Helivelton Neves Campos POLIFONIA NA PARIS DO SÉCULO XIII: gêneros e notação em Notre-Dame São Paulo 2021 Helivelton Neves Campos POLIFONIA NA PARIS DO SÉCULO XIII: gêneros e notação em Notre-Dame Trabalho de graduação apresentado como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Composição Musical pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Linha de pesquisa: Música Antiga Orientador: Marcos Pupo Nogueira São Paulo 2021 Ficha catalográfica desenvolvida pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da Unesp. Dados fornecidos pelo autor. C198p Campos, Helivelton Neves, 1994- Polifonia na Paris do século XIII : gêneros e notação em Notre-Dame / Helivelton Neves Campos. – São Paulo, 2022. 94 f. : il. Orientador: Prof. Dr. Marcos Pupo Nogueira Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Composição Musical) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes 1. Música vocal. 2. Polifonia. 3. Notação musical. I. Nogueira, Marcos Pupo. II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. III. Título. CDD 786.21 Bibliotecária responsável: Fabiana Colares - CRB/8 7779 Helivelton Neves Campos POLIFONIA NA PARIS DO SÉCULO XIII: gêneros e notação em Notre-Dame Trabalho de graduação apresentado como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Composição Musical pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” São Paulo, 10 de Janeiro de 2022 BANCA EXAMINADORA ____________________________________________________________ Profº Drº Marcos Fernandes Pupo Nogueira Departamento de Música, Instituto de Artes da Unesp ____________________________________________________________ Profª Drª Yara Borges Caznok Departamento de Música, Instituto de Artes da Unesp RESUMO CAMPOS, Helivelton. POLIFONIA NA PARIS DO SÉCULO XIII: gêneros e notação em Notre-Dame. 2021. Trabalho de Graduação (Bacharel em Composição Musical). Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, 2021. O trabalho busca apresentar, a partir de autores modernos e de tratados dos séculos XII e XIII, os gêneros e o sistema de notação da prática musical oriunda da catedral de Notre-Dame e presente em diversos centros litúrgicos da Europa, sobretudo, Ocidental. Para tal, apresentamos de forma sucinta um histórico da notação musical na Idade Média desde o surgimento da notação musical no século IX e sua relação com a notação quadrada empregada em diversos manuscritos do século XIII (capítulo 2); destrinchamos os três principais gêneros da música de Notre-Dame discorrendo sobre suas características e técnicas envolvidas em cada um destes (capítulo 3); a partir de fontes históricas, introduzimos as formas de escrita usadas de acordo com o gênero musical a ser registrado, discutimos acerca do sistema de modos rítmicos, elemento pelo este repertório é amplamente apontado como um marco na história da música ocidental dada a possibilidade de transmissão do parâmetro rítmico a partir exclusivamente de um suporte visual, e seu emprego nos diversos gêneros que compõem este repertório (capítulo 4). A fim de exemplificar e por em prática o ferramental teórico constantemente discutido, são apresentadas transcrições comentadas de 5 obras (capítulo 5). Palavras-chave: Polifonia; Notre-Dame; Música vocal; Notação Modal ABSTRACT CAMPOS, Helivelton. POLIFONIA NA PARIS DO SÉCULO XIII: gêneros e notação em Notre-Dame. 2021. Trabalho de Graduação (Bacharel em Composição Musical). Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, 2021. This research shows, through modern authors and 12th and 13th century treatises, the musical genres and the notational system used at Notre-Dame cathedral and in other liturgical centers from Ocidental Europe. For reach this objective we present a brief historical view of musical notation on Middle Ages since its emergence on 9th century and the relation between it and Note-Dame’s quadratic notation (chapter 2); we analyse the three main musical genres of Notre-Dame’s repertoire explaining the characteristics and techniques involved in each of them (chapter 3); showing, with help of the 13th century writers, the styles of notation used in each musical genre as well as the theoretical bases of the six rhythmic modes (chapter 4); and, to finish, we transcribe in modern notation five 13th century works making comments on the passages which show a more difficult interpretation (chapter 5). Keywords: Polyphony; Notre-Dame; Modal Notation; Middle Ages SUMÁRIO 1.INTROITUS 9 2.REGISTROS MUSICAIS PRÉ NOTRE-DAME: NOTAÇÃO ADIASTEMÁTICA E DIASTEMÁTICA 12 3.GÊNEROS EM NOTRE DAME 20 3.1.1 Seção Organal ou Organum Specialiter 21 3.1.2 Cláusula. 22 3.1.3 Cópula. 26 3.2 Moteto 31 3.3 Conductus 34 4. NOTAÇÃO NO SÉCULO XIII 36 4.1 Notação Dos Gêneros Melismáticos 36 4.1.1 Organum à duas vozes 36 4.1.2 Organa Tripla e Quádrupla 41 4.1.3 Modos Rítmicos 42 4.1.3.1 Grafia dos Modos 43 4.1.3.2 Alterações Rítmicas 48 4.1.3.2.1 Fractio modi 48 4.1.3.2.2 Extensio Modi 48 4.1.3.3 Outros Elementos que Compõem o Sistema Modal 50 4.1.3.3.1 Tractus 50 4.1.3.3.2 Duplex Longa 52 4.1.3.3.3 Plica 52 4.2 Notação Dos Gêneros Silábicos 55 4.2.1 Modos Rítmicos e Pés Métricos 57 5.TRASCRI(A)ÇÃO 63 5.1 Cláusula Domino 66 5.2 Conductus Moteto “Deo Confitemini / Domino” 69 5.3 Conductus Rose Nodum Reserat 74 5.4 Moteto Stirps Jesse progreditur / Virga cultus nescia / Flos Filius Eius 79 5.5 Organum Iudea et Iherusalem 83 6. CONCLUSÃO (OU… ITE, MISSA EST) 91 REFERÊNCIAS 93 9 1. INTROITUS Em tempos de globalização e hiperconectividade parece fácil fazer com que uma mesma obra musical seja executada em territórios distintos como na França, na Espanha e no Reino Unido, por exemplo. Desde que um indivíduo, além de se encontrar em uma comunidade minimamente desenvolvida econômica e tecnologicamente, faça parte de uma classe social a qual tenha acesso a um aparato tecnológico, conectar um aparelho cujo o qual carrega uma fonte musical a um computador com acesso à internet e transmitir este conjunto de dados para uma outra região, país ou continente, é, atualmente, algo extremamente simples e que, de forma ágil, resolveria essa necessidade comunicacional. Seja esta fonte um registro escrito ou sonoro, possivelmente em questão de minutos este material estaria disponível a uma ampla gama de pessoas, independente destes serem os responsáveis por levar a obra aos ouvintes ou o próprio público. Embora tais mecanismos sejam banais para parte da sociedade, o fato da transmissão de documentos e informações nem sempre terem ocorrido assim com a mesma velocidade e facilidade acessível a nós, pode vir a nos ajudar na compreensão do quão relevante é um material ao qual se deu o trabalho de ser amplamente difundido há cerca de dez séculos atrás quando o tempo e os recursos depreendidos em sua construção, transporte e distribuição são consideravelmente maiores. Este é o caso dos códices Pluteo 29.1 (F); Wolfenbüttel Herzog-August-Blibliothek, Codices Guelferbytani 628 Helmstedt (W¹); Wolfenbüttel Herzog-August-Blibliothek, Codices Guelferbytani 1099 Helmstedt (W²) e Madrid, Biblioteca nacional 20486 (Ma) os quais em sua origem foram empregues, respectivamente, em Paris (não há registros de um local específico), na Catedral de St. Andrew (Escócia), na França (não há registros de um local específico) e no monastério “Santa Maria Real de Las Huelgas” (Espanha); e são o testemunho de como, em plenos séculos XII e XIII, um mesmo repertório foi amplamente difundido em diversas partes da Europa. Tais manuscritos citados carregam um repertório musical em grande parte concebido por cantores ligados à catedral de Notre-Dame aproximadamente a partir da segunda metade do século XII. Embora estes livros testemunhem um repertório originalmente desenvolvido em Notre-Dame, cada um deles pertenceu a catedrais 10 de distintos pontos do território europeu. Sabe-se que o manuscrito “Pluteus 29.1” (F) provavelmente foi escrito aproximadamente em 1240 em Paris, que suas iluminuras são atribuídas ao atelier de Johannes Grusch e que entre os séculos XV e XVI pertenceu à Piero de Medici; o manuscrito “Wolfenbüttel 628” provém e manteve-se na catedral de St. Andrew, na Escócia, enquanto o manuscrito “Wolfenbuttël 1099” é provavelmente de origem parisiense e não se sabe a qual centro litúrgico este pertenceu; já o manuscrito Madrid se encontrava na catedral de Toledo, na Espanha. Ou seja, cada um destes, em conjunto com uma série de outros manuscritos que se perderam no decorrer do tempo e fragmentos que volta e meia são encontrados, foram responsáveis por disseminar pela Europa não apenas um repertório mas um estilo de se fazer polifonia. São diversos os motivos passíveis de serem atribuídos ao amplo alcance da polifonia parisiense. Neste trabalho iremos assumir que tal fato se dá principalmente por dois fatores: estabilidade na estruturação de seus gêneros e de sua notação além de um pleno emprego do ritmo baseado em um sistema métrico. No estudo das artes são diversos os autores que, ao procurar apontar uma metodologia aos interessados em se aprofundar em uma área específica, seja ela dança, música ou cinema, nos levam a uma série de tratados técnicos e abordagens teóricas sobre o assunto. Embora sejam de grande importância na aquisição de um domínio técnico acerca de uma linguagem artística, uma minuciosa abordagem diretamente sobre o repertório, como sugere Ezra Pound em seu livro ABC da Literatura, pode se mostrar uma forma prolífica de aprofundamento e desenvolvimento técnico em um repertório. Partindo da escuta, ao aplicar esta estratégia de estudo à pequena parcela do repertório medieval polifônico disponível em gravações, uma série de pontos relevantes tornam-se visíveis. O principal deles é como o repertório atribuído à Escola de Notre Dame apresenta uma evidente padronização em seu tratamento polifônico em relação ao repertório contemporâneo corrente na abadia de St Martial de Limoges1, documentado nos manuscritos Paris, Bibliothèque Nationale, fonds latin 1139, 3719 e 3549; e London, British Museum Additional 36881. A partir desta primeira abordagem pautada pelo fenômeno sonoro, torna-se possível apontar como a produção parisiense apresenta uma forte 1 TREITLER, Leo. The polyphony of St Martial. Journal of the American Musicological Society, California, vol.17, n.1, p 29-42, Spring 1964. 11 uniformidade em sua estruturação musical, a qual, num olhar generalista e menos detalhada, contrasta contundentemente com a polifonia aquitana e nos permite facilmente averiguar seus distintos gêneros característicos. Deixando de lado esse lugar da escuta, a qual dá margem para questionamentos em relação às opções interpretativas tomadas pelos intérpretes ou por um transcritor, e passando a olhar para este mesmo repertório a partir da sua documentação histórica, uma série de outros elementos nos chamam a atenção. Um dos principais é a notação de cada um destes documentos que guardam o repertório melhor documentado dos séculos XII e XIII. O repertório parisiense apresenta uma vasta documentação que se dá não só através dos códices citados há pouco, mas também por registros de atividade das abadias e relatos de monges e outras figuras, os quais, em conjunto com os escritos teóricos, nos dão acesso a um vasto repertório encriptado por seu complexo sistema notacional. Apesar de apresentar diversos fatores dificultantes em relação a sua interpretação, com algum empenho, ainda é possível distinguir o que tais escritos carregam em seu conteúdo dado que, em geral, o sistema de notação dos modos rítmicos é grafado sobre tetragramas e assim não deixa dúvidas quanto aos valores do material harmônico ali escrito. Olhando para as práticas musicais que antecederam e se deram em paralelo ao nosso objeto de estudo, no que concerne à documentação do repertório de Aquitânia, além de serem escassos os relatos e escritos teóricos acerca de sua produção musical, o próprio sistema de notação empregado nos registros, o qual, em algumas das obras registradas, utiliza apenas uma linha horizontal como referência na identificação do parâmetro das alturas, torna extremamente complexa a interpretação deste. Vejamos com um pouco mais de profundidade tais práticas. 12 2. REGISTROS MUSICAIS PRÉ NOTRE-DAME: NOTAÇÃO ADIASTEMÁTICA E DIASTEMÁTICA Em nossos tempos, a notação musical exerce um importante papel na preservação de um vasto repertório e na transmissão deste conteúdo. Voltando ao exemplo com o qual demos início a este texto, é um sistema de notação amplamente difundido e que abarque os parâmetros necessários a execução de uma obra que, a partir de uma rede que facilite a comunicação entre pontos distintos, irá permitir que alguém leia, interprete e execute o material sonoro ali registrado sem a ajuda direta de alguém que já o conheça ou o tenha criado. Enquanto solução para a transmissão do perfil traçado por uma melodia, a adoção de figuras indicando a direção das alturas que compõem uma melodia foi a que mais se alastrou na Europa do século IX em suas mais variadas formas. Sendo assim, tal sistema de notação, o qual tratamos por neumas adiastemáticos, na verdade se trata de uma profusão de propostas experimentais na tentativa de tornar mais preciso o registro do repertório em relação a ferramenta em voga até então, baseada exclusivamente em textos verbais2, as quais progressivamente aderiram a novos elementos. Neste, que foi uma das primeiras formas de registro do canto entoado nos rituais litúrgicos, missas e ofício, figuras chamadas neumas são dispostas acima das sílabas do texto de um determinado canto litúrgico traçando assim um perfil melódico ou um conjunto de símbolos o qual guiará o cantor que apresenta de antemão um conhecimento da melodia em questão. Ou seja, tendo em vista que tal sistema não tinham como proposta a transmissão com precisão do parâmetro das alturas, sua principal função era a de servir como ferramenta mnemônica não só na execução musical que se dava no rito da missa e do ofício mas também no processo de formação do clérigo3. Embora não forneça o parâmetro das alturas, uma série de informações performáticas são fornecidas ao intérprete através dos neumas. Figuras recorrentes como a quilisma, o qual indica que uma altura deve ser executada “de 3 BERGER, A, M, B. Medieval Music and the Art of Memory. 1ª Edição. California: University of California Press, 2005. 2 KELLY, T. F. Notation I. em: Everist, Mark, and Thomas Forrest Kelly, eds. The Cambridge History of Medieval Music. Cambridge: Cambridge UP, 2018. pp. 236-262. 13 forma tremida”4, o que pode sugerir um tremolo ou até mesmo algum tipo de ataque de glote; a liquescência, a qual indica em qual altura a segunda vogal de um ditongo ou quando uma letra m ou n presente ao final de uma palavra, como em “amen”, por exemplo, deve ser articulada; entre outras como o pressus e o trigon, as quais ainda não se sabe o que indicavam, transmitiam uma ampla gama de informações e cuidados a serem levadas em consideração a fim de se obter uma sonoridade específica ao executar-se um canto. Fig. 1: neuma scandicus escrito de três formas fonte: Kelly, T. F. 2018. Na figura 1 temos um scandicus escrito de modo a ser cantado de modo regular (a), um scandicus com quilisma (b), ou seja, onde deve-se aplicar um vibrato a voz, e um scandicus com liquescência (c), usado junto a fonemas de sonoridade anasalada como a letra m na palavra “amen”, por exemplo. Abaixo, na figura 2, temos o cantochão “In deo speravit cor meum” em notação adiastemática (a) e num registro mais tardio já em notação diastemática (b). Figura 2 (a) - In deo speravit cor meum em notação adiastemática fonte: Staatsbibliothek Bamberg 4 HILEY, David. "Quilisma." Grove Music Online. . Oxford University Press. Acessado em: 22 Nov. 2021, 14 Fig. 2 (b): In deo speravit em notação diastemática fonte: Graduale restitutum . Acessado em 16 de nov. 2021. Vale notar aqui a estreita relação das figuras usadas em ambas notações. As figuras usadas no excerto em notação diastemática do exemplo 2 (b), onde as alturas adotam uma caligrafia de formas quadradas (e por isso conhecida como notação quadrática) derivam diretamente das figuras em uso no item (a) do exemplo 2. Independente de apresentar formas mais arredondadas ou formas esquinadas e com alturas facilmente distinguíveis, cada um destes fragmentos que compõem este perfil melódico denominam-se neumas. A seguir, na tabela 1, temos uma relação dos neumas mais comuns ao repertório em notação quadrática e seu equivalente em outras notações neumáticas vigentes nos séculos IX e que, em alguns casos, se mantiveram em uso mesmo após o advento e propagação da notação quadrática. http://www.gregor-und-taube.de 15 O termo latino “diastematicus”, derivado do grego “διαστηματικός”, tem como uma de suas possíveis traduções “distinguido por intervalos”. Partindo deste ponto, poderia-se entender por notação diastemática toda notação que de alguma forma transmite, através de seus signos, as relações intervalares entre os objetos ali registrados. É no século XI com o tratado Prologus in antiphonarium, de Guido D’Arezzo, que a notação diastemática apresenta uma de suas formas mais precisas e perduráveis na história. Aqui, Guido, com o intuito de criar uma ferramenta para tornar o ensino dos monges mais rápido e eficaz, desenvolve um sistema de notação onde quatro linhas horizontais são traçadas a fim de explicitar e fixar a localização de determinadas alturas. Neste sistema de notação, além das linhas e dos espaços entre estas corresponderem a alturas específicas, uma das linhas era não só identificada com uma letra referente a uma altura como poderia também ser identificada a partir das cores amarela e vermelha, as quais se referiam às notas fá e dó, respectivamente. Apesar de em alguns escritórios de música manter-se em uso a notação adiastemática até meados do século XIV5, o grande número de manuscritos que empregam o uso do tetragrama que chegaram até nós mostram como o sistema guidoniano foi amplamente difundido pelo território europeu ainda no século XI. 5 Bent, Ian D., David W. Hughes, Robert C. Provine, Richard Rastall, Anne Kilmer, David Hiley, Janka Szendrei, Thomas B. Payne, Margaret Bent, and Geoffrey Chew. "Notation." Grove Music Online. . Oxford University Press. Acessado em: 24 Mai. 2021, 16 Tabela 1 - Neumas dos séculos X e XII fonte: Oxford Music Online. Notation, III: Story of Western Notation. 2001. 17 Enquanto em regiões como Sankt Gallen e Laon a notação praticada em torno do século XI era adiastemática, em Limoges, Saint-Amand-les-Eaux e Benevento, o emprego dos neumas demonstram, em maior ou menor grau, um certo cuidado em garantir, a partir do eixo vertical, alguma distinção intervalar entre os signos notados. Apesar do uso de linhas, a notação empregada nestes manuscritos não deixam de recorrer de modo geral a um repertório gestual característicos à prática musical do período para garantir que um intérprete consiga entender a notação, como apontam Berger e Rankin6. Desta forma, enquanto em documentos de regiões onde a notação se encontra em um estágio mais incipiente, como o do exemplo 2(a), apresentam uma interpretação dificultosa quando não inviável, manuscritos mais tardios ou provenientes de regiões com uma notação mais apurada apresentam um alto grau de legibilidade mesmo para um ou uma musicista que não apresente intimidade com tal forma de notação. A fim de exemplo, temos um trecho do manuscrito F-Pnm 1120 de Limoges. figura 3: excerto do manuscrito F-Pnm 1120 de oriundo de St. Martial de Limoges fonte: Bibliothèque nationale de France. Latin 1120 f. 3v. 6 Susan Rankin. On the treatment of pitch 18 Jacques Handschin, musicólogo russo radicado na Suiça, com seu artigo “Ein Alten Neumenschrift”, é o primeiro a colocar em cheque uma visão muito difundida até a década de 50 de que a notação diastemática consistia apenas de sistemas onde referências quanto à localização precisa de alturas eram fornecidas através de linhas horizontais junto ao conjunto de neumas normalmente dispostos no manuscrito, como nos manuscritos de Aquitaine. Handschin mostra como desde o século X, ou seja, paralelamente à prática adiastemática, já se encontra em voga um sistema notacional que busca transmitir o parâmetro das alturas utilizando-se apenas de neumas. Tal abordagem também desconstrói uma narrativa a qual coloca a história da notação musical em uma espécie de “linha evolutiva” em direção ao domínio das alturas e reforça como a ausência da indicação de alturas na notação de outras regiões da Europa não se dá por incapacidade de um determinado escritório mas sim por opção, dado que a circulação de músicos entre as regiões em que haviam o emprego de uma notação diastemática, como em Breton, Lotaríngia e o norte da França, viabilizava tal troca de conhecimentos. Tais pontos mostram como a prática da notação exerce, em um primeiro instante, a função de servir como suporte à transmissão oral. O manuscrito F-Pnm Lat. 3719 é um dos documentos que testemunham algumas das formas de notação diastemática. Na figura 4 temos um trecho da página 17v deste, onde encontramos um excerto da música Veri Solis Radius et Sol Pleni. 19 Fig. 4: excerto de Veri Solis Radius et Sol Pleni. fonte: Bibliothèque nationale de France. Latin 3719. f. 17v. 20 3. GÊNEROS EM NOTRE DAME 3.1 Organum Um dos gêneros que tornou-se um ícone da música polifônica de todo este período, o organum é um dos principais elementos musicais dentro do rito católico medieval, seja por sua função dentro da liturgia, seja pela dimensão temporal de algumas obras (a depender do andamento, algumas obras podem chegar à duração de 20 minutos), ou seja pelo seu papel central nos desenvolvimento de gêneros ulteriores — a criação de cláusulas que virão a se tornar motetos. Embora hoje seja clara as características e a estrutura que caracteriza este gênero, o termo organum sofre diversas revisões no decorrer de sua história. Como aponta Waite: Para se manter a par desta multiplicidade de atividades, os teóricos foram forçados a voltarem sua atenção de uma teoria musical que há muito tempo já se tornara friamente tradicionalista para uma prática musical que se encontrava em pleno florescimento. Com o propósito de codificar uma prática existente, os teóricos foram compelidos a inventar ou adaptar uma terminologia. Consequentemente, aparecem nos tratados deste período numerosas novas palavras ou termos antigos que tomam um novo significado.”7 Derivado da palavra grega “Organon” (ferramenta, meio pelo qual, membro de um corpo), a princípio esta diz respeito a própria voz humana seja esta empregue no discurso oral ou como instrumento. É a partir do século IX que o termo passa a ser usado em tratados teóricos de música assim como às vozes acrescentadas a um canto litúrgico pré existente. Apesar dessa pluralidade quanto ao uso do termo, podemos assumir que, enquanto gênero, este se remete basicamente a uma obra onde algumas estruturas básicas podem ser observadas na maioria dos registros que chegaram até nós, sendo: 7 “To keep pace with these manifold activities the theorists of music were forced to turn their attentionfrom a musical theory that had long since become cold traditional and to take cognizance of flourishing musical practices which conventional musical doctrine had no place. The theorists were compilled to codify existing practice and to invent or adapt new terminology for this purpose Consequently there appear in the treatises of this period numerous new words or old terms which take on new significance.” Waite, W. G. Discantus, Copula, Organum. Journal of the American Musicological Society. California: Vol. 5, No. 2, p. 77, Summer, 1952. 21 3.1.1 Seção Organal ou Organum Specialiter O termo organum apresenta uma ampla gama de significados no decorrer dos séculos X ao XIII. Se inicialmente o termo “organum generale” é usado para se referir à música polifônica de modo geral8, é no “Tractatus de Musica”, de origem atribuída a abadia de Saint-Martial de Limoges e de autoria anônima, que pela primeira vez se aplica o termo organum como “apelativo da proeminente maneira de compor longos melismas na parte superior sobre notas individuais do cantus firmus”9. Tal aplicação do termo também é abordada em um tratado da metade do século XIII que descreve de forma aprofundada a produção musical em Notre Dame e o funcionamento do sistema modal, o “De Musica Mensurabili” de Johannes de Garlandia. A partir das definições apresentadas neste, entende-se que um trecho escrito em estilo organal, para além de apresentar uma ou mais vozes a realizarem melisma sobre uma nota pedal, este “é feito em algum modo rítmico que pode ser rectus ou non rectus”10. De modo geral, obras a partir de três vozes sempre empregam um modo rectus. Deve-se assumir também que num trecho escrito no estilo organal, seja este de um organum duplum, triplum ou quadruplum, ou seja, a duas, três ou quatro vozes respectivamente, A parte do tenor não é concebida dentro de um padrão modal. O valor das durações de cada nota deste último se dão sempre a partir de uma relação espacial e harmônica com notas do duplum. Na figura 5, vemos o excerto inicial do organum duplum “Judea et Jherusalem” onde a vox organalis ou duplum (pentagrama na figura 5) e a vox principalis ou tenor (tetragrama na figura 5) na área superior da figura formam o primeiro sistema no qual vemos o tenor (registrado com uma clave de dó na quarta linha) sustentar uma nota fá enquanto o duplum (usando uma clave de dó na terceira linha) executa melismas, ambos sobre as sílabas Ju-de-a. 10 Segundo Garlandia, em um modo rectus a forma de mensuração das figuras sempre apresenta uma relação de proporção entre os valores de longa e brevis enquanto num modo non rectus uma outra ordem se aplica. Tais aspectos serão discutidos no capítulo 4. 9 ibidem. pp.78 8 Ibid., p. 80. 22 Figura 5 -Trecho inicial do Organum Judea et Iherusalem. fonte: Herzog August Bibliothek . Acessado em: 19 ago. 2021. 3.1.2 Cláusula. Também cunhado por “cláusula de discante”, tal seção caracteriza-se pelo emprego de uma técnica a qual gera uma textura contrastante com o trecho que a antecede. Tal técnica, o discantus, tem sua origem na palavra grega diaphonia que, justamente por significar tanto “soar à parte” quanto “cantar à parte”, é amplamente usado como um sinônimo de polifonia e de organum nos primeiros tratados do assunto. Atribui-se as primeiras distinções entre organum e discantus ao, há pouco citado, "Tractatus de Musica", que, com o surgimento de distintas formas de se tratar a polifonia, passa a remeter-se ao discantus como uma técnica onde a voz que canta à parte (vox organalis) “concorda com seu cantus firmus sempre através de uma consonância ou uníssono e por um número igual de notas”11 — ou seja, a vox principalis, aquela onde encontra-se o cantus firmus, passa a mover-se mais rapidamente adotando uma divisão muito próxima a da parte ou das partes superiores, caracterizando uma relação nota contra notam entre as vozes. 11 Ibid., p. 83, 1952. http://diglib.hab.de/mss/1099-helmst/start.htm 23 Ainda tomando a figura 5 como referência, vemos que, no segundo sistema, o tenor que até então apenas sustentava notas longas enquanto o duplum realizava longos melismas, apresenta uma maior densidade rítmica quando no trecho em que ambas as vozes cantam “et iherusalem”. Aqui, e de modo geral quando se trata do repertório de Notre-Dame, vemos que a relação numérica entre as notas de cada voz é maior do que a colocada pelos tratados e oscila entre 2:1 e 3:1. Tal ponto não descaracteriza o discantus em vista do grande contraste que a movimentação do tenor ainda configura entre as seções de discante e as seções organais. Embora seja comum nos depararmos com definições as quais implicam o emprego dos modos ao se aplicar um tratamento discantistico em uma seção ou em uma obra — muitas dessas baseadas exclusivamente no termos do tratado de Garlandia, é comum verificar este mesmo tratamento em obras anteriores à Notre-Dame sem necessariamente aplicar-se os modos rítmicos. O verso “O Primus Homo Coruit” assim como o refrão do verso “Annus Novus In Gaudio” são exemplos que, por tratarem-se de obras do século XII, pré Notre-Dame, não são reguladas por modos. Uma constatação a qual podemos chegar ao analisar diversas cláusulas, e sempre levando em conta a relação desta com o cantochão que a origina, é que tais seções comumente se dão em trechos onde há a ocorrência de grandes melismas no cantochão sob o qual se baseia o organum. Na figura 6(a) temos o cantochão “Haec dies quam fecit dominus”, no qual, em seu verso “Confitemini Dómino”, por exemplo, podemos verificar a presença de dois melismas sobre a palavra “Dómino”. É sobre este mesmo trecho que se dá a cláusula Dómino presente no fólio 71v do manuscrito Wolfenbüttel 1099 (W²) disposto na figura 6(b) e parcialmente transcrito na figura 6(c). Tal excerto não só exemplifica tal padrão de emprego do estilo discantistico como também trás a tona uma característica muito importante das cláusulas: a repetição de todo o trecho do canto gregoriano sob o qual se baseia o tenor. 24 Figura 6 - partitura do cantochão Haec dies quam fécit domino fonte: Liber Gradualis Na partitura do cantochão Haec Dies, vemos que nos pontos da letra que sucedem os trechos “Haec dies” e “Confitemini Dómino, quóniam bónus: quóniam in saéculum misericordia” estão dispostos asteriscos os quais indicam a entrada do coro junto a um solista, sendo assim, os trechos que antecedem estes asteriscos são destinados a apenas um ou um pequeno grupo de executantes. São exatamente estes excertos destinados a serem cantados por um solista que encontram-se em um arranjo polifônico entre os fólios 71 e 72 do manuscrito W². 25 Fig. 6(b): Excerto do verso “Confitemini” do organum Haec Dies. Fonte: Herzog August Bibliothek . Acessado em: 30 ago. 2021 É possível encontrar esta mesma obra também no manuscrito I-Fl MS Pluteus 29.1 (F) onde algumas diferenças relevantes são constatadas - além de uma disposição dos tractus que reduz a margem de ambiguidades na interpretação do manuscrito, no primeiro ordo da cláusula Domino, algumas dissonâncias que no manuscrito W² são diretamente atacadas sofrem alterações no manuscrito F. Na transcrição disponível na figura 6(c) vemos transcritas ambas as versões do duplum. http://diglib.hab.de/mss/1099-helmst/start.htm 26 Fig. 6(c): Transcrição comparada do excerto inicial da cláusula Domino. fonte: Elaborado pelo autor.. Resumindo, esta seção caracteriza-se pelo emprego do discantus, técnica onde se estabelece entre as vozes uma relação nota contra nota em que predomina-se o uso de consonâncias. A fim de garantir algo o mais próximo possivel de uma proporção de 1:1 entre as vozes, a vox principalis adota um fluxo mais denso quanto a emissão de alturas, criando assim um notável contraste com a escritura apresentada nas seções organais. Além de uma seção dentro da categoria de obras que entendemos por organum, este estilo discantus também é empregado em outras categorias de composição em voga na Idade Média como o conductus e o moteto os quais serão tratados mais a frente. 3.1.3 Cópula. Talvez o item mais ambíguo e difícil de se definir a partir tanto do repertório quanto da bibliografia, a cópula é descrita de modo geral como “A cópula é enfim descrita como aquela que se coloca no meio do caminho entre o organum (seção) e o discantus”12 12 Yudkin, J. (1980). The "Copula" According to Johannes de Garlandia. Musica Disciplina. Vol. 34. p. 76, 1980. 27 Definições como a colocada por Garlandia, quando em um contexto de organa duplex, ou seja, que prevêem uma escritura melismática não regulada por modos rítmicos sobreposta às notas sustentadas do tenor, se mostram de fácil compreensão pois sabe-se que, na escrita a duas vozes a seção organal é comumente escrita utilizando-se de um modo non rectum. Desta forma, neste tipo de organum, a cópula apresenta-se como uma seção contrastante com as demais que o integram pois, enquanto na seção organal a vox organalis é executada de modo que as figuras rítmicas não apresentam uma relação proporcional entre si, na cópula, esta assume uma mensuração proporcional entre as figuras que se sobrepõem ao cantochão e, de fato, cria algo que se encontra, tanto no sentido espaço-temporal quanto no sentido técnico-estilístico, no meio do caminho entre a seção organal e a cláusula. Quando tratamos da cópula nas organa que apresentem mais do que duas vozes torna-se difícil a distinção desta em relação às seções organais. Como a composição que apresenta mais do que duas vozes implica a necessidade de controlar as durações, a fim de se garantir a organização das consonâncias e dissonâncias, as vozes superiores são integralmente escritas a partir de um modo rectum. Desta forma, a cópula, que em um organum duplum apresentavam uma escritura que é o meio termo entre as outras duas seções, passa a soar extremamente semelhante à seção organal. Embora também tenha sido abordada por Garlandia em seu “De Musica Mensurabili”, o trecho que descreve as características de uma cópula mostra-se como um dos de mais difícil compreensão do tratado como podemos ver a seguir: “… copula é aquela em que uma parte em rectus modus se dá paralelamente a um único som. E isso pode ser definido de outra forma: copula é onde quer que um número de puncti [i.e, sinais de notação] são feitos. Punctus, como este é usado aqui, significa todo lugar que há um número de linhas, e esta parte é dividida em duas partes iguais; uma vez que a parte do tenor e a parte superior opõem-se uma à outra e cada parte contém um número de linhas. No entanto, uma linha é levada onde quer que haja um número de intervalos, como o uníssono ou outro intervalo, de acordo com o número requerido em um ordo requisitado.”13 13 “... is that which appears in rectus modus equivalent to a single tone. And it may be defined in other way: copula is wherever a number of puncti [i.e. signs of notation] are made. Punctus, as it is used here, means wherever there is a number of lines, and this part is divided into two equal parts; whence the tenor part and the upper part oppose one another and each part contain a number of lines. Therefore a line is drawn wherever there is a number of interval, such as the unisson or other interval, acording to the number required in the requisite ordo.” Waite, W. Discantus, Copula, Organum. 28 Para decifrar esta passagem que a princípio parece um tanto quanto desconexa, vamos recorrer à interpretação proposta por William Waite em seu artigo “Discantus, Copula, Organum” de 1952. A partir desta explicação de Garlandia, mas sempre dialogando com outros tratadistas do século XIII, Waite coloca como principal característica da cópula em um contexto a mais de duas vozes a “divisão das figuras do padrão modal em valores menores, as quais Anônimo IV se refere como fractio modi (subdivisão de figuras do padrão modal em células menores)”. Tal conclusão é reforçada a partir dos apontamentos de Waite em relação aos trechos em que Garlandia e Anônimo de St. Emmeram apontam a ocorrência de linhas ― traços verticais comumente chamados de plica que se encontram conectados a um ou ao final de um grupo de neumas indicando a presença de uma nota virtual e consequentemente a necessidade de subdivisão do valor da figura plicada14. Desta forma, esta é apontada como uma das possíveis formas de se identificar uma copula, e, somando-se à justificativa há pouco colocada, excertos como o do organum “Alleluia, Possui Adjutorium”, citados por Anônimo IV e por Anônimo de St. Emmeram em seus escritos exemplificam tal ponto. Embora de fato seja possível encontrar em algumas organa uma certa densificação da textura em trechos imediatamente antes de uma cláusula - densificação esta que se dá tanto por ocorrências de fractio modi quanto de plicae (a diferença entre estas será especificada mais a frente) - tal característica não se mostra impar à copula já que é comum encontrá-la também em diversos momentos da seção organal ou mesmo não encontrá-la, como no caso da figura 7, um excerto do organum “Sederunt Principes” onde não se constata no trecho final da seção organal que antecede a copula nenhum momento de densificação das vozes superiores. Tais aspectos não só impõem certa dificuldade na identificação destas seções, como também colocam em dúvida a própria existência da copula em contextos onde mais do que duas vozes são empregadas tendo em vista que, em 14 Enquanto Waite chega a conclusão, a partir do diálogo com outras fontes, que os “punctus” citados por Garlandia se tratam de plicas, Yudkin, no artigo “The ‘Copula’ According to Johannes de Garlandia”, defende que tais “punctus” tratam-se na verdade de pausas e divisio modi (tractus que indica quando encerra-se um ordo). Journal of the American Musicological Society, California, vol. 5, Nº 2, p. 84, Summer 1952. Tradução nossa. 29 muitas organa, sequer é possível verificar-se um contraste quanto à densidade rítmica que se dá anteriormente ao trecho final da seção organal. Fig. 7: final da seção organal e início da cláusula (domi)NE do organum Sederunt. fonte: Herzog August Bibliothek . W¹, p. 4r. Acessado em: 10 nov. 2021. http://diglib.hab.de/mss/628-helmst/start.htm 30 Verificando o que outros tratadistas descrevem acerca da cópula, Roesner resume de modo sucinto as diversas formas como esta foi descrita nos mais diversos tratados e, ao mesmo, tempo retrata como o próprio conceito vai tomando outros significados de acordo com o afastamento temporal que se dá em relação a uma prática viva do repertório: “Anônimo IV aparentemente aplica o termo à passagens de nota sustentada em organa tripla (e presumivelmente, quadrupla - bastante apropriadamente, já que as vozes superiores em tais obras normalmente movem-se uma contra a outra de modo semelhante ao discantus. Franco emprega o termo a tipos de fórmulas, passagens cadenciais que podem ser usadas para concluir uma composição, agrupando isso com outros artifícios como hoquetus e troca de vozes. Lambertus apresenta uma definição dupla de copula: música entre “organum e discante” e, adicionando, hoquetus.”15 Duas organa são citados por Anônimo de St.Emmeram e Anônimo 4 como exemplos de copulae, o “Alleluia. Posui Adjutorium” e “Judea et Iherusalem”. Embora nos casos citados de fato seja possível verificar uma maior ocorrência de plicae, nem sempre é isto o que se verifica nestas seções onde a princípio se espera encontrar uma cópula ou mesmo o próprio conteúdo que a antecede é tão semelhante a esta que torna difícil definir se realmente há uma cópula e onde esta tem início. Na figura 8 temos uma das copulae citadas. Fig. 8: Copula do organum Alleluia. Posui Adjutorium fonte: Biblioteca Medicea-Laurenziana. F 29.1. p. 36v. 15 “Anonymous IV seems to apply the term to sustained-tone passages in organa tripla (and, presumably, quadrupla) - appropriately enough, since the upper voices in such works ordinarily moe against each other in the manner of discant. Franco emplors it for certain kinds of formulaic , cadenza-like passages that might be used to close a composition, group of these with such other contrapuntal artificies as hocket and voice exchange. Lambertus presents a twofold definition of copula: music “between organum and discant” and, in addition, hocket.” Roesner, Edward. The Cambridge History of Medieval Music. United Kingdom. Cambridge University Press. 2018. pp. 849. Tradução nossa. 31 Por fim, cabe colocar que mais do que três seções que constituem as organa, vimos três tratamentos estilísticos que são empregados em diversos gêneros da música atribuída à escola de Notre-Dame e à música medieval de modo geral. 3.2 Moteto Um gênero que deriva diretamente do organum, o moteto caracteriza-se pelos tropos melódico-textuais, o qual é comumente realizado já no século IX no cantochão, realizado sobre cláusulas de discante das organa. Tal prática se tornou recorrente ao ponto de o resultado deste procedimento tornar-se um gênero autônomo, ou seja, não necessariamente vinculado às organa onde se originam as cláusulas que dão vida a um moteto, e inclusive dominante quando na alta Idade Média, mais especificamente no período histórico cunhado por Ars Nova. Por tratar-se de um excerto autônomo do organum, o moteto não apresenta uma forma definida, mas consiste sempre de um voz executando o excerto de um canto gregoriano (a qual equivale a vox principalis do organum) sobre a qual sobrepõe-se uma, duas ou três vozes (equivalentes ao duplum, triplum e o quadruplum, respectivamente) onde comumente vemos um ou mais textos poéticos atribuídos a esta ou estas vozes superiores. Embora em sua forma mais conhecida16 os motetos apresentem uma configuração onde cada uma das vozes emprega um texto diferente, tipos aos quais se atribui o termo “moteto duplo” — ou “moteto triplo” quando este apresenta três vozes onde a cada uma destas é atribuído um texto diferente (não confundir com duplum e triplum, termos que dizem respeito ao número de vozes) —, nos exemplos mais antigos de motetos em língua latina que tem-se documentado, é recorrente o uso de um único texto para todas as vozes superiores — quando trata-se de um moteto triplum ou quadruplum (tais casos são tratados na bibliografia pelo termo conductus-moteto e, por configurarem um terceiro gênero, serão, portanto, tratados à parte). Resumindo, segundo Tischler17, podemos classificar os motetos em três tipos: (a) moteto-conductus, onde duas ou três vozes cantando um mesmo texto são sobrepostas a um tenor; (b) motetos duplum, onde apenas uma voz carregando um texto é sobreposta a um tenor; e (c) motetos duplos 17 Tischler, Hans. Latin Texts in the Early Motet Collections: Relationships and Perspectives. Musica Disciplina, Vol. 31, pp. 31-44, 1977. 16 Em livros condensados de história como o Massin, Palisca & Burholder, etc, vê-se abarcar sobretudo os motetos da Ars Nova. 32 e alguns poucos triplos, onde duas ou três vozes, cada uma com seu texto, são sobrepostas a um tenor. Muitas vezes há uma relação direta entre estes motetos-conductus e os motetos duplos ou triplos já que diversos destes últimos tratam-se de uma contrafacta18 destas formas incipientes. Como exemplo, na figura 9 temos um excerto do moteto triplum “O Maria, maris stella / In veritato” onde vê-se um típico caso de um moteto-conductus. Sua configuração traz as principais características desta fase inicial de concepção deste gênero: (a) as vozes superiores compartilhando um mesmo texto de temática religiosa e que, de alguma forma, estabelece um (b) diálogo com o assunto concernente ao texto do tenor (neste caso a conexão se dá através da palavra veritate presente no último verso do poema e da palavra veritatem sobre a qual o tenor executa um grande melisma). Fig. 9: trecho inicial do moteto O Maria, maris stella. fonte: Herzog-August Bibliothek, Cod. Guelf 1099 Helmstedt, fols. 125-26 . Acessado em: 15 set. 2021. 18 Prática de substituir por uma nova poesia o texto de uma obra musical pré existente sem alterar a melodia. http://diglib.hab.de/mss/1099-helmst/start.htm 33 A contrafacta “O Maria, virgo davidica / O Maria, maris stella / Veritatem”, difundida em diversos manuscritos medievais19, apresenta o tenor e o duplum do moteto “O Maria, maris stella” porém com um triplum refeito integralmente. Um novo poema é atribuído à melodia agora baseada sobre o sexto modo, trazendo uma maior densidade rítmica ao moteto. Esta família de motetos, modo pelo qual se chama um conjunto de obras que compartilham de um mesmo tenor ou derivam diretamente uma da outra, exemplifica o processo de acréscimo de camadas pelos quais algumas destas obras passam até tomarem o formato que se estabelece na Ars Nova com Philippe de Vitry, Guillaume de Machaut, etc e pelo qual são amplamente conhecidas. Figura 10 - Excerto de transcrição do conductus “O Maria maris stella” fonte: Elaborado pelo autor. 19 Baltzer, Rebecca. The Thirteenth-Century Motet. Em: Everist, M., & Kelly, T. (Eds.). The Cambridge History of Medieval Music (The Cambridge History of Music). Cambridge: Cambridge University Press, pp 981, 2018. 34 3.3 Conductus Enquanto os gêneros apresentados até aqui baseiam-se sobre um cantus firmus, i.e, parte de um trecho ou da totalidade de um cantochão para desenvolver um novo material musical, o conductus é o gênero onde um poema original e em língua, sobretudo, latina é musicado para uma formação que varia entre uma e quatro vozes, e empregado com propósitos festivos e de procissão em ambientes internos e externos da igreja20. O termo é usado pela primeira vez em tratados teóricos atribuídos ao século XIII e, com a grande projeção que os motetos passam a ter, o gênero em si passa a cair em desuso por volta do séculos XIV. Embora sua origem seja incerta (havendo inclusive conducti com textos macarrônicos onde verifica-se a mistura de latim e grego, os quais apontam para um possível emprego deste gênero no rito da Igreja Bizantina21), obras musicais do século XII, atribuídas à Abadia de St. Martial de Limoges, já apresentam as características básicas da definição acima dada por Ellinwood e, segundo Gillingham, são os gêneros que, a partir de sua mescla, dão origem ao que veio a ser o conductus. Apesar deste histórico, é em Notre Dame que o gênero atinge (ao menos do ponto de vista da musicologia da atualidade, a julgar pelo número de edições que se encontram disponíveis hoje) sua proeminência e o ápice de sua produção (do ponto de vista quantitativo) tendo em vista que é no século XIII e, mais especificamente, nos registros oriundos de Notre Dame, que se encontram a maior parte do repertório de conducti existente. Janet Knapp, em seu verbete para o Grove Music Online22, coloca que Anônimo 4 lista um livro de conductus a três vozes cum cauda (com melismas), um segundo de conductus a três vozes cum cauda, e um terceiro onde encontram-se conducti a três e quatro vozes sem cauda. Vale ressaltar a diferenciação pela qual Anônimo 4 qualifica este repertório. Este aponta os conducti sem melismas como uma categoria mais simplória e destinada a cantores menos habilidosos, enquanto os conducti cum cauda são não apenas destinados a cantores mais habilidosos como são estes que integram o repertório das grandes festividades do calendário católico. 22 KNAPP, J. "Conductus." Grove Music Online. 2001; Accessed 3 Nov. 2021. 21 Ibid. p 167. 20 ELLINWOOD, L. The “Conductus”. The Musical Quarterly, abril 1941, vol. 27, nº2. Oxford University Press. p. 165, 1941. 35 Quanto à estruturação poético-musical, no que diz respeito aos conducti parisienses, Payne23 lista seis tipos de configurações: 1. Monoestrófico: não apresentam uma divisão do texto em unidades estróficas. 2. Estritamente estróficos: um mesmo bloco musical é repetido sobre diversas estrofes as quais apresentam uma estrutura idêntica. 3. Remetente a outras formas: apresentam a estrutura poética de gêneros como o Lai ou a sequência (AA, BB, CC). No aspecto musical, grupos de duas ou mais estrofes apresentam novos padrões musicais. 4. Não estróficos24: não apresentam uma unidade poética ou musical entre as estrofes. 5. Parcialmente não estrófico: textos estróficos musicados de modo em que as diferentes estrofes não compartilham o material musical 6. Sequência estrófica: assim como nas Sequências, baseia-se sobre um poema estrófico e a música correspondente a cada estrofe é executada duas vezes. No que tange a temática abordada nos textos que dão suporte à música, embora em grande parte estes tratam a respeito de temas religiosos - entre elas diversas referências aos principais dias festivos do calendário católico, à Virgem Maria e a outros santos - há também uma série de poemas que fazem referência a figuras de papas, bispos, clérigos e aristocratas ou mesmo a eventos históricos como a Cruzada Albigense e a vitória do Império da França sobre as forças Inglesas em La Rochelle em 122425. Tais exemplos apontam para a possibilidade de nem todo o repertório ter sido criado com o objetivo de fazer parte da liturgia. 25 Ibid., p. 1057. 24 Na ausência de uma tradução melhor para o termo "through composed”, usado para se remeter a uma estruturação livre onde novos materiais são apresentados constantemente, optou-se aqui por utilizar “Não estrófica” 23 PAYNE, T. B. Latin Song II: The Music and Texts of the Conductus. em: The Cambridge History of Medieval Music. 1ª edição. Cambridge: Cambridge University Press, 2018. 36 4. NOTAÇÃO NO SÉCULO XIII A notação da música polifônica oriunda de Notre Dame pode ser classificada de duas formas básicas a partir dos diversos manuscritos que a testemunham: uma grafia cum litera, mais adequada para o registro de gêneros musicais silábicos e que, consequentemente, à semelhança da grafia empregada no canto gregoriano, necessita registrar ponto a ponto as alturas pertencentes a uma determinada sílaba; e outra sine litera, que, sobretudo, destina-se ao registro dos gêneros que empregam pouco texto e apresentam uma composição fundamentalmente melismática. Ambas as formas baseiam-se no uso de figuras neumáticas derivadas daquelas vistas nos séculos anteriores, porém com um formato diferenciado ― quadradas, e daí o comum uso do termo notação quadrática para se referir a esta ― e são geralmente dispostas sobre um tetragrama. O que de fato se sobressai em consequência desta necessidade de se adequar a um texto mais denso combinado a uma construção melódica silábica é a impossibilidade dos gêneros cum litera, ao contrário do gênero sine litera, evidenciarem qual o modo rítmico empregado em sua composição, o que inclusive hoje nos dá margem para acabar colocando em dúvida sua aplicação. Vejamos a seguir a especificidade na notação de cada um destes grupos: 4.1 Notação Dos Gêneros Melismáticos 4.1.1 Organum à duas vozes São diversas as abordagens já adotadas na interpretação da notação usada no registro das organa duplex. Tal diversidade se dá por conta da vasta gama de interpretações dos musicólogos em relação a um pequeno número de escritos históricos que em muitos casos são de um período mais tardio do que o repertório em questão, mas ainda assim, pode-se dividir as vias de interpretação basicamente em duas escolas interpretativas: uma que assume que, não havendo mais do que duas vozes, a necessidade de organizar o parâmetro das durações, seja na prática ou no registro documental, se torna desnecessária havendo outros meios de exercer tal controle, e outra a qual supõe que, embora em sua forma embrionária, já aqui se 37 encontram em aplicação os modos rítmicos. A somar-se ao fato da notação não transmitir com precisão quando e se uma altura deve ser interpretada com uma duração maior que outra, escritos da Idade Média que tratam acerca deste gênero de modo geral apresentam uma linguagem controversa e que deve ser lida sempre com muito cuidado ainda mais quando o contato com tais textos não sejam de forma direta, mas sim através de traduções — nestes casos é importante averiguar as opções que os mais diversos autores tomam quanto a interpretação de trechos ambíguos. É a partir do que é transmitido pelos mesmos tratados — De Mensurabili Musica de Garlandia, os escritos do Anônimo 4, Ars Cantus Mensurabilis de Franco de Colônia, entre outros — que autores como Ludwig, Peter Wagner e Besseler sugerem uma interpretação rítmica gerenciada em função das dissonâncias e consonâncias aliadas a outros padrões recorrentes que caracterizam o repertório, enquanto autores como Handschin, Günter Birkner, Luther Dittmer, Heinrich Husmann e William Waite propõem uma interpretação estritamente modal. Um elemento importante na construção destas propostas tão discrepantes é a própria inacurácia na edição moderna realizada por Coussemaker em Scriptorum de musica medii aevi destes escritos teóricos do século XIII e XIV usado como referência por muitos destes autores há pouco citados. Yudkin26 exemplifica um deste erros de edição com o seguinte trecho: “Organum per se dicitur id esse, quidquid profertur secundum aliquem modum rectum aut non rectum.”27 Tal frase encontra-se da seguinte forma no manuscrito original: “Organum per se dicitur id esse, quidquid profertur secundum aliquem modum non rectum sed non rectum.”28 William Waite é um dos autores que apontam Coussemaker como fonte e acabam fundamentando alguns pontos centrais desta discussão em trechos que apresentam erros como no caso apresentado acima, apesar de haver edições que 28 Por organum per se diz-se aquele que é performado de acordo com um modo que não é rectus mas non rectus. 27 Por organum per se diz-se aquele que é performado de acordo com um modo que é rectus ou non rectus. 26 YUDKIN, J. The Rhythm of Organum Purum. The Journal of Musicology. California: Vol. 2, No. 4, pp. 355-376, 1983. 38 apresentam maior fidelidade ao texto original no caso específico do texto de Garlandia. Considerando este cuidado para com a partir de qual fonte foi realizada a tradução de um tratado, vejamos o que é colocado em relação ao organum purum em alguns destes escritos teóricos antigos. No De Mensurabili Musica, Garlandia faz colocações quanto ao aspecto rítmico da seguinte forma: “Diz-se organum per se aquele que é performado de acordo com um certo modo o qual não é rectus mas sim um modo non rectus. Um modo rectus aqui se refere àquele pelo qual o discantus é performado. O modo non rectus diferencia-se da recta [mensura], (porque) as longas e breves rectae são tomadas de modo estrito sobretudo. Já na [mesura] non recta longas e breves são aplicadas de acordo com o contexto (contingentia).”29 Vale destacar que o termo “modo non rectus” é um neologismo criado por Garlandia30. Quanto a questão do contexto apontada na citação acima, Garlandia apresenta encaminhamentos detalhados sobre como interpretar as longas e breves no seguinte trecho: “Longas e breves são reconhecidas em um organum através das consonâncias, através da notação e através da penúltima altura. De onde vem a regra: tudo que acontece em uma posição de acordo com a virtude da consonância,diz-se ser longa. Uma outra regra: o quer que seja notado como longa de acordo com as organa antes de uma pausa ou no lugar de uma consonância diz-se uma longa. Outra regra: o que quer que esteja antes de uma pausa de longa ou antes de uma consonância perfeita, diz-se uma longa.”31 A princípio pode-se constatar que nenhuma referência direta é feita aos modos rítmicos e, embora exista a possibilidade de, a partir de tais princípios, direcionar a recorrência de consonâncias e dissonâncias para que resultem em um deles, isto não é o que se verifica no repertório. Os tratados de St. Emmeran e Anônimo 4, por serem ambos amplamente baseados no tratado de Garlandia, 31 “Longs and breves in organum are recognized in this way, that is to say through (concord), through the notation, through the penultimate. Whence the rule: everything that happens in some position according to the virtue of the (con- cords), is said to be long. Another rule: whatever is notated long according to the organa before a rest or in [the?] place (of a concord) is said to be long. Another rule: whatever is accepted before a long rest or before a perfect concord is said to be long.” Ibidem. p. 362 30 Ibidem. p 361. 29 “Organum per se is said to be that which is performed according to a certain mode that is not rectus but non rectus. A rectus mode is used here to mean that by which discantus is performed. Non rectus differs from a certain recta [men- sura], (because) the rectae longs and breves are taken in the required way first and foremost. But in non recta [mensura] the long and breve are taken not in the first way, but according to the context.” YUDKIN, J. The Rhythm of Organum Purum. The Journal of Musicology. California: Vol. 2, No. 4, p. 362, 1983. 39 reforçam o que é posto pelo último, porém, é no tratado de Anônimo 4 que encontra-se a mais rica explanação sobre o organum purum. Neste, segundo Yudkin32, "o que é descrito é uma técnica de performance” e complementa colocando que “O autor aparenta estar lutando por um vocabulário para descrever sutilezas que não são receptivas à notação”. Diversos valores incomuns são descritos e Yudkin vê isto como “resultado do desejo de explicar racionalmente um método de performance que não era expresso, ou passível de ser expressado, pela notação”. Tais modos irregulares são formalizados por Anônimo 4 da seguinte forma: Figura 11: Modos irregulares. fonte: Yudkin. 1983. Nesta tabela, as hastes acima dos agrupamentos de nomes indicam o padrão das ligaduras dos modos irregulares. Vê-se que nestes o padrão de ligaduras se assemelha ao dos modos regulares porém com valores resultantes distintos. Pelo fato de Anônimo 4 ser um tratadista do século XIII, Yudkin coloca que tal sistema se trata de uma tentativa de racionalizar e sistematizar ritmos que não são reduzíveis a tal sistematização. Tal ponto apontado por Yudkin é reforçado pelo sétimo modo postulado no tratado do Anônimo 4, onde sugere-se que todos os valores presentes na figura 11 são passíveis de serem encontradas em um único modo, o modo VII: “E em concordância com os sete dons do espírito santo está o sétimo modo - mais nobre e valioso, mais voluntário e agradável. Este modo é misturado 32 YUDKIN, J. The Rhythm of Organum Purum. The Journal of Musicology. California: Vol. 2, No. 4, pp. 368, 1983. 40 e comum, é integrado por ambas as ligaduras binárias vistas acima, e todas ligaduras ternárias e todas ligaduras quaternárias, etc. Falando propriamente, é chamado de organum puro e nobre etc”33 Em vista de que grande parte do repertório enquadra-se no sétimo modo, é possível certificarmos que tal sistematização se mostra como algo que visa, de alguma forma, tentar organizar uma prática que acima de tudo não apresenta uma padronização sistemática. Em concordância com tal apontamento, um outro excerto presente no tratado de Anônimo 4 evidencia um dos principais argumentos que justificam as abordagens ao repertório de Notre Dame as quais partem do princípio de que os modos rítmicos não se aplicam às organa duplex: “E há um sexto volume de organa duplex, como "Iudea et Ierusalem" e "Constantes," as quais nunca ocorrem a três vozes, nem podem serem realizadas desta forma, dado certos modos que ocorrem nestas os quais são diferentes [extraneum] dos outros, e porque as longas são muito longas e as curtas, muito curtas. Este aparenta ser um modo irregular [irregulativus] comparado aos já mencionados modos de descante, embora este seja regular quando leva-se em consideração apenas sua própria lógica organizacional etc.”34 Além de colocar de forma mais direta aspectos já discutidos há pouco, como quanto ao emprego dos modos rítmicos irregulares e o fato de os valores obedecerem a uma mensuração diferente nestes modos, a partir deste mesmo excerto, Yudkin reforça que tal abordagem rítmica não se aplica apenas às obras citadas como exemplo, mas de modo geral nas organa a duas vozes35. Vê-se, partindo diretamente deste contato com seus escritos, que os tratadistas apontam para uma interpretação rítmica não modal, ou, levando-se em conta o sistema proposto por Garlandia, modal ultra mensuram, i.e, com valores irregulares e muito distintos dos propostos nos modos regularmente utilizados nas organa a mais de uma voz ou motetos, etc. 35 Ibidem. p. 373. 34 “And there is a sixth volume of organum in duplum, like "Iudea et Ierusalem" and "Constantes," which indeed never occurs in triplum, nor can occur that way, on account of a certain mode of its own which it has that is different [extraneum] from the others, and because the longs are too long and the breves too short. And it seems to be an irregular [irregulativus] mode compared to the above-mentioned modes of the discant itself, although it is regular in itself etc” Ibidem. p. 372. 33 “And in accordance with the seven gifts of the Holy Spirit is the seventh mode- most noble and worthy, more voluntary and pleasing. And this mode is a mixed and common mode, and it is made up of all the two-note ligatures mentioned above and all the three-note ligatures and all the four-note ligatures etc. And properly speaking it is called pure and noble organum etc.” Yudkin, Jeremy. The Rhythm of Organum Purum. The Journal of Musicology, vol. 2, no. 4, University of California Press, p. 371, 1983. 41 4.1.2 Organa Tripla e Quádrupla Quando tratamos da parte do repertório, ainda do gênero organum, que apresenta três ou quatro vozes, há um consenso entre os estudiosos da música medieval quanto ao uso dos modos rítmicos nas vozes de perfil melismático — normalmente as vozes superiores que também são tratadas pelo termo "cópula". Os registros teóricos do século XIII tem uma grande influência neste entendimento pois, na medida do possível, estes tratam o sistema notacional de forma muito esclarecedora ao contrário do que vimos anteriormente com as organa duplex. Somado a isso há um ponto que automaticamente se coloca ao lidar com um repertório que apresenta mais do que uma voz realizando melismas que é a necessidade de organizar tais vozes a fim de garantir um controle sobre as dissonâncias e consonâncias no decorrer do tempo. Sendo assim, aqui temos os modos rítmicos organizando as durações de cada altura através das ligaduras que informam ao leitor qual padrão rítmico deve ser adotado na leitura das alturas que integram uma determinada ligadura. A apreensão de cada um dos modos (e consequentemente da duração de cada uma das alturas que integram os neumas) em organa ou mesmo em seções melismáticas de alguns conducti se dá a partir da interpretação dos agrupamentos de alturas, as ligaduras (ou neumas quadráticos que daqui em diante serão tratados apenas por neumas). Estas, no que se trata do repertório referente à Notre Dame, são geralmente dispostas sobre um tetragrama e, embora seja possível encontrar ligaduras contendo uma grande variedade de notas, são os neumas indicando uma nota, duas notas (ligadura binária) e três notas (ligadura ternária) que, através do padrão pelos quais são dispostas, remetem a algum dos modos rítmicos. Vejamos como se dá o funcionamento deste sistema. 42 4.1.3 Modos Rítmicos O sistema de modos rítmico, uma das primeiras ferramentas implementadas que permitiu a organização do parâmetro das durações, tem um dos seus primeiros registros históricos no tratado Discantus Positio Vulgaris, um texto que é supostamente datado a algo em torno de 1230 e 1240 o qual integra um compêndio do último quarto do século XIII organizado por Jerome de Moravia. Tal tratado apresenta uma sumarização do funcionamento dos modos rítmicos, uma básica descrição sobre as características dos gêneros que integram a prática musical da região de Paris, assim como uma série de apontamentos de ordem prática sobre a realização deste repertório, em vista de se tratarem de direcionamentos acerca de como executar determinados encadeamentos - prática comum em tratados de toda a Antiguidade36. Uma segunda fonte sobre os modos rítmicos é o tratado “De Musica Libellus” que possivelmente foi escrito entre dez e vinte anos após o Discantus Positio Vulgaris. Assim como este último, foi editado por Edmond de Coussemaker em seu Scriptores de musica medii aevi (1864) e, por conta de ser o sétimo numa série de textos anônimos, passou a ter seu autor identificado como Anônimo VII. No que tange a organização básica desta sistematização das durações, este tratado é de grande valor informativo. Aqui temos colocado que os “modos [rítmicos] são a própria mensuração do tempo por longas e breves”37, ou seja, tratando-se de uma ferramenta que surge com o intuito de organizar as durações, a longa e breve são colocadas como elementos fundamentais em seu emprego. Tais valores são descritos de forma que uma longa recta é aquela que contém apenas dois tempos enquanto uma breve recta contém um tempo38. Os valores de longa e breve recta não são as únicas a compor o conjunto de elementos básicos nesta sistematização do rítmo. Estas mesmas durações quando integram um modo ultra mensuram passam a exprimir valores diferentes dos há pouco citados. As longas caracterizam-se pela duração de três tempos e, quanto às breves, “sempre que houver mais do que uma, aquela mais próxima ao fim é mais longa. 38 COUSSEMAKER, E. Scriptorum de musica medii aevi nova series a Gerbertina altera. 1ª edição. Paris: Durand, 1:378–83, 1864. 37 KNAPP, J. Two XIII Century Treatises on Modal Rythm and the Discant. Journal of Music theory, vol. 6, n. 2, pp 200-215, inverno, 1962. tradução nossa. 36 CROCKER, R. L. Musica Rhytmica and Musica Metrica in Antique and Medieva Theory. Journal of Music Theory, vol. 2, n.1. pp 2-23, abril, 1958. 43 Consequentemente, a primeira de duas breves dura um tempo enquanto a outra, dois”39. Desta forma temos como figuras básicas que integram este sistema as breves e longas rectam, que exprimem, respectivamente, um e dois tempos (as quais serão tratadas ao longo deste texto simplesmente por longa e breve), e as longas e breves ultra mensuram, que exprimem os valores de dois e três tempos, respectivamente. Cabe aqui colocar que alguns tratados do século XIV, na busca de tentar explicar a ocorrência de uma subdivisão tripla, passam a estabelecer uma relação de analogia entre Trindade e a subdivisão ternária40. Sendo assim, é comum encontrar na bibliografia o emprego dos termos longa perfeita, longa ternária ou mesmo longa oblíqua para se referir à longa ultra mensuram, de três tempos. 4.1.3.1 Grafia dos Modos Estes colocados há pouco são os valores usados na mensuração do tempo e que compõem os seis modos rítmicos abordados no tratado Discantus Positio Vulgaris e extensivamente descritos por Garlandia em De Mensurabili Musica, tratado da segunda metade do século XIII atribuído a Johannes De Garlandia. Vimos no capítulo 2 que, embora apresente uma caligrafia com características diferentes da encontrada em outros escritórios — baseada em pontos os quais assumem um formato quadrado — a notação empregada em Notre Dame é diretamente relacionada aos neumas que caracterizam a notação dos séculos anteriores mas que ainda continuam em voga em diversas regiões. Dada a impossibilidade inerente aos sistemas neumáticos de transmitir informações precisas referentes às durações junto ao próprio símbolo, em vista do próprio sistema em sua concepção ter o perfil como objeto de registro, organiza-se a transmissão de durações a partir de padrões rítmicos, comúnmente denominados modos rítmicos. Estes modos são apresentados por Garlandia da seguinte forma: “São chamados ‘modos’ aquilo que contribui na mensuração do tempo através de longas e breves. São, portanto, seis espécies de modos das quais três se diz ‘sob medida’ 40MONTEROSSO, R. Ars antiqua, em: BASSO, A. Deumm, 16 vol. Torino: Utet, 1983-1999, Lessico, I, pp. 181-190, 1983. 39 KNAPP, J. Op. Cit. 44 [rectam] e, por outro lado, três ‘além da medida’ [ultra mensuram], ou seja, que se estendem além da medida ‘recta’. Portanto, aquelas que se diz ‘sob medida’ são a primeira, a segunda e a sexta. Aquelas ‘além da medida’ são a terça, a quarta e a quinta. A primeira inicia com uma longa, a qual segue uma breve, uma outra longa e assim ao infinito. Em segundo lugar o contrário, ou seja, uma breve, outra longa e outra breve. A terça é uma longa, duas breves e uma longas. A quarta são duas breves, longa e duas brevis. A quinta são todas longas. A sexta são todas breves” 41 Ainda no De Mensurabili Musica questões mais detalhadas sobre as espécies de longas são colocadas: “Quanto às longas, três são as possibilidades: longa recta, duplex longa e longa plicada. Portanto, segue a regra: o traço longo a direita ou à esquerda da figura individual determina sempre a duração. A longa recta se dá quando a largura não supera a altura. A duplex longa se dá quando a largura supera a altura. A longa plicada é aquelas que apresenta um alongamento duplo, porém a direita mais comprido do que para a esquerda, sejam estas ascendentes ou descendentes.”42 A atribuição destes valores na notação se dá de duas formas diversas a depender do gênero musical em questão pois, como dissemos, o gênero aprensetar letra ou não muda substancialmente a sua forma de notação. Apesar dos modos rítmicos serem apresentados nos tratados Discantus Positio Vulgaris e De Musica Libellus, os padrões de ligadura, os quais determinam a correspondência entre estas e o modo rítmico a ser aplicado sobre um perfil melódico, são abordados apenas por Garlandia, como colocado a seguir: 42 “Delle longae triplice è il modo: 'longa retta', duplex longa, e plica. Da cui segue la regola: il tratto lungo a destra o a sinistra delle figure singole determina sempre la durata. La L retta si ha quando la larghezza non supera l'altezza. La duplex L si ha quando la larghezza supera l'altezza. La lunga piegata è quella che ha duplice tratto, ovvero a destra più lungo che a sinistra, e doppio, salendo e discendendo.” EXAMENAPIUM. De mensurabili musica. Disponível em: https://www.examenapium.it/meri/garlandia.html. Acessado em: 22, dez, 2021. 41 “Maneries eius appellatur, quidquid mensuratione temporis, videlicet per longas vel per breves, concurrit. Sunt ergo sex species ipsius maneriei, quarum tres dicuntur mensurabiles, tres vero ultra mensurabiles, id est ultra rectam mensuram se habentes. Iste vero dicuntur mensurabiles, scilicet prima, secunda et sexta. Iste vero ultra mensurabiles, scilicet tertia, quarta et quinta. Iste vero dicuntur mensurabiles, scilicet prima, secunda et sexta. Iste vero ultra mensurabiles, scilicet tertia, quarta et quinta.” COUSSEMAKER, E. Scriptorum de musica medii aevi. Paris : Durand, 1864. p. 175. https://www.examenapium.it/meri/garlandia.html 45 “A primeira regra do primeiro modo diz-se ser três notas ligadas entre elas no início; em seguida ligadas duas a duas, etc; [...].Outra regra do mesmo: três [notas ligadas] com pausa de breve, três com pausa de breve,etc; diz-se ser primus modo primi modi perfecti; neste caso: Figura 12 - Notação do modo I fonte: Coussemaker. 1864. A primeira regra para o segundo modo é: duas, duas, duas [...]; e enfim três. Figura 13 - Notação do modo II fonte: Coussemaker. 1864. [...] O terceiro modo demonstra-se por figuras da seguinte forma: a primeira é longa, e depois três ligadas, e três ligadas, [...] desta forma: Figura 14 - Notação do modo III fonte: Coussemaker. 1864. Assim é o quarto modo: três, e três, e três [...] e por fim duas [...], desta forma: 46 Figura 15 - Notação do quarto modo. fonte: Coussemaker. 1864. Desta forma dá-se o quinto modo: todas longas com pausa de longa ou breve: Figura 16 - Notação do quinto modo. fonte: Coussemaker. 1864. O sexto se assume desta forma: quatro [notas] ligadas com [...] plica, seguido por duas ligadas e duas, com plica, etc: Figura 17 - Notação do sexto modo. fonte: Coussemaker. 1864. Outra regra para o mesmo: [...] esta é bem demonstrada através de um exemplo, como é encontrado no triplum do Alleluia possui adjutorium; sendo quatro [...] seguido por três, e três e três [...]. 47 Figura 18 - Notação alternativa para o sexto modo fonte: Coussemaker. 1864. …”43 Tomando como referência a colcheia e a mínima em função dos valores de breve e longa, respectivamente, temos na tabela X os seis modos rítmicos em notação moderna. Figura 19 - Modos rítmicos em notação moderna. fonte: Apel. 1942. Adaptado. 43 “Unde prima regula primi modi dicitur esse tres ligatae ad invicem in principio et in posterum cum duabus et duabus ligatis et caetera, et hoc totum cum proprietate et perfectione, ut hic: Alia regula de eodem: tres ligatae cum brevi pausatione et caetera in infinitum, et hoc potest intelligi, ut sumitur hic: Secundi modi prima regula sumitur ita: duae et duae cum proprietate et caetera et tres in fine sine proprietate et ‹perfectae›, ut sumitur hic: Alia regula de eodem: tres sine proprietate cum longa pausatione et sic in infinitum, ut sumitur hic: Tertius modus dicitur ita per figuram: prima longa et tres ligatae et tres et tres, et hoc cum proprietate, ut hic: Quartus modus dicitur ita: tres et tres et tres ligatae cum proprietate et duae imperfectae in fine cum longa pausatione, ut hic: Quintus modus sumitur hoc modo: omnes longae, ut hic: Alia regula de eodem: tres et tres ligatae cum proprietate et perfectae cum longa pausatione et caetera, et hoc fit causa brevitatis et non proprie dicitur ita, sed usus est, quod ita in tenoribus motellorum accipiatur, ut hic: Sextus sumitur hoc modo: quatuor ligatae cum proprietate et plica et postea duae ligatae ‹cum plica› et duae cum plica et caetera, ut hic: Alia regula de eodem, sed non probatur per istam artem, sed bene probatur per exemplum, quod invenitur in alleluia Posui adjutorium in triplo, scilicet quatuor ligatae cum proprietate et postea tres et tres et tres cum proprietate et caetera, et hoc est exemplum, quod sumitur in supradicto Alleluia:” COUSSEMAKER, E. Scriptorum de musica medii aevi. Paris : Durand. p. 100-101, 1864. 48 4.1.3.2 Alterações Rítmicas Embora apresentados de forma simples e sempre mantendo a regularidade do padrão rítmico que caracteriza o modo, o emprego destes não se dá de forma estrita como a apresentada em tratados. Estas figuras que integram as formas básicas as quais caracterizam os modos são passíveis de serem comutadas por outros valores, sejam eles maiores (uma longa perfeita assumindo o valor da longa somada a brevis) ou menores (duas semibrevies assumindo o lugar de uma brevis). Tais alterações se dão através dos seguintes mecanismos: 4.1.3.2.1 Fractio modi Podemos perceber que em diversos pontos do excerto presente na figura Y o padrão das ligaduras é alterado por outros agrupamentos de x notas que se inserem em meio a cadeia de notas que vinha ocorrendo. Quando tais agrupamentos, inesperados em relação a um modo já estabelecido, apresentam um número superior de notas de acordo com o que deveria suceder-se, tende-se a tratar de um fractio modi, ou seja, um fracionamento dos valores rítmicos padrão a fim de garantir que um maior número de alturas sejam executadas em seu lugar. Um princípio importante na interpretação de um fractio é de que, em uma extensa cadeia de notas, entende-se que a última das notas que integram este grupo é uma longa, enquanto, tudo que antecede esta última nota deve ter seus valores tratados de modo maleável e que, muitas vezes, devem ser interpretados baseando-se no princípio de alinhamento das consonâncias. 4.1.3.2.2 Extensio Modi Outro fenômeno que recorrentemente altera a regularidade dos padrões de ligaduras é o extensio modi, mecanismo que altera o padrão de valores estabelecido pelo modo ao introduzir uma ou mais alturas individuais onde esperava-se a continuidade de um padrão de ligaduras. Ou seja, na ocorrência de uma quebra do padrão de ligaduras que dá lugar a uma ou mais notas individuais, costuma-se interpretar tanto a figura isolada quanto, quando assim o permite a cadeia rítmica, a 49 última nota da ligadura que antecede a quebra do padrão, como longas perfeitas como na figura 24. Por se tratar de uma notação com um alto índice de variação contextual é importante se atentar às situações onde também ocorre uma quebra do padrão de ligaduras não com intuito de alterar o ritmo padrão mas por limites do próprio sistema como no caso da figura 24. Neste caso, a quebra do padrão de ligaduras se dá pela impossibilidade de ligar duas notas de mesma altura quando consecutivas. Tal fenômeno é também conhecido por notas parigrado. Figura 24 - notas parigrado (F 29.1 f.46) fonte: Biblioteca Medicea-Laurenziana. Outra situação que pode abrir margem para ser interpretada com extensio modi mas não condiz com este, de fato, é a troca de sílaba ocorrente em trechos melismáticos das organa. Ainda na figura acima vê-se que acima da sílaba “vi” disposta no tenor, as notas ré do duplum e do triplum, no penúltimo ordo, são notadas entre tractos. Apesar de aparentar serem longas, levando-se em conta que aqui o tractus é usado com o objetivo de informar quando deve ser entoado o novo fonema, estas notas podem ser interpretadas como integrantes da ligadura que as segue ou antecede gerando assim ligaduras fragmentadas. 50 4.1.3.3 Outros Elementos que Compõem o Sistema Modal A apresentação de alguns outros elementos que compõe este sistema notacional é importante para garantir uma maior apreensão do que está sendo transmitido: 4.1.3.3.1 Tractus Um dos primeiros elementos que saltam à vista ao travar-se contato com a notação medieval são os pequenos traços verticais que podem ocorrer nos mais variados tamanhos. Uma série de funcionalidades são atribuídas a tal elemento, vejamos quais intenções este traço vertical pode transmitir: 1. Ordo. Uma das principais atribuições deste elemento é indicar o fim do que se entende por um ordo. Por ordo entende-se uma cadeia de notas que formulam uma frase musical a qual pode apresentar uma extensão muito variada e que é, geralmente mas não exclusivamente, encerrada em uma pausa. Ou seja, além de delimitar um ordo o tractus também nos informa sobre a possibilidade de haver uma pausa em um determinado contexto. Em contexto onde o tractus é precedido por uma nota plicada fica evidente que, nesta situação, o elemento deve ser tratado apenas como um divisor de ordine. 2. Mudança de Fonema Há ocasiões onde a ocorrência de um tractus não necessariamente implica uma pausa e consequentemente o final de uma frase. Em situações onde se dá uma seção organal é comum que o tractus apareça apenas para indicar que um determinado fonema passa a ser executado a partir de uma determinada nota de cada uma das vozes. Nestas ocasiões é comum ver que, no trecho musical que sucede o tractus, o padrão de ligaduras não é reiniciado, este segue normalmente até surgir um tractus que de fato finaliza a frase ou alguma irregularidade rítmica. 51 3. Suspirum Uma indicação um pouco mais rara de ver-se atribuída a este signo, mas possível de se verificar no repertório é o suspirum. Nesta situação, este elemento tem como função indicar uma respiração em um determinado ponto, muitas vezes num trecho não só mais denso rítmica e melodicamente, mas também com uma grande extensão fraseológica. 4. Pausas Quando o tractus se trata de uma pausa, sua atribuição mais recorrente, o valor desta nunca se trata de algo fixo, é sempre uma variável a qual é definida de acordo com o modo cujo está sendo empregado embora, geralmente, costume ser correspondente aos valores de breve ou longa perfeita44. De modo geral toma-se como regra os seguintes valores: Figura 25 - Valores das pausas em cada um dos modos fonte: Apel. 1942. Adaptado Desta forma cabe não só avaliar qual o modo que está sendo empregado na música mas também se a frase apresenta irregularidades rítmicas como as 44 SANDER, E. The Notation of Notre-Dame Organa Tripla and Quadrupla. em: VELA, M. C. SABAINO, D. ARESI, S. Le notazioni della polifonia vocale dei secoli IX-XVII 1ª edição. Pisa: Edizioni ETS.. p. 66. 52 descritas a seguir a fim de assegurar o valor da pausa a partir de mais elementos que nos ajudem a chegar a tal resposta. 4.1.3.3.2 Duplex Longa No início de algumas seções, mas não apenas, é comum a ocorrência do que entende-se como uma duplex longa. Isto corresponde a notas que visualmente se distinguem das demais por conta de sua espessura. Estas costumam apresentar um prolongamento no eixo horizontal a qual, de modo muito claro, as diferencia das alturas de valor comum. Aqui não cabe nada mais do que interpretar estas alturas com o dobro da duração do que seria uma longa perfeita. Alguns autores descrevem também esta figura como sendo a representação de uma longa florata. Neste caso a floratura corresponde ao que autores do século XIII descrevem como um embelezamento o qual é feito com uma ataque de glote.Não havendo descrições mais precisas sobre como se dá a interpretação destes. 4.1.3.3.3 Plica Uma linha curta, pode ser reta ou curvada e localizada ao lado direito da última nota de uma ligadura ou em ambos os lados quando se trata de uma nota individual. Trata-se de uma nota virtual a ser executada pelo cantor de modo que esta seja uma aproximação entre a nota plicada e a nota que vem a seguir. De modo geral, esta costuma encontrar-se a um intervalo de segunda maior da nota de chegada. A partir dessas elucidações vejamos nas figuras 20 e 21, respectivamente, um excerto do organum “Judea et Jerusalem” e uma das possibilidades de transcrição deste: 53 Figura 20 - Excerto do organum Judea et Jerusalem. fonte: Pluteus 29.1. f. 46v. 54 Figura 20(b) - transcrição de excerto do organum Iudea et Iherusalem fonte: autoria própria. 55 4.2 Notação Dos Gêneros Silábicos Enquanto a notação da música melismática (sine litera) apresenta uma natureza que a permite exprimir valores referentes às durações a partir das ligaduras, a necessidade de atrelar notas e sílabas vigente no registro dos gêneros silábicos (também cunhados por cum litera na literatura) levam sua notação a uma conjuntura diversa da averiguada até aqui. Os gêneros que integram esta categoria são aqueles onde vê-se um maior uso da palavra: o moteto e o conductus. Dado que a notação das cláusulas sobre as quais se baseiam os motetos naturalmente nos fornece um ritmo que na maior parte dos casos se estende ao moteto, são apenas os conducti que tendem a trazer dificuldades quanto a sua interpretação. Mesmo nos casos em que um conductus se trata de uma contrafacta e tem sua origem em canções45, os registros destas não transparecem ritmo. Portanto, de modo geral, esta parte do repertório cum litera a qual não apresenta um lastro no repertório sine litera, ou seja, um material preexistente que nos permita inferir seu ritmo, abre margem para duas possibilidades quanto a sua interpretação. De um lado, intérpretes e transcritores entendem que é inviável inferir um ritmo a uma notação que não discrimina valores enquanto, uma outra parcela de intérpretes e pesquisadores defendem que, com alguma investigação, seja possível atribuir ritmo a este repertório. Ao analisarmos os registros sobre o conductus presentes em escritos teóricos dos séculos XIII, constata-se um pequeno número de referências esclarecedoras sobre o aspecto rítmico relativo ao gênero. Partindo do tratado Discantio Positio Vulgaris, aqui este é abordado primeiro num contexto onde explica-se a interpretação das ligaduras quaternárias, seguida por uma segunda abordagem onde é colocado que "O conductus, por outro lado, é uma polifonia vocal que se dá super unum metrum, a qual admite também consonâncias secundárias”. Tal ponto do tratado é colocado por Sanders como um dos mais importantes nesta discussão em vista da ambiguidade em torno do termo metrum. Sanders, a partir dos significados do termo “metrum” no Novum glossarium mediae latinitatis, a saber “métrica poética; verso, poesia; trecho de verso, poema; [...]. A principal definição 45 Payne, Thomas. Latin Song II: The Music and Texts of the Conductus. In: Mark, E. Kelly, T. F. The Cambridge History of Medieval Music.. Cambridge: Cambridge University Press. pp. 1062, 2018. 56 sendo ‘mensura poética de modo global’”46, estabelece uma relação deste com o termo mensura, o qual a tradução nos é colocada como “medida, grandeza ou quantidade finita suscetível de avaliação…"47, e conclui que, na descrição do conductus, o trecho “super unum metrum” deve ser interpretado como “...sinônimo de ‘super unam mensuram’, i.e., ‘usando uma única unidade de medição poética [e musical]’, o qual [...] deve ser portanto, isócrono”48. Sem dúvida a leitura feita por Sanders é viável, mas, em vista do tortuoso caminho traçado pelo autor para interpretar o trecho e por suas escolhas quanto às definições apresentadas, uma outra possibilidade de leitura não só é pertinente como abre margem para a aplicabilidade dos modos. Segundo o Dictionary of Medieval Latin from British Sources, além do sentido apresentado na conclusão de Sanders, o termo metrum pode ser interpretado como “medida poética, pé poético; verso métrico; verso rítmico silábico.”49, possibilidades de definições também presentes no Novum glossarium... apresentada pelo autor. Como vê-se, os possíveis significados do termo “metrum” também abre margem para interpretar a frase “super unum metrum” como “sobre um pé métrico”, além de interpretações como a das traduções realizadas por Davide Daolmi, “seguendo il ritmo del verso”50, ou por Janet Knapp, “on a single poetic text”. Algo bem distinto do apresentado por Sanders e que abre margem, também nos conducti, para o emprego dos modos rítmicos, como sugerido na teoria de Friedrich Ludwig. Outros autores que também tratam sobre o conductus mas de forma superficial são o Anônimo 4 e Johannes de Garlandia. Em seu tratado, de cerca de 1275, Anônimo 4 relata em algumas passagens sobre as contribuições de Perotinus ao repertório de conducti e acerca da notação dos conducti, ao contrário dos cantochão, ser praticado sob pentagramas entre outros detalhes. Já Garlandia cita o gênero em duas ocasiões onde são tratadas questões acerca de especificidades sobre a notação51. Nada que diga respeito à interpretação rítmica do conductus assim como nos tratados de Lambertus (ca. 1278), Franco de Colônia (ca. 1280) e 51 ANTLEY, B. R. The Rhythm of Medieval Music: A Study in the Relationship of Stress and Quantity and a Theory of Reconstruction with a Translation of John Garland’s De Mensurabili Musica. 1 vol. Florida State University, Florida,p. 139, 1977. 50 Discantus Positio Vulgaris: Semplice Espiegazione del Discantus. Examenapium, examenapium.it/meri/discantus.html. Acessado em 10 de Julho 2021. 49 ASHDOWNE, R. K. HOWLETT, D. R. LATHAM R. E. Metrum. Dictionary of Medieval Latin from British Sources. British Academy: Oxford, 2018. 48 Ibidem. 47 Ibidem. 46 SANDER, E. H. Conductus and Modal Rythm. pp. 444. Tradução nossa. 57 Oddington (ca. 1300). É no tratado de Jean de Grouchy, “Ars musicae” de aproximadamente 1300, que encontra-se uma referência ao aspecto rítmico do conductus, no trecho “E este é composto inteiramente por longas e perfeitas”52, sendo este um dos poucos trechos que, de forma direta, caracteriza-se o aspecto rítmico do conductus. Apesar do que é colocado por Grocheio e dada a inacurácia na notação dos conducti, é comum encontrar interpretações musicais53, transcrições e textos que adotam uma chave de leitura onde os modos rítmicos são empregados embora as figuras usadas para indicar o parâmetro das alturas não apresentam nenhum valor absoluto. O autor que inaugura esta abordagem é Friedrich Ludwig, musicólogo alemão nascido em 1872, em Repertorium Organorum Recentioris Vetustissimi entre outros escritos54. O elemento que fundamenta esta abordagem de Ludwig onde todo o repertório da escola de Notre Dame, mesmo aquele o qual a notação não deixa tal fato explícito seja passível de ser interpretada sob o viés dos modos rítmicos, é a métrica poética. Vejamos como o aspecto métrico da poesia é generalizadamente suscetível ao estabelecimento de relações com os modos rítmicos. 4.2.1 Modos Rítmicos e Pés Métricos Recorrentemente vê-se uma abordagem aos modos rítmicos onde, devido aos nomes atribuídos a estes pela literatura sobretudo moderna, a saber Troqueu, Iambo, etc, é estabelecida uma relação entre os modos e os pés métricos da poesia greco-latina. Mas, como vimos até aqui, de modo geral, nenhuma relação entre estes é estabelecida na literatura do século XIII exceto por uma passagem onde Walter Odington, segundo Monterosso55, estabelece uma relação apenas de forma análoga entre estes. Além da ausência de elementos que estabeleçam, nos tratados medievais, uma relação direta entre o desenvolvimento dos modos rítmicos a partir dos pés métricos, o que por si só já coloca em dúvida que a origem de tais modos seja esta, sabe-se também que em tal período da Idade Média o sistema de 55 MONTEROSSO. Ars antiqua, Deumm, vol. 16. Torino: Utet, 1983-1999, Lessico, I , pp. 181-190, 1983. 54 SANDER, E. H. Conductus and Modal Rhythm. Journal of the American Musicological Society. Vol. 38, No. 3, Autumn, 1985, p. 441. Tradução nossa. 53 Diabolus in Musica. Deus misertus. France: Alpha Productions. 2006. Disponível em: 52 “And it is made entirely from longs and perfects”. Ars Musicae. Mews, C. J.; Crossley, J. N; Jeffreys; McKinnon and Williams, C. J. Ars Musicae. 2011. https://www.youtube.com/watch?v=QkXiPUJkQIQ 58 organização métrica da poesia medieval deixa de ter como referência a duração silábica como ocorria na Antiguidade e passa a organizar-se de forma semelhante a métrica poética moderna, baseada nas sílabas tônicas de cada palavra56. São diversos os fatores que nos permitem investigar sobre qual modo um conductus tenha supostamente sido composto ou simplesmente qual modo melhor se adequa a prosódia, mantendo um controle mínimo sobre as dissonâncias apesar da ausência de elementos que indiquem de forma objetiva as durações que devem ser aplicadas às alturas. Observar a complexidade rítmica resultante em algumas vozes é um dos princípios básicos que podem vir a guiar este processo pois, em concordância com o que encontra-se em todo o repertório, é algo que deve-se evitar. Mas, além deste, há alguns outros meios que nos permitem supor um modo rítmico. Vejamos a seguir alguns caminhos que podem nos levar a uma conclusão perante a esta questão: - Análise de trechos melismáticos em conducti cum cauda. Apesar de classificado como um gênero cum litera, é perfeitamente comum que se encontre no repertório uma extensa gama de conducti ornamentados, ou seja, que apresentem pequenos melismas ou mesmo seções melismáticas. Tais seções melismáticas mais extensas são também nomeadas por cauda. Na figura 21 temos um excerto da música “Rose Nodum Reserat”, um conductus a duas vozes, onde podemos identificar um longo melisma caracterizando-o assim como um conductus cum cauda. Figura 21 - Cauda do conductus Rose nodum reserat. fonte: Biblioteca Medicea Laurenziana, I-Fl MS Pluteus 29.1 (314—314v). 56 PAWLOWSKY, A. EDER, M. Quantity or Stress: Sequential Analysis of Latin Prosody. Journal of Quantitative Linguistics, [s.l], Vol. 8, nº 1, 2001. p. 82. 59 Ao analisarmos o excerto apresentado na figura 21 vemos que, no segundo ordo do sistema em destaque, em ambas as vozes, inicia-se um longo melisma sob a sílaba (ma)RI(e) em que as ligaduras que integram o melisma são organizadas de acordo com um dos padrões modais descritos por Garlandia, uma ligadura ternária seguida de ligaduras binárias (havendo locais onde ligaduras maiores podem ocorrer configurando alguns extensio modi). Tal indício nos leva a interpretar não apenas o trecho melismático no modo I, mas todo o conductus a fim de garantir alguma coerência rítmica durante toda a música. - Análise do poema Um mecanismo que pode nos auxiliar na busca de um modo rítmico que melhor se adeque a um conductus é a análise prosódica (escansão e a análise de acentos tônicos) do poema em questão. Considerando que a poesia medieval pode ter sua métrica definida a partir da medida das durações das sílabas ou de suas sílabas tônicas, é importante frisar que para tal fim a análise se dá no aspecto das sílabas tônicas57. É este processo que nos permite chegar a possíveis modos a partir da analogia entre pés poéticos e ritmo característicos de cada um dos modos rítmicos. Em sua origem, tal processo é postulado por Ludwig de modo que sua indicação se dá apenas nos primeiros registros da música trovadoresca francesa do século XIII, porém vê-se sua aplicação em prática nos escritos de outros autores que sofreram influência direta ou indireta de Ludwig. O estabelecimento desta relação se dá averiguando a recorrência de sílabas tônicas em cada verso, o que pode ser feito a partir da escansão do texto seguida por uma aplicação das regras básicas de acentuação segundo a prosódia latina ou a partir de análises disponíveis em sítios especializados em conducti. Tal processo nos permite atribuir um modo rítmico que, a despeito de acabar valorizando ritmicamente sílabas as quais, segundo a prosódia latina, são átonas, vincule as longas de um determinado modo às sílabas tônicas dos versos. A seguir temos a escansão de um trecho do poema e da transcrição do conductus Ave gloriosa. 57 ibidem. 60 Figura 22 - Escansão do conductus “Ave Gloriosa” fonte: Elaborado pelo autor.. A partir da escansão exposta na figura 22 e com a aplicação das regras de acentuação do latim58, pode-se verificar que todos os versos do poema são compostos por 6 sílabas onde há a recorrência do uso de palavras paroxítonas. A extração de um modo rítmico a partir desta análise se dá através do processo empírico de averiguar quais modos melhor se adequam à prosódia do texto. No poema em questão, levando em conta que todos os versos apresentam a classificação “6p” (6 sílabas onde as palavras são paroxítonas), no primeiro verso são as sílabas “A[ve]” e “...o[sa]” as quais devem ser tonicizadas e consequentemente apresentarem durações condizentes com seu papel na linguagem verbal. Embora com algumas irregularidades geradas pela valorização de sílabas átonas, a aplicação de um padrão rítmico formado por valores de longa e breve garante um alinhamento entre sílabas tônicas e os valores de longa, confirmando assim a possibilidade de uso do modo I. A seguir, na figura 23, temos a transcrição em notação moderna proposta por Hans Tischler onde é aplicado o modo averiguado na escansão: 58 ALLEN, W. S. Vox Latina: A Guide to the Pronunciation of Classical Latin. 2nd edition. New York: Cambridge University Press. 1978. pp. 83. 61 Figura 23 - Transcrição do conductus “Ave gloriosa” fonte: TISCHLER. 2007. Este método foi recorrentemente colocado em prática pelo Grupo de Pesquisa e Performance em Música Medieval, sob orientação do musicólogo Pedro Augusto Diniz, e, na ausência de conhecimentos sobre a prosódia da língua latina, foi possível recorrer à análises do poema sobre o qual se baseia um conductus disponíveis em sítios da web59. Estas apresentam ao lado de cada verso do poema a descrição do número de sílabas junto a letra “p” ou “pp”, onde a primeira representa o termo paroxítona e as últimas, proparoxítona. 59 CPI conductus: Thirteenth-Century Music and Poetry 62 Tabela 2 - análise prosódica do poema Ave gloriosa fonte: CPI Conductus. Disponível em: . Acessado em: 08 nov. de 2021. http://catalogue.conductus.ac.uk 63 5. TRASCRI(A)ÇÃO O neologismo “transcriação” proposto por Haroldo de Campos em seu ensaio “Da tradução como criação e como crítica”, de 1962, além de perfeitamente aplicável à poesia e à música, é o que melhor descreve o processo de trazer a música notada em sistemas medievais para a notação musical moderna. O ato de criação se mistura ao processo de transcrição não só pelo fato da própria notação ser ambígua e, dentro de certos limites, abrir margem para uma diversa gama de interpretações mas também por conta deste repertório em si ser um elemento vivo e em constante mudança em seu tempo como nos revelam as diversas fontes de uma mesma obra. Busse Berger, em seu The Art Of Memory, descreve como, ao contrário do que nos leva a crer o senso comum, este repertório baseia-se acima de tudo na improvisação. A partir de uma série de ferramentas mnemônicas empregadas no aprendizado do canto gregoriano e apresentadas em tratados que dêem apontamentos sobre discante, somado a diversos outros elementos, pode-se concluir que tais registros dizem respeito a uma prática que estava em voga há anos e que prescindia da notação para sua realização já que cabia aos monges, através de uma formação intensa e rigorosa a qual podia durar anos, desenvolver um pleno conhecimento acerca dos padrões melódicos e modelos a serem seguidos na execução do repertório polifônico. No próprio Discantus Positio Vulgaris, trechos como: “Novamente, se o cantus firmus ascende em meio tom, digamos do Mi grave para o Fá grave, e o discante forma uma oitava com esta primeira nota, um Mi agudo, o discante deve descender uma terça, através de segundas e, e então chegar à quinta. Por outro lado, se o cantus descende em meio tom e o discante começa na quinta, este deverá ascender uma terça a fim de formar uma oitava.”60 60 “Again, if the cantus ascends a whole step, say from E to F, and the discant is at the octave, on c acute, the discant should descend a third, through the second from the octave, and so arrive at a fifth. Conversely, if the cantus descends a half step and the discant starts at the fifth, it will have to ascend a third in order to produce a octave”. KNAPP, J. Two XIII Centrury Treatises on Modal Rhythm and the Discant: Discantus positio vulgaris De musica libellus (Anonyous VII). Journal of Music Theory. [Yale], Vol.6, Nº2, p. 204. 1962. Tradução nossa. 64 Nos revelam como, muito mais do que uma obra musical fechada e exaustivamente lida, relida e ensaiada até chegar-se a uma performance satisfatória, haviam na verdade uma série de princípios de condução da linha melódica (ou linhas melódicas) que se sobrepõe a um cantus firmus. Princípios estes regidos de acordo com a movimentação do cantus assim como por parâmetros harmônicos. Desta forma, toda e qualquer tentativa de reprodução deste repertório nos dias de hoje, não só devido a uma e outra arbitrariedade imposta pelo processo de interpretação mas igualmente por conta da própria natureza deste repertório, assume também um lado criativo do ou da intérprete/transcritor(a). Assim, é importante lembrarmo-nos que, por mais que siga-se à risca os apontamentos dados por algum tratadista do século XIV, o próprio documento sobre o qual baseamos uma transcrição pode se tratar de uma fotografia de uma determinada obra no tempo pois, sendo esta própria