unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP LEANDRO MÓDOLO PASCHOALOTTE A voz neodarwinista sobre os humanos: os novos significados histórico-sociais da ontologia biocientífica ARARAQUARA – S.P. 2018 A voz neodarwinista sobre os humanos: os novos significados histórico-sociais da ontologia biocientífica Tese de Doutorado, apresentado ao Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Doutor em Ciências Sociais. Linha de pesquisa: Trabalho e Movimentos Sociais Orientador: Maria Orlanda Pinassi Bolsa: FAPESP - 2014/27003-2 ARARAQUARA – S.P. 2018 3 Módolo, Leandro Paschoalotte A voz neodarwinista sobre os humanos: os novos significados histórico-sociais da ontologia biocientífica/Leandro Paschoalotte Módolo — 2018 267 f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) — Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", Faculdade de Ciências e Letras (Campus Araraquara) Orientador: Maria Orlanda Pinassi 1. neodarwinismo. 2. genômica. 3. ideologia. 4.bioeconomia. 5. biopolítica. I. Título. LEANDRO MÓDOLO PASCHOALOTTE A voz neodarwinista sobre os humanos: os novos significados histórico-sociais da ontologia biocientífica Tese de Doutorado, apresentado ao Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Doutor em Ciências Sociais. Linha de pesquisa: Trabalho e Movimentos Sociais Orientador: Maria Orlanda Pinassi BOLSA: FAPESP - 2014/27003-2 Data da defesa: 03/ 04/ 2018 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientador: Jesus José Ranieri / Unicamp Membro Titular: Ricardo Rodrigues Teixeira / USP. Membro Titular: Victor Ximenes Marques / UFABC. Membro Titular: Meíre Mathias / UEM Membro Titular: Silvia Beatriz Adoue / UNESP Araraquara: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara À Nina, cujos sonhos não caberão em sua biologia. AGRADECIMENTOS Esta, como qualquer criação e produção humana, é fruto de uma síntese do comum compartilhado entre muitos indivíduos. Seria impossível citar nominalmente todos e todas que merecem os meus sinceros agradecimentos. Sendo assim, de um modo mais genérico, agradeço aos funcionários e funcionárias da Universidade Estadual de São Paulo/UNESP do campus de Araraquara, que fazem a universidade no seu dia a dia. E, sem exageros, agradeço aos milhares de trabalhador@s que, injustamente, produzem os excedentes de valor que permitem apenas uma pequena parcela da sociedade privilegiar-se com a possibilidade material de se dedicar exclusivamente a pesquisa filosófica e científica. Em especial, deixo registrado os meus agradecimentos, em primeiro lugar, à minha orientadora, Maria Orlanda Pinassi, que desde do início se mostrou disponível para debater comigo mesmo os tópicos que nem eu mesmo tinha clareza à época. E que, sobretudo, sempre foi um exemplo de resistência intelectual num espaço que progressivamente tem sido tragado pelos comandos neoliberais e pelos seus serviçais. Aos meus pais, Paulo e Vera, e à minha irmã, Dede, por me apoiarem sempre e pelo amor, cada qual ao seu modo, que me deu a liberdade de voar sob minhas próprias asas e em direção aos meus próprios sonhos. Amo vocês e sou eternamente grato! Também agradeço com carinho as duas Marcinhas, minha boadrasta e minha sogrinha, que desde sempre me receberam com carinho em suas famílias. E aos meus cunhados, Juliana, que sempre me ajudou com os benefícios da alquimia moderna, e o Frigo, que juntinho da Dede trouxe duas preciosidades à minha vida, uma chamada Joaquim e outra chamada Tarsila – além da boa cerveja é claro. Aos amig@s que sempre me fazem ser algo melhor do que sou, obrigado Caião, Xuxu, Rai, Dani, Nenê, Gui, Thaís, Nicks, Fran, Rodrigão, Dorfo, Dexter, Massuia, Iglesias, Djalma, Miltinho, João, André, Paraná e tantos outros queridos. Os amigos são a família que podemos escolher para nós. Entre eles deixo um carinho especial ao Luigi, amigo recente que me apresentou a criminologia crítica, ao Alex, amigo de longa data e para sempre, ao Coruja, cujo carinho fez de Lisboa a etapa mais prazerosa dessa pesquisa. E, por último, ao meu irmão de identidade espiritual Gaúcho: se alguma linha desse trabalho tiver algo a acrescentar à massa crítica da sociologia brasileira provavelmente ela foi resultado de longas conversas contigo. A todos vocês sou grato por fazerem parte da minha vida e todos têm o meu desejo de que sempre estejam nela. Àqueles e àquelas que conheci nos passos da militância até hoje, meus agradecimentos por aprender e sentir com vocês que ombro a ombro somos muito mais fortes e capazes de sustentarmos o sonho de uma sociedade emancipada da opressão e exploração de todas formas de vida pelos seres humanos. À Professora Mônica Truninger, que me recebeu com solidariedade em Lisboa. Aos membros da banca, que aceitaram com carinho a participação. À FAPESP, pelo apoio financeiro referente ao processo 2014/27003-2 Por fim, um agradecimento mais que especial a Alexandra, que apareceu num momento da minha vida no qual o cinza era a cor predominante e me trouxe, pela janela, as cores e um doce aroma que sempre me deixarão saudoso. Obrigado companheira e amante, que a Nina seja o nosso laço eterno. Te amo! RESUMO Há pelo menos três décadas a esfera pública vem sendo banhada pela figuração do humano como um ser de natureza igual – nem mais nem menos – a todos os outros seres viventes sob a rubrica da biologia molecular, mais precisamente da genômica. Do DNA como representação da “essência do nosso ser” aos “homens geneticamente criminosos”, vemos inúmeros enunciados serem vocalizados em livros, em reportagens e mídias em geral – especializados ou não – que, como diria Gyorgy Lukács, derivam ontologicamente as características do ser social daquelas constitutivas do ser natural. Desde a inauguração, na década de 1970 com a sociobiologia de Edward Wilson e Richard Dawkins, até os dias de hoje, a figuração do humano baseado na Teoria Sintética da Evolução vem se aperfeiçoando e se propagando nas distintas áreas do saber e da cultura. De forma geral, parte dominante desse pensamento interpreta as qualidades ontológicas dos humanos e, por consequência, suas características como resultados adaptacionista da evolução da nossa espécie com base na fitness genética. Sendo assim, no sentido de contribuir na compreensão do cenário no qual subiu ao palco tal figuração, este trabalho assume a tarefa de capturar alguns de seus significados histórico- sociais contemporâneos. Por consistir numa figuração com suportes teórico-científicos, a intenção, num primeiro momento, é identificar alguns dos seus fundamentos epistemológicos e ontológicos através da construção do que denominamos de grade de inteligibilidade genômico derivacionista, cuja característica central consiste na “dedução ontológica” das esferas menos complexas do ser em geral as mais complexas. Posteriormente, para levarmos a cabo o nosso objetivo, explicaremos o que consideramos efetivamente novo em seu significado histórico-social mediante as suas manifestações ideológicas – pelas quais práticas políticas e econômicas se operacionalizam. A nossa tese é de que, sob a crise estrutura do capital e seus aportes financeiros, emergiram tanto uma bioeconomia quanto uma biopolítica que imprimiram significados radicalmente novos ao modo com que tal figuração do humano se transmuta de discurso científico ao ideológico. Palavras-chave: neodarwinismo; genômica; ideologia; bioeconomia; biopolítica. ABSTRACT For at least three decades the public sphere has been bathed by the figuration of the human as a being of an equal nature – no more and no less – to all other living beings under the rubric of molecular biology, more precisely genomics. From DNA as a representation of the “essence of our being” to "genetically criminal men," we see innumerable utterances being spoken of in books, in reports, in advertisements and media in general – specialized or not – which, as Gyorgy Lukacs would say, derive ontologically the characteristics of the social being of those constitutive of the natural being. Since the inauguration in the 1970s with the sociobiology of Edward Wilson and Richard Dawkins, to this day, the human figure based on the Synthetic Theory of Evolution has been improving and spreading in the different areas of knowledge and culture. In general, a dominant part of this thought interprets the ontological qualities of humans and, consequently, their characteristics as an adaptational result of the evolution of our species based on genetic fitness. Thus, in order to contribute to the understanding of the scenario in which such figuration came to the stage, this work assumes the task of capturing some of its contemporary social-historical meanings. In the first place, the intention is to identify some of its epistemological and ontological foundations through the construction of what we call a “reductionist genomic intelligibility grid”, whose central characteristic consists of the "ontological deduction" of the less complex spheres of “being in general” the more complex. Subsequently, to accomplish our goal, we will explain what we consider to be effectively new in its historical-social meaning through its ideological manifestations – by which political and economic practices become operational. Our thesis is that, under the crisis of capital structure and its financial devices, both a bioeconomy and a biopolitics have emerged that have given radically new meanings to the way in which such figuration of the human transmutes from scientific to ideological discourse. Keywords: Neo-darwinismo, genomics; ideology; bioeconomics; biopolitics. LISTA DE FIGURAS Figura 1: Gráfico sobre a Sociobiologia 84 Figura 2: Grade de inteligibilidade genômica derivacionista 94 Figura 3: Ovelha transgênica 100 Figura 4: Porco Fosforescente 100 Figura 5: Robô Sophia 102 Figura 6: Neil Harbison 103 Figura 7: Craing Venter 113 Figura 8: Patentes de DNA 126 Figura 9: Gráfico – lucro e receitas das empresas genômicas 133 Figura 10: Gráfico – capital de risco aplicado no setor 136 SUMÁRIO INTRODUÇÃO 12 1 - A GRADE DE INTELIGIBILIDADE GENÔMICO DERIVACIONISTA 46 1.1 - Preambulo histórico: o darwinismo 47 1.2 - Dos acertos às faltas de Darwin 51 1.3 - A genética entra na história 54 1.4 - Neodarwinismo: o “front único” 57 1.5 - O Adaptacionismo e a eficácia darwinista 61 1.6 - Uma nova Vida 69 1.7 - Sociobiologia: o front único para os Humanos 73 1.8 - Da sociobiologia à… 82 1.9 - Grade de inteligibilidade genômico derivacionista 86 2 - UM SIGNIFICADO ECONÔMICO: COMPLEXO BIOTECNOCIENTÍFICO FINANCEIRIZADO 95 2.1 - Uma breve história das biotecnologias 96 2.2 - Da vocação ontológica da biotechs 101 2.3 - Um enunciado científico se operacionaliza em uma ideologia 106 2.4 - PGH e a ciência pós-acadêmica 110 2.5 - As finanças e os cientistas-empresários 115 2.6 - O conhecimento per se como mercadoria 120 2.7 - O biocapital 128 2.8 - Bioeconomia e o mercado de promessas 132 2.9 - A Vida como um ativo financeiro 136 2.10 - Espaços de conjuração 141 2.11 - Conclusão 146 3 - UM SIGNIFICADO POLÍTICO: O BIOPODER MOLECULAR DO CONTROLE 151 3.1 - As lições de Saramago 154 3.2 - Um breve diagnóstico 158 3.3 - A tendência mais explosiva do capital 160 3.4 - Sentidos materialistas do biopoder 165 3.5 - Incursos sobre a política criminal atual 174 3.6 - De Lombroso à criminologia genética 179 3.7 - O biopoder molecular 189 3.8 - Made Brazil 196 3.9 - Conclusão 202 4 - CONSIDERAÇÕES FINAIS 206 4.1 - A perfilização molecular num futuro com o capital genético 209 4.2 - O biopoder sobre a força de trabalho: uma lição brasileira 215 4.3 - O biopoder e o futuro das classes proletárias 219 REFERÊNCIAS 222 APÊNDICE 1 - Big Data e a espoliação algorítmica dos dados 237 APÊNDICE 2 - O predomínio da ontologia biocientífica 248 APÊNDICE 3 -Justificativa de antecipação da defesa de doutorado enviado à FAPESP 266 12 INTRODUÇÃO “Nenhum recém-nascido deveria ser declarado humano até ter passado em certos testes de dotação genética.” Francis Crick1 “Em termos mais despudorados ainda, a pergunta seria: do ponto de vista político, em que aspectos divergem uma população de homens de um conjunto de animais domésticos? A distinção é de efetiva qualidade, ou trata-se apenas de uma variação quantitativa? Antes de responder (ou para evitar fazê-lo), vale lembrar da extrema semelhança entre seres humanos e chimpanzés, confirmada recentemente pelos biólogos moleculares. Como vimos, basta cotejar as cifras gênicas de ambas as espécies: 98,4% da informação de seus códigos é idêntica” Paula Sibília “Do mesmo modo, é frequente que o homem seja considerado unicamente como ser biológico, até sua psicologia (de todo derivada da biologia ou, em alguns casos, até contrastando com ela) é, de modo absoluto, contraposta às determinações sociais, como mutuamente excludentes. A firmeza de tais preconceitos é quase sempre reforçada porque se tornam elementos de uma ideologia (…) e, consequentemente, são utilizados para desempenhar papel importante no esforço de grupos sociais para resolver seus conflitos segundo seus interesses.” Gyorgy Lukács 1 “DNA Scientis Francis Crick Dies at 88”, Michelle Morgante. Miami Herald, 29 Jul. 2004. 13 Todos conhecem a assertiva conservadora de Francis Fukuyama sobre “o fim da história”, inicialmente publicada em The National Interest. Em sua interpretação, o filósofo Hegel teria razão em dizer que a história havia terminado em 1806 após a vitória de Napoleão na batalha de Iena, e que o desfecho do denominado “socialismo real” em 1989 era a confirmação de que para além da democracia liberal não haveria outro futuro possível. Contudo, pouca repercussão obteve nos mesmos círculos que contra-argumentaram essa tese de Fukuyama, uma segunda tese que surgiu em texto publicado dez anos depois pelas penas do mesmo ideólogo estadunidense. Para ele, entre todas as muitas críticas que haviam sido formuladas ao seu texto de maior repercussão, “a única delas que não era possível refutar era a afirmação de que não podia haver um fim da história a menos que houvesse um fim da ciência”(FUKUYAMA,2002, p.11). E esta estaria longe do seu fim. Na primeira tese, Fukuyama já havia sinalizado os fundamentos do seu raciocínio ao asseverar que a impossibilidade de ir para além de uma ordem liberal baseada no mercado devia-se justamente ao fato de que ela era a mais adequada, ou melhor, a única adequada à – fixa e imutável – “natureza humana”. Os fracassos dos “construtivistas do século XX” – os comunistas, os socialistas, os psicanalistas etc. – teriam sido em razão da brutal, pois inexequível, tentativa de transformar o “substrato natural do comportamento humano”. Por tal razão, anos depois, ele buscou revisar a sua acepção de imutabilidade da natureza humana e, em 2002, dedica aos avanços proporcionados pelas biotecnologias “a” transformação do nosso substrato natural, de maneira a se conseguir aquilo que a “engenharia social” não teria sido capaz. Por fim, defende ele, haveria sim um futuro para história humana, um futuro proporcionado pelas alterações biotecnológicas investidas diretamente na nossa natureza e com objetivos que se remetem para além dela própria. Haveria, portanto, o nosso futuro pós- humano. Segundo Fukuyama, George Orwell teria errado em sua distopia, o que não teria acontecido o mesmo com aquela desenhada por Aldous Huxley em seu Admirável mundo novo. Nossa tarefa atual era então regulamentar as novas tecnologias, pois se as “grandes ideologias” não demonstravam mais perigos, já que estavam em seu “fim”, eram novas tecnologias que passavam a ameaçar a democracia liberal. E “Acredito que há um par de razões pelas quais a biotecnologia pode ser problemática”, disse ele em entrevista a Folha de São Paulo. Pois quando nós nos perguntamos sobre “a origem de nossas noções de direitos humanos, já que relativamente poucas pessoas em nossa sociedade diriam que eles vêm de Deus, eles realmente estão baseados em algum entendimento do que seja a natureza humana. 14 Se houver uma tecnologia suficientemente poderosa para começar a alterar algumas dessas características essenciais, é quase inevitável que ocorram efeitos políticos.” (2003)2 Com efeito, as últimas décadas foram emocionantes para os que acompanharam a genômica3 e sua corrida pelo sequenciamento do genoma humano. E, mais recentemente, elas passaram a ser angustiantes para aqueles que residem na espera das curas prometidas pelos terabytes em “informações genéticas” – frutos do sequenciamento. Com o famoso Projeto Genoma Humano (PGH), até 2000, o objetivo era o sequenciamento e constituição dos “bancos de dados” de “informações genéticas”. Com ele novas ferramentas e técnicas foram sendo criadas e desenvolvidas permitindo cada vez mais, intensiva e extensivamente, que pesquisadores caminhassem mais longe na compreensão do funcionamento de processos biológicos à níveis moleculares – conjunto de saberes e técnicas que hoje leva a insígnia de life sciences (ciências da vida). Atualmente fala-se em “pós-genômica”, pois, embora o sequenciamento não tenha deixado de ser importante, como consequência da disponibilidade das “informações” o objetivo passou ser a busca de interações possíveis entre elas e as diversas sínteses proteicas, bem como, as correlações das variações gênicas com as “suscetibilidades” às doenças que este ou aquele indivíduo possa ser acometido. Todo este desenvolvimento tecnocientífico4 tem sido capaz de aumentar as possibilidades dos cientistas em descobrirem novos vetores de doenças e identificarem desordens em mecanismos moleculares, ambos, formas que viabilizaram novos diagnósticos, terapias e tratamentos – mais rápidos e eficazes –, como são os casos dos doentes de diabete ou com anemia da insuficiência renal que começaram a ser tratados com insulina ou eritropoetina humana recombinante. Nos últimos cinquenta anos, entretanto, as ciências da vida também foram um locus em destaque na incorporação progressiva das lógicas do mercado. Uma transformação profunda nas práticas das ciências da vida evidenciaram que os regimes de valorização do capital subsumiram grande parte dos atores, das relações e dos objetos que circulam em tais ciências aos seus imperativos (COOPER 2008; SUNDER RAJAN 2006). Desde os primórdios da indústria da biotecnologia em meados dos anos 1970 – em especial com a 2 Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ciencia/fe0109200304.htm 3 A genômica significa todo o conjunto de eventos, tecnologias, discursos e instituições que surgem em torno do sequenciamento dos genomas. 4 “Tecnociência” é, em síntese, um termo usado pelos antropólogos e sociólogos da ciência e da tecnologia cujo conteúdo expõem a impossibilidade atual de purificar a “ciência” ou a “tecnologia” como coisas separadas uma das outras (sobre este tópico veja Latour, 2000). Nesse sentido “biotecnociência” é uma expressão que evoca as chamadas life sciences em sua comunhão com as biotecnologias. Quando nos referimos ao “complexo biotecnocientífico”, portanto, estamos colocando em luz um complexo que abrange a biotecnociência sob os seus aspectos científicos, tecnológicos, econômicos e militares. 15 biotecnologias do DNA recombinantes – as ciências de um modo gera e, em especial, àquelas dedicadas a Vida tornaram-se definitivamente espaços empresariais cuja lógica sobressalente passou a ser a comercialização das investigações e das chamadas inovações, tal como o empresariamento da conduta científica. Com isso, cravada num momento histórico de ascensão do neoliberalismo e da financeirização da economia, as ciências da vida “coproduziu” um novo modo de compreender a Vida, o ser vivo e o ser humano, e uma nova forma de fazer ciência. É nesta problemática que o nosso trabalho procura inserir-se, adentrando, mais especialmente, ao significado histórico-social tomado por aquela que se tornou, desde o final da segunda quadra do século XX até os dias atuais, a resposta predominante à questão “O que é o homem?”, a saber: a figuração ontológica defendida e propagada pelas ciências da vida, a de que o homem é um “animal como os outros”. Segundo Wolff (2011) e Rifkin (1999), cada qual ao seu modo, a contemporaneidade estaria marcada justamente por uma forma biologizante de definir o próprio do homem. Para Rifkin, no “século da biotecnologia”, não pode ser outra a representação dominante senão a da engenharia genética: “somos nossos genes” (RIFKIN, 156-183). Para Wolff, as pesquisas das “Ciências do vivente” – que envolve um grupo inédito de ciências como as Neurociências, Biologia da Evolução, Psicologia Evolucionista etc. – vem fagocitando todas as demais figurações ontológicas do que é o humano num núcleo central, o “animal como os outros”, em razão dessas pesquisas “compartilharem uma mesma posição metodológica (a explicação naturalista), um mesmo pressuposto metafísico (o monismo materialista [de que o homem é apenas um ser natural]) e (...) uma mesma figura do homem, a de um ser vivo como os outros, fruto da evolução e adaptado ao seu meio.” (WOLLF, 2011, p.109). De fato, uma dezena de novas áreas e novos cursos para especialistas e/ou leigos foram criados nas últimas décadas e ainda recorrentemente surgem nas academias, laboratórios e nas empresas ao longo do mundo – todos com o objeto de análise e manipulação do que passou a se classificar como “vida”. Publicações com repercussão em periódicos científicos importantes como Science, Nature, Current Anthropology etc., assim como nos cadernos científicos da imprensa leiga, dão ressonância às descobertas, hipóteses e debates em torno da figuração do humano como “animal como os outros”. E há décadas o cenário midiático, editorial e científico internacional vem veiculando e oferecendo manchetes e estudos que apresentam essa perspectiva, seja por cientistas, engenheiros genéticos e médicos, seja por jornalistas, empresários dos setores biotecnológicos e informáticos, políticos etc. Todos evocando ora a biologia evolutiva, ora as neurociências, ora a genética 16 comportamental, ora a psicologia evolucionista, e tantas outras, para prometerem e defenderem um presente e um futuro melhor mediante as inovações biotechs que dizem e atuam – e as que poderão atuar no futuro – sobre o “substrato natural”. Nesse sentido, o espaço reservado a ela tem sido garantido em inúmeras revistas e jornais de grande circulação – como, no caso do Brasil, pela Folha de S. Paulo, Veja, Isto É, Galileu, Scientific American Brasil etc. – dando corpo àquilo que o jornalista Cláudio Tognolli (2003) chamou de “a ideologia do DNA na imprensa”. Caracterizando-a como uma “febre biologista” que parece dominar todo o jornalismo da mass media nas últimas décadas, Tognolli afirma que tal “ideologia” funciona ancorada na “falácia genética” de que os genes são, no limite, resposta final para todo comportamento humano. Ou, então, como diz Leão Serva5, em entrevista concedida a Tognolli: tal ideologia funciona ancorada no fato de que “a biotecnologia é hoje a própria encarnação do ideal ou da ideologia da sociedade moderna.” (TOGNOLLI, 2003, p.237). Quase duas décadas depois do trabalho de Tognolli, essa figura sobre o humano continua a emanar de todos os níveis do campo científico, político e midiático procurando fagocitar as demais figurações enquanto fertiliza um zeitgeist que conclama um futuro “pós-humano” pautados nas biotechs. Uma busca rápida na base de dados do Google, mesmo quase duas décadas do fim do PGH, ainda encontramos exemplos icônicos do tratamento midiático sobre a “natureza humana” pautada em tal figuração: 5Ex-secretário de redação da Folha de S. Paulo, ex-diretor da revista Placar, ex-diretor do jornal Notícias Populares, ex-diretor do diário Lance, ex-diretor do Jornal da Tarde. 17 Mas os seus significados sócio-históricos vão mais além. Ao nosso juízo, como ficará claro ao longo deste trabalho, nas últimas décadas, um número importante de pesquisas evocaram áreas como a antropologia física e evolucionista, ecologia comportamental, etologia, primatologia etc. em posição de destaque nos debates intelectuais sobre o humano. Um dos sistemas de ideias que confere os fundamentos epistemológicos e ontológicos a tal figuração contemporânea remonta, pelo menos, a década de 1970, quando Edward Wilson fundou a área de estudos da sociobiologia com a publicação de seu Sociobiology: The New Synthesis (1975) e, logo em seguida, veio a cena o aclamado The selfish gene (1976) de Richard Dawkins. Com o objetivo de uma nova síntese do estudo evolutivo do comportamento social dos animais – tendo o gene como objeto por excelência da seleção natural, e não propriamente os organismos, grupos ou espécies – e buscando enfatizar as semelhanças entre os comportamentos de animais “menos desenvolvidos” – formigas, abelhas etc. – e os mais “complexos” – chimpanzés, homens etc: estes autores, cada qual ao seu modo, inauguraram um novo parâmetro de compreensão da “natureza humana”: a síntese do pensamento populacional darwinista com a genética mendeliana – aquilo a que denominaremos de a voz neodarwinista sobre os humanos, Dessa voz erigiram outras contribuições no campo científico. Hoje, novos adeptos em várias das ciências comportamentais e sociais caminham conservando, ora mais ora menos, o projeto neodarwinista da sociobiologia. Como diz Waizbort (2005), as novas reinterpretações 18 da sociobiologia têm se desdobrado, indo além dela, em concepções que encaram, por exemplo, “a mente humana (cultural, social, histórica) como um produto de forças evolutivas que foram modificadas largamente, mas não anuladas, pela evolução das sociedades urbanas modernas” (p.295). Desenvolvidas segundo as bases genéticas do comportamento humano e narradas em uma perspectiva evolucionista, inúmeras frentes de investigação, mutatis mutandis, deram continuidade a agenda neodarwinista capitaneado inicialmente pela sociobiologia. Exemplos não faltam, a psicologia evolutiva de Steven Pinker, a estética evolucionista de Eckart Voland e Karl Grammer, a biogeografia de Jared Diamond, o direito evolutivo de Frolik & Larry, entre muitas outras. Steven Pinker, por exemplo, é sucesso editorial pelo mundo todo. Autor do bestseller Tábula Rasa – a negação contemporânea da natureza humana (2010[2002]), embora com formação em linguística, é hoje o representante mais importante da chamada Psicologia Evolucionista, área de estudos que se concentrou no interior das biociências6. Em sua obra, como ele mesmo diz, “Este livro tem por tema principal a natureza humana – uma dotação de faculdades cognitivas e emocionais que é universal nos espécimes sadios do Homo sapiens” (PINKER,2010, p. 200). A partir da aplicação da proposta de quatro pontes que ligariam a biologia à cultura – as ciências da mente, o cérebro, os genes e a evolução, consecutivamente correspondentes à ciência cognitiva, à neurociência cognitiva, à genética comportamental e à psicologia evolucionista –, Pinker faz uma revisão crítica das teses que advogam a natureza humana, segundo eles, como uma tábula rasa na qual a sociedade escreve suas características comportamentais – o que para ele, na verdade, seria a tese da inexistência de uma natureza humana (Ibid., p.22). Para o autor, uma teoria que sistematize os vários universais próprios do humano – ou seja, uma teoria que desse conta de responder à questão ontológica “O que é o Homem?” – deveria considerar que a natureza humana foi – e ainda é – moldada, em larga medida, pela seleção natural de determinados comportamentos mediante faculdades cognitivas transmitidas hereditariamente que, ao longo da evolução, por sua vez, também teriam sido melhores adaptadas para transmitirem os genes de seus “proprietários”. 6 Importante ressaltar que a Psicologia Evolucionista, iniciada com The Adapted Mind: Evolutionary Psychology and the Generation of Culture (1992) editado por Jerome Barkow, Leda Cosmides e John Tooby, pode ser vista como a filha madura da antiga Sociobiologia. Como demarca Waizbort (2005, p.295) “Ao contrário da sociobiologia – que só indiretamente tratava do comportamento social humano, buscando demonstrar as bases biológicas da ação de outros animais sociais (Wilson, 1975; Ruse, 1983) –, a psicologia evolutiva procura entender a mente a partir do enraizamento humano no mundo vivo.” Assim, se a ciência de Wilson compreende o estudo das bases biológicas de todo comportamento social, das formigas aos seres humanos, a de Pinker pode ser encarada como a disciplina que tentou corrigir os erros de sua disciplina mãe com os avanços das descobertas biocientíficas no que diz respeito à genética e a evolução da mente, sobretudo no que diz respeito aos humanos. 19 Nesse intento, o autor debate criticamente com filósofos e cientistas modernos, como R. Descartes e J. Locke, que se identificaram com a tese da tábula rasa, que, segundo ele, “tornou-se a religião secular da vida intelectual moderna” (PINKER, 2010, p.21). Além disso, Pinker ataca os teóricos contemporâneos ao caracterizá-los como “estudiosos da cultura”, “desconstrucionistas”, “pós-modernistas” etc., para os quais “a realidade é [apenas] socialmente construída pelo uso da linguagem, estereótipos e imagens da mídia” (idem., p.274). E critica ainda aqueles que levaram ao extremo a centralidade da linguagem, ecoando a ideia “de que as pessoas [que] têm acesso a fatos sobre o mundo é ingênua (…) [uma vez que] as observações sempre são contaminadas por teorias, e as teorias são saturadas de ideologias e doutrinas políticas;” (idem., p.274). No fim Pinker conclui: “Pós-modernistas e outros relativistas criticam a verdade e a objetividade não tanto por estarem interessados em problemas filosóficos de ontologia e epistemologia, mas por acharem que esse é o melhor modo de puxar o tapete dos racistas, sexistas e homófobos.” (idem.,p.280)7 De forma que, se há alguma defesa em Pinker, “são as descobertas sobre a natureza humana que foram menosprezadas ou suprimidas nas discussões modernas dos assuntos humanos.” (idem., p.12). Valendo-se da assertiva de Tchekhov de que ‘O homem se tornará melhor quando lhe for mostrado como ele é’ (Tchekhov apud PINKER, 2010, p.14), o psicólogo advoga que somente a partir do reconhecimento das descobertas “das novas ciências da natureza humana”, poderemos nos conduzir a um “humanismo realista”, fundamentado na biologia (idem., p.14). E mais, afirma que a acepção da natureza humana como tábula rasa, acepção que, segundo ele, é hegemônica nas ciências humanas, tem provocado “envenenamentos” na atmosfera intelectual privando-as de “instrumentos para analisar questões prementes sobre a natureza humana, justamente quando novas descobertas científicas as tornam críticas.” (idem., p.13). Envenenamentos que para Pinker podem ser sentidas ora nas decisões públicas e privadas equivocadas, ora no “desprezo declarado de muitos estudiosos pelos conceitos de verdade, lógica e fato.” (idem., p.13). E, ainda mais gravemente, seriam sentidas também nas engenharias sociais que tentaram reestruturar a humanidade, como foi o caso do comunismo de Mao Tsé-tung (idem., p.14). Por isso é que sua própria representação – ontológica – da natureza humana cumpriria o papel de renovar “nosso apreço pelas conquistas da democracia e da soberania do direito” (idem). Desta 7 Nesse ponto, vale indicar, que até mesmo o patrono da sociobiologia, E. Wilson (1999), ao defender a necessidade metodológica do que chamou de consiliência, a unificação dos saberes mediante a moderna biologia como a base comum de explicações, atacou justamente o que ele chamou de “caos pós-modernista” das ciências humanas, tendo como um de seus alvos principais o filósofo J. Derrida. A este respeito veja o Anexo 2. 20 maneira, Fukuyama encontra em Pinker, e vice e versa: o neodarwinismo de um encontra o pensamento conversador do outro8. À primeira vista, todavia, as interpretações naturalistas desse autores não parecem exatamente novas, uma vez que a relação teórico-epistemológica entre as ciências humanas e as ciências da natureza há muito mantém viva sobre a concepção de “homem” e de “sociedade” uma dimensão naturalista e/ou biologizante. Desde o princípio, as denominadas ciências humanas – especialmente as ciências sociais – passaram pela necessidade de se afirmarem como ciência e, para tanto, seus fundadores, influenciados pela perspectiva moderna e naturalista de ciência – herança de Newton, Galileu, Descarte, Bacon etc. – se viram obrigados a galgar um objeto científico próprio, definido nos marcos de procedimentos gnosiológicos e epistemológicos específicos. No caso da sociologia, o processo se deve, basicamente, a Auguste Comte que, nos anos de 1820, formulou seu conceito de “física social”. No último quartel do século XIX, foi a vez de Émile Durkheim (1974) e seus conceitos fundacionais – “anomia”, “fato social”, “consciência coletiva” etc. Por detrás do desenvolvimento da ciência recém-nascida, a intenção não era somente firmar o seu objeto próprio e os seus adequados procedimentos de investigação, mas o de firmá-los na medida em que estes se distinguissem dos objetos próprios das ciências da natureza e, ao mesmo tempo, preservasse delas a adequabilidade e a positividade científica (GRESLE & CUIN,1994, p.21-117). Para tanto, a busca por leis causais e o caráter exterior dos fenômenos sociais eram coisas almejadas, mormente, para que o sociólogo mantivesse a imparcialidade e, consequentemente, a objetividade frente ao objeto estudado. Segundo Comte, por exemplo, para se constituir a “filosofia positiva”, já que o “espírito humano” havia fundado a “física celeste”, a “física terrestre” e a “física orgânica”, seria necessário constituir a “física social” com o mesmo “caráter positivo que todas as outras já tomaram. (…) Homogeneizando-se todas as nossas concepções fundamentais” (COMTE, 1978, p.9-10), isto é, homogeneizando epistêmica e ontologicamente, ciências da natureza com sociais e o ser natural com o ser social, respectivamente. No caro de Durkheim, à fundação da nova ciência era “necessário, portanto, estender a ideia das leis naturais aos fenômenos humanos.” (DURKHEIM apud LOWY, 2007,p.27). Outros pontos que demarcam claramente a imbrincada relação entre tais campos das ciências é o alvorecer da antropologia. De um lado, não podemos nos esquecer da importância 8 Encontro que não ocorre apenas no “mundo das ideias”. Tanto Steven Pinker quanto Francis Fukuyama são intelectuais ativos na política e cultura anglo-saxônica, mais recentemente, entre Janeiro e Março de 2018, por exemplo, ambos participaram do encontro The Unravelling of the Liberal Order em defesa da “ordem liberal global” contra o “populismo autoritário”, na Universidade da Colúmbia-Britânica (UBC), promovido pela think tank The Phil Lind Initiative.Veja mais em https://lindinitiative.ubc.ca/series/spring-2018/ 21 exercida pelo evolucionismo de Morgan, Taylor e Frazer9, que embora não diretamente influenciados pelo evolucionismo de Darwin, se entusiasmaram com um dos mais influentes filósofos do último terço do séc. XIX: Herbert Spencer. A teoria deste pensador conjugava basicamente os ensinamentos do economista político Adam Smith com o naturalismo de Jean- Baptiste Lamarck e, mutatis mutandis, de Charles Darwin. Em seu “darwinismo social”, Spencer defendia a tese de que “os mecanismos de evolução tem origem na luta pela existência e na seleção natural, que levam à submissão e às vezes à eliminação dos menos eficientes em proveito dos mais aptos.” (GRESLE & CUIN, 1994, p.36). Além disso, defendia também uma “única escala evolutiva ascendente, através de vários estágios, (…) [o que era] a ideia fundamental do período clássico do evolucionismo na antropologia.” (CASTRO, 2005, p.12-13). Avançados os primeiros passos do que se convencionaria chamar de antropologia sociocultural, tamanha era a preocupação em se reconhecer e delimitar as fronteiras e as continuidades entre as duas ciências, que não demorou muito a aparecerem conceitos e ferramentas teóricas que se destinavam a compreender com mais detalhes as suas relações com a realidade. O conceito de “fato social total” de Marcel Mauss, por exemplo, constituiu importante contribuição neste sentido já que tinha o objetivo justamente de articular as dimensões psicológica, social e fisiológica (biológico) numa única ferramenta teórico- epistemológica. Além disso, não menos relevante, podemos mencionar o caso de Arthur de Gobineau e sua teoria da miscigenação e da eugenia, de Francis Galton e sua tentativa de quantificadora e, sobretudo, de Cesare Lombroso. Como é sabido, ao final do século XIX, o médico italiano fundou o estudo de criminologia sob os seus “instrumentos antropométricos que deviam permitir detectar os ‘estigmas’ do crime e, portanto, afastar os indivíduos perigosos antes mesmo que os ‘criminosos natos’ pudessem passar à ação.” (CUIN & GRESLE, 1994, p.123) – criminologia que será um objeto privilegiados em nosso terceiro capítulo. Enfim, a história da relação entre estes dois campos das ciências, escrita seja pela apropriação que os investigadores das ciências humanas fazem dos recursos teóricos e epistemológicos das ciências da natureza, seja pelas incursões de matemáticos, médicos e biólogos na explicação de fenômenos sociais, é tão vasta quanto as problemáticas e as questões delas emergidas. 9 “Restringi-me aos autores claramente identificados com a tradição antropológica, inclusive por terem assumido posições institucionais nesse campo do conhecimento, então em vias de formação. Ficaram de fora, portanto, autores evolucionistas como — para citar apenas um, e dos mais importantes — Herbert Spencer, que não se posicionavam institucionalmente como antropólogos.” (CASTRO, 2005, p.4) 22 No entanto, hora ou outra, essa profícua e problemática relação retorna, e não somente por requisitos de elucubrações teóricas dos mais diversos matizes, mas porque novas configurações sociais e científicas reorganizam os pressupostos e os paradigmas então vigentes de modo a dar-lhes um significado social até então inexistente. É nesta perspectiva que possivelmente nos encontramos. As contemporâneas incursões das ciências da vida na construção de explicações sobre fenômenos propriamente socioculturais, em especial, na construção da figuração ontológica sobre humanos como “animal como os outros” esta colonizando importantes espaços sociais, políticos e culturais. Mediante um recorte gnosiológico específico, este trabalho, contudo, não se referirá à busca histórica no passado ou no presente dos diálogos entre as ciências sociais e as ciências naturais, como aquelas empreendidas via o darwinismo. Tão pouco se referirá a uma sociologia da ciência. Não buscaremos apresentar as razões históricas, sociológicas, ou mesmo filosóficas pelas quais as teorias ligadas à genômica e pós-genômica passaram a explicar e manipular a “natureza humana” – tal como Fukuyama supõem e deseja. Em utras palavras, o nosso objetivo não é apresentar a “caixa-preta” de uma possível revolução paradigmática cujas teses sobre a vida, os seres vivos e, especialmente, os seres humanos no campo das ciências naturais tornaram-se hegemonizadas pela biologia molecular, e mais especialmente pela genética – em conjunto com as neurociências. Considerando que todas as tentativas atuais de construir diálogos entre os estudos sociológicos e as ciências da vida estão “marcadas por uma mudança de ponto de vista que ocorreu na biologia evolutiva em meados da década de 1960” que “serviu de base para que biólogos retomassem o anseio de utilizar uma base evolutiva para explicar, sublinhando aspectos universais de nosso comportamento, a situação do homem atual” (WAIZBORT, 2008, p.253). Nossa intenção, aquém disto, será mais singela, porém, sob razões mais urgentes: capturar alguns dos mecanismos sociais, econômicos e políticos pelos quais se sustenta a figuração molecular-biologizante do humano que passou se reproduzir na esfera pública do capitalismo contemporâneo. Tal como em Darwin, em seu “As origens das espécies”, que epistemologicamente relegou ao desconhecido os motivos efetivos pelos quais os indivíduos nasciam com diferenças fenotípicas que eram então selecionadas e mantidas – ou não – numa determinada população; as razões que levaram essa ou aquele sistema de ideia ganhar vida ou não no campo científico contemporâneo não nos é – neste trabalho – decisivo, nosso foco será apenas a análise das razões que fizeram a voz neodarwinista sobre os humanos tornar-se uma ideologia de destaque na esfera pública. 23 Numa primeira aproximação podemos dizer que a figuração do humano como “animal como os outros” pode ser sentida no cotidiano de diferentes formas. É sintomático de uma nova forma de figurar o humano, como por exemplo, o importante debate que hoje gira em torno da “medicalização da vida” ou da “existência”. Embora não seja consensual a demarcação do início deste fenômeno, autores como o psicanalista Adriano A. Aguiar atesta que “a chamada psiquiatria biológica emerge na década de 1970 como um movimento de reação à desmedicalização do campo psiquiátrico nos Estados Unidos, e passa a dominar a psiquiatria americana e mundial a partir de 1980.” (2004,p.7). Abandonando progressivamente a dimensão cultural-simbólica da formação psíquica, nesse movimento, “mesmo conceitos como o inconsciente e o complexo de Édipo” passarão a ser “redescritos através de um vocabulário biológico” (AGUIAR, 2004,p.8). A experiência sobre si, sobre os sofrimentos… do “Eu não sei o que se passa comigo!” que antes eram intimizadas sobre as formas simbólicas, hoje cada vez mais passou a ser pensado a partir das ideias de “disfunção neuronal”, “transtorno mental”, “carga genética” etc. Por consequência, aquilo que antes suscitava uma interrogação sobre si, sobre a existência e sobre o modo de vida, atualmente, como nunca antes, suscita uma intervenção sobre o corpo, sobre cérebro, sobre o genoma… todos mediados pelas novas biotechs. Se considerarmos o campo da biopolítica podemos mencionar ao menos outros duas possíveis repercussões. Ao tratar do perigo de se inferir comportamentos desviantes a partir de pré-disposições congênitas, Wolff (2011) recorda a discussão de Delmas-Marty de que a nova noção jurídica de “periculosidade” funcionaria como um “holograma jurídico”, pois permitiria esvaziar “a responsabilidade penal de todo significado” (DELMAS-MARTY apud WOLFF, 2011,p.259). Em outras palavras, ao separar as noções de periculosidade e culpabilidade, o indivíduo “não é punido pelo seu crime, mas sim neutralizado, como se faria a um animal perigoso” (DELMAS-MARTY, 2013). Assim, ele não seria mais o responsável pelos seus próprios atos, já que seu caráter de “periculosidade” adviria de uma disposição natural incontrolável. No fim, atesta Delmas-Marty, “Todos nós podemos nos tornar suspeitos sob vigilância” (idem.). Ou ainda, Rifkin (1999) alerta para a chamada discriminação genética: “Atualmente, com o surgimento da triagem e engenharia genética, a sociedade nutre a perspectiva de uma nova e ainda mais séria forma de segregação. A segregação baseada no genótipo.” (RIFKIN, 1999, p.169). Segundo o autor, uma série de instituições, como companhia de seguros, órgãos governamentais, forças armadas, instituições educacionais etc. tem se valido de triagens genéticas para diferenciar previamente os seus pacientes, clientes etc. E o autor chama a 24 atenção para o crescente número de casos em que empregadores estão preocupados com “o alto custo de coberturas do seguro-saúde, indenizações por invalidez e ausências” e, consequentemente, estão se utilizando de “dados genéticos para selecionar e escolher seus futuros empregados” (Ibid., p.174) – este tema é parte das nossas considerações finais. Mas, se essas figurações do humano estão ocupando estes locus sociais importantes, devemos nos perguntar sobre as causas que proporcionaram a predominância delas. Considerando que a voz neodarwinistas sobre os humanos surgiu do interior da academia – o local da produção da ciência por excelência – e ao longo dos anos subsequentes alcançou a cena pública conquistando força material na vida social, devemos nos perguntar então qual era, no início da década de 1970, o cenário sócio-histórico em que ela emergiu e se fez ressoar? Qual a configuração da relação entre a ciência e a sociedade no capitalismo contemporâneo que fez dela uma ideologia poderosa em nossos dias? Desde a inauguração com Edward Wilson e de Richard Dawkins assistimos ao recrudescimento de parâmetros de compreensão dos seres humanos que os igualam ontologicamente aos outros seres viventes mediante as características genéticas evolutivas. E hoje elas encontram-se “muito bem- adaptadas às exigências sociais correntes, entrelaçadas produtivamente com a realidade histórica, capazes de organizar a atividade social prática de maneiras altamente eficazes.” (EAGLETON, 1997, p.103). A questão central que este trabalho busca responder é “por que?” dessa boa “adaptação”. Muitos pensadores respeitados se puseram a refletir sobre as alterações iniciadas na virada da década de 1960 para 1970. Para David Harvey (1996) e François Chesnais (1996), por exemplo, nos anos de 1970, como resposta à crise de sobreacumulação, emergiu o “regime de acumulação à dominância financeira” ou “regime de acumulação flexível”. Sob a égide do capital financeiro, setores privados e públicos inteiros tornaram-se, ora mais ora menos, reféns da governance das grandes corporações. Nesse cenário, novos players financeiros assumiram então um “extraordinário poder global” tornando-se as matrizes de decisões empresariais nos cenários políticos, econômicos, midiáticos, ambientais, tecnológicos e científicos (HARVEY,1996, p.135-62). E dois dos mais importantes pilares de sustentação desse processo foram a comoditização das informações, “o próprio saber se torna uma mercadoria-chave” (HARVEY,1996) e a “biotecnologia acabou por se tornar uma das forças modeladoras da economia, na medida em que mostrou potencialidades para fornecer novos produtos, abrir novos mercados e, como tal, foi capaz de concentrar investimentos.” (GARCIA E MARTINS, 2009, p.94). 25 Nossa tese é de que, de um lado, as alterações política e econômica iniciada nos anos 70 constituíram uma nova plataforma de sustentação econômico política – a que denominaremos de complexo biotecnociêntifico financeirizado –, envolvendo novos atores globais, novas tecnologias, novos mercados etc., que passou a imprimir aos sistemas de ideias neodarwinista a qualidade de operadores decisivos à reprodução do capital especulativo próprio às grandes corporações biotecnológicas ligadas as promessas do mercado da genômica. Numa complexa rede de corporações em que parte dos acionistas são também os cientistas que coordenam e gerenciam as agendas de pesquisas nas ciências da vida, foram favorecidas as concepções reducionistas partilhadas, sobretudo, pelos membros da comunidade da biotecnologia (GARCIA, 2006), cujo imperativo capitalista de patenteação das “informações” genéticas encontrou nas figurações moleculares da Vida, do ser vivo e do ser humano empreendido pela voz neodarwinista a sua grade de inteligibilidade. Articulada a isso, por outro lado, comparecem outras questões: qual é a atuação social de tal sistema de ideias nas contradições e conflitos da sociabilidade contemporânea? Como devemos avaliar, por exemplo, declarações como a de James Watson, o consagrado cientista co-descobridor ao lado de Francis Crick do modelo da dupla hélice para molécula de DNA, à Revista Time em 1989: “Costumávamos pensar que nosso destino estava escrito nas estrelas. Hoje sabemos que, em grande parte, ele está em nossos genes!”. Ou ainda, recentemente, como avaliar a entrevista ao jornal inglês The Guardian, no dia 29 de junho, do deputado federal do Brasil Laerte Bessa (PR-DF), quando indagado sobre os problemas de violência no país e sobre a PEC 171/93 que propõem reduzir a maioridade penal, respondera: “Um dia, chegaremos a um estágio em que será possível determinar se um bebê, ainda no útero, tem tendências à criminalidade, e se sim, a mãe não terá permissão para dar à luz.” Considerando, portanto, que sua grade de inteligibilidade possui significados operatórios perceptíveis, o que pensar dos recenseadores e mapeadores genéticos com todos os seus expertises em ação construindo enormes bancos de dados com o esquadrinhamento dos mais diversos “perfis genéticos” de indivíduos de nacionalidades, etnias, gêneros e classes diferentes? Quaisquer que sejam os seus efeitos de poder derivados das classificações e hierarquizações dos chamados perfis genéticos, podemos avaliar que as vozes neodarwinistas sobre o humano são partes constitutivas – como momento ideias – de um conjunto de conflitos sociais envoltos na “biopolítica molecular do controle” (ROSE, N. 2013[2007]). Tanto em seu aspecto econômico com o complexo biotecnocientífico financeirizado, quanto no político com a biopolítica molecular, a ciência se operacionaliza em ideologia. 26 Desde a assertiva do filósofo Jürgen Habermas, de que “a técnica e a ciência tornaram-se a principal força produtiva, com o que caem por terra as condições de aplicação da teoria do valor do trabalho de Marx” (1975,p.320-1), um dos grandes debates no interior do campo marxista girou em torno do papel da ciência no capitalismo contemporâneo. De la para cá, não apenas Habermas, outros como André Gorz também trouxe em sua tese do “imaterial” a defesa de que o “conhecimento” havia se transformado na força produtiva principal e, consequentemente, que o valor das mercadorias haveria passado a ser determinado pelo conjunto de conhecimento e não mais pelo tempo de trabalho socialmente necessário, tal como havia proposto Marx. Sem adentrarmos nesse importante debate e cuja contra- argumentações desferidas por Ricardo Antunes (1999) e tantos outros que já nos parecem plausíveis e suficientes, consideramos em destaque neste trabalho um outro aspecto da relação da ciência com a produção capitalista contemporânea: a sua funcionalidade como veículo ideológico capaz de auxiliar a espoliação e acumulação de capital, bem como aperfeiçoar os mecanismos de controle biopolítico. Posto isso, podemos resumir dizendo que o objetivo deste trabalho é demonstrar os processos contemporâneos de “ideologização” de uma teoria científica, ou mais precisamente, trazer em cena alguns dos mecanismos pelos quais, particularmente, as figurações moleculares ressoadas pela voz neodarwinistas – em especial sobre os humanos – passaram a ser operacionalizadas para darem corpo à ações que concorrem no ordenamento e resolução dos conflitos sociais. E para levar a cabo esses objetivos, antes é preciso deixarmos claro alguns fundamentos teóricos que nortearão o descortinamento do problema em questão. Durante a última quadra do século XX, período que sucedeu a II Guerra Mundial, intelectuais ocidentais como Daniel Bell, do lado oeste do oceano atlântico, e Raymond Aron do lado leste passaram a defender o “fim da ideologia”. Nem esquerda nem direita, nem “economia de mercado” nem “planejamento”, para eles os avanços tecnológicas e científicos responderiam completamente as exigências sociais, políticas e econômicas conflagradas pelo fim das grandes guerras. Qualquer fórmula “ideológica” era então visto como um ópio para os intelectuais – nas palavras de Aron. Entretanto, como nos lembra István Mészáros, nada mais ideológico do que a defesa do “fim da ideologia”. Tal posição significava “a adoção de uma perspectiva não-conflituosa dos desenvolvimentos sociais contemporâneos e futuros (…) ou a tentativa de transformar os conflitos reais dos embates ideológicos na ilusão das práticas intelectuais desorientadoras, que imaginariamente ‘dissolvem’ as questões em discussão mediante alguma pretensa ‘descoberta teórica.” (MÉSZÁROS, 2004, p.108). 27 O certo nisso tudo, como demarca Michael Lowy, é que “poucos conceitos na história da ciência social moderna [são] tão enigmáticos e polissêmicos quanto o de ‘ideologia’; este tornou-se, no decorrer dos últimos dois séculos, objeto de uma inacreditável acumulação, fabulosa mesmo, de ambiguidades, paradoxos, arbitrariedades, contrassensos e equívocos.” (2007[1987], p.10). E de fato, após constatar ao menos 16 definições em circulação para o termo, atesta o crítico literário Tery Eagleton de que “A palavra ‘ideologia’ é, por assim dizer, um texto, tecido com uma trama inteira de diferentes fios conceituais” (1997, p.15). Tendo em conta isto, portanto, nos cabe um rápido esclarecimento para dirimir qualquer confusão analítica que atrapalhe ou obscureça a compreensão do fenômeno que será analisado neste trabalho. As ciências modernas, com suas exigências históricas próprias ao combate do obscurantismo do Ancien Régime, buscaram tradicionalmente um conhecimento objetivo/transparente da natureza, fundado basicamente na observação, na experimentação e nos métodos indutivos. Tão logo, defendia Francis Bacon em seu Novum Organum, que era necessário capturar os elementos ateóricos, isto é, as noções falsas dos ídolas. Tal conjunto de variados “sistemas de preconceitos” – os “ídolos da tribo”, os “ídolos da caverna”, os “ídolos do foro” e os “ídolos do teatro” – seria, segundo ele, inibidor ou mesmo aniquilador do conhecimento. Somente consciente dele, dizia Bacon, seríamos capazes de vigiar criticamente o processo de conhecimento, excluindo as instâncias perturbadores do pensamento humano e, então, em decorrência disso, alcançaríamos o conhecimento verdadeiro. Dito de outro modo, para a constituição das ciências da natureza pressupunha-se uma investigação sistemática dos fatores que conduziam ao erro, e como apenas o conhecimento puramente racional era capaz de iluminar os problemas e libertar a humanidade, era imprescindível resistir teoricamente as ignorâncias, aos preconceitos e as superstições… Esses fatores foram caracterizados posteriormente como fatores de caráter ideológicos. Ao se falar em ideologia, portanto, estaria em conta os elementos tidos como exteriores ao campo científico, foi assim que interpretações tradicionais de E. Durkheim e Max Weber a Karl Popper a instituíram: ciência e ideologia são antinômicas, onde há uma não há a outra. Mesmo nas letras daqueles pelos quais, sem grandes dúvidas, o termo ganhou forças interpretativas mais ressoantes – seja no campo da teoria social ou da filosofia –, como é o caso da tradição marxista, o uso mais frequente se manteve sob este critério epistemológico. De Luis Althusser a Henri Lefebvre10 e, sobretudo, em Karl Manheim – cada 10 Este por sinal considerava o conceito de ideologia de Marx como “um dos mais difíceis e obscuros de todos usados por Marx.” (LEFEBVRE, 1968:55) 28 qual ao seu modo –, a interpretação dos escritos marxianos recorrentemente colocaram em contraposição a ideia de ideologia e a ideia de ciência, ou seja, advogaram uma antinomia entre o que é científico – verdadeiro – e o que é ideológico – falsidade. Nessa esteira a consciência ideológica seria todo enunciado que, em termos epistemológicos, constituir-se-ia em algo oposto àquela que é considerada uma consciência teórica ou científica. A ideologia seria, então, uma falsa consciência que, como estrutura rígida de ideia preconcebida, inverte, deforma, mistifica e dissimula a compreensão dos fatos. O ponto a ser perseguido, nesses termos, seria defender e “purificar” a ciência da intromissão dos fatores extra-científicos, ou seja, dos fatores ideológicos (VAISMAN, 2010, p.45). De certo, há diferenças qualitativas entre a ciência política de Althusser e a sociologia do conhecimento de Manheim, bem como entre os usos que cada um faz do conceito de ideologia e de falsa consciência. Mas, como nos esclarece a filósofa Ester Vaisman (2010), o que se observa em tais abordagens é o traço comum em analisar os elementos extracientíficos sempre no interior da problemática da teoria do conhecimento. Em outras palavras, a referência aos elementos que exercem influência nos caminhos da investigação científica e sua prezada objetividade e neutralidade é, recorrentemente, feita sob o critério gnosio- epistêmico. Todavia, como nos ensinou o filósofo György Lukács acertadamente retomado por Vaisman, foi justamente este critério que “acabou por deprimir o interesse pela questão ontológica”, até mesmo no que diz respeito a ideologia (2010, p.45)11. Com feito, para o filósofo húngaro, aquilo que tradicionalmente nas penas marxistas deu-se o nome de superestrutura, deve ser fundamentado ontologicamente no que ele denominou de “posições teleológicas secundárias” da reprodução social. Vinculadas em termos essenciais ao processo laborativo – “posição teleológica primária” –, os pores teleológicos secundários têm por objetivo a consciência e o comportamento dos outros seres sociais, dizia ele. Seu telos, ao contrário da troca metabólica direta com natureza, é provocar, orientar ou induzir “o agir futuro, desejado” de outrem, ou como ele dizia, “o conteúdo essencial do pôr teleológico nesse momento – falando em termos inteiramente gerais e abstratos – é a tentativa de induzir outra pessoa (ou grupo de pessoas) a realizar, por sua parte, pores teleológicos concretos.” (LUKÁCS, 2013, p. 61-2) E é no interior desse fundamento que devemos conjugar o fenômeno da ideologia, ou como bem nos esclarece a esse respeito Vaisman: 11 E, continua ela sob o prisma de Lukács, “Pode-se dizer que a “interdição da metafísica” se converteu, no pensamento filosófico contemporâneo – dominado que está em grande parte pelo neopositivismo –, numa categórica afirmação de que ‘toda a questão sobre o ser, toda tomada de posição sobre o problema de saber se alguma coisa é ou não é, constituía um despropósito intempestivo, totalmente destituído de qualquer fundamento científico.” (idem.) 29 “Esse espaço é delimitado pelas respostas práticas dos homens, que se voltam à resolução de problemas que permeiam vários níveis da existência. Respostas que podem visar a solução de problemas colocados ao nível imediato, na própria vida cotidiana, ou podem estar voltadas à solução de problemas de caráter genérico. Em ambos os planos, elas são mediadas por algum tipo de produção espiritual, formando o conjunto das posições teleológicas (excluídas, aqui, o trabalho) onde a ideologia desempenha papel de prévia-ideacão. Ou seja, a ideologia, em qualquer uma das suas formas, funciona como o momento ideal que antecede o desencadeamento de ação, nas posições teleológicas secundárias.” (1996, p.106-7) De fato, o que Lukács defende é que “A ideologia é sobretudo a forma de elaboração ideal da realidade que serve para tornar a práxis social humana consciente e capaz de agir.” (LUKÁCS, 2013, p.335)12. A partir deste critério, a ideologia ganha um fundamento ontológico-prático sob dois aspectos: num sentido amplo e num sentido restrito (VAISMAN, 1996, p.109-10). De um lado, como filósofo materialista, advoga Lukács que o ser da ideologia é determinado pela sua produção, sendo assim, em termos amplos ela comparece em toda as ações humanas e sociedades enquanto orientação ideal – como característica dessa forma de ser. Fundamento, por sua vez, que permite ao autor conceber a ideologia também em seu sentido restrito: quando o conflito socioeconômico comparece como eixo histórico da sociabilidade humana, a ideologia torna-se o veículo ideal pelo qual os sujeitos buscam a resolução de seus problemas e enfrentam os conflitos derivados de seus interesses divergentes, contrapostos ou antagônicos. A ideologia é, portanto, segundo ele, a consciência prático-social das sociedades de classes, o seu surgimento “pressupõe estruturas sociais, nas quais distintos grupos e interesses antagônicos atuam e almejam impor esses interesses à sociedade como um todo como seu interesse geral.” (LUKÁCS, 2013, p.340). Por conseguinte, diz Lukács, o que define a ideologia não é a verificabilidade gnosiológico e epistêmica do momento ideal, pois “Nem um ponto de vista individualmente verdadeiro ou falso, nem uma hipótese, teoria etc., científica verdadeira ou falsa constituem em si e por si só uma ideologia: eles podem vir a tornar-se uma ideologia (...). Eles podem se converter em ideologia só depois que tiverem se transformado em veículo teórico ou prático para enfrentar e resolver conflitos sociais, sejam estes de maior ou menor amplitude, determinantes dos destinos do mundo ou episódicos.” (2013, p.337) A compreensão do filósofo marxista é “que a mais pura das verdades objetivas pode ser manejada como meio para dirimir conflitos sociais, ou seja, como ideologia, já que ser ideologia de 12 “Basta recordar como o costume, o uso, a tradição, a educação etc., que se fundam totalmente sobre posições teleológicas deste gênero, com o desenvolvimento das forças produtivas vão continuamente aumentado o seu raio de ação e a sua importância, terminando por se formar esferas ideológicas específicas (sobretudo o direito) para satisfazer estas necessidades da totalidade social” (LUKÁCS, 1981, v. ii, p. 464). 30 modo algum constitui uma propriedade social fixa das formações espirituais, sendo, muito antes, por sua essência ontológica, uma função social e não um tipo de ser.” (2013, p.405) De tal modo, podemos dizer em resumo, que a força social agenciadora/operatória de um corpo de ideais como ideologia depende de ele vir – ou não – a desempenhar uma precisa função social junto aos conflitos sociais13. São os interesses de poder a que ele serve e os efeitos políticos que ele gera que o confere o caráter de ideologia. Por isso, como bem nos ensinou o autor, a astronomia heliocêntrica ou a teoria da evolução – que são teorias científicas, a despeito de serem plausíveis ou não, verdadeiras ou falsas – puderam operar como ideologias, já que não é o critério cognitivo que lhes conferem o caráter de ideologia ou não. Na verdade, diz ele, se o discurso em questão é uma falsa consciência ou não em nada altera o seu status social de ideologia. Há inúmeras falsas consciências que nunca operaram como ideologias, como há também sistema de ideias que funcionam como ideologia e nem por isso são falsa consciência. Mesmo um corpo de ideias cognitivamente verdadeiro, quando sob a pressão de certos interesses conflitantes, pode ser deformado pelos limites da configuração histórica da qual se originou e sobre o qual se reproduz. Afirmar que um discurso é funcional para os interesses sociais não implica necessariamente negar que o mesmo seja racionalmente fundamentado. “Por essa razão, só é possível compreender o que realmente é ideologia a partir de sua atuação social, a partir de suas funções sociais.” (LUKÁCS, p.347)14. Dito isso, consideramos que o critério a julgar verdadeira ou falsa cognição não será nossa posição e fundamentação conceitual. Estamos conscientes que esta acepção abarca um aspecto importante dos fenômenos ideológicos, contudo, em que pese as suas potencialidades críticas, consideramos que para os fins – e limites – deste trabalho ela não é a mais segura para atingir nossos objetivos. Nossas análises ficarão restrita a outra concepção: capturar o sentido operativo da grade de inteligibilidade sob o critério prático ontológico. E além da ideologia, outro conjunto conceitual exige esclarecimento, e diz respeito a um dos legados de Michael Foucault, que também será um dos de nossos barômetros em nosso caminho. 13 A esse respeito Eagleton nos oferece uma simples e certeira contribuição: “A força do termo ideologia reside em sua capacidade de distinguir entre as lutas de poder que são até certo ponto centrais a toda uma forma de vida social e aquelas que não o são. Uma discussão entre marido e mulher, à mesa do café, sobre quem exatamente deixou que a torrada se transformasse naquela grotesca mancha negra não é necessariamente ideológica; só o seria se, por exemplo, começasse a envolver questões como potência sexual, opiniões sobre cada um dos sexos e assim por diante.(...) ” (1997p.21) 14 Em que pese suas especificidades, este modo de conceber a ideologia está presente também em Terry Eagleton p.50 31 Com uma trajetória intelectual polifônica que “tem levado a numerosas interpretações divergentes e, com frequência, mutuamente inconsistentes” (RAJCHMAN, 1987), a obra de Foucault é objeto de incansável debate sobre a sua unidade, suas rupturas ou continuidades etc.(MACHADO, 2009; RABINOW & DREYFFUS, 1995). De seu sucesso de vendas com a estruturalista e/ou arqueológica As palavras e as coisas (1966), cujo anti-humanismo fora duramente – e, ao nosso entender, acertadamente – criticado (COUTINHO, 1972; FEERY & RENAUT, 1988), ao terceiro volume pós-estruturalista e/ou genealógico da História da Sexualidade (1984); contudo, um elemento pode ser destacado com relativo consenso: subjaz em todo empreendimento teórico do pensador francês a problemática do poder15. Ou mais especificamente, como ele esclarece: “dirigimos menos para uma ‘teoria’ do poder que para uma ‘analítica’ do poder: para uma definição do domínio específico formado pelas relações de poder e determinação dos instrumentos que permitam analisá-lo” (FOUCAULT, 1999, p. 80). Uma das características desta analítica é a recusa de Foucault ao menos a duas características da visão tradicional do poder. Segundo ele, primeiramente, tal visão se basearia apenas em seus aspectos negativos, sejam eles proibitivos, repressivos ou coativos. Mas para o autor de Vigiar e Punir o importante é dar-se conta dos aspectos positivos do poder. Para ele “o que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito é simplesmente que ele não pesa só como a força que diz não, mas que de fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso” (FOUCAULT, 1999, p. 8). O poder é, portanto, produtor de realidade: produz comportamentos, pensamentos, realidades, sujeitos e objetos. Despreocupado com o que seria a essência do poder, para Foucault, o poder consistiria em relações de forças que se estabelecem entre indivíduos, ou melhor, antes de mais nada seria ele um conjunto de procedimentos pelos quais se “conduz a conduta dos outros” – “uma ação sobre a ação, sobre ações eventuais ou atuais, futuras ou presentes”. Defende o pensador: o poder é algo que se exerce e não propriamente algo que se possui. Dessa maneira, devemos mais nos preocupar com sua mecânica, em cuja ordem podemos capturar suas técnicas, tecnologias, táticas e estratégias – inventados e aperfeiçoados ao longo do tempo – bem como seus efeitos produtivos, do que nos reduzirmos a termos jurídicos-estatais como, segundo ele, concebe o marxismo, ou em termos de proibição como faz a psicanálise. 15 Disse ele 13 de outubro de 1977: “Durante muito tempo acreditei que aquilo que eu corria atrás era uma espécie de análise dos saberes e dos conhecimentos, tais como podem existir em uma sociedade como a nossa: o que se sabe da loucura, o que se sabe da doença, o que se sabe do mundo, da vida? Ora, não creio que esse era o meu problema. Meu verdadeiro problema é aquele que, aliás, atualmente, é o problema de todo mundo: o do poder.” (Michel Foucault, Poder e saber, entrevista com S. Hasumi. Publicada em Mota (2003). 32 A segunda característica que podemos destacar de sua analítica é atenção dado ao caráter microfísico das relações de poder. Contrário as análises tradicionais que se referem, segundo ele, ao poder com ênfase apenas a um órgão central, a sua analítica busca redimensioná-lo. “A sociedade é um arquipélago de poderes diferentes” (FOUCAULT, 1994), dizia o francês. Em sua teoria, o Estado – bem como todo “polo irradiador” – perde a sua posição de centro donde se derivam as relações de poder, para ganhar visibilidade a rede de relações de poder que se movimenta por fora dele permeando toda a sociedade– como a escola, a prisão, o hospital, o asilo, a família, a fábrica, a vila operária etc. “A unidade Estatal é, no fundo, secundária em relação a esses poderes regionais específicos, os quais vem em primeiro lugar.” (FOUCAULT, 2003, p.65). O que enfatizou o pensador era que não devíamos analisar o poder nos termos clássicos da soberania e/ou da proibição, como faz a teorias do Direito, mas sim nos termos das “técnicas”, “dispositivos”, “mecanismos” etc´ – pois as relações de poder difusas por toda sociedade não são meramente um prologamento “descendente” do poder estatal. Na síntese de suas palavras: “Eu não quero dizer que o Estado não é importante; o que quero dizer é que as relações de poder, e, consequentemente, sua análise se estendem além dos limites do Estado. Em dois sentidos: em primeiro lugar porque o Estado, com toda a onipotência do seu aparato, está longe de ser capaz de ocupar todo o campo de reais relações de poder, e principalmente porque o Estado apenas pode operar com base em outras relações de poder já existentes. O Estado é a superestrutura em relação a toda uma série de redes de poder que investem o corpo, sexualidade, família, parentesco, conhecimento, tecnologia e etc.” (FOUCAULT, 1997, p. 122). Consciente da riqueza conceitual e analítica que Foucault nos propõem, todavia, é importante destacarmos que essas duas características que balizam a sua analítica do poder devem ser apreendidas de forma crítica – sobretudo, quando o lemos sob um ângulo marxista. Delas, ora é possível decair, equivocadamente, numa interpretação em que o poder produtivo seja lido como esquadrinhado por todos os interstícios da vida social – sem exterior, limite ou fronteira – ao ponto de anular todas as possibilidades de recusa, resistência e revolta contra o mesmo16, retirando assim o caráter da História – de suas leis, estruturas e instituições – como produto da práxis humana. Outrora, ao darmos atenção inconsequente às redes de poder em suas instâncias microfísicas e difusas, podemos também decair numa pulverização das relações de poder ao ponto delegarmos como indiferentes relações de forças que em suas naturezas são constituídas 16 Ainda que esta não seja necessariamente as intenções do filósofo francês, como se defendeu certa vez: “a partir do momento em que há uma relação de poder, há uma possibilidade de resistência. Jamais somos aprisionados pelo poder: podemos sempre modificar sua dominação em condições determinadas e segundo uma estratégia precisa” (FOUCAULT, 2009, p. 241). 33 hierarquicamente – seja nas instituições ou mesmo na sociedade como um todo – e com conteúdos qualitativamente distintos. Consequentemente, incorrermos num elogio às lutas e resistências fragmentadas em suas especificidades – legado teórico de Foucault que pode ser visualizado na nova esquerda – e perdendo a referência do “momento predominante” (übergreifenden Moment) da reprodução do ser social, ou seja, as relações de produção material da vida17. Nesse sentido, concordamos com o cientista político Armando Boito quando diz: “Se nivelarmos tudo, é claro que as trajetórias individuais irão ziguezaguear, ao longo de um mesmo e único dia, da condição daquele que exerce o poder para a daquele que lhe resiste. O indivíduo, uma trabalhadora por exemplo, pode iniciar o dia exercendo ‘o poder’ sobre seus filhos, passar a jornada de trabalho sofrendo a ação ‘do poder’ do empregador, no final da jornada de trabalho parar num bar e dar ordens ao garçom, para, de volta para casa, receber ordens do cônjuge. Ocorre que a natureza e a importância social dessas quatro relações são diferentes e é essa diferença que o conceito genérico de ‘poder’ de Foucault ignora e oculta. Há ‘poder’ e ‘poder’, mas o formalismo de Michel Foucault, que só considera os métodos de exercício do poder na análise desse fenômeno, esconde todas essas distinções. É a recusa a refletir sobre a natureza das distintas relações de poder e sobre as relações que tais ‘poderes’ mantêm entre si que permite a Foucault pensar o poder como algo tão fluido e indistinto.” (2007, p.33) Em todo caso, se Foucault errou, em suas avaliações de que a tradição marxista reduzira as relações de poder à fábrica, ao Estado e as relações de apenas dois sujeitos, o capitalista e o trabalhador –, tese insustentável após a leitura de autores como Gramsci, Lukács, Mariátegui entre outros18. Não menos verdadeiro é o fato de que suas atenções 17 Sobre este tópico vale destacar que algumas interpretações contemporâneas de Foucault (LAGASNERIE, 2013; ZAMORA, 2014) tem apontado para alguns possíveis desdobramentos que essa sua forma de compreender o poder, como uma rede de relações difusa que esta por toda parte e que a tudo domina, e também seu antiestatismo – entre outros elementos –, o teria levado ao final da vida a flertar com o neoliberalismo. Contrários as interpretações um tanto iconólatras da obra foucaultiana, os críticos Lagasnerie e Zamora, de modo bem distintos, focam basicamente no fato de que Foucault ao atacar a “governamentalidade” centrada nos dispositivos de Estado do Welfare State – e seu plano de seguridade social – teria decaído em elogios à governamentalidade do mercado proposto por F. Von Hayke e cia, que para ele seria muito menos normativa e autoritária. Essas interpretações é fruto de inúmeras controvérsias – ver por exemplo a resenha crítica de Elton Corbanezi (2014) – nas quais não podemos nos alongar neste momento. Em todo caso, qualquer que seja a interpretação mais fidedigna ao pensamento do autor de A vontade de saber, o importante em nosso escopo é destacar, como o faz Zamora: “Antes dele [de Foucault], aqueles produtos intelectuais [Friedrich Hayek, Milton Friedman etc.] foram geralmente dispensados, considerados como pura propaganda. (…) É inegável que Foucault sempre tentou arduamente investigar corpus teóricos de horizontes diametralmente diferentes e constantemente questionar suas próprias ideias. (…) A intelectualidade de esquerda infelizmente nem sempre conseguiu fazer parecido. Tem frequentemente permanecido presa em uma atitude ‘de escola’, recusando a priori considerar ou debater ideias e tradições que começam com premissas diferentes das suas. Essa é uma atitude muito danosa.” (2015). 18 Com destacada acertadamente Boito: “O marxismo que Foucault conhecia e com o qual debateu foi apenas o marxismo soviético do período de Stálin. Foi o marxismo que ele estudou quando de sua passagem pelo Partido Comunista francês. Isso é muito pouco para polemizar, como pretendia Foucault, com a concepção marxista de poder, pois tal em preitada exigiria a consideração de um universo intelectual mais amplo.” (2007, p.34) 34 “analíticas” a “como se exerce o poder”, à “maquinaria do poder” e às suas “engrenagens”, lhe permitiram capturar elementos importantes, não raro, descuidados na história da tradição marxista19. E é por esse caminho que andaremos ao longo deste trabalho. Outro ponto dentro dessa relação epistemológica é a questão do biopoder e da biopolítica20. Como alertado por Salina Araya “el concepto de biopolítica está sometido en los trabajos de Foucault a una série de transformaciones y sutilezas.” (2014, p.225), ou ainda, como demarcou Thomas Lemke, o uso da noção de biopolítica em Foucault é cometido de maneiras não muito consistentes, a contar a dificuldade que existe em distinguir precisamente a noção de biopoder da noção de biopolítica (2011, p.33). Mobilidade conceitual que também reaparece nos usos e desenvolvimentos subsequentes empreendidos por diversos autores contemporâneos, seja Roberto Espósito, Judith Butler, Giorgio Agamben, Nikolas Rose ou Antonio Negri. De modo que, se faz necessário, a partir de um recorte gnosiológico específico, apresentarmos uma interpretação possível desses conceituais foucaultianos. O léxico “bio” aparece no pensamento de Foucault pela primeira vez num texto fruto de uma conferência proferida na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, intitulada O nascimento da medicina social. Naquela situação, em 1974, disse Foucault: “Minha hipótese é que o capitalismo não se deu a passagem de uma medicina coletiva para uma medicina privada, mas justamente o contrário: que capitalismo, desenvolvendo-se em fins do século XVIII e início do século XIX, socializou um primeiro objeto que foi o corpo enquanto força de produção, força de trabalho. O controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente pela consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo. Foi no biológico, no somático, no corporal que, antes de tudo, investiu a sociedade capitalista. O corpo é uma realidade biopolítica. A medicina é uma estratégia biopolítica.” (FOUCAULT, 2009, p.80) 19 Como bem disse Daniel Zamora, organizador de Critiquer Foucault (2014): “Deve ser dito que Foucault coloca holofotes em temas que eram claramente ignorados, até mesmo marginalizado, pela intelectualidade dominante de sua era. Seja sobre psiquiatria, sobre prisões ou sexualidade, seus trabalhos claramente marcaram um vasto terreno intelectual. Claro que ele era parte de uma era, um contexto social muito mais amplo, e não foi o primeiro a trabalhar em tais áreas. Esses temas estavam brotando de todos os lugares e tornando-se objetos de movimentos políticos e sociais significativos.(...) Assim, obviamente Foucault não originou todos esses movimentos – ele nunca reivindicou isso – mas ele claramente abriu o caminho para um grande número de historiadores e acadêmicos que trabalhavam em novos temas, novos territórios, que pouco haviam sido explorados.” (2015) 20 Embora tendemos a concordar com a argumentação de Mavi Rodrigues (2006) ao se referir a Foucault como um ator que buscava equacionar “uma epistemologia explicitamente de direita – neo-irracionalista – com uma ética de esquerda” (p.141), nos distanciamos da autora na medida em que consideramos necessário o exercício de apropriação dialética das contribuições analíticas de Foucault, sobretudo, em toda sua produção intelectual na década de 1970 e 1980 – fase com tratamento rarefeito em seu trabalho e que será por nós aqui apropriada criticamente. Neste caso, ainda que nos distanciamos da “racionalidade formal manipulatória” (idem., p.189) muitas vezes encontrada em Foucault – e outros tantos traços de sua teoria –, acreditamos que as contribuições foucaultianas no que diz respeito as relações de poder e a Vida merecem total atenção e, quando possível, sua assimilação crítica. E é este caminho que o presente trabalho tenta percorrer ao dar alguns passos – curtos e indicativos, é bem verdade – na direção não apenas de uma crítica meramente negativa, mas sim de uma “negação da negação” 35 Como característico dos filósofos do sixtie Foucault detinha sua atenção num locus especial de articulação entre a história e o poder: o corpo21. Sem nos alongarmos, o corpo aparecia para o autor, em larga medida, como a vida-corporificada e, no caso, a medicina com um dos saberes que extrai da vida conhecimentos para governá-la. Pois, como diz autor anos mais tarde, “O que se passou no século XVIII em certos países ocidentais, e que esteve ligado ao desenvolvimento do capitalismo”, foi “a entrada da vida na história – isto é, a entrada dos fenômenos próprios à vida da espécie humana na ordem do saber e do poder – no campo das técnicas políticas” (FOUCAULT, 2003, p.133). O que o pensador francês estava a alertar – e que é decisivo para nossos objetivos – era que durante todos milênios precedentes à Revolução Industrial a “pressão biológica sobre a história” era “extremamente forte; a epidemia e a fome constituíam as duas grandes formas dramáticas desta relação que ficava, assim, sob o signo da morte;” (FOUCAULT, 2009, p.133). Mas com os avanços da produção capitalista – e seu consequente afastamento das barreiras naturais –, o que assistíamos foi um “afrouxamento” dessa pressão, “a morte começava a não mais fustigar diretamente a vida.” (FOUCAULT, 2009, p.133). O exercício do poder, portanto, passava a ser também o de gerir a vida do nível dos corpos ao da espécie, e majorá-la ou multiplicá-la sob “controles precisos” e “regulamentações de conjunto” passava a ser o seu objetivo. Entrava em cena, portanto, o biopoder. Uma das formas possíveis de compreender o biopoder é a construída didaticamente por Taylor (2011). Sustentando-se especialmente no último capítulo de A vontade de saber e na aula de 17 de Março de 1976, para ele podemos denominar todo esse novo arranjo do poder sobre a vida como biopoder, sendo este, por sua vez, podendo ser dividido analiticamente em duas “acomodações”: a disciplinar – ou a anátomo-política –, iniciada no fim séculos XVII e início do XVIII e que se assenta sobre o polo do “corpo como máquina” com vigilância e treinamento; e a reguladora – ou biopolítica –, inaugurada ao final do século 21 Terry Eagleton nos alertou corretamente para o modismo do tema corpo tão caro aos filósofos de Maio de 68, disse ele: “à medida que as energias revolucionárias aos poucos arrefeciam, o interesse pelo corpo foi assumindo o seu lugar.” (1996, p.27). Embora o critico literário inglês, acertadamente, não menospreze a dimensão da corporeidade, dedicando todo um estudo em A ideologia da estética (1993), ele, por sua vez, não deixa de pontuar sua crítica ao “hedonismo privatizado [que] é privilegiado neste discurso”, e no qual, segundo ele, comparece mais o corpo erótico do que o famélico. Assim, ainda que concordemos com o inglês, dado o alimento teórico que tais teorias – a despeito da intenção de seus formuladores – deram à cultura individualista própria da “condição pós-moderna”, não podemos desconsiderar que o cuidado com o tema do corpo próprio dessa geração trouxe aporte teórico-filosófico para expressivas conquistas civilizatórias, ao menos em grande parte do ocidente. Para ficarmos apenas com dois exemplos vale destacar os avanços na liberdade sexual das mulheres com o movimento feminista e a incorporação na agenda política da luta pelos direitos da população LGBT – ambos decisivamente influenciados pelo debate da corporalidade de cariz foucaultiano, vide o recente furor conservador contra a presença da intelectual queer Judith Butler no Brasil (http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2017/11/1936103-judith-butler-escreve- sobre-o-fantasma-do-genero-e-o-ataque-sofrido-no-brasil.shtml) 36 XVIII e que se assenta no “corpo-espécie”, ou melhor, “sobre os fenômenos de população, com os processos biológicos ou bio-sociológicos das massas humanas” (FOUCAULT, 2009, p.210). De fato, como diz o próprio Foucault, “As disciplinas do corpo e as regulações da população constituem os dois polos em torno dos quais se desenvolveu a organização do poder sobre a vida.” (2003, p.131). A primeira acomodação, o polo das tecnologias de disciplina, é marcada pelos mecanismos de poder sobre o corpo individual – a vida-corporificada. Não tanto reprimir os indivíduos, mas orientá-los, dirigi-los, governá-los, em resumo, sujeitá-los através da “ampliação de suas aptidões” e da “extorsão de suas forças”. Sem por isso torná-los menos obedientes, ao contrário. Para o nosso autor é justamente os saberes e técnicas de domínio sobre os corpos, de poder sobre os corpos que produzem e que normalizam os sujeitos – para que eles “operem como se quer”. Nas prisões produzem-se delinquentes, nos hospitais e hospícios produzem-se doentes/loucos e nas fábricas produzem-se operários, todos normalizados para serem economicamente úteis e politicamente dóceis. Assim, em contraste com as formas mais tradicionais de poder, como aquelas instituída durante a escravidão ou a servidão, a anátomo-política permitiu o aumento da produtividade econômica do corpo – para assegura a utilidade produtiva –, ao mesmo tempo em que enfraquecia as suas forças – para assegurar a sujeição política. Dizia ele que “foi no biológico, no somático, no corporal que, antes de tudo, investiu a sociedade capitalista”, para isso então um conjunto heterogêneo de instituições, de configurações arquitetônicas, de leis, de medidas administrativas, em resumo, de dispositivos22 de poder foram forjados para tornar o corpo dócil e útil – dentre eles Foucault inclui as fábricas, as prisões, as escolas, os conventos, os hospitais entre outros.23 22 O termo “dispositivo” será utilizado aqui tal como faz uso M. Foucault, como operadores discursivos e materiais do poder dominante, isto é, como técnicas, estratégias e formas de investimento de poder sobre as coisas, humanos e não-humanos. 23 Esse tema também aparece, mutatis mutandis, no clássico texto de Antônio Gramsci Americanismo e Fordismo. Como afirmou o sociólogo Ruy Braga em seu prefácio ao texto do marxista italiano, o americanismo e fordismo é “um fenômeno a um só tempo político, ideológico e econômico” (2009, p.13). Preocupado em compreender o processo de formação do capitalismo naquele “único capitalismo histórico que não se encontra limitados pelos resíduos sociais dos modos de produção anteriores” (p.15), para Gramsci o que estava em questão era a organização da esfera produtiva taylorista – como modelo de organização do trabalho – em sua relação com o fordismo – como mecanismo global de acumulação de capital – mediante “traços culturais associados à difusão de uma nova visão social de mundo.” ( p.16). Tão decisivo fora o texto do marxista sardo, que depois de sua repercussão o fordismo deixou apenas de ser um sinônimo de trabalho taylorizado, e sua acepção se alargou à compreensão de um modo de vida ( idem.). Ao invés das interpretações economicistas na qual orbitava grande parte da esquerda à época, Gramsci trouxe luz ao defender que para além dos mecanismos de coerção instituído pelas classes dominantes, estas também se valiam de aparelhos privados e públicos de “persuasão e consentimento” capaz tanto de manter e reintegrar as forças desgastadas pelo novo tipo de trabalho, quanto de gerir e controlar o comportamento intelectual e moral das classes proletárias. Para um novo modo de trabalhar era necessário um novo tipo humano, um novo sujeito trabalhador em consonância com às exigências da produção taylorista-fordista. 37 Porém, o nível local, dos detalhes e dos fracionamentos, como apontado, não ficou sozinho durante muito tempo, uma outra acomodação muito mais complexa surgiu por volta do século XVIII. Ligado a anátomia-política do corpo por todo um feixe intermediário de relações, uma nova técnica de poder centrou-se então no corpo-espécie: a biopolítica. Ao lado do assujeitamento dos corpos individuais confinados nos panópticos, ao lado do poder disciplinar surgia a dispositivos de poder que passaram a controlar, a regular, administrar a vida do “corpo molar”, ou seja, as populações – surgia, segundo ele, a biopolítica. Para o nosso autor o objeto no qual incide o poder da biopolítica é a população. Se “As disciplinas lidavam praticamente com o indivíduo e com seu corpo”, a acomodação biopolítica investe sobre um novo corpo, o “corpo múltiplo, corpo com inúmeras cabeças, se não infinito pelo menos necessariamente numerável.” (FOUCAULT, 2010, p.206). De um estado cujo domínio centrava-se basicamente sobre o seu território, visualiza-se um deslocamento para um governo das populações. A população agora entendida não mais como uma “coleção de súditos” do Rei soberano, mas como um “conjunto de fenômenos naturais” sob o governo do Estado moderno – sobretudo com o liberalismo24. Podemos dizer que, se o Estado burguês garantia o ajustamento da acumulação de capitais à divisão da população em diferentes classes, se ele garantia a articulação do crescimento das forças produtivas à expansão dos agrupamentos humanos … Diz Foucault, a biopolítica – como uma “razão de Estado” – ao agir no nível das populações, passou a operar “garantindo relações de dominação e efeitos de hegemonia; o ajustamento da acumulação dos homens à do capital, a articulação do crescimento dos grupos humanos à expansão das forças produtivas e a repartição diferencial do lucro, foram, em parte, tornadas possíveis pelo exercício do biopoder com suas formas e procedimento múltiplos. (2003, p.132-3) Sendo assim, ciente de que a sociedade civil tornara-se muito mais complexa, Gramsci percebeu que o novo tipo humano surgido nas fábricas do século XX se articulava a todo tecido social, sendo esta articulação condição para a hegemonia do bloco dominante. Gramsci detectou diversos aparelhos de hegemonia que são ativados pelas classes dominantes com o intuito de organizar e regulamentar os comportamentos, os hábitos e os costumes – sexuais, higiênicos, de consumo, de relacionamento social etc. – dos trabalhadores, todos com o objetivo de inculcar-lhe uma nova “adaptação psicofísica”. Os temas enfrentados por Gramsci em Americanismo... como a sexualidade, a “animalidade”, a higiene, a “racionalização da composição demográfica” – taxas de natalidade e longevidade – estão totalmente integrados àquilo que Foucault chamou de biopoder e biopolítica. Embora não tenhamos espaço para desenvolver essa hipótese, consideramos plausível uma interpretação que aproxime pontualmente os autores para enfrentar aquele que possivelmente é o mesmo fenômeno histórico – enfrentando sob duas perspectivas distintas – , a saber, o governo das classes dominantes sobre a Vida – corporificada ou em espécie. 24 Para Foucault uma das características centrais do liberalismo consiste, como diz Judith Revel, “em um novo tipo de governamentalidade, que não é redutível nem a uma análise jurídica nem a uma leitura econômica (ainda que uma e outra aí estejam ligadas), se apresenta, por consequência, com uma tecnologia do poder que se dá um novo objeto: a ‘população” (2005,p.26-7). E a população, como já mencionada, considerada como “conjunto de seres vivos”. Assim, o liberalismo e, também, o neoliberalismo aparecem como uma “tecnologia de governo” cuja racionalidade depende de uma gramática que reduza os indivíduos e a população aos seus aspectos de “estado de natureza”. 38 É com a biopolítica, portanto, que a série de fenômenos que constituem o ser humano a partir de sua condição de ser vivo e pertencente a população de uma espécie, isto é, “um todo natural com dinâmicas vitais próprias de funcionamento”, entra no “domínio dos cálculos explícitos”. Em resumo, é ao “levar em conta a vida, os processos biológicos do homem-espécie e de assegurar sobre eles não uma disciplina, mas uma regulamentação,” que emerge a biopolítica, dirá Foucault (2010, p.207) – ou poderíamos dizer é ao reduzir as legalidades do ser social àquelas encontradas no ser natural que se erige o bio-poder. Neste feito que surgem então a demografia, a medicina social, o sanitarismo, a estatística… Todos como novos dispositivos de governo da Vida das populações25. É nesse “limiar da modernidade biológica” que “O homem ocidental aprende pouco a pouco o que é ser uma espécie viva num mundo vivo, ter um corpo, condições de existência, probabilidade de vida, saúde individual e coletiva, forças de que se podem modificar e um espaço em que se pode reparti-las de modo ótimo.” (FOUCAULT, 2003, p.134). De fato, nas palavras do sociólogo Thomas Lemke: “Quando a vida mesma se torna um objeto da política, isso tem consequências para os fundamentos, ferramentas e objetivos da ação política. E ninguém viu mais claramente essa mudança na natureza da política do que Michel Foucault.” (2011, p.31-32). Mas ainda é preciso deixar claro como nos apropriaremos criticamente – e materialisticamente – dessa analítica do biopoder legada por Foucault. A partir da década de 1970 assistimos um enfraquecimento de todos os "modernismos de esquerda", notadamente o "modernismo marxista" (THERBORN, 2012). Muitas correntes teóricas atraiam atenção justamente pelos ataques desferidos ao velho “marxismo-leninismo” como se buscassem preencher um vazio ideopolítico e cultural26. Para os filósofos do maio 68 francês o marxismo não se colocava mais à altura das exigências da época. Era necessário, diziam, buscar uma nova esquerda. E especialmente nos Estados Unidos, Inglaterra e França ela surgia. Ao redor do movimento contra a guerra do Vietnã, do movimento pelos direitos 25 É necessário destacar, como faz Foucault em entrevista a Alain Grosrichard, que “Certamente, o problema da população sob a forma: ‘seremos nós muito numerosos, não suficientemente numerosos?’, há muito tempo é colocada, há muito tempo que se dá a ele soluções legislativas diversas: impostos sobre os celibatários, isenção de imposto para as famílias numerosas, etc. Mas, no século XVIII, o que é interessante é, em primeiro lugar, uma generalização destes problemas: todos os aspectos do fenômeno população começam a ser levado em conta (epidemias, condições de habitat, de higiene, etc.) e a se integrar no interior de um problema central. Em segundo lugar, vê-se aplicar a este problema, novos tipos de saber: o aparecimento da demografia, observações sobre a repartição das epidemias, inquéritos sobre as amas de leite e as condições de aleitamento. Em terceiro lugar, o estabelecimento de aparelhos de poder que permitem não somente a observação, mas intervenção direta e a manipulação de tudo isto. Eu diria que, neste momento, começa algo que se pode chamar de poder sobre a vida, enquanto antes só havia vagas incitações, descontinuas, para modificar uma situação que não se conhecia bem.” (FOUCAULT, 2009, p.274-5) 26 “O pós-modernismo (…) alimentou-se da desmoralização e da incerteza da esquerda durante a euforia do fim dos anos 1960 e começo dos anos 1970.”(THERBORN, 2012, p.35) 39 civis – das mulheres, dos negros e dos gays –, da reforma psiquiatra, das crises ambientais e da campanha pelo desarmamento nuclear, novos movimento sociais suscitavam uma revisão profunda da práxis marxista tradicional. A consciência geral era de que os novos tempos e novos personagens em cena exigiam da filosofia, da ciência, das arte e da política aportes multi-paradigmáticos para além dos modernismos – démodé – do liberalismo e, sobretudo, do socialismo e do marxismo. Nesse terreno emergiam as chamadas correntes “pós-modernas” com suas críticas à “razão”, à “verdade”, ao “sujeito”, às “grandes narrativas”, ao “progresso”, à “revolução”… Neste feito, por um lado, setores marxistas, na resistência teórico-política oficial, tornaram-se refratários a aspectos culturais que por longa data foram subsumidos às “leis férreas da economia”. Não reconheceram que o poder também pode se instaurar microfisicamente nos corpos, nos sentidos e nos desejos. Não perceberam que muitas vezes nossas grandes narrativas são permeadas por eurocentrismos, por sexismos, por hetero- normatividades etc. Não entenderam que a dominação/submissão/exploração também se entifica pelos discursos, e pela “magia” dos símbolos. Não aprenderam, por fim, que esta sociedade capitalista está longe de ser igual, em algumas importantes características, à realidade de meados do século XIX – tempos idos de Marx e Engels. Outros, contudo, deixaram o oficialismo de lado e se mantiveram criticamente sensíveis às mudanças e aos novos temas suscitados em locus teóricos e políticos além dos tradicionais. Sem se arrefecerem das lutas dos subalternos, podemos mencionar – sob o perigo de sermos injustos – alguns autores como István Mészáros, David Harvey, Fredric Jameson, Alain Badiou, Terry Eagleton, Nicolas Tertulian entre outros. E, dentre eles, um em especial se fez caro para nós ao longo desta pesquisa, justamente por empreender em sua trajetória um diálogo direto com o universo conceitual do biopoder foucaultiano, a saber, o filósofo italiano Atonio Negri – em especial em seus trabalhos desenvolvidos ao lado Michael Hardt. De tal sorte que lemos em suas linhas: “Em muitos sentidos a obra de Michael Foucault preparou o terreno para essa investigação do funci