Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Faculdade de Ciências e Letras Campus Araraquara Programa de Pós-graduação em Linguística e Língua Portuguesa GISLENE DA SILVA Análise morfossemântica dos verbos parassintéticos do Português ARARAQUARA - S.P. 2021 GISLENE DA SILVA Análise morfossemântica dos verbos parassintéticos do Português Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Linguística e Língua Portuguesa da Faculdade de Ciências e Letras - UNESP/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Doutora em Linguística e Língua Portuguesa. Linha de pesquisa: Análise Fonológica, Morfossintática, Semântica e Pragmática. Orientador: Prof. Dr. Daniel Soares da Costa. Bolsa: CNPq (Processo nº 141659/2017-3). CAPES (Processo nº 88887.363099/2019-00). ARARAQUARA – S.P. 2021 S586a Silva, Gislene da Análise morfossemântica dos verbos parassintéticos do Português / Gislene da Silva. -- Araraquara, 2021 353 f. : tabs. Tese (doutorado) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Ciências e Letras, Araraquara Orientador: Daniel Soares da Costa 1. Verbos parassintéticos. 2. Análise morfossemântica. 3. Português Contemporâneo. 4. Português Arcaico. 5. Morfologia X-Barra. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca da Faculdade de Ciências e Letras, Araraquara. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. GISLENE DA SILVA Análise morfossemântica dos verbos parassintéticos do Português Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Linguística e Língua Portuguesa da Faculdade de Ciências e Letras - UNESP/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Doutora em Linguística e Língua Portuguesa. Linha de pesquisa: Análise Fonológica, Morfossintática, Semântica e Pragmática. Orientador: Prof. Dr. Daniel Soares da Costa. Bolsa: CNPq (Processo nº 141659/2017-3). CAPES (Processo nº 88887.363099/2019-00). Data da defesa: 31/05/2021 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientador: Prof. Dr. Daniel Soares da Costa UNESP/FCL-Araraquara Membro Titular: Profa. Dra. Alina Villalva Faculdade de Letras/Universidade de Lisboa Membro Titular: Profa. Dra. Indaiá de Santana Bassani UNIFESP/EFLCH-Guarulhos Membro Titular: Profa. Dra. Juliana Bertucci Barbosa UFTM UNESP/FCL-Araraquara Membro Titular: Profa. Dra. Juliana Simões Fonte Barbosa UNESP/FCL-Araraquara Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara Dedico este trabalho à minha primeira e eterna professora, Maria Aparecida Militão, que, com muito carinho e pitadas de rigidez, sempre me incentivou a buscar o conhecimento e me mostrou o caminho da docência. Agradecimentos Ao finalizar mais esta etapa da minha formação acadêmica, percebo que, mesmo com todos os percalços que me fizeram pensar em desistir, sempre encontrei forças para continuar nessa caminhada, porque tive ao meu lado pessoas que me apoiaram e me inspiraram. Se eu cheguei até aqui, foi porque todos vocês contribuíram para o meu sucesso. Por isso, agradeço: A Deus, primeiramente, por me dar força, disposição, sabedoria, paciência, determinação e saúde para continuar no caminho que escolhi e alcançar os meus objetivos. Agradeço por Sua presença constante na minha vida. Ao CNPq (processo nº 141659/2017-3), pelo apoio financeiro imprescindível para a realização deste trabalho. À CAPES: O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. Ao Daniel, meu querido orientador e amigo, por seus ensinamentos, pela paciência, por me apoiar nas minhas escolhas e pela sua prontidão em ajudar sempre que precisei. À Alina, minha inspiração e querida amiga, que sempre esteve disposta a colaborar com o meu trabalho, mesmo à distância. Obrigada pelas conversas prazerosas, pelas dicas de viagem, pelo carinho e pela amizade. Ao Bruno, meu companheiro, que esteve sempre ao meu lado em todos os momentos. Agradeço pela paciência, pelo carinho, por não me deixar desistir e por sempre me animar. Sem você, eu não teria chegado até aqui. Aos meus pais, Sônia e Donizete, que, mesmo com pouco estudo, nunca mediram esforços para que eu pudesse alcançar o mais alto grau acadêmico, e ao meu irmão, que sempre me apoiou e acreditou na minha capacidade. À professora Juliana Bertucci, que me mostrou o caminho dos estudos linguísticos. Agradeço pelos ensinamentos, pela confiança, por todas as oportunidades de trabalharmos juntas e pelas contribuições ao meu trabalho na qualificação. Aos meus amigos, obrigada pelos momentos juntos, pelas risadas, pelo apoio e pelos “rolês”: Cíntia, Ana Flávia, Deise, Clarissa, Victor, Eduardo e Alyne. À minha amiga, Ana Amélia, especialmente. Obrigada pelo apoio, pelos “coffee’n’gossip”, pelos conselhos, pelos memes e por todos os momentos juntas. Às colegas de doutorado, Tamires, Marina e Carol. Obrigada por terem compartilhado comigo diversos momentos, alegrias, congressos, aulas, e por estarem ao meu lado durante essa caminhada. À minha professora de Yoga, Lili Franco. Sou grata pelos ensinamentos, por ter me ajudado a conseguir mais autocontrole, disciplina e foco. As nossas práticas contribuíram muito para que eu pudesse persistir durante esse percurso tão desafiador. À Dona Irma, Seu Waldo e Juliana, que sempre abriram as portas da sua casa e me receberam como parte da família. Aos meus filhos de quatro patas, felinos e caninos, Eddie, Kerenin, Bruce e Ozzy, que tanto me animam e divertem com suas loucuras e brincadeiras. E por último, mas não menos importante, à UNESP/FCL-Araraquara, que me recebeu e onde eu pude viver momentos decisivos neste percurso. A todos, meu muito obrigada! “Aquele que deseja continuamente ‘elevar-se’ deve esperar um dia pela vertigem. O que é a vertigem? O medo de cair? Mas por que sentimos vertigem num mirante cercado por uma balaustrada? A vertigem não é o medo de cair, é outra coisa. É a voz do vazio embaixo de nós, que nos atrai e nos envolve, é o desejo da queda do qual logo nos defendemos aterrorizados.” (Milan Kundera – A Insustentável leveza do ser) Resumo Este trabalho tem como objetivo realizar a análise morfossemântica dos verbos parassintéticos do português de duas sincronias distintas - Português Contemporâneo e Português Arcaico -, indicar os principais afixos - prefixos e sufixos - que se unem às bases nominais para a formação desses verbos e mostrar de que maneira esses constituintes contribuem para o valor semântico do verbo formado. Além disso, outro objetivo deste trabalho é utilizar a teoria da Morfologia X-Barra para a representação da estrutura dos verbos parassintéticos e determinar a função dos seus constituintes. Para a análise do Português Contemporâneo, utilizamos dois corpora formados por verbos parassintéticos do Português Brasileiro e do Português de Portugal coletados nas edições do Jornal Folha de São Paulo (Br) e Público (Pt) publicados durante a década de 1990 e disponíveis na página da Linguateca. Para a análise do Português Arcaico, utilizamos um corpus formado por verbos parassintéticos coletados no Dicionário de Verbos do Português Medieval e disponível no site do Corpus Informatizado do Português Medieval. Os principais prefixos envolvidos na formação dos verbos parassintéticos são a-, de-, des-, e/N/-, es- e ex-, enquanto os sufixos mais comuns são -ec(er), -e(ar), -ej(ar) e -iz(ar). Verificamos, ainda, que, além dos verbos parassintéticos, é comum encontrar verbos sufixados ou conversos, formados com a mesma base, que podem ter valores semânticos idênticos ou muito semelhantes, por isso, em alguns casos, os afixos podem ser excluídos sem que haja prejuízos ao sentido dos verbos. A utilização da Morfologia X-Barra se mostrou muito eficiente para a representação dos verbos parassintéticos e o modelo adotado é adequado para a representação de quaisquer verbos formados por parassíntese, sufixação ou conversão. Também foi possível verificar que o núcleo dos verbos parassintéticos é o sufixo, com ou sem representação fonológica. Por fim, constatamos que não foram encontradas diferenças nas estruturas dos verbos parassintéticos do Português Contemporâneo e do Português Arcaico. Palavras-chave: Verbos parassintéticos; Análise morfossemântica; Português Contemporâneo; Português Arcaico; Morfologia X-Barra. Abstract This work has as goal realizing the morphosemantic analysis of the Portuguese parasynthetic verbs in two distinct synchrony - Contemporary Portuguese and Ancient Portuguese - indicating the main affixes - prefixes and suffixes - which attach to the nominal basis in order to form those verbs and showing in which manner the constituents contribute for the semantic value of the verb. Furthermore, another goal is to use the X-Bar Morphology theory to represent the parasynthetic verbs structure and also to determine their constituents role. To analyse the Contemporary Portuguese, we use two corpora formed by parasynthetic verbs from Brazilian Portugese and European Portuguese, those wich was colected in the newspapers Folha de São Paulo (Br) and Público (Pt) which were published during the 1990 decade and are available in Linguateca homepage. In order to analyse the Ancient Portuguese, we utilized a corpus formed by parasynthetic verbs which was colected in the Dicionário de Verbos do Português Medieval available in the Corpus Informatizado do Português Medieval homepage. The main prefixes involved in the parasynthetic verbs formation are a-, de-, des-, e/N/-, es- e ex-, whereas the most usual suffixes are -ec(er), -e(ar), -ej(ar) and -iz(ar). We also verified that, in addition to parasynthetic verbs, it is common to find suffixed or converted verbs, formed with the same basis, which may have identical or very similar semantic values, so, in some cases, affixes can be excluded without damage to the meaning of verbs. The use of X-Bar Morphology proved to be very efficient for the representation of parasynthetic verbs and the adopted model is suitable for the representation of any verbs formed by parasynthesis, suffixation or conversion. It was also possible to verify that the head of parasynthetic verbs is the suffix, with or without phonological content. Finally, we verified that there are no differences in the structures of the parasynthetic verbs from Contemporary Portuguese and Ancient Portuguese. Keywords: Parasynthetic verbs; Morphosemantic analysis; Contemporary Portuguese; Ancient Portuguese; X-Bar Morphology. Lista de figuras Figura 2.1 - Informações sobre os VP 88 Figura 2.2 - Entrada do verbo “enrijecer” encontrada no Dicionário Houaiss 91 Figura 2.3 - Etimologia de “enrijecer” encontrada no Dicionário Houaiss 92 Figura 2.4 - Lista de palavras formadas com o radical clar- fornecida pelo Dicionário Houaiss 93 Figura 2.5 - Dicionário Houaiss não reconhece o verbo “aclarecer” 94 Figura 2.6 - Entrada do verbo “apedrejar” na página da Infopédia 96 Figura 2.7 - Etimologia do verbo “esclarecer” na página da Infopédia 97 Figura 2.8 - Etimologia do verbo “esclarecer” no site do Dicionário Houaiss 97 Figura 2.9 - Etimologia do verbo “apodrecer” na página a Infopédia 98 Figura 2.10 - Etimologia do verbo “apodrecer” no site do Dicionário Houaiss 98 Figura 2.11 - Informações sobre as palavras disponíveis no Corpus do Português 100 Figura 2.12 - Contexto de “anoitecer” 101 Figura 2.13 - Contexto expandido de “anoitecer” 102 Figura 2.14 - Página inicial do CRPC 104 Figura 2.15 - Página do CRPC fine-grained 105 Lista de quadros Quadro 1.1 - Conjunto (i) 27 Quadro 1.2 - Conjunto (ii) 27 Quadro 1.3 - Resumo dos pontos de vista sobre a parassíntese 31 Quadro 1.4 - Funções dos constituintes de “descarnar” 39 Quadro 1.5 - Bases para formação de palavras 68 Quadro 3.1 - Fronteiras iniciais das bases dos verbos parassintéticos 116 Quadro 3.2 - Construções derivacionais e não-derivacionais 119 Quadro 3.3 - Classes semânticas e funções da base e do verbo 123 Quadro 3.4 - Verbos parassintéticos do PB com sufixo derivacional 127 Quadro 3.5 - Conjunto de verbos cujo prefixo não tem valor isolado 130 Quadro 3.6 - Conjunto de verbos cujo prefixo tem valor isolado 133 Quadro 3.7 - Verbos parassintéticos do PB sem sufixo derivacional 141 Quadro 3.8 - Verbos parassintéticos do PP com sufixo derivacional 163 Quadro 3.9 - Verbos parassintéticos do PP sem sufixo derivacional 172 Quadro 3.10 - Verbos parassintéticos do PA 195 Lista de tabelas Tabela 3.1 - Número de ocorrências de VP formados por prefixação e sufixação 113 Tabela 3.2 - Número de ocorrências de VP formados por prefixação e conversão 115 Lista de abreviaturas e siglas PA – Português Arcaico PB – Português Brasileiro PC – Português Contemporâneo PP – Português de Portugal CRPC – Corpus de Referência do Português Contemporâneo CIPM – Corpus Informatizado do Português Medieval DVPM – Dicionário de Verbos do Português Medieval NGB – Nomenclatura Gramatical Brasileira VP – Verbo(s) parassintético(s) N- Substantivo RN – Radical substantival TN – Tema substantival sufN – Sufixo substantival V – Verbo RV – Radical verbal TV – Tema verbal sufV – Sufixo verbal Suf. - Sufixo ADJ – Adjetivo RADJ – Radical adjetival TADJ – Tema adjetival VT – Vogal temática IT – Índice temático FM – Flexão X0 - Palavra Xmax - Palavra XM’ - Base XM’’ - Base XM0 – Núcleo Quant. - Quantidade Sumário Introdução 15 1. Subsídios teóricos 20 1.1 O que é parassíntese? 20 1.2 Os afixos na parassíntese 33 1.2.1 Os afixos na parassíntese e suas funções 33 1.2.2 Valor semântico dos afixos utilizados na formação dos verbos parassintéticos 46 1.3 Conversão 50 1.4 A Morfologia X-Barra 60 1.5 A parassíntese para Villalva 70 2 Metodologia e corpora 83 2.1 O corpus do Português Contemporâneo 83 2.2 O corpus do Português Arcaico 85 2.3 Suportes para a realização do trabalho 90 2.3.1 Dicionário Houaiss 90 2.3.2 Dicionário Infopédia 93 2.3.3 Corpus do Português 97 2.3.4 Corpus de Referência do Português Contemporâneo 101 3 Resultados 109 3.1 Recorrência e propriedades dos afixos e bases 111 3.2 Português Contemporâneo 126 3.2.1 Português Brasileiro 126 3.2.1.1 Verbos com sufixo derivacional 126 3.2.1.2 Verbos sem sufixo derivacional 140 3.2.2 Português de Portugal 162 3.2.2.1 Verbos com sufixo derivacional 162 3.2.2.2 Verbos sem sufixo derivacional 171 3.3 Português Arcaico 194 3.3.1 Verbos com sufixo derivacional 197 3.3.2 Verbos sem sufixo derivacional 198 3.4 Português Contemporâneo e Português Arcaico 205 3.4.1 Verbos sem alterações 205 3.4.1.1 Verbos com sufixo derivacional 205 3.4.1.2 Verbos sem sufixo derivacional 211 3.4.2 Verbos com alterações 214 3.4.2.1 Verbos com sufixo derivacional 214 3.4.2.2 Verbos sem sufixo derivacional 222 3.5 Períodos de registro dos verbos parassintéticos do Português 237 3.5.1 Verbos herdados do Latim 237 3.5.2 Verbos antigos no Português 240 3.5.3 Verbos recentes no Português 243 3.6 Análise dos verbos parassintéticos pela Morfologia X-Barra 248 3.6.1 Português Contemporâneo 261 3.6.2 Português Arcaico 282 4 Comentários adicionais 291 Considerações finais 296 Referências 300 Bibliografia complementar 305 Apêndices 307 Apêndice A 308 Apêndice B 314 15 INTRODUÇÃO O termo “parassíntese” é bastante antigo e remonta ao século XIX, período em que o estudioso Darmesteter1 se dedicava ao estudo desse processo de formação de palavras. Apesar de ser um processo produtivo no português, já que é grande o número de verbos formados por esse processo, a parassíntese não tem recebido a atenção que merece, como afirma Bassetto (1993, p. 17). Quando buscamos obras que tratam da parassíntese, ou mesmo quando consultamos diversas gramáticas, podemos constatar que o espaço dedicado a esse processo de formação de palavras é bastante reduzido e a sua definição é, muitas vezes, imprecisa, já que apresenta, desde a sua criação até a atualidade, divergências classificatórias. De acordo com Bassetto (1993), ao longo da história da parassíntese, houve autores que consideraram esse processo como adjunção simultânea de prefixo e sufixo a uma base e aqueles que consideraram como adjunção sucessiva de formantes. Além disso, também é possível encontrar, na literatura sobre o tema, autores que consideram a parassíntese como um processo de circunfixação. Essa falta de consenso se deve ao pouco espaço que a parassíntese verbal ocupa nos estudos linguísticos e, mesmo dentre os autores que consideram a parassíntese como adjunção simultânea de formantes, constatamos que não há consenso, também, quanto aos prefixos que entram na formação desses verbos. Assim, ao consultarmos as obras de Rio-Torto (1998, p. 212) - que considera como parassintéticos apenas aqueles verbos formados pelos prefixos a-, en-/em- e es-, como em amadurecer, encolerizar e esclarecer -, de Kehdi (2007, p. 18) - que além dos prefixos já citados, também inclui os prefixos des- e re-, presentes em desfolhar e requentar, constatamos inconsonância quanto aos formantes que entram na constituição dos verbos parassintéticos. Além de Rio-Torto (1998) e Kehdi (2007), Bassetto (1993) também dedica espaço para o estudo da parassíntese e considera como verbos parassintéticos aqueles formados com os prefixos a-, con- de-, des-, en-, so- e tras-, como abocar, confrontar, debruçar, dessorar, entortar, soletrar e trasmarcar2, ampliando, assim, a lista de prefixos a serem considerados na formação desses verbos (BASSETTO, 1993, p. 128). Além da falta de consenso sobre os formantes que entram na constituição dos verbos parassintéticos, também não há acordo sobre o estatuto desses formantes. Consultando a 1 Arsène Darmesteter (1846-1888) foi professor de Francês Antigo e Literatura na Sorbonne e publicou Traité de la Formation des Mots Composées dans la Langue Française et Comparée aux autres Langues Romanes et au Latin e De la création de mots nouveaux dans la langue française et des lois qui la régissent. 2 Devemos chamar a atenção para o fato de que Bassetto (1993) analisou as obras de João Guimarães Rosa, autor bastante conhecido por sua criatividade léxica e neologismos. Por isso, alguns dos verbos presentes no corpus de Bassetto (1993) e analisados pelo estudioso não são institucionalizados pela comunidade linguística. 16 bibliografia sobre o assunto, encontramos trabalhos (RIO-TORTO, 1994; 1998; MONTEIRO, 2002; ROSA, 2003; VALENTE et al, 2009; CASTRO da SILVA, 2010a; 2010b; 2011; 2012; SOUZA-e-SILVA; KOCH, 2012) que consideram que na formação dos verbos parassintéticos estariam presentes não um prefixo e um sufixo, mas um circunfixo, ou seja, um afixo descontínuo. Assim, em alguns verbos, como enfraquecer ou apedrejar, estariam presentes os circunfixos “en ... ecer” e “a... ejar”. Como mostraremos ao longo do nosso trabalho, tanto os prefixos a- e en- quanto os sufixos -ec(er) e -ej(ar) ocorrem em estruturas não parassintéticas, o que faz com que a hipótese de circunfixação não seja sustentada. Villalva (2014, p. 3) também discute a problemática da parassíntese, já que, como afirma a autora, não se trata de uma estrutura binária com dois níveis de encaixe, o que levanta dúvidas sobre como analisar esse processo de formação de palavras. De acordo com Villalva (2014, p. 3), mesmo aceitando a parassíntese como um processo em que ocorrem prefixação e sufixação simultâneas, essa hipótese exige que a vogal temática e a flexão sejam consideradas como sufixos de verbalização; ou que os verbos que não contêm um sufixo derivacional, como abaixar ou engarrafar, não sejam considerados como parassintéticos por não apresentarem, além do sufixo verbalizador -ar, um sufixo derivacional como nos casos de amolecer e espernear. Em adição aos fatores anteriormente mencionados, que evidenciam que a parassíntese carece de aprofundamento, podemos citar Rocha (2008, p. 168), que ressalta a necessidade de um estudo sobre os afixos empregados na parassíntese. Desse modo, empenhando-nos em ampliar os estudos sobre o tema, o primeiro objetivo do nosso trabalho é realizar a análise morfossemântica dos verbos parassintéticos do português em duas sincronias distintas: Português Arcaico e Português Contemporâneo, buscando enumerar os afixos que constituem esses verbos e mostrar de que maneira os constituintes, bases a afixos, corroboram o valor semântico do verbo formado. O segundo objetivo deste trabalho é selecionar um modelo estrutural para representação dos verbos parassintéticos e determinar, com base nas propriedades morfossemânticas desses verbos, quais constituintes desempenham as funções de núcleo, complemento, modificador e especificador . Para cumprir o primeiro objetivo deste trabalho – análise dos verbos parassintéticos do português em dois períodos distintos – inicialmente fizemos a análise do Português Contemporâneo, utilizando dois corpora, formados por verbos parassintéticos do Português Brasileiro e do Português de Portugal, para verificar se existem diferenças morfossemânticas entre os verbos presentes nas duas variedades do português. Na primeira etapa, constatamos quais verbos são exclusivos de cada um dos corpora das duas variedades e analisamos os 17 elementos constitutivos desses verbos – afixos e bases - para verificar se eles contribuem para o conteúdo semântico da palavra formada. Nesta etapa do trabalho, também indicamos se é possível encontrar - no Português Brasileiro e/ou no Português de Portugal - outros verbos formados com a mesma base, mas afixos distintos, e se esses verbos possuem o mesmo valor semântico. Na próxima etapa, comparamos as estruturas que estavam presentes no Português Arcaico e que se mantiveram no Português Contemporâneo e aquelas que estavam presentes no Português Arcaico e que, por algum fator (extra)linguístico não chegaram até o Português Contemporâneo. Também analisamos os constituintes desses verbos – bases e afixos – e indicamos se eles contribuem para o sentido dessas estruturas. Além disso, analisamos os verbos parassintéticos do corpus do Português Arcaico que também estão presentes nos corpora do Português Contemporâneo, mas cujos constituintes se alteraram, explicitando se houve, ou não, alteração no valor semântico do verbo. Para cumprir o segundo objetivo deste trabalho - selecionar um modelo estrutural para representação dos verbos parassintéticos e determinar o núcleo dessas estruturas - utilizamos como suporte a teoria da Morfologia X-Barra desenvolvida por Villalva (1994b), que se inspirou em propostas contidas inicialmente nos trabalhos de Williams (1981), Lieber (1980; 1992), Selkirk (1983), Di Sciullo e Williams (1987). Utilizando a Morfologia X-Barra é possível mostrar que os verbos parassintéticos são estruturas geradas pela inserção dos constituintes em estruturas binárias3. Com a evolução dos seus trabalhos sobre a parassíntese, Villalva (2019) propõe dois modelos para representar os verbos parassintéticos, uma para representar os verbos prefixados e sufixados e outra para representar os verbos prefixados e sem sufixo derivacional. No entanto, buscando padronizar as nossas representações, adaptamos os modelos de Villalva (2019) e adotamos um único modelo para representar os verbos parassintéticos, com e sem sufixo derivacional. Também indicamos as funções dos constituintes desses verbos, podendo ser: núcleo, complemento, modificador e especificador. Com a análise dos verbos parassintéticos pela Morfologia X-Barra, é possível verificar que não existem diferenças estruturais entre os verbos do Português Arcaico e do Português Contemporâneo e que os constituintes dos verbos – afixos e bases – desempenham as mesmas funções, seja nos verbos em que há a presença de sufixo derivacional (amanhecer) ou mesmo naqueles em que está presente o sufixo-zero (aparafusar). 3 Estruturas binárias são estruturas constituídas por dois elementos morfológicos (livr + aria; menin + o; re + ler). 18 Desse modo, este trabalho será organizado em seis seções distintas: Subsídios Teóricos, Metodologia e corpora, Resultados, Comentários adicionais, Referências e Apêndices. Na seção dos Subsídios Teóricos está contida a revisão bibliográfica sobre a parassíntese, explicando o que ela é, quais afixos (prefixos e sufixos) estão presentes nos verbos parassintéticos e as funções desempenhadas pelos constituintes desses verbos. Além disso, dedicamos uma subseção para discutirmos a conversão, processo de formação de palavras em que não está presente um sufixo derivacional, e outra subseção para os comentários sobre a Morfologia X-Barra. A última subseção é dedicada aos comentários a respeito dos trabalhos sobre a parassíntese da pesquisadora Alina Villalva, cuja pesquisa na área da Morfologia é referência, não só em Portugal e no Brasil, mas também em vários outros países, e que tem diversos trabalhos que tratam da parassíntese. Na seção de Metodologia e corpora, descrevemos as etapas realizadas para a coleta das ocorrências e construção dos corpora do Português Contemporâneo e do Português Arcaico, também indicamos quais informações sobre os verbos parassintéticos foram inseridas nesses corpora e qual a relevância dessas informações para as análises realizadas. Ademais, descrevemos os suportes utilizados para a realização do trabalho, como o CETENFolha e o CETEMPúblico, o Dicionário Houaiss e a Infopédia, o Corpus do Português, dentre outros. Em seguida, são descritas as etapas de análise dos verbos que constituem os corpora deste trabalho. Na seção dos Resultados, está contida a análise morfossemântica dos verbos parassintéticos dividida em seis subseções para melhor organização do trabalho e compreensão dos dados. Na primeira subseção, tratamos da recorrência dos afixos, ou seja, quais prefixos e sufixos estão presentes nos verbos parassintéticos do Português Arcaico e do Português Contemporâneo e em quais proporções. Na segunda subseção, estão presentes as análises morfossemânticas dos verbos parassintéticos do Português Brasileiro e Português de Portugal de acordo com a estrutura dos verbos parassintéticos: com ou sem sufixo derivacional. Na terceira subseção, incluímos as análises morfossemânticas dos verbos parassintéticos do Português Arcaico, também organizadas de acordo com a estrutura dos verbos. Na quarta subseção, tratamos das diferenças e semelhanças entre os verbos parassintéticos do Português Arcaico e do Português Contemporâneo, indicando as alterações nos constituintes e no valor semântico dos verbos. Na quinta subseção, comentamos sobre os períodos de registro dos verbos parassintéticos, enfatizando que alguns foram herdados do latim, outros são bastante antigos, com registros desde os séculos XII/XIII e vários são construções recentes no português, com registros a partir dos séculos XIX/XX. A última subseção dos Resultados é dedicada à descrição das propriedades do sufixo-zero e dos sufixos derivacionais, à representação dos 19 verbos parassintéticos, dos corpora do Português Arcaico e do Português Contemporâneo, de acordo com a Morfologia X-Barra e à definição das funções dos constituintes dos verbos analisados. A quarta seção deste trabalho, Comentários adicionais, aborda algumas particularidades dos verbos parassintéticos dos nossos corpora, como o fato de ser reduzido o número de verbos pertencentes à terceira conjugação, os casos exclusivos de verbos formados com alguns prefixos, como pernoitar e porfiar, o elevado número de verbos formados pelo prefixo a- e por conversão4, cujas bases estão presentes em verbos formados por conversão, que podem apresentar o mesmo sentido (abalançar/balançar; aparafusar/parafusar) ou serem distintos (arrumar/rumar). Na quinta seção, Referências, incluímos todos os trabalhos consultados para a realização desta pesquisa e que foram citados ao longo do nosso texto, além da Bibliografia complementar, que engloba os trabalhos consultados e indispensáveis para a realização desta pesquisa, mas que não foram citados ao longo do nosso texto. A última seção, Apêndices, traz todos os verbos parassintéticos que coletamos para a construção dos nossos corpora, bem como diversas informações sobre cada um desses verbos, tais como: forma de base, afixos, datações, etc.. Assim, a nossa pesquisa se insere no rol de trabalhos que abordam a parassíntese na Língua Portuguesa, como Martins (1991), Bassetto (1993), Pereira (2007), Castro da Silva (2012), Bassani (2013), dentre outros, se diferenciando desses, seja pelas correntes teóricas a que se filiam, como a gerativista (MARTINS, 1991), a lexicalista e a Linguística Cognitiva (CASTRO da SILVA, 2012), ou a Morfologia Distribuída (BASSANI, 2013), seja pela origem dos verbos que constituem o corpus utilizado, como textos literários (BASSETTO, 1993) ou exclusivamente dicionários (CASTRO da SILVA, 2012). Portanto, o nosso trabalho não busca esgotar o tema ou responder às questões históricas que têm sido levantadas sobre a parassíntese, mas apresentar uma abordagem distinta sobre esse processo de formação verbal, a partir de corpora pertencentes a duas sincronias diferentes, e utilizar um modelo estrutural para a representação dos verbos parassintéticos. 4 O termo conversão é tradicionalmente utilizado como sinônimo de “derivação imprópria” e, algumas vezes, de “derivação regressiva”. No entanto, neste trabalho, utilizaremos o termo conversão para nos referirmos à formação de derivados sem a utilização de sufixos derivacionais. Na seção 1.3 Conversão (p. 50) abordaremos com mais detalhes a conversão. 20 1 SUBSÍDIOS TEÓRICOS Nesta seção, traremos uma discussão sobre o conceito de parassíntese a partir do ponto de vista de diversos estudiosos, já que esse termo é antigo nos estudos linguísticos, mas, ainda hoje, levanta uma série de questionamentos. 1.1 O que é parassíntese? A parassíntese é tradicionalmente definida como a adjunção simultânea de um prefixo e um sufixo a uma base nominal, substantiva ou adjetiva, e é um processo comum de formação verbal nas línguas românicas, como português, francês, italiano, espanhol, etc.. Esse processo é bastante produtivo5 na formação de verbos no português e é também muito antigo, pois há formas que estão lexicalizadas no Português Contemporâneo (doravante PC), mas foram herdadas de verbos parassintéticos (doravante VP) do latim6. O termo “verbo parassintético” foi introduzido por Arsène Darmesteter, e no trabalho do autor francês está presente a intuição de que os dois segmentos, prefixal e sufixal, são unidos simultaneamente à base: [...] 3º Elas (as partículas) se unem aos substantivos ou aos adjetivos para formar um verbo pela adjunção de um sufixo verbal: er, ir: courage en-courag-er; hardi en-hard-ir. Esses tipos de compostos são chamados parassintéticos verbais, porque eles são formados sinteticamente, todos de uma vez, pela união simultânea de um prefixo e um sufixo ao radical. (DARMESTETER, 1972 [1877], p. 129, tradução nossa.)7 No entanto, ainda fica a indefinição do estatuto desses produtos, podendo ser incluídos no grupo dos compostos ou como um conjunto específico, o dos derivados parassintéticos, cujos contornos se revelam algo difusos. 5 A noção de produtividade assumida neste trabalho diz respeito o fato de que a parassíntese é um processo que permite formar um número elevado de verbos com características morfológicas e semânticas variadas. Assim, quando assumimos que a parassíntese é um processo produtivo, estamos afirmando que é possível encontrar um número elevado de verbos formado por esse processo. 6 O verbo acabar está lexicalizado no Português Contemporâneo, mas, de acordo com o Dicionário Houaiss, esse verbo apresenta a seguinte etimologia: “a-+cabo+-ar; José Monteiro apresenta como étimo o latino accapāre no sentido de 'chegar ao fim', derivado do latim caput, ĭtis no sentido de cabeça, parte superior, ponta'”. Outro exemplo é o verbo afiar, cuja etimologia indicada pelo Dicionário Houaiss é a seguinte: “latim vulgar *affilare, do latim fīlum, i no sentido de 'fio'”. 7 No original: 3° Elles (les particules) se joignent à des noms ou à des adjectifs pour former um verbe par l’adjonction d’um suffixe verbal: er, ir: courage en–courag –er; hardi en– hard-ir. Ces sortes des composés reçoivent le nom de parasynthétiques verbaux, parce qu’ils sont formés synthétiquement, tout d’un jet, par l’union simultanée du préfixe et du suffixe au radical. 21 Ao tratar do “valor das partículas”, Darmesteter (1894, p. 95) afirma que elas se combinam de quatro maneiras8 com os radicais, dando origem a diversas palavras novas, como substantivos, adjetivos e verbos. Interessa-nos a maneira com que essas “partículas” se juntam aos “substantivos e adjetivos, formando, com eles, verbos pela adição de um sufixo verbal” (DARMESTETER, 1894, p. 95). A parassíntese é um processo não consignado pela Nomenclatura Gramatical Brasileira (NGB), e foi deixada de lado “para simplificar”, como aponta Nascentes (1955, p. 12). De acordo com Nascentes (1955, p. 12), “para haver parassíntese, é necessario que o vocabulo não exista quando despojado do prefixo ou do sufixo.”. Também Coutinho (1974, p. 181-182) define o parassintetismo como o processo de combinação da derivação sufixal, ou derivação própria9, com o da prefixação, e os produtos formados podem ser nominais e verbais, os primeiros podem ser substantivos ou adjetivos, enquanto as formas verbais são representadas por verbos da primeira e segunda conjugações, sendo limitados os casos de parassintéticos da terceira conjugação. No entanto, o primeiro problema encontrado ao estudarmos os verbos parassintéticos está na definição de parassíntese que não é homogênea. Como afirma Bassetto (1993, p. 16), podemos nos deparar com o uso de terminologias idênticas para nomear fenômenos distintos, o que também ocorre com o termo “parassíntese”, pois há aqueles que o utilizam para indicar a adjunção simultânea de prefixo e sufixo e há aqueles que o utilizam para indicar que a junção ocorre sucessivamente10. De acordo com Bassetto (1993, p. 24), Dionísio Trácio (170-90 a.C.) considerava que parassintético é o “derivado de um sintético ou composto por sufixação”, desse modo, qualquer palavra composta à qual se anexa um sufixo deve ser considerada como derivado parassintético. Porém, Darmesteter (1972 [1877]; 1894) introduz a noção de que os parassintéticos são construções em que estão presentes um prefixo e um sufixo que se unem 8 No original: Elles se combinent de quatre manières avec les radicaux, en donnant naissance à plusieurs sortes des mots, substantifs, adjectifs, verbes. Elles s’unissent: 1° aux verbes, formant ainsi de nouveaux verbes, 2° aux noms ou aux adjectifs, formant ainsi de nouveaux noms ou de nouveaux adjectifs; 3° aux noms et aux adjectifs, formant avec eux des verbes par l’addition d’um suffixe verbal; 4° aux noms et aux adjectifs, formant avec eux de nouveaux noms par l’addition d’un suffixe nominal. (DARMESTETER, 1894, p. 95). Elas se combinam de quatro maneiras com os radicais, dando origem a vários tipos de palavras, substantivos, adjetivos, verbos. Elas se unem: 1º aos verbos, formando então novos verbos, 2º aos substantivos e aos adjetivos, formando então novos substantivos ou novos adjetivos, 3º aos substantivos e aos adjetivos, formando com eles verbos pela adição de um sufixo verbal, 4º aos substantivos e aos adjetivos, formando com eles novos substantivos pela adição de um sufixo nominal. (Tradução nossa). 9 “DERIVAÇÃO PRÓPRIA é o processo que consiste na formação de um vocábulo novo com o auxílio de sufixo.” (COUTINHO, 1974, p. 167, grifos do autor) 10 Antes dos estudos de Darmestéter (séc. XIX) quaisquer palavras formadas pela adjunção de coonstituintes 22 simultaneamente a uma base nominal substantiva ou adjetiva, delimitando a abrangência do termo.11 Consultando o Dicionário de Linguística e Gramática de Câmara Jr., deparamo-nos com a seguinte definição de verbos parassintéticos: Verbos derivados de um nome mediante o emprego da flexão verbal e a adjunção de um dos prefixos a- ou em-, sem significação própria (v. derivação); exs.: aclarar – de claro; embandeirar – de bandeira. Pode haver a mais a adjunção de um sufixo de valor iterativo ou incoativo (v. aspecto); exs.: entardecer, de tarde; amanhecer, de manhã. (CÂMARA JR., 1986, p. 187, grifos do autor) Na definição de Câmara Jr. (1986), encontramos dois pontos bastante importantes, e que serão retomados mais adiante, que são os prefixos utilizados na formação dos verbos parassintéticos, limitados a a- e em-, e a ausência de significado nesses prefixos. Os prefixos a- e em-/en- estão presentes em verbos como abagaçar12 e embelezar, em que, na base, estão, respectivamente, os nomes bagaço e beleza, no entanto, Câmara Jr. (1986) não engloba na sua definição outros verbos claramente parassintéticos, como esfaquear, soterrar e desmatar, donde podemos deduzir as bases nominais faca, terra e mata. É importante observar que, na definição do estudioso, não há especificação sobre a adjunção simultânea ou sucessiva de afixos. Observemos a definição de parassíntese dada por Booij et al (2004, p. 1706, grifos dos autores)13: Parassíntese é um termo utilizado na formação de palavras das línguas românicas que representa a aplicação simultânea de duas regras de formação de palavras a uma base. Enrichir (enriquecer), por exemplo, em que nem *enrich nem *richir são palavras que existem independentemente na língua, 11 Como indica Bassetto (1993), até os estudos de Darmesteter, no século XIX, quaisquer palavras compostas às quais se unem um sufixo poderiam ser consideradas como parassintéticas. No entanto, com os estudos do pesquisador francês e a introdução da noção de que, para haver parassíntese, deve ocorrer a junção simultânea de um prefixo e um sufixo à base, o termo foi delimitado e passou a se referir a um determinado grupo de palavras com contornos específicos. 12 Os exemplos utilizados ao longo do texto, quando não forem citadas as fontes, pertencem ao nosso corpus. 13 No original: Parasynthesis is a term used in Romance word-formation for what seems to be the simultaneous application of two word-formation rules to a base. Enrichir ‘to enrich’, e.g., where neither *enrich nor *richir are independently existing words of the language., is generally believed to be formed by the simultaneous adjunction of en- and -ir to the base riche ‘rich’. Since -ir marks the infinitive and hence is an inflectional ending, some prefer to define this kind of formation as formed through the simultaneous application of en- and conversion, while others hold that the whole derivational process is located in the – then category-changing – prefix. Under this last hypothesis, parasynthesis is reduced to simple prefixation. Parasynthesis is most prominent in verbs. The type is already present in Old Latin and became particularly frequent in Late Latin (Crocco Galèas & Iacobini 1993): clarus ‘clear’ > acclarare ‘to clarify’, uncus ‘hook’ > inuncare ‘to hook’, etc. Originally the prefix of such verbs was a preposition, so that the whole could be viewed as a derivation on a phrasal base: per nocten ‘over night’ > pernoctare ‘to stay overnight’, etc. In the course of time, however, such formations were reanalysed as consisting of nominal or adjectival bases “circumfixed” by a combination of generally desemanticized prefix and conversion. [...] 23 geralmente é considerado como formado pela junção simultânea de en- e -ir à base riche (rico). Considerando que -ir marca o infinitivo e consequentemente é um morfema de flexão final, alguns preferem definir esse tipo de formação como um processo de aplicação simultânea do prefixo en- e de conversão14, enquanto outros sustentam que todo o processo derivacional é realizado pelo prefixo – incluindo a mudança de categoria. Sob esta última hipótese, a parassíntese é reduzida a uma simples prefixação. A parassíntese é mais proeminente em verbos. Esse tipo de formação está presente no Latim Antigo e tornou-se particularmente frequente no Latim Tardio (Crocco Galèas & Iacobini 1993): clarus 'claro' > acclarare 'para esclarecer', uncus 'gancho' > inuncare 'enganchar', etc. Originalmente o prefixo de tais verbos era uma preposição, de modo que o todo pudesse ser visto como uma derivação em uma base frasal: per nocten 'durante a noite' > pernoctare 'pernoitar', etc. No decorrer do tempo, no entanto, tais formações foram reanalisadas como consistindo geralmente de bases nominais ou adjetivas “circunfixadas” por uma combinação de prefixo dessemantizado e conversão. Na citação acima, deparamo-nos com diversos conceitos que serão aprofundados nesta seção e nas seguintes como: inexistência da forma parassintética sem um dos afixos, conversão, responsabilidade pela mudança de categoria, ausência de valor semântico no prefixo, dentre outros. Kehdi (2007, p. 14) considera a parassíntese como adjunção simultânea de um prefixo e de um sufixo a um radical, de forma que a exclusão de um ou de outro resulta em uma forma inaceitável na língua. Partindo do exemplo do verbo parassintético esclarecer, o autor afirma que não existe o adjetivo *esclaro, nem o verbo *clarecer. Há verbos, e outros vocábulos, que também são constituídos por prefixo + radical + sufixo, mas que não apresentam simultaneidade de afixos, como os casos de reflorescer, que pode ser comparado com florescer, ou injustiça, que pode ser comparado com injusto/justiça. Fazendo-se uma análise em constituintes imediatos15 (CI), podem-se definir esses derivados como prefixais ou sufixais16. Rocha (2008, p. 165, grifos do autor), em consonância Kehdi (2007), afirma que “a derivação parassintética é um processo de formação de palavras que consiste na criação de uma nova palavra pelo acréscimo simultâneo de um prefixo e um sufixo a uma base.”. O autor também utiliza como exemplo o verbo esclarecer, reiterando que não se acrescenta à base primeiro um prefixo, formando *esclaro, e depois um sufixo, obtendo, assim, esclarecer, e 14 Para uma discussão mais aprofundada sobre a conversão, ver a subseção intitulada 1.3 Coversão (p. 50). 15 Constituintes imediatos (C.I.): são os morfemas constitutivos de uma forma complexa, articulados sem intermédio de outros; garot- e -a são os C.I. de garota. Nessa perspectiva, o vocábulo é analisado como uma superposição de camadas binárias, constituídas de um elemento nuclear (radical) e um periférico (afixo, desinência ou vogal temática). Essa técnica é também aplicável à frase e não se restringe apenas à morfologia. (KEHDI, 2007, p. 63, grifos do autor) 16 Apesar de a análise em C.I. mostrar que esses verbos são formados por prefixação ou sufixação, Bassetto (1993) ressalta que, ao longo do percurso dos estudos sobre a parassíntese, houve autores que incluíram casos como esses dentre os verbos parassintéticos. 24 também não se acrescenta primeiro um sufixo (*clarecer) e depois um prefixo (esclarecer). A formação do verbo é direta, passa-se de claro a esclarecer, ou seja, o acréscimo de afixos é simultâneo. Rocha (2008, p. 166, grifos do autor) cita como outros exemplos de formações parassintéticas os casos de repatriar, abotoar, amanhecer e desossar, de maneira que a base para a formação parassintética pode ser um substantivo ou um adjetivo. A partir de bases substantivas, pode-se formar um verbo ou um adjetivo, enquanto que, com adjetivos, só podemos formar verbos parassintéticos. O autor resume as afirmações sobre a parassíntese da seguinte maneira (ROCHA, 2008, p. 167):  a base é sempre nominal (substantivo e adjetivo)  existe um número bem maior de formações parassintéticas com base substantiva do que com base adjetiva  os produtos são sempre verbos ou adjetivos  existe um número bem maior de formações parassintéticas verbais do que adjetivais  a regra mais comum da parassíntese é: S → V De acordo com Rocha (2008, p. 167), apesar de constatarmos que existem vários vocábulos parassintéticos na língua, parece que esse processo não é muito produtivo no português atual, ou seja, as formas parassintéticas encontradas são estruturas cristalizadas na língua. Em trabalhos recentes que analisam neologismos, são poucos os exemplos de formações parassintéticas, o que indica que o processo não oferece grande variedade de exemplos institucionalizados criados recentemente na língua (ROCHA, 2008, p. 167). Em consonância com os estudiosos já mencionados, Schwindt (2000, p. 73-74) considera a parassíntese como um processo de adjunção simultânea de prefixo e sufixo a uma base sempre nominal. Para ilustrar as suas afirmações, o autor também utiliza como exemplo o verbo esclarecer, apontando que as formas *esclaro e *clarecer não existem no português. Ainda de acordo com Schwindt (2000, p. 74), as bases substantivas formam verbos e adjetivos parassintéticos, enquanto as bases adjetivais formam apenas verbos parassintéticos. Apoiando- se na Fonologia Lexical, o autor demonstra que a dupla afixação na parassíntese pode ser explicada devido ao fato de que prefixo e sufixo são inseridos no mesmo nível do léxico, porém em estratos diferentes17 (SCHWINDT, 2000, p. 161-167). Consultando sobre a parassíntese nas gramáticas, encontramos a afirmação de Cunha e Cintra (2013, p. 116) de que esse processo se trata da agregação simultânea de prefixo e sufixo a um radical, assim como Rocha Lima (2020, p. 265) afirma que a derivação parassintética 17 Devido ao escopo deste estudo, não vamos nos aprofundar nas discussões fonológicas pertinentes à parassíntese. Para maiores esclarecimentos, consultar a obra do autor “O prefixo no português brasileiro: análise morfofonológica” (SCHWINDT, 2000). 25 consiste na formação de palavras com o auxílio simultâneo de sufixo e prefixo e se formam, essencialmente, verbos a partir de bases substantivas e adjetivas, porém também é possível formar palavras de outras classes, como adjetivos, mas não com a mesma facilidade com que se formam os verbos parassintéticos. De acordo com Iacobini (2010, p. 2, tradução nossa)18 “não há uma interpretação inequívoca do processo de formação de verbos parassintéticos, nem sobre os prefixos usados, nem sobre o delineamento desses verbos em uma língua específica”. As palavras do pesquisador italiano vêm ao encontro do que discutimos ao longo deste trabalho, pois, ao tratar da parassíntese, estamos sempre lidando com diferentes pontos de vista sobre o processo, seja sobre os afixos que entram na formação dos derivados parassintéticos, seja sobre a estrutura desses derivados. Para Iacobini (2010, p. 2), em consonância com Câmara Jr. (1986), os prefixos a- e em-/en- não acrescentam valor semântico aos verbos formados por conversão. Basílio (2014, p. 36) também dedica um espaço para o tratamento das formações parassintéticas quando trata da formação verbal. De acordo com a autora, as estruturas mais produtivas na derivação parassintética são as sequências em-Adj-ecer, en-S/Adj-ar e a-S/Adj- ar, de modo que, nas estruturas formadas com en-Adj-ecer, os produtos sempre representam mudança de estado, como em endurecer, enrijecer, envelhecer, enriquecer, empobrecer, e enlouquecer. A autora comenta, ainda, que também há formações em a-S/Adj-ecer e em-S- ecer como amanhecer, anoitecer, amadurecer, apodrecer, amortecer, entardecer e enraivecer, respectivamente (BASÍLIO, 2014, p. 36). De acordo com Basílio (2014, p. 37) Nas formações parassintéticas com -ar, o significado de ação é mais forte, embora a representação de mudança de estado também esteja presente, sobretudo nas formações de base adjetiva. Formações en-Adj-ar correspondem a mudança de estado; formações en-S-ar correspondem a processos de locação, em que o substantivo base pode representar ou o elemento recipiente, concreto (gaveta, caixote) ou construído (pilha, fileira), ou o elemento colocado (palha, sabão etc.)[...]. Para ilustrar as informações acima, a autora utiliza os exemplos encurvar, encurtar, encompridar, engrossar e engordar, para as formas em en-Adj-ar, que indicam mudança de estado, e empalhar, engavetar, ensaboar, empilhar, enfileirar, emparelhar, enrolar, enfaixar para as formas em en-S-ar, que indicam processos de locação (BASÍLIO, 2014, p. 37). No entanto, não ficam claros os motivos que levam a autora a afirmar que nas formações 18 No original: [...] n’y a pas une interprétation univoque ni au sujet du processus de formation des verbes parasynthétiques, ni au sujet des préfixes utilisés, ni par rapport à la délimitation de ces verbes dans une langue spécifique. (IACOBINI, 2010, p. 2) 26 parassintéticas com -ar o significado de ação é mais forte, porém, pode-se inferir que, nas formações que expressam mudança de estado, como engordar ou engrossar, o significado de ação seja mais forte do que os verbos que também indicam mudança de estado, como enriquecer ou envelhecer, que carreiam o aspecto incoativo expresso pelo sufixo. Ainda de acordo com a autora, as formações em a-S/Adj-ar representam casos de mudança de estado, como nos exemplos alongar, ajuntar, apatetar, alisar, aproximar, ajustar, para as bases adjetivas, e aveludar, atapetar, acetinar, amoldar, abrasileirar e acinzentar, para as bases substantivas. Para finalizar a seção, a autora afirma que os exemplos dados são apenas as estruturas mais produtivas, citando que há outras combinações possíveis, como em repatriar, esfarelar, deportar etc. (BASÍLIO, 2014, p. 37, grifos nossos). Como dissemos no início desta subseção, a parassíntese suscita diversas discussões, dentre elas sobre a estrutura dos afixos que entram na composição dos derivados parassintéticos, pois há autores que consideram que à base adjungem prefixo e sufixo, mas há autores que consideram que nesses derivados estão presentes circunfixos, ou seja, afixos descontínuos. Trataremos, então, dos autores que sustentam esse posicionamento. Para Rio-Torto a derivação parassintética é entendida como a adjunção simultânea de um prefixo e um sufixo a uma base (1993, p. 151; 1994, p. 351). Essa definição de parassíntese pode cobrir dois tipos de situações: aquelas em que há operações sucessivas de adição, podendo ocorrer primeiramente sufixação ou prefixação; e aquelas em que entram em jogo um afixo descontínuo (RIO-TORTO, 1993, p. 152). Assim como Rio-Torto (1993), outros autores como Monteiro (2002, p. 155), Valente et al (2009) e Castro da Silva (2010a; 2010b; 2011; 2012), também consideram que na parassíntese ocorre a aplicação de um morfe descontínuo, ou um circunfixo, a uma base substantiva ou adjetiva. Rosa (2003, p. 53) considera adjunção simultânea de elementos nas posições inicial e final da formação como “característica definidora dos derivados parassintéticos”. Usando como exemplo o verbo amanhecer, a autora afirma que a... ec(e(r)) é um afixo descontínuo, ou um circunfixo, desse modo, a denominação circunfixação é utilizada no lugar de parassíntese, caso se leve em conta a proposta de que existam afixos descontínuos (ROSA, 2003, p. 53, grifos da autora). No entanto, Rio-Torto (1998) afirma que a definição de parassíntese tem sido aplicada a produtos lexicais de estrutura derivacional muito diversa. Podem ser designados por parassintéticos os produtos derivacionais que se considera serem ou terem sido simultaneamente prefixados e sufixados (RIO-TORTO, 1998, p. 211). Essa definição tão abrangente, que inscreve num mesmo conjunto produtos isocategoriais e heterocategoriais, 27 permite que todo produto derivacional que apresente um prefixo e um sufixo seja tido como parassintético, o que não é aceitável (RIO-TORTO, 1998, p. 211). Observemos os seguintes quadros: Quadro 1.1: Conjunto (i). Conjunto (i) de verbos habitualmente classificados como parassintéticos Visualização simplificada da estrutura interna dos verbos Verbos denominais ou deadjectivais (i’) a X ecer amadurecer, amanhecer, amolecer, anoitecer, apodrecer (i’’) en X ecer endoidecer, enraivecer, ensurdecer, entardecer, entristecer, envelhecer (i’’’) es X ecer esclarecer Fonte: Rio-Torto (1998, p. 212). Quadro 1.2: Conjunto (ii). Conjunto (ii) de verbos habitualmente classificados como parassintéticos Visualização simplificada da estrutura interna dos verbos Verbos denominais ou deadjectivais (ii’) a X ar acetinar, aclarar, afundar, agrupar, apaixonar, aportar, arruinar, atapetar (ii’’) en X ar encaixar, encerar, endeusar, endinheirar, enlatar, enricar, ensombrar (ii’’’) es X ar esburacar, escaveirar, esfarrapar, esfriar, esvaziar Fonte: Rio-Torto (1998, p. 212). Partindo dos exemplos presentes nos dois quadros anteriores, a autora toma como foco as indagações sobre “(i) até que ponto os dois conjuntos de verbos podem ou não integrar um mesmo e homogêneo grupo de produtos derivacionais”; “(ii) em que medida os primeiros ganham em ser caracterizados, não como parassintéticos, mas como derivados circunfixados, e quais as implicações que esta perspectiva comporta para a teoria morfológica/derivacional”; e “(iii) qual o tipo de operação derivacional/afixal que preside à construção do segundo tipo de verbos” (RIO-TORTO, 1998, p. 213). A proposta da autora é considerar que os verbos do tipo (i) (Quadro 1.1 p. 27) são produtos derivacionais circunfixados, essa proposta está articulada com outra, mais geral, que indica que a formação dos verbos deadjetivais e denominais obedece a um processo de derivação, podendo ser circunfixal, sufixal e prefixal (RIO-TORTO, 1998, p. 213). Apoiando- se na noção de circunfixação, a autora afirma que essa designação é bastante divulgada e substitui com vantagem a parassíntese, pois é entendida como a adjunção simultânea de operador descontínuo, como en- ... -iz- (encolerizar), a- ... -ec- (amadurecer), en- ... -ec- 28 (ensurdecer), a uma base, dando origem a um produto heterocategorial19 (RIO-TORTO, 1998, p. 214, grifos da autora). Este entendimento pressupõe que a adjunção de ambos os segmentos é simultânea e que a informação semântica que estes aduzem não é descontínua ou autónoma. Assim sendo, os segmentos inicial (a-, en-, es-) e final (-iz-, -e-, -ej-, -ec-, -esc-) deixam de ter o estatuto de verdadeiros prefixo e sufixo, para adquirirem o de constituintes circunfixais, um ocorrendo em posição prefixal, outro em posição sufixal. (RIO-TORTO, 1998, p. 214) No entanto, ao considerar que os verbos do quadro 1.1 (amadurecer, entardecer, esclarecer, etc.) são derivados circunfixados, não se resolve o problema dos verbos presentes no quadro 1.2 (aclarar, encaixar, esburacar, etc.) que, como veremos nas nossas análises, compõem o grupo mais numeroso de verbos parassintéticos. Por outro lado, a preferência de Rio-Torto por considerar os verbos parassintéticos como circunfixados também é pautada no fato de que Com a “Hipótese da Ramificação Binária”20 (Lieber (1980)) postulou-se que a actuação de uma regra de formação de palavras não envolve mais do que uma operação derivacional e que, portanto, as estruturas morfológicas são intrinsecamente bimembres. Fica, assim, posta de lado, a ideia tradicional de que produtos deste tipo teriam uma estrutura composicional trimembre, e começa-se então a trabalhar com base na hipótese de que os chamados verbos parassintéticos só podem ser formados por prefixação ou sufixação. (RIO- TORTO, 1994, p. 352) Como observamos na citação anterior, a autora (RIO-TORTO, 1994) assume, com base na Hipótese da Ramificação Binária, que os verbos parassintéticos não podem ser estruturas ternárias, por isso a circunfixação é mais aceitável para a caracterização desses verbos. Por outro lado, a utilização, por Rio-Torto, do conceito de circunfixação não exclui o problema da definição da parassíntese, já que, ainda de acordo com a autora, o que está em causa não é apenas o fato de a designação de parassíntese ser equívoca, mas também o fato de ela não se enquadrar numa tipologia abrangente e operatória quanto a que subcategoriza as operações afixais em operações por sufixação, por prefixação, por circunfixação e por infixação (RIO-TORTO, 1998, 214). Para resolver o problema da formação dos verbos parassintéticos, a autora (RIO- TORTO, 1994, p. 356, grifos da autora) utiliza como exemplos os verbos clarificar e esclarecer, que apresentam, respectivamente, estruturas do tipo “X, constituinte sufixal, VT” e “constituinte prefixal, X, constituinte sufixal, VT”, em que “X” é a base e “VT” a vogal 19 O segundo grupo também é heterocategorial, mas se diferencia do primeiro pela ausência do sufixo. 20 A Hipótese da Ramificação Binária será melhor discutida na subseção 1.5 A parassíntese para Villalva (p. 70). 29 temática. Esses dois verbos, semanticamente semelhantes, se distinguem pela co-ocorrência do sufixo -ec(er) com o segmento inicial es-, em esclarecer, enquanto clarificar só apresenta o sufixo -ic(ar), portanto, do ponto de vista da autora (RIO-TORTO, 1994), esclarecer deve ser um caso de circunfixação devido à sua estrutura. Essa proposição permite encarar verbos como aterrorizar, encolerizar, estontear, amadurecer, endoidecer, etc., cujas estruturas também são do tipo “constituinte prefixal, X, constituinte sufixal, VT”, como produtos derivacionais formados por circunfixação. Assim, pressupõe-se “que a adjunção de ambos os segmentos é simultânea e que a informação semântica que estes aduzem não é descontínua ou autónoma” (RIO-TORTO, 1994, p. 356). Desse modo, “os segmentos inicial (a-, en-, es-) e final (-iz-, - ific-, -e-, -ej-, -ec-, -esc-) deixam de ter o estatuto de verdadeiros prefixo e sufixo para adquirirem o de constituintes circunfixais” (RIO-TORTO, 1994, p. 356). Porém, observemos a definição de circunfixo dada por Lieber (2016, p. 89, grifos da autora)21, Um circunfixo consiste de duas partes – um prefixo e um sufixo que juntos criam um novo lexema a partir de uma base. Não se deve considerar o prefixo e o sufixo separadamente, porque nenhum deles sozinhos criam aquele tipo de lexema, ou possivelmente não formariam nada. Esse tipo de afixação é uma forma de parassíntese, um fenômeno no qual uma categoria morfológica particular que é assinalada pela presença simultânea dos dois morfemas. (Tradução nossa) Para exemplificar a sua explicação, a autora cita exemplos do alemão, do Tagalog, uma língua malaio-polinésia, do Caviñena, uma língua Tacana da Bolívia, e do Kambera, uma língua austronésia falada na Indonésia. O que todos os exemplos citados pela autora (LIEBER, 2016) têm em comum é o fato de que nem o sufixo nem o prefixo ocorrem isolados na formação de palavras, diferentemente do que acontece no português, pois, tanto os prefixos quanto os sufixos, estão disponíveis para outros tipos de formações verbais. Assim, se nos atentarmos para a definição de circunfixo, concluímos que uma das partes não pode ocorrer sem a outra e que os segmentos não podem ocorrer isoladamente, pois são um único morfema. No caso dos verbos parassintéticos, constatamos que tanto os prefixos quanto os sufixos ocorrem em outras formações. Desse modo, a circunfixação, que determina a formação desses verbos como junção de operadores descontínuos às bases, aceita por Rio-Torto (1994; 1998), Monteiro (2002), Rosa (2003), Valente et al (2009), Castro da Silva (2010a; 21 No original: A circumfix consists of two parts – a prefix and a suffix that together create a new lexeme from a base. We don’t consider the prefix and suffix to be separate, because neither by itself creates that type of lexeme, or perhaps anything at all. This kind of affixation is a form of parasynthesis, a phenomenon in wich a particular morphological category is signaled by the simultaneous presence of two morphemes. 30 2010b; 2011; 2012) e Souza-e-Silva e Koch (2012) para explicar a formação de verbos com os segmentos inicial (a-, en-, es-) e final (-iz-, -e-, -ej-, -ec, -esc-), é contrariada. Com base nas ideias apresentadas até aqui, podemos resumir os pontos de vista dos principais autores citados da seguinte maneira: 31 Quadro 1.3: Resumo dos pontos de vista sobre a parassíntese. Hipóteses Autores Coutinho (1974) Câmara Jr. (1986) Rio- Torto (1993, 1994, 1998) Schwindt (2000) Monteiro (2002) Rosa (2003) Booij et al (2004) Kehdi (2007) Rocha (2008) Iacobini (2010) Cunha e Cintra (2013) Lieber (2016) Rocha Lima (2020) Adjunção simultânea de prefixo e sufixo Derivação sufixal e prefixal Não menciona Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim Afixo descontínuo Não Não menciona Sim Não Sim Sim Não Não Não Não Não Sim Não Prefixo e sufixo não podem ocorrer isoladamente Não menciona Não menciona Não menciona Não menciona Não menciona Não menciona Não menciona Não menciona Não menciona Não menciona Não menciona Sim Não menciona A forma parassintética não existe sem os afixos Não menciona Não menciona Sim Sim Não menciona Não menciona Não menciona Sim Sim Sim Não menciona Sim Não menciona Prefixo sem valor semântico próprio Não menciona Sim Não menciona Não menciona Sim Não menciona Sim Não menciona Não menciona Sim Não menciona Não se aplica Não menciona Fonte: elaboração própria. 32 Assim, apesar das afirmações de Bassetto (1993) e de Rio-Torto (1993) de que há autores, que podem considerar como parassintéticos os derivados em que a prefixação e a sufixação ocorreram sucessivamente, constatamos, no quadro acima, que os autores contemporâneos concordam que os derivados parassintéticos são aqueles em que o prefixo e o sufixo se anexam à base simultaneamente, o que se tornou uma unanimidade a partir dos estudos de Darmesteter (1972 [1877]; 1894). No entanto, dentre o rol de autores consultados para a nossa pesquisa, observamos que há dois pontos de vista diferentes em relação ao estatuto desses afixos: há autores que os consideram como prefixos e sufixos (COUTINHO, 1974; KEHDI, 2007; IACOBINI, 2010; CUNHA; CINTRA, 2013; ROCHA, 2020, etc.) e há aqueles que os consideram como afixos descontínuos (RIO-TORTO, 1993, 1994, 1998; MONTEIRO, 2002; ROSA, 2003) com um único valor semântico. Por último, devemos destacar os posicionamentos de Câmara Jr. (1986), Monteiro (2002), Booij et al (2004) e Iacobini (2010) que admitem que nos verbos parassintéticos os prefixos, com destaque para o a- e o em-/en-, não apresentam valores semânticos. Buscando responder à pergunta que intitula esta subseção, neste trabalho assumimos que, na formação dos verbos parassintéticos, estão envolvidos um sufixo e um prefixo que podem se adjungir simultaneamente a uma base nominal substantiva ou adjetiva. No entanto, os sufixos que formam os verbos parassintéticos também ocorrem em estruturas não parassintéticas, como será mostrado ao longo do nosso trabalho, o que faz com que a hipótese de circunfixação não seja sustentada, pois, como indica Lieber (2016), nenhuma das partes do circunfixo pode ocorrer sem a outra. Bassani (2013, p. 243-244) também assume o mesmo posicionamento diante da hipótese de circunfixação, apoiando-se nos argumentos de que o prefixo não pode influenciar na forma do sufixo, e vice-versa, tampouco deve haver verbos formados por processos distintos que podem ser empregados em contextos semelhantes. Além disso, também assumimos que, além dos prefixos a- e em-/en- amplamente aceitos como formadores de verbos parassintéticos, também há outros prefixos que podem entrar na formação desses verbos, como de-, des-, es-, ex-, re-, per-, por-. Porém, é preciso destacar que os dois grupos de prefixos, a- e em-/en- por um lado, e os demais prefixos por outro lado, têm estatutos distintos como veremos com a realização das nossas análises. Ademais, ao longo do nosso trabalho, investigaremos em quais casos os prefixos contribuem para o valor semântico do verbo formado e em quais casos esse afixo pode ser excluído sem que haja perda semântica significativa, confirmando o que propõem os autores mencionados (CÂMARA JR., 1986; BOOIJ et al, 2006; IACOBINI, 2010). 33 1.2 Os afixos na parassíntese Nesta subseção, discutiremos sobre os afixos – prefixos e sufixos – envolvidos na parassíntese, as funções que esses afixos podem desempenhar nas estruturas formadas e os seus valores semânticos. 1.2.1 Os afixos na parassíntese e suas funções Antes de adentrarmos as análises dos afixos – prefixos e sufixos – envolvidos na formação dos verbos parassintéticos, buscaremos, no Dicionário de Linguística e Gramática, de Câmara Jr. (1986), algumas definições importantes para as nossas discussões. AFIXO – segmento fônico com significação própria, que entra na constituição mórfica de um vocábulo na qualidade de forma presa (v.), acrescentando-se à raiz (v.) que contém o semantema (v.). Conforme – a) se antepõe ao radical, b) a ele se segue ou c) nele se intercala, apresenta-se como prefixo (v.), sufixo (v.) ou infixo (v.). Na classificação dos morfemas, o afixo corresponde ao morfema aditivo (v.). (CÂMARA JR., 1986, p. 76) PREFIXO – Assim se chama o afixo (v.) que vem na parte inicial do vocábulo. Na língua portuguesa, salvo nos derivados parassintéticos (v.), o prefixo, que é a variante presa das formas dependentes chamadas preposições, cria uma nova significação externa para a palavra a que se adjunge, e por isso se deve considerar o processo da prefixação como uma modalidade de composição vocabular (v.). A depreensão dos prefixos é uma técnica de análise descritiva (v.) e se situa na sincronia linguística (v.) [...] O sistema de prefixos portugueses é de origem – a) latina, como – in, per, co-, bis- (induzir, percurso, colaborar, bisavô); 2) grega, como – anti-, pro-, para- (antítese, pródromo, paradoxo). Note-se a significação pronominal ou nominal que caracteriza os prefixos e vai modificar a significação do semantema a que se adjunge: in-«dentro», per- «através», co- «companhia», bis- «duas vezes», anti- «contrário», pro- «antes», pára «ao lado». (CÂMARA JR., 1986, p. 198, grifos do autor) SUFIXO – Assim se chama o afixo (v.) que vem na parte final do vocábulo. Os sufixos, em português, podem ser derivacionais (ou lexicais), servindo para a formação de palavras por derivação (v.), ou flexionais, também ditos desinências (v.), para a flexão (v.). Na língua portuguesa, os sufixos servem principalmente: 1) para acrescentar a um semantema uma ideia acessória como a de grau (v.) e a de aspecto (v.); 2) para transpor uma palavra de uma classe para outra (ex.: formoso, de forma; cantor, de canto; civilizar, de civil). Não raro as duas funções essenciais do sufixo confluem, como em – mourejar de mouro com o aspecto iterativo. Quando o sufixo é acompanhado na derivação por um prefixo (v.) derivacional, também (como nos verbos portugueses – entardecer, amanhecer etc.) os derivados se dizem parassintéticos (v.). Há em português uma derivação de nomes abstratos de ação sem sufixo (v. deverbais). 34 Em regra, o sufixo lexical, em português, é tônico, sendo os vocábulos derivados arrizotônicos (v.) e esporádicos os sufixos átonos com derivados rizotônicos (v.). Quanto à língua originária, os sufixos portugueses podem ser: a) latinos (ex.: -oso); b) gregos latinizados (ex.: -izar); gregos (ex.: -óide); germânicos (ex.: -engo); de formação românica (ex.: -aria ou -eria); exs.: formoso, batizar, antropóide, avoengo, cavalaria. (CÂMARA JR., 1986, p. 228, grifos do autor) Na citação acima, chama-nos a atenção quando o autor explicita que, salvo nos derivados parassintéticos, “o prefixo, que é a variante presa das formas dependentes chamadas preposições, cria uma nova significação externa para a palavra a que se adjunge”, ou seja, fica a dúvida se, nos derivados parassintéticos, os prefixos não acrescentam significação à forma a que se adjungem ou se essa nova significação não é responsabilidade exclusiva dos prefixos, mas da somatória dos dois afixos, como observamos a seguir. No entanto essa discussão será aprofundada na subseção seguinte (cf. 1.2.2 Valor semântico dos afixos utilizados na formação dos verbos parassintéticos, p. 46). Quanto aos sufixos, devemos destacar que o autor afirma serem os responsáveis por transporem uma palavra de uma classe a outra, o que caracteriza os sufixos derivacionais, e que também podem acrescentar uma ideia acessória, como grau ou aspecto. Desse modo, o autor deixa claro que o sufixo -ej(ar), em mourejar, é o responsável pela mudança categorial e por acrescentar ao verbo o aspecto iterativo (repetição da ação), sobrepondo-se, então, as duas funções do sufixo. De acordo com Villalva (2010, p. 1), há autores que consideram que nem todos os afixos têm a mesma função na estrutura da palavra, de modo que os sufixos derivacionais têm um estatuto gramatical mais proeminente, em contrapartida os afixos modificadores (prefixos e sufixos avaliativos) têm uma função secundária. Desse modo, os sufixos derivacionais determinam as propriedades gramaticais da palavra em que estão presentes e os prefixos e sufixos avaliativos22 acrescentam valor semântico. Para a autora A postulação da existência de diferentes tipos de afixos começa com uma distinção topológica, que separa os prefixos dos sufixos (e, menos unanimemente, a identificação de infixos, interfixos e circunfixos). A esta distinção tem, mais recentemente, sido contraposta uma outra que assenta no pressuposto de que a função dos afixos na palavra deve prevalecer na estipulação de uma tipologia de afixos. Se o foco incidir sobre o efeito do afixo na natureza da palavra por si formada, relativamente à sua base, pode considerar-se quer a manutenção/mudança da categoria sintáctica da palavra, quer o efeito semântico produzido pelo afixo. O primeiro critério estabelece 22 Podemos citar como exemplos de sufixos avaliativos, que não alteram a classe da palavra a que se anexam, os sufixos -inho e -zinho, presentes em carrinho e cafezinho. 35 uma distinção entre afixos iso- e heterocategoriais. Nos casos em que há mudança de categoria, o agente desencadeador dessa mudança não pode deixar de ser o afixo, mas nos casos em que essa mudança não ocorre, a identidade categorial pode dever-se ao facto de o afixo não ter capacidade para intervir nesse domínio, ou pode suceder que o afixo determine que a categoria da palavra formada é X, sendo X também a categoria da base a que o afixo se associa. (VILLALVA, 2010, p. 4) Fica claro, então, que Villava (2010) defende o posicionamento de Lieber (1992) de que os afixos devem ser classificados de acordo com a função gramatical desempenhada na estrutura da palavra, portanto à semelhança dos componentes sintáticos. Dessa maneira, os afixos podem desempenhar funções de núcleo, complemento, modificador e especificador morfológicos. No entanto, ambas as autoras se inspiraram nas ideias contidas inicialmente no trabalho de Williams (1981, p. 247, tradução nossa), que afirma que “a noção de ‘núcleo de uma unidade’ é familiar à da sintaxe e da morfologia recentes e tradicionais. No geral, o núcleo de X apresenta as mesmas propriedades (distribuição, etc.) de X.”. Para o autor, na morfologia, define-se o núcleo de uma palavra complexa como o membro à direita da palavra, sendo essa definição chamada de Righthand Head Rule. Geralmente os sufixos determinam e os prefixos não determinam a classe da palavra à qual se anexam. Desse modo, a classe da palavra na qual o prefixo está inserido é determinada pela base (WILLIAMS, 1981, p. 248). Assim, a diferença entre prefixos e sufixos está no fato de que o sufixo será o núcleo de uma estrutura sufixada, ao passo que X será o núcleo de uma estrutura prefixada, como representado a seguir (WILLIAMS, 1981, p. 248-249): (1) X sufixo prefixo X ↓ ↓ núcleo núcleo Se o núcleo de uma palavra determina as suas propriedades, espera-se que o sufixo determine a classe da palavra em que está inserido. Desse modo, -ção pertence à classe dos substantivos, -vel à classe dos adjetivos e -iz(ar) à classe dos verbos (WILLIAMS, 1981, p. 249). Dessa forma, podemos representar a derivação de montável e remontar da seguinte maneira: 36 (2) ADJ V montáTV velADJ re montarV Observando os exemplos acima (cf. 2), constatamos que, na formação do adjetivo montável, o núcleo é o sufixo -vel, responsável por determinar as propriedades da palavra formada, mas, na formação do verbo remontar, o núcleo é a base, representada pelo verbo montar. Prefixos não podem atribuir categorias lexicais porque nunca ocupam a posição de núcleo (WILLIAMS, 1981, p. 249). Villalva (2010, p. 4-5) propõe que os constituintes da palavra desempenham as seguintes funções: (i) Os constituintes responsáveis pela definição da categoria sintática da palavra são o seu núcleo, o que significa que quer o radical das palavras simples, quer os sufixos derivacionais, no seu domínio de afixação, são o núcleo da estrutura que integram; [...] (ii) Considerando que os radicais são predicadores intransitivos e que os sufixos derivacionais são predicadores transitivos, dado que a sua legitimação depende da presença de um outro constituinte, pode admitir-se que essa base à qual o sufixo derivacional se associa, e que pode ser um radical, um tema ou uma palavra flexionada, é o seu complemento. [...] (iii) Falta agora referir os afixos, obrigatoriamente isocategoriais, que, não determinando a categoria sintáctica da estrutura em que ocorrem, não podem ser o seu núcleo e, sendo afixos, não podem ser complemento de outro afixo. A sua função é claramente a de modificadores, quer se trate de prefixos (e portanto ocorram à esquerda do núcleo), quer sejam sufixos (e portanto ocorram à direita do núcleo). (VILLALVA, 2010, p. 4-5) Villalva e Silvestre (2014, p. 87-88) definem as funções23 de núcleo, complemento, modificador e especificador da seguinte maneira: NÚCLEO – constituinte que determina as propriedades da palavra, inscritas na sua assinatura categorial24. Trata-se de um predicador, que pode selecionar um complemento (predicador transitivo), como por exemplo, os sufixos 23 Para mais informações sobre as funções exercidas pelos constituintes morfológicos, consultar Villalva (2008), Williams (1981) e Lieber (1992). 24 De acordo com Villalva e Silvestre (2014, p. 147) e Villalva (1994b, p. 203; 2008, p. 126), a noção de assinatura categorial foi desenvolvida por Lieber (1989; 1992) e refere-se ao conjunto de informações ou traços morfossintáticos de uma determinada categoria sintática que é propagado pelo núcleo e é encabeçado pelos traços categoriais [N] e [V]. No Português, a assinatura categorial das classes dos substantivos [+N, -V] e adjetivos [+N, +V] é constituída com base nas informações de gênero [±fem] e número [±plu] e dos verbos [-N, +V], tempo- modo-aspecto [±TMA] e pessoa-número dos verbos [±PN]. Devemos chamar a atenção para o fato de que alguns constituintes morfológicos, como os sufixos derivacionais de verbalização, que entram na formação de verbos parassintéticos, também apresentam assinatura categorial. Os prefixos, que entram na formação dos verbos parassintéticos, não apresentam assinatura categorial. 37 derivacionais (cf. livraria), ou não selecionar qualquer complemento (predicador intransitivo), como os radicais das palavras simples (cf. livro). COMPLEMENTO – constituinte selecionado por um predicador transitivo. São complementos os radicais (cf. livraria), temas (cf. continuação) ou palavras (cf. invariavelmente) selecionados pelos sufixos derivacionais. MODIFICADOR – constituinte que não é núcleo, nem complemento, nem especificador – são adjuntos que operam semanticamente. São modificadores os prefixos (cf. reler) e os sufixos avaliativos (cf. livrinho). ESPECIFICADOR – constituinte que preenche informação solicitada pela assinatura categorial da palavra e que não é satisfeita pela informação que vem do núcleo. São especificadores os constituintes temáticos (cf. começar, livro) e os sufixos de flexão (cf. começar, livros) para além da vogal de ligação. (grifos dos autores) Em relação às funções exercidas pelos constituintes morfológicos, à semelhança dos constituintes sintáticos, Lieber (1992, p. 38) define que os complementos são argumentos internos obrigatoriamente selecionados por um verbo e os modificadores são os constituintes que limitam a referência potencial, tipicamente, a um substantivo. Em relação aos especificadores, a autora afirma que são a classe mais problemática, pois o termo tem sido aplicado a um grupo de itens heterogêneo, já que, como vimos em Villalva e Silvestre (2014), podem ser especificadores a vogal temática dos verbos (acreditar), o índice temático dos substantivos e adjetivos (livro, quente), os sufixos de flexão (acreditar) e as vogais de ligação (antropologia, inseticida). Sobre as funções de complementos, modificadores e especificadores, vejamos as definições encontradas no Dicionário de Lingüística (DUBOIS et al, 1998): complemento Sob o nome de complemento designa-se um conjunto de funções desempenhadas na frase por sintagmas nominais (ou orações que podem substituí-los, sejam eles objetos, diretos ou indiretos, constituintes de sintagmas verbais ou de frases, ou circunstantes, os quais completem o sentido dos sintagmas constituintes da frase elementar (SN + SV). [...] (DUBOIS et al, 1998, p. 122, grifos dos autores) modificação A gramática tradicional e a lingüística estrutural utilizam o termo modificação para definir o papel sintático dos constituintes do sintagma nominal que não o substantivo “cabeça” e seus determinantes, e o dos constituintes do sintagma verbal que não o verbo, seu auxiliar e o sintagma nominal objeto.[...] modificador Numa construção endocêntrica, o modificador é o constituinte cuja distribuição é diferente daquela da construção toda (o constituinte cuja distribuição é idêntica é chamado cabeça). [...] (DUBOIS et al, 1998, p. 415) 38 Por fim, vejamos as mesmas definições no Dicionário de Linguística e Fonética (CRYSTAL, 2000): núcleo (nuclear) (1) Termo usado na descrição GRAMATICAL de alguns tipos de SINTAGMAS (sintagmas ENDOCÊNTRICOS), com referência ao seu elemento central (sua “cabeça”), que é DISTRIBUCIONALMENTE equivalente ao sintagma como um todo. O núcleo determina também quaisquer relações de CONCORDÂNCIA e REGÊNCIA em outras partes do sintagma ou da sentença. [...] (CRYSTAL et al, 2000, p. 184, grifos do autor) complemento (complementação, complementizador) Termo usado na análise da FUNÇÃO GRAMATICAL, com referência a um importante CONSTITUINTE de uma ESTRUTURA DE ORAÇÃO ou SENTENÇA, cujo papel tradicional é “completar” a ação especificada pelo VERBO. Em seu sentido mais amplo, portanto, complemento é uma noção muito geral, englobando todos os traços obrigatórios do PREDICADO excluindo o VERBO, como OBJETOS [...] e ADJUNTOS ADVERBIAIS [...]. [...] Todavia, o domínio da complementação permanece uma área pouco definida da análise linguística e várias questões continuam insolúveis [...]. (CRYSTAL et al, 2000, p. 54-55, grifo do autor) modificação (modificar, modificador) (1) Termo usado na SINTAXE com referência à dependência ESTRUTURAL de uma UNIDADE gramatical sobre outra – mas com diferentes restrições introduzidas por enfoques diferentes. Alguns reservam o termo para a dependência estrutural dentro de qualquer SINTAGMA ENDOCÊNTRICO [...]. (CRYSTAL, 2000, p. 173, grifos do autor) Como observamos nas definições acima, as funções de núcleo, complemento, modificador e especificador exercidas pelos constituintes morfológicos foram transpostas da Sintaxe para a Morfologia, no entanto são bastante importantes para compreendermos como esses constituintes se organizam dentro das palavras. Assim, o núcleo é o responsável por definir a categoria sintática da palavra em que está presente, o complemento é a estrutura morfológica selecionada pelo núcleo, já os modificadores operam semanticamente, acrescentando sentido à palavra formada e o especificador preenche as demais informações necessárias à palavra formada não preenchidas pelos demais constituintes. Contudo, ao observamos as definições anteriores, constatamos que é fácil identificar tais funções quando estamos tratando de estruturas binárias (livr + ariaNÚCLEO; re + lerNÚCLEO), mas os verbos parassintéticos são estruturas formadas, a priori, por três constituintes, o que dificulta determinar as suas funções, principalmente nos casos de verbos parassintéticos em que não está presente um sufixo derivacional. Assim, vamos observar o seguinte exemplo cuja base é o radical nominal “carn-” que forma o substantivo carne, o adjetivo carnal e o verbo parassintético descarnar: 39 Quadro 1.4: Funções dos constituintes de “descarnar”. Modificador Complemento Núcleo carnRN e carnRN alSufADJ des tribalADJ izSufV ar *des (?) carnRN(?) ar (?) Fonte: Elaboração própria. Observando o exemplo acima, constatamos que, assim como exposto por Villalva (2010), o sufixo -al, sendo um predicador transitivo, associa-se necessariamente a um complemento, que no caso é o radical nominal carn-. No entanto, quando observamos o verbo descarnar, aparecem as dúvidas quanto às funções de cada um dos seus elementos formantes. Se tomarmos a definição de núcleo - que se trata do constituinte responsável pela definição da categoria sintática da palavra - anteriormente citada, essa função não pode ser atribuída ao radical, tampouco exclusivamente ao prefixo. Para solucionar o problema da definição do núcleo das palavras complexas, podemos adotar a proposta de Villalva (1986, p. 84) que considera “o prefixo e o sufixo como um único afixo com as propriedades dos afixos descontínuos, gerado numa posição básica de núcleo da palavra (à direita) e posteriormente movido para a posição de prefixo”. No entanto, essa hipótese também levanta alguns questionamentos e só poderá ser aceita se a existência de afixos descontínuos, de uma regra morfológica de movimento e de vestígios morfológicos for demonstrada (VILLALVA, 1986, p. 84). Para resolver o problema do núcleo dos VP, Villalva (1986, p. 84) recorre, então, à solução segundo a qual o núcleo é conjuntamente constituído pelo prefixo e pelo sufixo. No entanto, ao menos que se considere que o segmento sufixal domina o prefixal ou que se parta da premissa de que a este está vedado qualquer poder heterocategorial, o que pode ser questionado por alguns produtos prefixados de diversas línguas, uma solução deste tipo dificilmente assegura que não seja desrespeitada a “Righthand Head Rule”. Assim, “as reservas que lhe têm sido formuladas radicam no reconhecimento de que alguns processos e/ou operadores de prefixação possuem capacidade de categorização” (RIO-TORTO, 1998, p. 216). De acordo com Villalva e Silvestre (2014, p. 101), a parassíntese é realizada por sufixos derivacionais (ou por conversão) e por prefixos expletivos25. Os autores também chamam a 25 Os prefixos expletivos são utilizados para dar realce ou completar o sentido. 40 atenção para o fato de que “a principal característica dos sufixos derivacionais é a de que eles são o núcleo das estruturas em que ocorrem, dado que lhes cabe definir as propriedades morfossintáticas das palavras derivadas.” (VILLALVA; SILVESTRE, 2014, p. 102). É importante ressaltar que “[...] os sufixos derivacionais, enquanto predicadores transitivos que selecionam obrigatoriamente um complemento, definem igualmente as propriedades dos complementos que selecionam.” (VILLALVA; SILVESTRE, 2014, p. 103-104). Os sufixos derivacionais que formam os verbos parassintéticos selecionam bases nominais e adjetivais, como nos casos: (3) a] formos]RADJ ear]V es] pern]RN ear]V Além disso, os autores também destacam o fato de que os sufixos derivacionais que participam dos verbos parassintéticos não são exclusivos desse processo derivacional (VILLALVA; SILVESTRE, 2014, p. 109), como podemos observar em: (4) a) a[rox]ear branqu]ear b) en[car]ecer favor]ecer c) es[pan]ejar fest]ejar d) a[temor]izar racional]izar Com base nas afirmações anteriores de que o prefixo não determina as propriedades, mas acrescenta valor semântico à palavra formada e que o sufixo derivacional é o responsável pela mudança de categoria sintática no processo de formação de palavras, assim como, nos verbos formados por sufixação com os mesmos sufixos dos VP (cf. 4), o núcleo é o sufixo derivacional, podemos afirmar que, nos verbos parassintéticos, os núcleos são os sufixos. 41 No entanto resta definir qual elemento deve ser considerado como núcleo nos verbos que seguem, já que nessas estruturas não está presente o sufixo derivacional: (5) a) a[baf]__ar a[froux]__ar b) en[curt]__ar en[gatilh]__ar c) es[galh]__ar es[migalh]__ar Com relação aos prefixos, é preciso ressaltar que são classificados como modificadores e a sua característica mais relevante é a de que não alteram as propriedades gramaticais das formas em que estão presentes, sendo o seu papel na estrutura das palavras estritamente semântico (VILLALVA; SILVESTRE, 2014, p. 110). Os autores também chamam a atenção para o fato de que, de maneira contrária aos sufixos, os prefixos presentes nos verbos parassintéticos formam um conjunto quase exclusivo: (6) a) a-senhor-ear26 a-podr-ecer b) en-tard-ecer en-lam-ear c) es-coic-ear es-clar-ecer Villalva e Silvestre (2014, p. 114) ressaltam que o único prefixo presente nos verbos parassintéticos que tem forma semelhante a um prefixo modificador é o des-. Entretanto, o valor semântico do prefixo des-, como modificador verbal, é de oposição (fazer/desfazer), e o do modificador adjetival é de negação (leal/desleal). No caso dos verbos parassintéticos, o valor 26 Observa-se que o prefixo a- aqui presente não é o mesmo prefixo de negação de acéfalo e atípico, que indica negação ou “ausência de”. 42 semântico do prefixo des- é de subtração ou redução (cf. 7a), valor também presente nos verbos formados com o prefixo es- (cf. 7b). Há casos em que as formas alternam entre os dois prefixos (cf. 7c): (7) a) des-cupin-izar “retirar os cupins de” des-casc-ar “retirar a casca de” b) es-migalh-ar “reduzir a migalhas” es-tronc-ar “retirar o tronco de” c) es-piolh-ar “retirar os piolhos de” des-piolh-ar “retirar os piolhos de” es-trip-ar “retirar a(s) tripa(s) a” des-trip-ar “retirar a(s) tripa(s) a” Assim, podemos considerar que os prefixos a- e em-/en-, pela grande variedade de formas em que ocorrem e pela amplitude semântica dessas formas, formam um grupo específico, cuja principal característica é a possibilidade de serem excluídos sem alterações semânticas significativas, enquanto os demais prefixos que entram na parassíntese, incluindo des- e es-, formam outro grupo, como veremos na seção seguinte (cf. 3 Resultados, p. 109). Por fim, os autores enfatizam que a propriedade mais relevante dos prefixos é a sua dispensabilidade, ou seja, os prefixos podem, ou não, ocorrer nos verbos quando comparamos diacronias (cf. 8a), variedades (cf. 8b) e socioletos27 (cf. 8c): (8) a) apacificar Século XIV pacificar Português Contemporâneo b) afofar28 PB fofar PB e PP 27 De acordo com o Houaiss, socioletos podem ser definidos como “cada uma das variedades de uma língua usadas pelos grupos de indivíduos que, tendo características sociais em comum (por exemplo, a profissão, os passatempos, a geração etc.), usam termos técnicos, ou gírias, ou fraseados que os distinguem dos demais falantes na sua comunidade; dialeto social, variante diastrática.”. 28 Nos exemplos 8 e 9, as ocorrências correspondentes ao PB e ao PP foram extraídas dos nossos corpora. 43 amedalhar PB medalhar PP c) limpar alimpar Também devemos citar os casos de verbos que podem ocorrer na mesma sincronia e em variedades distintas prefixados ou não: (9) amadurar PB e PP madurar PB e PP encrespar PB e PP crespar PB e PP De acordo com Villalva e Silvestre (2014, p. 101), assume-se que a parassíntese é realizada por sufixos derivacionais (cf. 10a), ou por conversão (cf. 10 b), e prefixos expletivos. Assim, temos dois grupos: (10) a) assenhorear b) assenhorar amadurecer amadurar empestear empestar entronizar entronar Os verbos em (10a) são formados por sufixos derivacionais -e(ar), -ec(er) e -iz(ar) e os prefixos a- e en-/em-, mas os verbos em (10b) não apresentam quaisquer sufixos derivacionais, apenas os mesmos prefixos a- e en-/em-, o que significa, então, que são formados por conversão. Sobre a conversão, Lieber (1992) divide os processos em três categorias29, das quais interessa-nos a chamada zero affixation, em que a autora propõe: 29 “[...] Several different analyses have been proposed in traditional treatments of word formation and generative morphology for conversion phenomena: category-changing rules, derivation by zero affixes, and relisting. [...]” “[...] Várias análises diferentes foram propostas em tratamentos tradicionais de formação de palavras e morfologia gerativa para fenômenos de conversão: regras de mudança de categoria, derivação por afixo-zero e reetiquetagem. [...]” (LIEBER, 1992, p. 157, tradução nossa) 44 Afixação-zero i. Conversão resulta da afixação de um morfema-zero a uma base. ii. Morfemas-zero possuem entradas lexicais semelhantes às entradas de outros afixos, exceto que pela falta da representação fonológica.30. (LIEBER, 1992, p. 159) A definição de Lieber (1992) para os morfema-zero assemelha-se ao que Iacobini (2010, p. 3) chama de “sufixos sem substância fônica”, ou seja, são afixos que apresentam propriedades morfológicas, ou uma assinatura categorial31, mas que não possuem representação fonológica. Para Monteiro (2002, p. 153), o segmento após a base, nos verbos parassintéticos, pode não se realizar foneticamente e Iacobini (2010, p. 3) também ressalta o fato de que, nas línguas latina e românica, a parassíntese se caracteriza pelo uso da conversão e não por um sufixo. De acordo com Selkirk (1983, p. 63-64), alguns afixos exibem uma variedade de propriedades sintáticas, semânticas e fonológicas e a autora propõe que essas propriedades sejam representadas na entrada lexical do afixo da seguinte maneira: (11) Entrada lexical de um afixo a. Categoria (incluindo tipo (sempre afixo), características da categoria sintática, e características diacríticas32) b. Subcategorização c. Funções