mulher?”. Corpo produzido para o padrão mulher consumo. Maria-mulher-homem, ao dançar, lida com seu corpo homem-mulher produzidos por cirurgias plásticas, silicones, botox, apliques de cabelo, unhas e cílios. Lida com seus movimentos endurecidos, caricatos, performáticos, marcados pelos shows na noite. “Como não consigo rebolar, bato cabelo”. Busca exageradamente por uma mulher em si, assim, no excesso. Maria escancara um feminino censurado em muitas mulheres. Um feminino que se apresenta, muitas vezes, em cobrança de padrões da mulher perfeita: cabelo loiro na cintura, barriga “chapada”, cinturinha, silicone nos seios, curvas e formas do padrão- mulher das quais muitas mulheres sofrem por não acessarem. Como pode um homem ter acessado isso? Mas trata-se de um homem? Maria se fez mulher há tempos. **** Muito sobre ser mulher se apresenta em nosso espaço com a dança do ventre. O fetiche da mulher magra, cabelos longos, sensual, jovem, enigmática, erotizada, marca o imaginário que se tem das bailarinas de dança do ventre como já trabalhamos aqui. Muitas chegam à dança para acessar essa imagem, estar próxima de alguma maneira, dessa mulher desejada. Ao lidarem com o distanciamento de seus corpos da imagem idealizada, frustram-se, decepcionam-se, rompem, e, nessas fissuras, 64 encontram-se. No lugar do ideal, percebem em si o que de fato é, mas agora sob outros olhares. O próprio olhar coproduzido em dança, em gestos e movimentos por muitas mulheres que ao mesmo tempo se relacionam. Notamos que há um processo em construir-se mulher. Produzir-se mulher. Seja afirmando-se nas formas e normas ou descobrindo-se nas fissuras descompassadas das imagens femininas. É comum escutar das Marias: “me percebi mulher dançando”. O corpo biológico, natural, não as garante nas sensações do ser mulher. Não está dado pelo sexo ou pelo que se considera heteronormativo. Os processos dessas descobertas são repletos de instabilidades, incoerências e indefinições. Operar com tais conceitos nos permite despir o gênero e o sexo de substância, de uma suposta naturalidade que lhes foi atribuída. Tal naturalidade, além de vincular o sexo ao gênero, tornando-os indissociáveis, regimenta nossas performances como se uma suposta matriz heterossexual (BUTLER, 1990, 2004) as orientasse (GONZALEZ; LOPES, 2020). Como nos pontua Butler, a performatividade do gênero está em desnaturalizar o binarismo homem/mulher nas experiências. Recuperam-se atributos como instabilidade, expropriação e deslocamento, que desestabilizam a pretensa estabilidade da identidade de gênero. Emerge, daí, a proposição de performatividade de gênero, desdobramento da radicalização da ruptura de Beauvoir com o essencialismo biologizante: “Não se nasce mulher, torna-se” (RODRIGUES, 2020, p. x). A performatividade de gênero seria então o deslocamento da identidade de gênero, sendo a primeira indicação de elementos instáveis e artificiais que nos constituem, e a segunda exigência de elementos estáveis e naturais atrelados à compreensão metafísica do humano. Com a proposição de performatividade de gênero, há o que chamo, ainda que provisoriamente, de “virada normativa”, a partir da qual as normas sociais, inclusive as de gênero, ficam esvaziadas de sua fundamentação na natureza (homem/mulher) ou na cultura (masculino/feminino). (RODRIGUES, 2020, p.10). Maria-homem-mulher performatiza um gênero feminino, ela carrega elementos tidos como femininos, artificializáveis em qualquer corpo. Desestabiliza os lugares normativos da dança do ventre, acessando os movimentos. Não se apresenta do lugar da falta, ou daquilo que não a compõe. Ao contrário, subverte construindo em seu corpo elementos que o tornam feminino. As cirurgias, os silicones, os apliques de 65 cabelos, as longas unhas postiças, marcam a escolha de como deseja apresentar-se ao mundo. A força de sua construção mulher se alarga no cuidado que manifesta com outras mulheres, procurando saber da saúde e dos sonhos das companheiras de dança. Partilha seus saberes sobre maquiagem e autocuidado, sempre pontuando: “Se amem, se cuidem, se não fizerem isso por vocês ninguém vai fazer”. Motiva as mulheres a dançarem, ainda que a vida seja tão árdua para existências como a sua. Convoca prazerozamente outras mulheres a ali estarem e poderem se divertir, como diz “A vida é dura sim, mas a alegria ajuda a gente a não morrer...” Sonha em se casar, e pontua que vai entrar na igreja dançando dança do ventre, já me perguntou se eu a levaria até o altar, digo que sim, com muita honra! Ela solta sua gargalhada cênica e diz: já pensou a gente na igreja??? Que babado!!!!” Todos esses elementos a fazem mulher. A performatividade que desloca do senso comum, os sonhos, os desejos, a resiliência, a vida que insiste e resiste. Maria-encantada e suas presenças São os espaços internos que devem criar o movimento de cada um. (Klauss Vianna) Maria-encantada faz parte do grupo de dança desde quando começamos em 2010. Jovem, negra, além do grupo de dança, frequentou por muitos anos a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae) e a Fundação Municipal para Educação Comunitária de Campinas (Fumec) no Ceco Rosa dos Ventos. Quando iniciou uma experiência de trabalho e se afastou, teve sua primeira crise psiquiátrica. Desorganizou-se. A mãe conta de muitas situações difíceis, onde Maria alucinava, mostrando-se em franca crise. Retornou ao Ceco, muito medicada. E ao voltar para a dança após alguns meses, percebemos o quanto se mostrava ausente. Os movimentos que outrora dominava, agora não apareciam mais, outro corpo se apresentava ali. Uma ruptura 66 dos gestos, da consciência corporal, da presença no grupo. Durante muito tempo, nós do grupo entendíamos que talvez esse espaço não fizesse mais sentido. Talvez ela não quisesse mais estar ali. Parecia estar ausente do grupo e das propostas desenvolvidas. Porém, todos os dias, quando ia embora, me perguntava: “como eu me saí hoje? Como fui hoje na aula?” Entendia que ela queria um retorno da sua participação no grupo. Aos poucos, esse movimento se mostrou como um pedido de reconhecimento da sua presença. Uma presença-ausência que pedia um contorno, como se dizer como ela tinha ido naquele dia, fosse dizer o quanto ela esteve presente e o quanto ela esteve ali, sim, dançando da maneira dela, trabalhando sua localização. Uma presença sendo construída também pela ausência. Aos poucos, percebemos que era preciso conectar Maria ao grupo. Possibilitar seus movimentos de ausência, mas também criar ressonância em sua presença. Conseguíamos chamá-la pelo olhar, por gestos da dança, por um sorriso, pelo seu nome, ou simplesme