UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JULIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS ANDRÉ CÉSPEDES PIMENTA A LOVE SUPREME: JAZZ E CONTRACULTURA EM JOHN COLTRANE FRANCA 2023 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JULIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS ANDRÉ CÉSPEDES PIMENTA A LOVE SUPREME: JAZZ E CONTRACULTURA EM JOHN COLTRANE Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (FCHS) da UNESP, como pré- requisito para a obtenção do título de Mestre em História Linhas de Pesquisa: História e Cultura Social. Orientador: Prof. Dr. José Adriano Fenerick FRANCA 2023 ANDRÉ CÉSPEDES PIMENTA A LOVE SUPREME: JAZZ E CONTRACULTURA EM JOHN COLTRANE Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (FCHS) da UNESP, como pré-requisito para a obtenção do título de Mestre em História BANCA EXAMINADORA Orientador: _______________________________________________ Prof. Dr. José Adriano Fenerick Membro titular: ____________________________________________ Prof. Dr. Gustavo José de Toledo Pedroso (UNESP/Franca) Membro titular: ____________________________________________ Prof. Dra. Rosa Aparecida do Couto Silva (Museu Afro Brasil – São Paulo) Franca, 24 de outubro de 2023. AGRADECIMENTOS À CAPES, que financiou parte desta pesquisa em anos de tantas adversidades para a produção intelectual. Aos amigos de longa data: Arthur, Bernardo, Diego, Ivan, João, João Lucas e Rodolfo, que, por meio da experimentação das mais distintas sonoridades, parecem ter criado comigo um vínculo fraternal; além de abrirem cotidianamente as portas da minha sensibilidade para o mundo. Às amigas e amigos que a vida adulta me trouxe e mostrou como é bom tê-los por perto: Giovana, Isadora, Manuela, Nanda, Renzo, Tarley, Yohana, entre tantos outros que fariam desta lista um livro à parte. Aos amigos que fiz durante a Pós-Graduação, especialmente Renan e Vinícius, que me mostraram como a pesquisa pode nos ofertar também locais de acolhimento afetivo e trocas sinceras. À Maísa, amiga que, desde os primeiros dias no curso de História, tem me dado suporte em momentos de turbulência e me inspirado existencialmente. À Rosa e Gustavo, por terem aberto caminhos para que minha pesquisa pudesse ocorrer, contribuindo nas minhas bancas de qualificação e defesa. Aos amigos e membros do Grupo de Estudos Culturais de Franca, suporte diário para as mais vastas reflexões. Ao meu querido orientador, José Adriano Fenerick, que, com simplicidade e sabedoria, tem me mostrado as diferentes formas que tantos artistas forjam a realidade ao nosso redor. Àqueles e aquelas que se dispõem a fazer de meu estudo objeto de suas leituras e reflexões também. O conhecimento em movimento ganha vida, se oxigena, transformando as pessoas e, consequentemente, o mundo. E, especialmente, à minha família – meus pais, irmão e avó – da qual sou eternamente grato por serem como são. Não fossem eles, eu nada seria. Por fim, aos sons, motivos principais de minha escrita e contínua curiosidade. Sou extremamente grato a todas e todos. RESUMO O álbum A Love Supreme, de 1965, do saxofonista John Coltrane, figura como uma das principais obras musicais modernas, podendo ser compreendida a partir de uma série de referenciais teóricos musicais e historiográficos. Seu disco conjuga um vasto leque de elementos que dão luz a uma série de outros fatores que ocorreram nos Estados Unidos e no mundo desde o começo do século. Esta dissertação buscou situá-lo em meio à contracultura dos anos 1960, com enfoque para os elementos de sua obra que tiveram contribuição e contribuíram para o estabelecimento de um momento de singular efusão social e cultural do Ocidente. A obra marca a passagem da primeira para a segunda metade da década, momento em que o jazz passa por uma série de experimentalismos, ao passo que vê também o nascimento do rock. Neste cenário, Coltrane é uma personagem incontornável. Sua relação com as mais diferentes formas de religiosidade, seu contínuo interesse por sonoridades distintas, seu imperativo de auto renovação e, sobretudo, sua afinidade pelo improviso, o tornaram uma referência imprescindível para as possibilidades que se abriram durante a contracultura. Na pesquisa adiante, buscamos examinar o disco, o campo de forças em que ele estava inserido e quais as possibilidades históricas e materiais para que ele pudesse ser elaborado. Palavras-chave: John Coltrane; A Love Supreme; jazz; contracultura. ABSTRACT The album “A Love Supreme”, released in 1965 by saxophonist John Coltrane, stands as one of the key modern musical works, and it can be understood within a framework of musical and historiographical references. The album incorporates a wide range of elements that shed light on a series of other factors that occurred in the United States and the world since the beginning of the century. This dissertation aimed to place it within the context of the counterculture of the 1960s, with a focus on the elements of his work that both contributed to and were influenced by the establishment of a unique moment of social and cultural effusion in the Western world. The work marks the transition from the first to the second half of the decade, a period when jazz underwent various experiments while also witnessing the birth of rock. In this setting, Coltrane is an indispensable figure. His relationship with various forms of spirituality, his continuous interest in distinct sounds, his imperative for self-renewal, and, above all, his affinity for improvisation made him an essential reference for the possibilities that emerged during the counterculture. In the following research, we aim to examine the album, the field of forces in which it was situated, and the historical and material possibilities that allowed it to be created. Keywords: John Coltrane, A Love Supreme; jazz; counterculture SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 10 CAPÍTULO 1 – O CENÁRIO PARA IRRUPÇÃO DO DISCO ............................................ 22 1.1 – O JAZZ E A CRISE DE 1929 ...................................................................................... 22 1.2 – UM NOVO TIPO DE SUBJETIVIDADE EMERGIA? ............................................. 24 1.3 – UM CENÁRIO ENCURRALADO ............................................................................. 28 1.4 – A CONTRACULTURA COMO ESTRUTURA DE SENTIMENTO ....................... 29 1.5 – DO BEBOP AO COOLJAZZ ....................................................................................... 35 1.6 – A CENTRALIDADE DO IMPROVISO ..................................................................... 46 1.7 – A SUBJETIVIDADE: COLTRANE EM CONTÍNUA RENOVAÇÃO .................... 52 1.8 – O PRÉ-MODERNO E A AUTONOMIA ................................................................... 55 1.9 – A INDÚSTRIA CULTURAL E A TÉCNICA ............................................................ 59 1.10 – AS RELIGIÕES E O JAZZ ESPIRITUAL ............................................................... 65 CAPÍTULO 2 – AS LIMITAÇÕES HISTÓRICAS E MATERIAIS DO DISCO ................. 69 2.1 – O TÍTULO ................................................................................................................... 69 2.2 – A CAPA ....................................................................................................................... 72 2.3 – O ELEPÊ ..................................................................................................................... 76 2.4 – O AGRADECIMENTO .............................................................................................. 79 2.5 – A PINTURA ................................................................................................................ 82 2.6 – A ORAÇÃO INTERNA .............................................................................................. 83 2.7 – A GRAVADORA E SELO IMPULSE! RECORDS.................................................... 85 2.8 – AS DISPUTAS SOBRE O JAZZ ................................................................................ 86 2.9 – ANTIJAZZ, NEW THING, AVANT-GARDE JAZZ... OU FREEJAZZ? ....................... 89 CAPÍTULO 3 – O DISCO .................................................................................................... 100 3.1 – A ESTRUTURA DO ÁLBUM.................................................................................. 100 3.2 PT.1 – ACKNOWLEDGEMENT .................................................................................. 103 3.2.1 – Reconhecimento ................................................................................................. 103 3.2.2 – A temporalidade ancestral .................................................................................. 105 3.2.3 – O gongo .............................................................................................................. 107 3.2.4 – A voz de Trane ................................................................................................... 110 3.3 PT.2 – RESOLUTION .................................................................................................. 113 3.3.1 – A transição .......................................................................................................... 113 3.3.2 – Resolução ........................................................................................................... 115 3.3.3 – A presença de Jiddu Krishnamurti...................................................................... 117 3.4 – OS LADOS “A” E “B” .............................................................................................. 122 3.5 PT. 3 – PURSUANCE ................................................................................................... 123 3.5.1 – Continuidades e rupturas .................................................................................... 123 3.5.2 – O improviso inicial ............................................................................................. 124 3.5.3 – A aceleração dos andamentos ............................................................................. 128 3.5.4 – Perseguição ......................................................................................................... 130 3.6 PT. 4 – PSALM ............................................................................................................. 133 3.6.1 – A oração A Love Supreme .................................................................................. 133 3.6.2 – O poema .............................................................................................................. 136 3.6.3 – O salmo ............................................................................................................... 138 3.6.4 – O fim como começo ........................................................................................... 140 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 143 REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 147 APÊNDICES ......................................................................................................................... 151 LISTA DE FIGURAS Figura 1 – A capa do disco ....................................................................................................... 72 Figura 2 – John Coltrane: Appeared in A Love Supreme ......................................................... 82 Figura 3 – Poema A Love Supreme de John Coltrane.............................................................. 84 Figura 4 – Escala básica de A Love Supreme ......................................................................... 101 Figura 5 – Linha melódica de Acknowledgement ................................................................... 110 Figura 6 e Figura 7 – Linha melódica de Resolution .............................................................. 114 Figura 8 e Figura 9 – Linhas melódica de Pursuance ........................................................... 129 Figura 10 – Mandala com ciclo de quintas e quartas desenhada por Coltrane ...................... 131 Figura 11 – Rascunho inicial da obra. .................................................................................... 151 Figura 12 – Segundo rascunho (Já com indicação da música Resolution). ............................ 151 Figura 13 – Rascunho de Trane com indicações da oração. ................................................... 152 Figura 14 – Mais um rascunho com desenhos e indicações da oração................................... 153 Figura 15 – Rascunho com música que não consta no álbum. ............................................... 153 Figura 16 – Rascunho da oração A Love Supreme ................................................................. 154 Figura 17 – Transcrição parcial de Psalm .............................................................................. 155 10 INTRODUÇÃO Nascido na cidade de Hamlet, em 1926, na Carolina do Norte, John William Coltrane viveu sua primeira infância em um dos estados mais marcados pela forte segregação racial dos Estados Unidos da América. Seu nascimento se deu no equinócio de setembro, precisamente no dia 23, data que marca a equivalente distribuição de luz solar nos hemisférios Norte e Sul. Ainda que esse fenômeno não implique necessariamente algo em sua vida, há um certo simbolismo sobre o que viria a se tornar sua obra: a busca por igualdade; pela equidade de diferentes povos; a completude entre luz e escuridão; o senso de unidade entre diversas partes do mundo; a inexorável relação humana com o cosmos. Coltrane foi e continua sendo um dos mais importantes protagonistas para o surgimento de uma música que se quis espiritualizada em meio a um cenário de expansão comercial dos bens culturais que eram produzidos e circulados. Criado em uma família de classe média em High Point, cidade vizinha àquela em que nasceu, perdeu seus avós, seu pai e um tio em um período de seis meses, quando tinha apenas 12 anos. Esta situação reformulou sua dinâmica familiar e consequentemente sua condição financeira, marcando sua infância e adolescência com um trauma que certamente teria ressonância futura em sua vida adulta. Cinco anos após o acontecimento, criado apenas por sua mãe, sua família se mudou para a Filadélfia, onde Trane passou a aprofundar sua relação com instrumentos de sopro, iniciada anteriormente nos cultos da Igreja Metodista em que seu avô era reverendo. O primeiro contato com o saxofone alto foi já morando na Filadelfia (Porter, 1999, p. 28), após o as sucessivas perdas que o abalaram anteriormente, especialmente a morte de seu pai. Em sua biografia de maior densidade, John Coltrane: His Life and Music, o autor Lewis Porter afirma que “talvez, em algum sentido, a música tenha sido um pai substituto” (Porter, 1999, p.17) na vida de Trane, se tornando o fio condutor de seus interesses e de suas experiências, assim como de sua construção estética e espiritual – responsável tanto por suas limitações, quanto por suas superações. Em outras palavras, a música o criou, para que assim, em sua maturidade, ele pudesse criá-la também. Após a perda de seus familiares, a personalidade de Trane se alterou, tornando-se um rapaz de poucas palavras e de presença discreta. Ainda que tenha se tornado mártir de uma geração política e espiritualmente engajada, poucas são suas entrevistas documentadas, ou 11 discursos com objetiva demarcação de suas crenças. A potente força de seus sopros, tão características dos momentos amadurecidos de sua vida, talvez carreguem consigo o indício da liberação de antigas angústias recalcadas e reprimidas de sua infância. Seu encontro com Miles Davis, quando adulto, é reconhecido por uma certa contradição irônica e complementar entre as personalidades e maneiras de tocar de cada um. Miles, explosivo em sua forma de lidar com o público, jornalistas e artistas, tocava na maioria das vezes de forma lenta, baixa e intimista; Coltrane, afeito ao silêncio no convívio diário, com certa timidez e simpatia, ficou conhecido por tocar de forma estridente, frases rápidas, solos de timbres encorpados, muito altos e fortes. De origem protestante, John não se restringiu aos interesses metodistas de sua família, embora não os tenha abandonado. Sua jornada existencial não cessou em desbravar expressões espirituais das mais diversas localidades do mundo. Como dito anteriormente, a música parece ter sido um caminho pelo qual Coltrane pôde enveredar-se pelas mais distintas formas do ser humano de expressar os questionamentos de sua condição perante à existência. Isso o levou a caminhos que têm, sobretudo para o historiador da arte, importância ímpar, uma vez que se entrelaçam em sua obra o mundo pré-moderno, o mundo moderno e alguns elementos que se relacionam com a arte de vanguarda1. Assim, a proposta de análise que aqui se coloca é sobretudo compreender quais são esses elementos, se eles estavam realmente presentes, e se de fato a condição de entrelaçamento entre eles guarda alguma relação com o surgimento da contracultura. Mais do que uma análise restrita sobre a produção de Trane, o trabalho intenta se aprofundar sobre a noção de contracultura para compreender se ela própria não pode ser tensionada de forma a abarcar uma gama mais vasta de expressões musicais do que as que recorrentemente é associada. Não no sentido de torná-la a-histórica, como um fenômeno capaz de ser transplantado e observado em diferentes momentos e localidade; mas na tentativa de ampliá-lo em suas nuances, origens e desdobramentos. O disco A Love Supreme – gravado em apenas uma sessão, num fim de tarde do dia 9 de dezembro de 1964 (Kahn, 2002, p. 83)2, e lançado já em janeiro de 1965 – é fruto do amadurecimento de John como artista e talvez seja o ponto máximo de sua carreira, se levado em consideração o aspecto comercial, ou quaisquer outros que estejam associados à sua popularidade como músico. A gravação e o lançamento do álbum marcam também a passagem da primeira para a segunda metade da década de 1960, o que guarda mais uma vez certo 1 Nos capítulos seguintes, tentaremos esclarecer as diferenças entre tais noções. 2 Houve também uma gravação no dia seguinte, com a participação dos convidados Art Davis (baixista) e Archie Shepp (saxofonista), mas não foram para a versão final do disco (Kahn, 2002, p. 129). 12 simbolismo, já que os anos mais característicos da contracultura estão comumente localizados na segunda metade dos anos 1960. Mas, além de marcar a divisão da década, o disco também pode ser encarado como um divisor de águas na produção do próprio Coltrane. Veremos adiante também alguns outros pontos de inflexão em sua vida artística, como ter tocado com músicos de estatura dentro do jazz, entre eles: Dizzy Gillespie, Miles Davis e Thelonious Monk. Mas, em se tratando de sua carreira como líder de banda, o disco foi responsável por criar um cenário possível para posteriores experimentações que seriam inimagináveis caso John não tivesse alçado um patamar tão proeminente no cenário jazzístico estadunidense. A divisão entre os primeiros e últimos anos da década tem ainda mais valor simbólico, pois, a partir de 1966, os Estados Unidos e a Inglaterra (juntamente com outras localidades do mundo) viram a ascensão de um novo tipo de música, mais vinculada à psicodelia e sobretudo à juventude branca: o rock. Por mais que a contracultura esteja associada a esses elementos, veremos alguns antecedentes que pavimentaram caminhos pelos quais diferentes artistas percorreram para que o rock pudesse emergir nesse cenário e alçar um voo tão alto como ocorreu na segunda metade da década de 1960. Não são poucos os músicos de rock que atribuem a Trane importância incontestável em seus trabalhos, seja como inspiração meramente musical, ou por todo o complexo de referências que seu personagem mobiliza3. O caminho trilhado por Coltrane em sua carreira ocorreu em paralelo com uma série de eventos relevantes em seu país. O século XX foi palco da ascensão dos Estados Unidos da América ao topo da economia mundial e depois da figura central do ocidente na disputa pela hegemonia em um mundo bipolarizado pela Guerra Fria. Nesse contexto, o jazz pode ser considerado sua trilha sonora, até ser desbancado pelo rock como principal produto da indústria fonográfica. Portanto, é importante uma recapitulação que remonte alguns períodos incontornáveis para que o disco A Love Supreme possa ser mais bem alocado em termos históricos. Nos conturbados anos de 1950 e 1960, época de efusão cultural, crise política, ameaça nuclear, segregação racial, massificação dos meios de comunicação e tantas outras características peculiares, Coltrane reuniu em sua vasta obra uma série de elementos que confluíram no sentido de criar, juntamente com outros músicos de jazz, um campo de experimentações que viria a tomar dimensões inimagináveis anos após seu falecimento. O álbum A Love Supreme, objeto de análise desta dissertação, é um importante recorte capaz de ofertar uma gama de elementos para a compreensão, ainda que parcial, da importante 3 Guitarristas como John McLaughlin e Carlos Santana chegaram a gravar um álbum juntos, em 1972, denominado “Love Devotion Surrender”, em homenagem ao saxofonista. 13 contribuição de Coltrane para o cenário da contracultura sessentista – momento histórico tão caro aos que buscam refletir sobre novas formas de sociabilidade e de superar os impasses de nossa organização social e cultural. O vasto interesse do músico, por ultrapassar substancialmente os limites impostos pela música comercial de seu tempo, contribuiu para expandir o campo de sensibilidades de seus ouvintes, gerando com isso desencadeamentos que alteraram radicalmente a estruturação política, social e cultural de sua época. Muito distante de ter sido o único responsável por colocar em xeque as condições de reprodução social da desigualdade naquela época, o disco compõe uma constelação de outras produções artísticas que criaram um amálgama capaz de confrontar um complexo sistema de negociações culturais que confluíam em prol da manutenção do status quo. A relação do álbum com esse amálgama é, mais precisamente, o objeto de análise que aqui se apresenta. Portanto, a análise do álbum em questão trata não somente de elementos que foram importantes para a vida de Trane e que se expressam no disco, como também a relação do músico com a sociedade, para que melhor se compreenda a ascensão de uma nova sociabilidade subversiva aos ditames de seu tempo. Ainda que pareça haver um substancial hiato entre jazz e contracultura – uma vez que a história do jazz abrange quase todo o século XX – possíveis pontos de convergência podem ser traçados nos arredores da década de 1960 para que eventuais relações entre uma coisa e outra possam ser verificadas. O desenvolvimento do jazz no século XX e o nascimento da contracultura, no fim dos anos de 1950 e começo da década de 1960 são essenciais para compreensão da problemática dessa discussão, assim como a própria história pessoal do músico. A interpolação dessas narrativas é o caminho pelo qual se é possível aferir as mediações ocorridas entre a vida do artista e as condições sociais para que sua obra erigisse em um cenário até pouco tempo tão improvável. Desta interpolação, temas como o racismo, o orientalismo, as espiritualidades e religiões, a Indústria Cultural e tantos outros serão fios condutores para que a análise musical não se desprenda do conteúdo social que está inserida e lhe dá forma. Primeiramente, é conveniente compreender como o jazz se configurou, entre outras coisas, como mercadoria a partir da década de 19205. Pois seu desenvolvimento, ao longo do século XX, guarda consigo indícios capazes de esclarecerem uma série de outros acontecimentos de notória relevância para o estabelecimento da cultura da época até a atual. 5 Vale ressaltar que ele não se expressa única e exclusivamente como mercadoria, mas passa gradativamente a se relacionar com o expansivo mercado capitalista do período entreguerras e, portanto, sofre pressão para que expresse também valor de troca. 14 Ainda que atualmente o jazz ocupe uma posição marginal no cenário comercial da música é necessário que se compreenda sua incontornável importância para o estabelecimento do massivo consumo da produção fonográfica de alto alcance. O papel da música na sociedade moderna, embora tenha mudado substancialmente no decorrer das últimas décadas, guarda ainda algumas características quase essenciais advindas do nascimento e da assimilação do jazz pela indústria fonográfica estadunidense na primeira metade do século passado. A saber, principalmente: o consumo massificado. O emergente estilo musical afro-referenciado nascido em Nova Orleans – que se espraiou por Chicago, Nova Iorque e não tardou chegar na Europa – teve relação direta com as demandas impostas pela efervescente economia estadunidense na década 1920, e, sobretudo, pela reconstrução econômica do país na década seguinte, necessária após a crise de 1929. O jazz passou a figurar como elemento central da vida cotidiana dos cidadãos estadunidenses, seja pelo consumo aliado ao nascente american way of life; com o aumento substancial na venda de rádios6, toca-discos, discos etc.; ou em shows de casas noturnas, onde a figura do jovem se tornava cada vez mais relevante como elemento capaz de impulsionar um novo filamento à atividade econômica, sobretudo como consumidor. As duas condições se complementam e se entrelaçam em um complexo cenário cultural, no qual a música e economia criam um vínculo tão estreito em que dificilmente é possível falar de uma coisa sem necessariamente remeter à outra. Não que o jazz possa ser resumido simplesmente como uma mercadoria que circulava entre a prateleiras dos mercados da época, ou a alguma commodity nacionalista estadunidense. Isso seria reduzi-lo em sua complexidade e profundidade. No entanto, não há como contornar o peso das forças que exerciam sobre essa música influência de moldá-la com o intento de atender suas finalidades. Se, no século anterior, sobretudo na Europa, muitos artistas não mediram esforços para se emanciparem das estruturas do Antigo Regime – que basicamente ditavam os limites das expressões artísticas, como a Igreja ou as academias reais; nesse momento, a arte é rearranjada conforme os sofisticados ditames de um mercado capitalista já amadurecido, capaz de assimilar expressões culturais folclóricas, como os precursores do jazz (dixieland, ragtime e afins), e lhes 6 Rodrigo Duarte (2010) nota que: “Somente a partir de meados da década de 1930, quando a produção em massa de receptores tornou-os mais acessíveis, o rádio começou a se constituir como um meio típico da cultura de massas, inclusive com uma drástica redução de elementos da “alta cultura” nos programas e um acréscimo de transmissão de música popular, principalmente na forma de discos produzidos pela recém-estabelecida indústria fonográfica.” (Duarte, 2010, p. 25) 15 conferir formas mercadológicas rentáveis e capazes de cruzarem o Atlântico, como rapidamente foi o caso do jazz. Esta forma talvez mais sutil de manipulação do material que era produzido artisticamente orienta a pesquisa ao campo de forças estabelecidas e atuantes nos anos de 1950 e seus arredores. Sendo ou não mais sutil, é possível se afirmar apenas que os mecanismos para se descortinar quais eram as reais finalidades da arte naquele contexto estavam se complexificando. Portanto, a imbricada relação entre indivíduos, sociedade e cultura, em seus enlaces, se mostra um campo de fértil análise para que as mediações ocorridas entre e dentro de cada uma dessas esferas explicite qual papel o jazz ocupava nesse cenário. A década de 1960 passou a ser o palco de um fenômeno peculiar não somente no cenário jazzístico, mas da cultura popular de forma mais abrangente: produções artísticas críticas às formas massificadas que eram difundidas naquele momento passaram a compor o próprio rol da cultura de largo alcance. Aflorou-se, portanto, uma contradição no seio da indústria musical, onde o aparato montado para difusão da música comercial espraiava para seus ouvintes a semente de uma forma de arte crítica a si mesma. As condições para o estabelecimento dessa contradição serão exploradas adiante, de forma a compreender a inserção do músico, com destaque para seu álbum de 1965, nesse cenário de “anomia” cultural. Sobretudo com vias de entender quais dialetos jazzísticos ele estava familiarizado e quais as práticas culturais externas às americanas Coltrane se sentiu impelido a buscar e reinterpretar à sua moda, para que assim pudessem circular entre os ouvintes. Posto isto, a relação entre o artista e as condições de sua produção artística também compõe o arcabouço deste trabalho, uma vez que esse hiato é composto pelo conteúdo social capaz de dar corpo ao que realmente se pretende esboçar com a pesquisa: a busca por índices de realidade capazes de darem contornos coerentes para o surgimento e expansão da peculiar contracultura sessentista, especialmente a estadunidense, mas que ressoa até hoje residualmente em diversos lugares do mundo. A partir desses contornos, é possível que se tensione também a noção de “contracultura”, podendo assim extrair dessa categoria maior riqueza analítica para compreender os fenômenos que ocorriam às margens da centralidade do mundo capitalista. A obra de Coltrane mobiliza questões como ancestralidade, espiritualidade, diáspora africana, islamismo etc. Todos esses temas são caros à ruptura representada pela contracultura, mas que algumas vezes são correlacionados com questões de outra ordem e secundarizados quando trabalhados em relação à própria cultura dos anos de 1960. 16 Em outras palavras, a contracultura só é minimamente apreensível historicamente a partir de uma recapitulação da condição para que seus elementos principais pudessem circular e tomar corpo na nova juventude que se afigurava. Isso só foi possível a partir da relação supracitada, entre o artista e seu público. Na maioria das vezes, o desenvolvimento das obras de um artista somente se dá se houver um certo grau de sintonia entre o que ele produz e o que o público está disposto a consumir. Para que as condições objetivas comerciais de experimentação de um artista se deem (como gravadoras, músicos, engenheiros de som e selos musicais aceitarem participar de um certo projeto proposto), é comum que se espere um retorno de alguma natureza do público. Por conseguinte, o olhar e escuta direcionados ao álbum buscam também seus arredores. Buscam expandir o mero aspecto sonoro (ainda que ele seja fundamental) para que se revelem condições objetivas e subjetivas da circulação cultural ocorrida na passagem da primeira para a segunda metade da década de 1960. Desse modo, pode-se apreender como determinadas atitudes e princípios que se delineavam no campo da literatura, das artes cênicas, ou até mesmo de aspectos comportamentais de uma forma geral, passaram a compor o campo da música. Essa passagem é marcada pela consolidação do deslocamento do jazz de uma posição central dentro da indústria fonográfica para sua periferia. O surgimento do rock, no meio da década, teve incontornável participação nesse processo (principalmente como beneficiário) que vinha ocorrendo desde anos anteriores, com o surgimento e difusão de novos gêneros derivados do blues, como o soul, o R&B ou o rock’n’roll dentro do espectro musical da época. Se as décadas anteriores tiveram grandes nomes como Louis Armstrong, Duke Ellington ou Benny Goodman figurando o estrelato máximo da música norte americana; a partir do surgimento do bebop, os principais nomes do jazz se tornaram figuras secundárias dentro do cenário musical, muitas vezes até agonizando de pobreza, miséria ou condições equivalentes. O historiador Ted Gioia (2011), ao analisar uma primeira aproximação do jazz com o modernismo, culminando no bebop, observa que esse movimento se dá de forma inesperada, não pela assimilação dos grandes nomes estabelecidos na era do swing, mas por músicos viajantes em ambientes de underground. Como podemos observar no excerto a seguir. A ironia é que o jazz moderno não nasceu de nenhuma dessas raízes. Ele não veio nem dos concertos do Carnegie Hall do Duke Ellington ou do Goodman, nem dos pianistas virtuosos do Harlem Stride, nem de sons experimentais das big bands da era do swing. É verdade que parte de suas inspirações estão nessas fontes, mas não soavam nada como elas. Ao contrário, os principais jazzistas modernos desenvolveram seu estilo único, impetuoso e sem remorso, em salas dos fundos e clubes da madrugada, em sessões de jam e com bandas 17 itinerantes. Essa música não era para consumo comercial, nem era para estar nesse estágio embrionário. Ela sobreviveu nos interstícios do mundo do jazz. Suas idas e vindas não eram anunciadas nos jornais de registro. Suas primeiras figuras eram, na melhor das hipóteses, figuras cultas por trás das cortinas, não estrelas da casa7 (Gioia, 2011, p. 186-187)8. No entanto, a condição secundária legada ao jazz pela indústria fonográfica expandiu de forma significante o campo das possibilidades de criação e de experimentações para seus artistas. As rígidas formas impostas pelo mercado musical, na busca de sucessos que emplacassem nas rádios, se afrouxavam, uma vez que já não recaía tanto mais sobre os ombros dos jazzistas a responsabilidade de produzir hits que movimentassem a vida noturna da economia do pós-guerra. Portanto, a relação do jazz com o modernismo lhe ofertou um grau de autonomia por afastá-lo do epicentro comercial da música (um efeito contrário ao modernismo europeu, que surgiu a partir de demandas efetivas por um mercado de arte). Não fosse, portanto, a relação estabelecida com um novo público que se afigurava, os jazzistas tinham todas as razões para caírem no ostracismo ou se adaptarem às novas demandas mercadológicas do mundo musical que emergiam. No entanto, o jazz se aproximou cada vez mais de um tipo de jovem muito específico: uma juventude intelectualizada, experimental, porém marginalizada e exaurida de grandes aspirações materiais, dado o desgaste advindo do contexto da sociedade de consumo e da iminente guerra nuclear que se prospectou no decorrer de toda a Guerra Fria. Norman Mailer, escritor e jornalista precursor do movimento denominado New Journalism os define assim, em seu seminal e polêmico ensaio de 1957, The White Negro: É nesse cenário desolador que um fenômeno apareceu: o existencialista americano – o hipster, o homem que sabe que se é nossa condição coletiva viver com a morte instantânea pela bomba atômica, relativamente rápida morte pelo Estado como em L’Univers concentrationnaire*, ou com uma morte lenta pelo conformismo, com cada instinto criativo e rebelde reprimido (em que os danos na mente, no coração, no fígado e nos nervos nenhuma fundação de pesquisa do câncer vai descobrir), se o destino do homem do século XX é viver com a morte na adolescência por uma demência prematura, porque a única resposta que a vida dá é a aceitação dos termos da morte, para viver com a morte como perigo imediato, para divorciar si mesmo da 7 The irony is that modern jazz sprang from none of these roots. It came neither from de Carnegie Hall concerts of Ellington and Goodman, nor from the virtuoso pianists of Harlem Stride, nor from the other experimental big band sound of the Swing Era. True, it Drew bits and pieces of inspiration from all these sources, but it sounded like none of them. Instead, the leading jazz modernists of the 1940s developed their own unique style, brash and unapologetic, in backrooms and after-hours clubs, at jam sessions and on the road with traveling bands. This music was not for comercial consumption, nor was it meant to be at this embryonic stage. It survived in the interstices of the jazz world. Its comings and goings were not announced in the newspaper of record. Its early stars were, at best, cult figures from beyond the fringe, not household names. (Tradução nossa) 8 GIOIA, Ted. The History of Jazz. Oxford University Press, 2011. 18 sociedade, para existir sem raízes, para se estabelecer nessa desconhecida jornada dentro de imperativas rebeliões de si mesmo9 (Mailer, 2007)10. Os assim chamados hipsters, os quais faremos menção mais aprofundada no primeiro capítulo, esmorecidos em face à dinâmica social do capitalismo tardio, tornaram-se elemento imprescindível para dar liga entre um grupo de músicos escanteados pela nova configuração da indústria fonográfica e um contingente inimaginável de jovens. Mais precisamente, os hipsters se tornaram o pontapé inicial de um processo de aglutinação social entre uma juventude à deriva e um grupo de músicos que habitavam as bordas do complexo da indústria fonográfica, pois foram aqueles que buscaram no jazzman – um genérico sujeito marginalizado que vivia à espreita da sociedade – grande parte de suas inspirações. Dificilmente, A Love Supreme teria obtido a circulação que obteve não fosse tal assimilação por esse grupo de jovens: um elemento mediador para a circulação de ideias subversivas, de hábitos não convencionais e de uma estética alternativa à padronização da época, ensejando com isso um cenário contracultural até então inimaginável. Assim sendo, a contracultura configura um dos momentos mais instigantes da história contemporânea por conjugar uma série de contradições. Ainda que a história seja repleta delas – para muitos, ela até é movimentada pelo combustível das contradições –, o que impressiona nos anos em que a contracultura já estava amadurecida era justamente como essas contradições se tornaram tão evidentes e próximas, ou mais precisamente como elas se conjugavam de forma destrutiva e criativa. Mais do que isso: de como a dinâmica dessas contradições quase deu lugar a um estágio de superação do capitalismo dentro de seu sistema nervoso central por meio de vias que a ortodoxia jamais poderia prever. Todo o complexo da indústria fonográfica e de rádio de largo alcance se tornar responsável pela difusão de um material artístico crítico a si mesmo, por exemplo, foi um fenômeno singular na história dos meios de comunicação em massa. Os jovens de classe média abastada tornarem-se quase espécies de eremitas que cortavam o país atrás de shows e 9 It is on this bleak scene that a phenomenon has appeared: the American existentialist — the hipster, the man who knows that if our collective condition is to live with instant death by atomic war, relatively quick death by the State as l’univers concentrationnaire, or with a slow death by conformity with every creative and rebellious instinct stifled (at what damage to the mind and the heart and the liver and the nerves no research foundation for cancer will discover in a hurry) , if the fate of twentieth century man is to live with death from adolescence to premature senescence, why then the only life-giving answer is to accept the terms of death, to live with death as immediate danger, to divorce oneself from society, to exist without roots, to set out on that uncharted journey into the rebellious imperatives of the self. (Tradução nossa) 10 MAILER, Norman – The White Negro: Superficial Reflections on the Hipster. Dissent Magazine, Julho, 2007. University of Pennsylvania Press. Disponível em: 19 experiências psicodélicas, abdicando da abundante variedade de mercadorias que a sociedade de consumo lhes imprimia por todos os lados, também. O folk, historicamente marcado pela música acústica e itinerante, aderiu a guitarra elétrica e as grandes gravadoras11. O jazz criar um forte vínculo com religiões orientais, sobretudo o Islamismo. A criação de um partido político composto por integrantes negros de orientação marxista e maoísta, como foram os Panteras Negras, com uma estética aliada a uma filosofia altamente sofisticada no epicentro da Indústria Cultural é outro exemplo. A aproximação de jovens brancos com a juventude negra, ainda que muitas vezes de forma atritada, em um país marcado por séculos de segregação racial, também não poderia ficar de fora da extensa lista possível de ser elencada aqui. A verdade é que, mais do que anos de contradições afloradas, a contracultura foi um momento em que essas contradições flertaram com possíveis resoluções, devido à proximidade que polos historicamente opostos passaram a ter. Também é verdade que possíveis novas contradições poderiam surgir desse processo histórico, assim como de fato vieram a ocorrer. No entanto, não por meio da superação e assimilação dos impasses colocados na década de 1960, mas sim pelo aprofundamento das diferenças que outrora estiveram tão próximas. A década que se sucedeu, de 1970, foi exitosa em desmantelar o cenário coeso que se prospectou em fins dos anos 1960. E os mecanismos que foram fundados e usados para tal desmantelamento se acentuaram desde então. Compreender o papel incontornável de Coltrane para a emergência desse fenômeno é o que se intenta como objetivo central desta pesquisa. Sobretudo por meio do disco citado, uma vez que ele se situa no centro das atenções dos músicos que vieram posteriormente, em se tratando de sua obra como um todo. O ponto de partida a ser trabalhado no decorrer desta dissertação é que o disco conjuga grande parte dos elementos que estavam colocados de forma esparsa anteriormente à sua realização, de forma a dar um corpo coerente para posteriores experimentações. Sejam esses elementos no cenário do jazz; da cultura suburbana de bares; do consumo de entorpecentes como forma de atingir estágios de superação do sofrimento; dos hipsters desiludidos; da espiritualidade mambembe; do fetiche orientalista etc. Além de conjugar tais elementos, o disco parece ter sido capaz de transmitir à juventude branca, ainda que minimamente, o sentido que a experiência negra nos Estados Unidos da América vinha adquirindo desde os anos iniciais de diáspora, mas sobretudo no século XX. 11 O enfurecimento do público no Newport Folk Festival, em 1965, ao ver Bob Dylan usando a guitarra elétrica talvez seja o símbolo maior dessa tensão. 20 Isso é, compreender como o álbum figura em uma miríade de outras obras, incluindo obras de outros artistas – como Miles Davis ou Charles Mingus – pode elucidar a origem de tais aproximações surpreendentes que configuram este recorte temporal e espacial ímpar que denominamos contracultura. Assim sendo, decidimos por dividir a dissertação em três capítulos: cada um com um enfoque específico, para nos aproximar cada vez mais da proposta do músico, conforme as condições materiais para os surgimento e circulação do disco. O primeiro capítulo discute alguns tópicos um pouco mais distantes do álbum em si, para familiarizar o leitor aos antecedentes do disco: o rearranjo econômico norte-americano após a quebra da Bolsa de Nova Iorque, suas consequências sobre as condições dos jovens e a decorrente reestruturação social proveniente disso; o nascimento da Indústria Cultural e suas consequências nos processos de uniformização das produções culturais; e, posteriormente, a decorrente bonança material pra jovens brancos por meio da socialdemocracia, acarretando um vazio existencial responsável pelo nascimento dos hipsters; o encontro de tais jovens com o músicos negros de jazz que estiveram apartados do processo de reestruturação econômica etc. Tal capítulo contém a maioria dos conceitos que serão posteriormente articulados na elaboração da dissertação. No segundo capítulo, focamos em dois pontos interpolados: as características materiais do disco em si e as limitações objetivas para a consolidação dos processos criativos e subjetivos dos músicos majoritariamente negros – fossem elas materialmente delimitadas por questões objetivas de estúdio, ou, na maioria das vezes, estabelecidos por uma crítica branca que se esforçava mais em interromper os processos criativos de músicos negros do que realmente tentar compreender quais aspectos estavam sendo mobilizados a partir daquela estética nascente. Por fim, o terceiro capítulo buscou analisar as faixas do álbum, uma a uma, com suas rupturas e continuidades em sua relação com aspectos da contracultura. Obviamente, alguns pontos foram escolhidos em detrimento de outros. Talvez algum aspecto relevante tenha sido pouco explorado, mas parece haver na pesquisa intelectual um índice que sempre nos foge e nos impulsiona a continuar pesquisando. Lewis Porter (2020) escreveu em artigo recente denominado A Deep Dive Into John Coltrane’s “A Love Supreme”12, para a revista WBGO, 12 PORTER, Lewis. A Deep Dive into John Coltrane’s “A Love Supreme” by his Biographer: Pt. 1. WBGO, Julho, 2020. Disponível em: 21 que “uma vez que você entra no mundo do Coltrane, ele se torna cada vez mais abrangente”13 e, certamente, esta afirmativa guarda certa correspondência com a realidade. Coltrane foi um dos grandes artistas do século XX – um daqueles que fundou sua vida na arte e que certamente a revolucionou; tentar traduzi-lo à exaustão em uma dissertação seria, além de certa ingenuidade, um trabalho fadado à ingratidão. Por isso, alguns pontos foram objeto de maior profundidade em razão de outros. Ainda que tentando dar primazia ao objeto, a miríade de possibilidades que emergem desse processo é de complexa organização textual, tal como de difícil compreensão intelectual. 13 “once you get into the world of Coltrane, it becomes all-encompassing”. (Tradução nossa) 22 CAPÍTULO 1 – O CENÁRIO PARA IRRUPÇÃO DO DISCO 1.1 – O JAZZ E A CRISE DE 1929 O jazz foi um dos mais importantes elementos para que os Estados Unidos pudessem superar a crise econômica causada a partir da quebra da bolsa de Nova Iorque, em 1929. O planejamento sobre a produção e consumo de cultura tornou-se uma alternativa à saturada economia que anteriormente havia empreendido seus esforços na produção industrial pesada, visando atender uma Europa até então devastada pelos efeitos da Primeira Guerra Mundial. Com o colapso proveniente da reestruturação econômica europeia no Entreguerras e o natural recuo de demanda pela produção do país, os Estados Unidos se viram sem alternativas para escoar o alto fluxo de mercadorias provenientes de sua indústria. Esse descompasso, com muitas nuances, culminou na já referida Crise de 1929, momento ímpar para se compreender a necessidade de expansão do capital para além da estrita esfera de produção e circulação de mercadorias advindas do complexo industrial americano. O pesquisador Jon Savage (2007) detalha a situação da juventude em decorrência da quebra da bolsa. A Depressão atingiu com força os adolescentes. Entre aqueles com idade para estar no ensino secundário, 40% não estavam na escola, enquanto subiam os números dos que abandonavam os estudos antes de se formar. Ao mesmo tempo, o desemprego entre jovens subia vertiginosamente. Quatro milhões de jovens americanos dos 16 aos 24 anos estavam na rua procurando trabalho: cerca de 40% eram adolescentes. Em 1932, o “Exército Infantil” tinha 200 mil andarilhos e esse número subia rápido, uma proporção muito pequena mas altamente visível dos 14 ou mais milhões de americanos com idades entre 10 e 20 anos (Savage, 2007, p. 302-303)15. Na urgência de oxigenar o mercado, novos filões de consumidores se fizeram necessários. A criação de um conceito de juventude, no sentido moderno de utilização de seu termo – um alargamento da fase transitória entre a infância e a vida adulta – teve papel crucial para isso. Se a infância demarcava o momento da vida em que se era basicamente um consumidor, enquanto a fase adulta estava imbuída do dever de sobretudo produzir e sustentar a família (ainda que consumindo também), a criação de um hiato entre uma coisa e outra poderia contribuir para equalizar o descompasso causador da crise. Assim, prolongar a infância se tornou uma alternativa capaz de arrefecer as duras consequências da quebra da bolsa. 15 SAVAGE, Jon. A criação do conceito de juventude: como o conceito de teenage revolucionou o século XX. RJ: Rocco, 2009. 23 Mas, além disso, como a juventude não se caracterizava apenas como um prolongamento da infância, se tornou necessário também criar uma finalidade para esse estágio da vida, uma razão que justificasse esse rearranjo: a vida universitária. O jovem que até então se tornaria mão de obra industrial ou do campo assim que atingisse a maioridade, nesse momento passava a ser atribuído com uma ocupação que estendia sua permanência em um estágio menos produtivo e mais consumidor. De quebra, a universidade expandia as barreiras do conhecimento científico e tecnológico de seu tempo, mantendo os Estados Unidos no patamar de maior potência econômica mundial, alçado após o fim da Primeira Guerra Mundial. Posteriormente, com o panorama de Guerra Fria, esse papel se fez ainda mais importante. Dessa forma, o Estado, ao solucionar em partes um problema, aumentava ainda o corpo de mão de obra especializada para complexificar sua economia, que padecia em suas antigas formas. Foi uma solução duplamente proveitosa muito associada ao famoso plano econômico New Deal. No entanto, já estava em curso a consolidação de um novo filamento na dinâmica social estadunidense, antes mesmo do novo plano econômico, dado que a economia pós-guerra já demandava certa sofisticação da organização industrial estadunidense. Savage (2007) observa que: Entre 1919 e 1922, o número de alunos universitários duplicou. Este impulso para a educação de terceiro grau foi facilitado por famílias menores, um grande grupo de 15 a 24 anos, e a crescente sofisticação dos negócios americanos. A corporatização precisava de toda uma nova classe de executivos, conforme o número daqueles que trabalhavam na administração triplicava entre 1899 e 1929 (Savage, 2007, p. 229)16. No entanto, havia ainda uma grande resistência da população e dos setores conservadores acerca da autonomia que a juventude passou a gozar. Principalmente, a partir do momento em que ela era reconhecida como um setor autenticamente importante para a economia política do país. Além disso, o jazz era a expressão cultural mais associada às novas práticas de uma juventude que se diferenciava muito da geração anterior em relação aos costumes. Como explicita Savage (2007). No início dos anos 1920, o jazz era um divisor de gerações. A Ladies Home Journal lançou uma “cruzada” antijazz: “Quem diz que ‘jovens de ambos os sexos podem se misturar num abraço íntimo’ - com braços e pernas 16 Ibidem. 24 entrelaçados e os troncos em contato -, sem sofrer danos, mente. Acrescente a esta posição o movimento oscilante e o sensual estímulo da abominável orquestra de jazz com seus acordes de origem vodu e seu direto apelo ao centro sensorial, e se você é capaz de acreditar que a juventude é a mesma depois desta experiência, então que Deus tenha piedade do seu filho (Savage, 2007, p. 232)17. No entanto, conforme a quebra da bolsa de valores se deu, a juventude que se prospectava ainda de forma incipiente e sob olhar duvidoso tornou-se um impulsionador crucial para a saída da crise, e sua condição social deu um salto. Assim, é necessário que esse processo seja compreendido dialeticamente, conforme as possibilidades de seu momento histórico. Não se trata, portanto, de uma agenciação ocorrida em via de mão única, na qual uma nova forma de juventude foi criada somente visando superar uma crise, onde cada etapa é milimetricamente elaborada. Há uma certa espontaneidade guiada nesse processo, que já ocorria desde o fim do século anterior, onde paulatinamente a fase de transição entre infância e vida adulta se expande e acaba se naturalizando aos olhos das famílias estadunidenses, já que se tornava muito conveniente o nascedouro e a consolidação de uma etapa da vida até então desaprovada pela geração anterior. Como observado anteriormente, fez-se necessária a expansão do ensino superior nos Estados Unidos para que essa juventude fosse alocada socialmente. A nova noção de juventude que ali nascia estava, entre outras coisas, muito vinculada à vida universitária, ao pertencimento a uma instituição de ensino superior. Além disso, como não somente se criava um ambiente aglutinador de elementos joviais, mas também se investia na produção de conhecimento do país, a economia industrial estadunidense passou por uma reconfiguração muito importante após a crise: a produção em larga escala teve que se adaptar às demandas individuais para se manter competitiva, embora a maioria dos produtos não diferisse tanto assim um do outro, se observados de um ponto de vista utilitário. Na verdade, para conseguir oxigenar a já exaurida dinâmica do american way of life, foram criadas diversificações das mesmas mercadorias, com finalidade de criar vagas estratificações capazes de impulsionar a competitividade de mercados que tendiam a estágios avançados de monopólio e de uniformização. 1.2 – UM NOVO TIPO DE SUBJETIVIDADE EMERGIA? 17 Ibidem. 25 As novas noções de individualidade que emergiam desse processo de reconfiguração do pós-guerra, cada vez mais uniformes, tinham maior finalidade para a circulação financeira do que para um processo de individuação de seus partícipes – em que supostamente os indivíduos de uma determinada sociedade buscariam refletir sobre suas condições de sujeitos, das forças que os coagem e sobre quais as possibilidades concretas de superação disso. Theodor Adorno e Max Horkheimer notam, em seu famoso ensaio “A Indústria Cultural”, no livro A Dialética do Esclarecimento, de 1947, essa característica de “diferenciação” de um mesmo produto: O esquematismo do procedimento mostra-se no fato de que os produtos mecanicamente diferenciados revelam-se, no final das contas, como sempre os mesmos. A diferença entre a série de Chrysler e a série de General Motors é substancialmente ilusória, como sabem até mesmo as crianças “vidradas” por elas. As qualidades e as desvantagens discutidas pelos conhecedores servem apenas para manifestar uma aparência de concorrência e possibilidade de escolha. As coisas não caminham de modo diverso com as produções da Warner Brother e da MGM. Porém, as diferenças se reduzem cada vez mais, mesmo entre os tipos mais caros e os mais baratos da coleção de modelos de uma mesma firma: nos automóveis, a variação no número de cilindros, no tamanho, nas novidades do gadgets; nos filmes, a diferença no número de astros, na fartura dos meios técnicos, mão de obra, figurinos e decorações, no emprego das mais recentes formas psicológicas (Adorno; Horkheimer, 2021, p. 11)18. Para a expansão desse tipo de economia superficialmente diversificada era necessária uma nova forma de mão de obra capaz de atender às demandas técnicas que também se especializavam cada vez mais. A expansão universitária, portanto, está altamente ligada à expansão do consumismo da época. De forma que os cursos que surgiam tinham por finalidade abastecer e gerir o mercado interno e externo com profissionais capazes de atender rigorosamente as demandas que surgiam de uma engrenagem de funcionamento cada vez mais sofisticada. Além disso, esses mesmos jovens se tornariam parcela responsável pelo consumo dos bens produzidos. Assim, a expansão do capital se dava de forma a balancear sua produção e consumo, que outrora esteve muito desigual. Como consumir se tornou gradativamente um elemento fundamental dessa nova configuração pessoal, nada mais compreensível do que as mudanças superficiais em mercadorias fundamentalmente iguais tivessem decorrências análogas nos processos de subjetivação dos indivíduos daquela sociedade, uma vez que a existência e o psiquismo são 18 ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Indústria Cultural e Sociedade. RJ: Paz & Terra, 2021. 26 forjados nos processos materiais e cotidianos que os constituem19. Se se consumia mais, maior era a influência que as mercadorias exerciam sobre suas vidas e nas elaborações conscientes e inconscientes sobre si e o mundo. Surgiu com esse processo a ascensão de uma subjetividade muito uniforme, que se objetivava conforme os ditames de mercado e que, posteriormente, viria a ser questionada e defrontada por parcela dos jovens da contracultura. O jazz da época, ao ser constantemente pressionado também por forças de uniformização com diferenciações mais superficiais do estruturais, acabou assumindo com isso uma forma pré-estabelecida de sucesso. O historiador inglês Eric Hobsbawm (2017) esboça, em seu clássico História Social do Jazz, um esqueleto dessa forma: A variedade de música não processada é reduzida uniformemente a uns poucos modelos de produção principais, ou até na imensa maioria dos casos, a um só, que é o de 32 compassos com coro em três partes, consistindo em uma melodia de oito compassos (o carro-chefe), repetido, o release, a ponte, o canal ou apenas a parte intermediária, e a repetição do início (Hobsbawm, 2017, p. 217 - 218)20. Para além disso, como também observam Adorno e Horkheimer (2021), nessa mesma época, como uma alternativa de expansão ainda maior, surge um sofisticado entrelaçamento entre cultura e capital21, o qual eles conceitualizaram já na década de 1940 como Indústria Cultural. Mais precisamente, o capital adentra o campo da cultura, fazendo com que a precisão técnica que domina o campo industrial e financeiro também se aplicasse à produção cultural. Mais do que uma investida completamente elaborada, esse cenário se desenhou num processo histórico repleto de complexidades e idiossincrasias (Adorno; Horkheimer, 2021). Isso é, as condições objetivas para que a cultura da época se tornasse um instrumento acessório no movimento de realização do capital vinham de um desenvolvimento conflituoso entre as condições moderna e pré-moderna da arte no centro do mundo capitalista, ainda que cada local guardasse suas singularidades (o caso do modernismo norte-americano dialogava com uma tradição pré-moderna muito diferente da europeia, por exemplo). Além disso, como vimos anteriormente, uma nova forma de subjetividade comum se desenhava em decorrência das agenciações entre o imbricado campo da cultura e economia: 19 Não se trata, no entanto, de um mero processo de reflexo. Há uma série de diferentes mediações que podem ocorrer nessa relação das quais são objetos de estudo sobretudo de áreas como a psicanálise. 20 HOBSBAWM, E. J. História social do jazz. SP: Paz e Terra, 2017. 21 Rodrigo Duarte (2010) resume da seguinte maneira: “Em outras palavras, era a invasão da esfera da cultura pela reificação potencializada do esclarecimento” (Duarte, 2010, p. 43). 27 uma subjetividade mais homogênea, que retroalimentava a homogeneidade formal das produções de mercadorias do capitalismo tardio. O conflito entre as condições da arte descrito acima é de suma importância, posto que dele se extrai a tônica da obra de Coltrane. Veremos adiante que anteriormente à Crise de 1929 as formas pré-modernas ainda habitavam com certa força alguns poucos recintos ritualísticos, religiosos e litúrgicos do qual John frequentava enquanto jovem. Portanto, as contradições encontradas em sua produção expressam, em partes ao menos, as contradições que avançavam, estagnavam, ou regrediam o desenvolvimento do material artístico de seu tempo. As resoluções encontradas para determinados impasses constituem também matéria de suma importância, pois a subjetividade do artista foi um fator crucial como forma de resistir às investidas formais que o grande complexo musical estabelecido realizava diante dos artistas que gozavam de certa relevância no cenário cultural. A impressão da subjetividade em suas obras será tema que se discorrerá recorrentemente adiante no trabalho. Ao se referir à obra de Coltrane (e também de Charles Mingus), o musicólogo americano Scott Saul (2003) foge do determinismo de atribuir suas criações às condições concretas contextuais em que estava inserida a população negra da época, tais como expressões que necessariamente surgiriam num cenário de tanta desigualdade social. Tampouco descola desse cenário o material pelo qual Coltrane pôde substanciar sua produção de maneira singular. Em outras palavras, o autor ressalta como as condições objetivas permitiram a realização subjetiva de Trane (Saul, 2003, p. X): Enquanto artistas como Mingus e Coltrane estavam constante e heroicamente determinados e intencionados – de fato, muito do magnetismo de suas músicas vem de como eles tornaram palpável seus atos de auto concentração – eles também estavam submetidos ao familiar predicado de fazer história sob condições que eles mesmos não escolheram. Além disso, essas condições colocadas geralmente tinham um efeito poderoso sobre suas músicas que seria não muito sábio atribuí-las sempre ao pano de fundo; certamente, poucos jazzistas poderiam proporcionar tanto no contexto de suas vidas e trabalho22 (Saul, 2003, p. X)23. Neste excerto, o autor emprega uma análise materialista para situar tanto Mingus quanto Coltrane, objeto da análise aqui empreendida, como artistas que conscientemente faziam 22 While artists like Mingus and Coltrane were often heroically determined and willful—in fact, much of the magnetism of their music comes from the way that they made palpable this act of self-concentration—they were also stuck in the familiar predicament of making history under conditions not of their own choosing. Moreover, these unchosen conditions often had such a powerful effect on the music that it is unwise to push them always to the background; certainly few jazz musicians could afford to do so in the context of their own life and work. (Tradução nossa) 23 SAUL, Scott. Freedom Is, Freedom Ain’t: Jazz and the making of the sixties. Harvard University Press, 2003. 28 história diante das circunstâncias que estavam colocadas concreta e historicamente. Se o paradigma colocado a esses artistas naquele tempo era sobretudo a liberdade do povo negro estadunidense, expressas legalmente pelas Leis de Jim Crow, que regulamentavam a segregação racial nos Estados Unidos, é compreensível que a liberdade fosse a tônica expressa em suas manifestações artísticas, seja em forma ou em conteúdo. Não é por acaso, portanto, que A Love Supreme tenha sido gravado justamente em 1964, no mesmo ano em que as Leis de Jim Crow – exemplo máximo da segregação racial institucionalizada legalmente nos Estados Unidos – se extinguiram definitivamente. 1.3 – UM CENÁRIO ENCURRALADO Em uma acepção ainda genérica do contexto, o cenário para a liberdade de criação de um artista se via encurralado por uma série de fatores, mas que podem aqui ser reduzidos a dois polos para fins de clareza argumentativa. Em suma, ou o artista poderia incorrer em produzir sobre as formas pré-concebidas pelo mercado artístico e, caso se destacasse por algum adereço adicionado, gozaria de algum prestígio a mais, podendo escalar sua carreira no meio em que estivesse inserido; ou o artista poderia ousar radicalmente e produzir algo incapaz ou dificilmente assimilável por seu público, ficando à deriva no mercado artístico estabelecido e fazendo um tipo de arte retroflexa, inócua, solipsista e voltada somente para si. Adiante veremos então como a forte relação de Coltrane com um público específico, sobretudo uma juventude que se cansou do panorama descrito no tópico anterior, foi essencial para que os processos de experimentações pudessem ocorrer e tomar corpo quase organicamente na sociedade em que estava inserido. Posto isto, o primeiro dos casos, em que o artista busca brechas em um cenário consolidado, com vias de se destacar por meio de algo superficialmente novo, mas que mantém a estrutura inicial quase intacta, possui uma função muito importante para a circulação cultural controlada. Isso é, pequenas mudanças possuem um importante papel de oxigenar o mercado, mas sem causar um choque capaz de colocar em xeque a fidelidade de seus consumidores. Dessa forma, evita-se o novo24, mas podia-se vender algo com aparência de novo. 24 Peter Burger resume a noção de “novo” para Adorno, a qual nos tem utilidade aqui, de tal forma: “Adorno deduz o novo, como categoria da arte moderna, a partir da renovação dos temas, motivos e procedimentos artísticos, que também marcaram o desenvolvimento da arte antes do aparecimento do modernismo. E o faz por ver essa categoria fundada na hostilidade – que caracteriza a sociedade capitalista-burguesa – à tradição.” (Burger, 137, p. 136-137). Isto posto, a forma de operar a qual nos referimos é justamente uma forma de submeter mudanças pontuais sem hostilidade à tradição (ou, se preferirmos, às formas). 29 O segundo caso, em que o artista assume postura radicalmente afrontosa diante da rigidez imposta pelo mercado, não parece causar tanto perigo ao estado de coisas, uma vez que sua ressonância se dá em circuitos muito restritos de circulação cultural, não ocasionando real ameaça a toda a complexa estruturação da produção e circulação de bens culturais. Uma vez abafada a voz que aponta a direção do novo, seu teor de verdade, seu potencial risco de desestabilizar e reorganizar o estado de coisas, de tensionar as noções que juntas explicam a realidade, é quase nulo. No entanto, como esses dois cenários não se apresentam de formas completamente independentes, excludentes e rígidas, alguns momentos históricos apresentam uma tênue fresta para a atuação de um artista – ora muito estreita, quase inexistente; ora mais larga, capaz de abrigar uma vasta gama de expressões sobre o novo e ainda assim ganhar corpo na cultura popular. Um local onde o novo não serve somente à retroalimentação do já existente, nem onde seus apontamentos mais radicais são inócuos em face do que se encontra estabelecido. É nessa fresta que Coltrane atuou durante parte de sua vida, de forma a alargá-la para que seus ouvintes pudessem experimentar algo substancialmente transformador a partir de uma experiência estética muitas vezes hostil à tradição e às formas. Se a seguinte afirmação de Hobsbawm (2017) guarda de fato correspondência com a realidade do jazz, pode-se dizer que Coltrane esteve imerso em ambos os trajetos. Mas o jazz percorreu dois caminhos distintos. Um deles passando pela indústria de entretenimento popular comum, comercial, dentro da qual ele viveu, e ainda vive, e para a qual ele constantemente empresta aquilo que ela não pode, sozinha, dar ao seu público, até que acaba por enfraquecer a fonte de seus empréstimos. O jazz fez grande parte das suas conquistas como integrante do mundo pop, emprestando um sabor especial a uma música pop cada vez mais influenciada pelo jazz. Mas também traçou um caminho independente, como uma arte isolada, apreciada por grupos especiais de pessoas, separadamente, e muitas vezes em franca oposição à música pop comercial (Hobsbawm, 2017, p. 44)25. 1.4 – A CONTRACULTURA COMO ESTRUTURA DE SENTIMENTO O pensador galês Raymond Williams possui uma farta elaboração sobre a dinâmica da cultura capaz de enriquecer a análise do cenário esboçado. Tributário da filosofia de Antônio Gramsci, Williams busca articular a noção de hegemonia formulada pelo italiano com ferramentas capazes de compreenderem os fenômenos marginais de um processo hegemônico. 25 HOBSBAWM, E. J. História social do jazz. SP: Paz e Terra, 2017. 30 Mais do que isso, Williams busca trazer vida ao dinâmico sistema de pensamento do italiano, uma vez que suas noções sobre “hegemônico” e “dominante” se tornavam cada vez mais conceitos deterministas ou a-históricos, devido a um uso corrente que descartava as nuances que pressionavam e ameaçavam o que era hegemônico. Segundo Williams, “Uma hegemonia vivida é sempre um processo. Não é, exceto analiticamente, um sistema ou uma estrutura (Williams, 1979, p. 115)”. E ainda completa: Uma hegemonia estática, do tipo indicado pelas definições abstratas totalizadoras de uma ideologia dominante, ou de uma visão do mundo, pode ignorar ou isolar essas alternativas e oposição, mas, na medida em que são significativas, a função hegemônica decisiva é controlá-las, transformá-las ou mesmo incorporá-las. Nesse processo ativo, o hegemônico tem de ser visto como mais do que a simples transmissão de um domínio (inalterável). Pelo contrário, qualquer processo hegemônico deve ser especialmente alerta e sensível às alternativas e oposição que lhe questionam ou ameaçam o domínio. A realidade do processo cultural deve, portanto, incluir sempre os esforços e contribuições daqueles que estão, de uma forma ou de outra, fora, ou nas margens, dos termos da hegemonia específica (Williams, 1979, p. 116)26. Dessa forma, o galês volta suas atenções àquilo que permanece de outros momentos históricos, antes da constituição de uma nova hegemonia cultural, assim como ao que de novo circula dentro desse cenário. Em outras palavras, Williams (1979) elabora formas de compreender as reminiscências e emergências dentro de um cenário cultural. Seus estudos, portanto, se voltam ao que ele denominou como “residual” e “emergente”. Se, como dito anteriormente, a tônica da obra de Coltrane está no entrelaçamento entre as condições pré-moderna e moderna da obra de arte27, além dos apontamentos vanguardistas, um estudo aprofundado sobre quais aspectos residuais habitavam a hegemonia cultural dos anos 1950 e 1960 ajuda a esclarecer como sua obra estava inserida no emaranhado cultural e contribuiu para abrir uma fresta para possíveis emergências. Mais do que isso, além de entender como os fenômenos residuais ainda circulavam minimamente no meio em que Coltrane estava inserido, a análise em questão também amplia a profundidade de quais as possibilidades estavam colocadas para o músico e o que ele fez delas. No entanto, Williams (1979), explica como esse processo não é tão simples: Na análise histórica autêntica, é necessário, em todos os pontos, reconhecer as inter-relações complexas entre movimentos e tendências, tanto dentro como 26 WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. 27 Veremos no tópico sobre a faixa “Acknowledgement”, no capítulo 3, como tal atrito passa por uma reformulação resolutiva a partir do momento em que é elaborado por meio de outra temporalidade. 31 além de um domínio específico e efetivo. É necessário examinar como estes se relacionam com a totalidade do processo cultural, e não apenas com o sistema dominante selecionado e abstrato (Williams, 1979, p. 124)28. Tanto “residual”, “hegemônico” e “emergente” se mesclam em uma contínua totalidade onde tais categorias são articuladas em torno de sua funcionalidade específica histórica, além de não serem categorias inertes que servem como ferramentas analíticas em qualquer momento. Isso é, não há fórmula de distinção bem estabelecida que funcione para além das singularidades locais e temporais. Um elemento residual para uma determinada sociedade pode compor a hegemonia de uma outra sociedade contemporânea, assim como elementos outrora hegemônicos podem ou não compor o que atua de forma residual ou “arcaica” numa dada organização social. Para melhor esclarecer o que aqui figura como residual e arcaico: O residual, por definição, foi efetivamente formado no passado, mas ainda está ativo no processo cultural, não só como um elemento do passado, mas como um elemento efetivo do presente. Assim, certas experiências, significados e valores que não se podem expressar, ou verificar substancialmente, em termos da cultura dominante, ainda são vividos e praticados a base do resíduo – cultural bem como social – de uma instituição ou formação social e cultural anterior. É importante distinguir esse aspecto do residual que pode ter uma relação alternativa ou mesmo oposta com a cultura dominante, daquela manifestação ativa do residual (distinguindo-se este do arcaico) que foi incorporada, em grande parte ou totalmente, pela cultura dominante (Williams, 1979, p. 125)29. Algumas das características que há de residual no capitalismo estadunidense dos anos de 1950 são os vestígios da religiosidade pré-moderna e da ancestralidade afrodiaspórica, em meio a um capitalismo que aderiu para si o valor de culto e passou a conferir às suas mercadorias o elemento de adoração. De tal forma que religião e espiritualidade tomaram rumos distintos. Este é um tema que será mais bem explicitado adiante, sobre como o capitalismo em estado avançado incorpora práticas religiosas em seu movimento, enquanto esvazia de sentido espiritual as antigas práticas religiosas que continuam a ocorrer em seu meio. Por ora, é importante frisar que as práticas religiosas de cunho espiritualizante eram um elemento notoriamente mobilizado na infância protestante de Coltrane, ainda nos de 1930, mas passam a se dissipar socialmente conforme o capitalismo incorpora o elemento espiritualizante 28 Ibidem. 29 Ibidem. 32 das religiões em suas práticas cotidianas. Nesse sentido, Porter (1999) nos elucida como foi a trajetória de Coltrane. Foi na igreja de seu avô, ainda criança, que Trane teve contato com a música, com instrumentos de sopro e com cultos, onde músicas gospel e folclóricas de seu povoado eram tocadas em forma de adoração. Supõe-se que o movimento de busca realizado por Trane em sua maturidade por expressões culturais que guardavam consigo ainda algum valor de culto provém de uma infância calcada nesse tipo de prática (Porter, 1999). Assim sendo, havia ainda um elemento pré-moderno, se concebermos tal terminologia como uma “arte funcional”, que exercia certo papel no funcionamento na comunidade de Trane30. Adiante este tema também será desdobrado com mais profundidade, mas é importante compreender como esse elemento vai se enfraquecendo com o passar dos anos e o avanço das forças produtivas e culturais no entorno da Segunda Guerra Mundial, mas igualmente importante ressaltar que ele não se dissipa completamente – do contrário deixaria de ter função para obra de Trane. Não à toa Williams (1979) observa: Um elemento residual cultural fica, habitualmente, a certa distância da cultura dominante efetiva, mas certa parte dele, certa versão dele – em especial se o resíduo vem de alguma área importante do passado – terá, na maioria dos casos, sido incorporada para que a cultura dominante tenha sentido nessas áreas. Além disso, em certos pontos, a cultura dominante não pode permitir demasiada experiência e prática residuais fora de si mesma, pelo menos sem um risco. É pela incorporação daquilo que é ativamente residual – pela reinterpretação, diluição, projeção e inclusão e exclusão discriminativas – que o trabalho de tradição seletiva se faz especialmente evidente (Williams, 1979, p. 126)31. E é justamente na permissão da demasiada experiência residual que a obra de Coltrane passa a figurar um “risco” ao que estava estabelecido hegemonicamente. Suas elaborações a partir de experiências com o que era residual e ancestral não se traduziram em odes ao passado, em arcaísmos ou visões nostálgicas de experiências comungadas por povos distantes. Muito pelo contrário, foram criações disruptivas no cenário estabelecido, onde a circulação cultural se dava de forma muito controlada. As forças residuais passaram a figurar suas produções como atuantes e geradoras de sentidos e tensões32 no campo hegemônico predominante. Como 30 Vale ressaltar: a função da música estava sobretudo relacionada à sociabilidade em sua comunidade. Os ritos litúrgicos, além de expressarem uma forma de comunicação com o divino, de explicação de mundo, exerciam também papel de coesão social. 31 Ibidem. 32 Williams (1979) compreende “tensão” de tal modo: “Mas a tensão é, frequentemente um constrangimento, uma tensão, um deslocamento, uma latência: o momento de comparação consciente que ainda não chegou e por vezes não está nem mesmo chegando. E a comparação não é, de modo algum, o único processo, embora seja poderoso e 33 também observa Williams (1979, p.128): “Nesse processo complexo há realmente uma confusão constante entre o localmente residual (como uma forma de resistência a incorporação) e o geralmente emergente” e, para melhor compreender aquilo que determinamos como emergente, Williams (1979) pontua no excerto a seguir. O que importa, finalmente, no entendimento da cultura emergente, em distinção da cultura dominante e residual, é que ela não é nunca apenas uma questão de prática imediata. Na verdade, depende crucialmente de descobrir novas formas ou adaptações da forma. Repetidamente, o que temos de observar é, com efeito, uma emergência preliminar, atuante e pressionante, mas ainda não perfeitamente articulado, e não o aparecimento evidente que pode ser identificado com maior confiança (Williams, 1979, p. 129)33. Posteriormente, poderemos ver na prática como Trane pressionava as formas pré- estabelecidas comercialmente conforme as possibilidades históricas lhe permitiam, num processo em partes espontâneo, mas que tinha princípios norteadores que foram capazes de mesclar elementos residuais à uma dinâmica hegemônica, contribuindo fortemente para a abertura de uma fenda de possibilidades históricas que Raymond Williams denomina “estrutura de sentimento”. O galês desenvolve essa terminologia com vias de arejar as formas de análise social que tomam as formações sociais como processos já terminados. Pois, segundo o autor, podemos observar que: [...] Isso é especialmente relevante para as obras de arte que realmente são, num certo sentido, formas explícitas e acabadas – objetos reais nas artes visuais, convenções objetificadas e notações (figuras semânticas) na literatura. Mas não é apenas isso; para completar seu processo inerente, temos de torná- las presentes, em “leituras” especificamente ativas. E é também o fato de que a feitura da arte nunca está, em si, no tempo passado (Williams, 1979, p. 131). E isso implica dizer que as obras de arte têm potencial de fazer com que categorias analíticas e seu real valor histórico, singular e derivado da experiência única do tempo, possam se diferenciar. Para uma análise materialista da contracultura, essa noção é riquíssima, pois permite que as categorias exaustivamente usadas pelo materialismo histórico vulgar, como “infraestrutura”, “superestrutura” ou “determinação” ganhem maleabilidade e não empobreçam importante. Há as experiências de que as formas fixas não falam absolutamente, e que na verdade não reconhecem. Há importantes experiências combinadas, onde o significado existente converte a parte ao todo, e o todo a parte (Williams, 1979, p. 132)". 33 Ibidem. 34 a discussão de um período tão rico de contradições com determinismos limitantes. Articular a contracultura – historicizada geralmente entre a segunda metade da década de 1960 e o início da década seguinte – com questões de maior alcance, profundidade histórica e temporalidades menos habituais, tais como ancestralidade e espiritualidade, podem ser a chave para mobilizar questões que desde então estão fossilizadas em categorias analíticas que não dialogam com a vida das obras de arte deste momento histórico. Em outras palavras, as contradições expressas nos anos de contracultura só podem ser minimamente expressas por vias materialistas se forem levadas em considerações as singularidades do momento histórico, do choque específico entre aquelas gerações e das diferentes noções sobre tempo entre eles. Analiticamente, Williams (1979) cunha a noção de estrutura de sentimento porque: [...] Talvez os mortos possam ser reduzidos a formas fixas, embora os seus registros que sobrevivem sejam contra isso. Mas os vivos não serão reduzidos, pelo menos na primeira pessoa; as terceiras pessoas vivas podem ser diferentes. Todas as complexidades conhecidas, as tensões experimentadas, desvios e incertezas, as formas intrincadas da desigualdade e confusão são contra os termos da redução e logo, por extensão, contra a própria análise social (Williams, 1979, p. 132)34. O que faz da “estrutura de sentimento” um termo contraditório de ser usado em uma análise social, mas ainda assim importante, pois ressalta a possibilidade de se olhar para o passado de forma viva, de compreender como presente e passado estão interligados umbilicalmente, numa espiral onde passados e futuros podem ter apontamentos singulares, e as formas que outrora vigoravam hegemonicamente podem atuar, residual ou emergentemente, nas formas presentes. Ainda segundo Williams (1979): “Apesar de continuidades substanciais, e em certos níveis decisivas, em gramática e vocabulário, nenhuma geração fala exatamente a mesma língua de seus antecessores” (1979, p. 133), o que torna todo conflito geracional um conflito também singular. Por isso, a proposição aqui da contracultura como uma estrutura de sentimento que se afigura mais largamente entre fins da década de 1950 e começo dos anos de 1970, mas com atuações residuais muito mais distantes. Williams (1979) continua definindo o termo de tal modo: 34 Ibidem. 35 [...] É uma questão aberta – isto é, uma série de questões históricas específicas – se em qualquer dessas modificações, este ou aquele grupo predominou ou foi influente, ou se elas são resultado de uma interação muito mais geral. O que estamos definindo é uma qualidade particular da experiência social e das relações sociais, historicamente diferente de outras qualidades particulares que dá o senso de uma geração ou de um período. As relações entre essa qualidade e as outras marcas históricas especificadoras de instituições, formações e crenças mutáveis, e, além destas, as também mutáveis relações sociais e econômicas entre e dentro das classes, são novamente uma questão aberta: isto é, uma série de questões históricas específicas. A consequência metodológica dessa definição, porém, é que as modificações qualitativas específicas não são consideradas como epifenômenos das instituições, formações e crenças modificadas, ou simplesmente evidências secundárias, de novas relações econômicas entre e dentro das classes (Williams, 1979, p. 133)35. E é justamente este o ponto crucial de compreender a contracultura de tal forma: não a encarar como um epifenômeno de outras estruturas, visando não apagar a contribuição singular dos artistas que a compuseram, para que somente assim uma discussão sobre a autonomia de seus protagonistas e a vida de suas obras possam ser melhor elaboradas, de forma que os índices de verdade que tais produções apontam possam ser confirmados ou postos em xeque. As possibilidades de elaboração sobre a contracultura, portanto, se abrem justamente pelas contribuições dadas por ela própria. A estrutura de sentimento comungada naquele momento relega a possibilidade de que ainda se possa tensionar, mesmo que residual ou marginalmente, as elaborações até então estabelecidas. É isso, em partes, o que buscamos fazer aqui. Não há dúvida que exista uma noção relativamente bem estabelecida, num período de tempo minimamente bem recortado, sobre a contracultura, seja temporal ou espacialmente. Mas tensionar essa noção e esse recorte é justamente uma possibilidade que se expressa também por meio da fenda subjetiva que aquele momento possibilitou. Se há aqui a intenção em aproximar ainda mais Coltrane das noções de contracultura é justamente a intenção ativa de tensionar tanto a condição que a história legou ao artista, como às expressões dominantes sobre a contracultura. 1.5 – DO BEBOP AO COOLJAZZ Os anos de 1960 viram a ascensão de fenômenos até então inimagináveis do ponto de vista artístico e social. A pop-art transformava utensílios cotidianos em obras de arte (Danto, 35 Ibidem. 36 2020); o cinema e a música com inclinações vanguardistas tornaram-se fenômenos largamente difundidos; jovens filhos de famílias burguesas tornaram-se o elemento potencialmente revolucionário daquele cenário (Roszak, 1972). Certamente, esse improvável panorama se ligava às formas de vanguarda do início do século – seja à obra dadaísta, Fonte (1917), de Duchamp, ao Expressionismo Alemão ou às vanguardas políticas revolucionárias dos países europeus – mas, sem dúvida, não sem um conteúdo já decantado da cultura ocidental contemporânea, muito ligado à cultura de massa36. Havia, portanto, nesse cenário, um vivo e complexo sistema de trocas culturais que guardava reminiscências de décadas anteriores. A Indústria Cultural, hegemonia que se estabeleceu a partir da virada da década de 1930 para 1940, via a potencial semente de sua superação nascer em seu próprio âmago, muito provavelmente por conta do excessivo convívio com formas culturais residuais do início do século. A massificação característica da Indústria Cultural servia de meio para difundir as formas artísticas contestatórias dos próprios processos de massificação. Nos termos definidos no tópico anterior, elementos residuais, hegemônicos e emergentes figuravam um imbricado cenário capaz de implodir o estado de coisas. Em se tratando de Coltrane, as formas as quais o músico se ligou estavam espalhadas não só ao redor do mundo, como também a momentos históricos distintos. O saxofonista amigo de longa data e companheiro de Trane no começo de sua carreira, Jimmy Heath, relata, por exemplo, que eles ficaram próximos frequentando a biblioteca da Filadélfia atrás de alguns tipos discos específicos: [...] (Nós costumávamos visitar) a biblioteca da Filadélfia para ouvir Stravinsky e música clássica oriental... Nós não estávamos tentando tocar as notas por si só. Nós estávamos tentando extrair as cadências e torná-las cabíveis para o nosso próprio groove37 (Heath apud Kahn, 2002, p. 11)38. 36 Em tempo: “Exatamente nesse período, ocorre o fato que pode ser considerado o marco inicial da moderna cultura de massas: a ascensão de Hollywood como principal centro produtor de filmes em bases verdadeiramente industriais. Por volta de 1910 já havia na Costa Leste dos Estados Unidos, principalmente em Nova York, Chicago e Filadélfia, muitos estúdios de produção cinematográfica pertencentes a anglo-saxões, os quais produziam filmes dirigidos a uma classe trabalhadora urbana, composta principalmente por imigrantes das mais diversas origens, com um conteúdo quase sempre moralista e potencialmente “disciplinador” das massas. Nessa época entraram em cena vários judeus, emigrados da Europa Central e do Leste, no fim do século XIX, principalmente em virtude de violentas perseguições antissemitas nas suas regiões de origem (Duarte, 2010, p. 30).” 37 (We used to visit) Philadelphia library to listen to Stravinsky and Western classical music... We weren’t trying to play the scores per se. We were extracting the cadenzas and turning them around to fit our groove. (Tradução nossa) 38 KAHN, Ashley. A Love Supreme: The Story of John Coltrane’s Signature Album, London: Penguin Books, 2002. 37 De tal forma que se insinua a presença da música de vanguarda da metade anterior do século em sua formação subjetiva e, decorrentemente, artística. Mas, assim como a arte crítica da década de 1910, passaram também a figurar cada vez mais a presença de elementos pré- modernos no decorrer de sua maturidade estética – sobretudo em sua compreensão de música como expressão de uma espiritualidade necessária para resolução dos conflitos de sua realidade interna e externa. Compreender a dimensão da presença do indiano Ravi Shankar em sua música, por exemplo, é incontornável nesse cenário embrenhado que se desenhava. Como ele mesmo observa em entrevista (2010): [...] Eu gosto muito do Ravi Shankar. Quando ouço sua música, eu quero copiá-la – não nota por nota, é claro, mas em seu espírito. O que me traz para mais perto do Ravi é o aspecto modal de sua arte. Recorrentemente, no estágio em que me encontro, eu pareço estar passando por uma fase modal... Há muito da música modal que é tocada todo dia pelo mundo afora. É particularmente evidente na África, mas se você olhar a Espanha ou a Escócia, Índia ou China, você descobrirá isso novamente em cada caso. Se você quiser olhar além das diferenças de estilo, você vai confirmar uma base comum. Isso é muito importante. Certamente, a música popular da Inglaterra não é a mesma da América do Sul, mas tire suas características puramente étnicas – isso é, seus aspectos folclóricos – e você irá descobrir a presença da mesma sonoridade pentatônica, comparáveis à estrutura modal. É esse aspecto universal da música que tem me atraído; é isso que estou visando39 (Coltrane apud Porter, 2010, p. 211)40. Sobre a importância do aspecto modal na construção da estética de Coltrane, trataremos em sua relação com o jazz modal mais adiante. De toda forma, podemos enxergar, ainda que de forma incipiente, como dois polos distintos – a música de vanguarda de Stravinsky e a expressão modal de Shankar – compuseram um vasto leque que foi se adaptando à realidade de Coltrane. Em ambas as citações, é frisado que não havia intenção alguma de copiar aquilo que era produzido na Europa ou Ásia, mas sim assimilá-las como possibilidades em suas próprias produções, nas condições concretas que sua posição no mundo e na história lhe permitiam. 39 I like Ravi Shankar very much. When I hear his music, I want to copy it – not note for note of course, but in his spirit. What brings me closest to Ravi is the modal aspect of his art. Currently, at the particular stage I find myseld in, I seem to be going through a modal phase... There’s a lot of modal music that is played every day in troughout the world. It’s particularly evident in Africa, but if you look at Spain or Scotland, India ou China, you’ll discover this again in each case. If you want a look beyond the diferences in style, you will confirm that there is a commom base. That’s very important. Certainly, the popular music of England is not that of South America, but take away their purely ethnic characteristics – that is, their folkloric aspect – and you’ll discover the presence of the same pentatonic sonority, of comparable modal structures. It’s this universal aspect of music that interests me and attracts me; that’s what I’m aiming for. (Tradução nossa) 40 PORTER, Lewis. John Coltrane: His Life and Music. Michigan: Ed. Michigan, 2010. 38 O cenário cultural que permitia que tais experimentações fossem realizadas era o do hardbop. O dialeto que Trane desenvolveu no decorrer de sua juventude foi aquele ensinado pelos jazzistas suburbanos de Chicago, Filadélfia, Nova Iorque, Nova Orleans e tantas outras cidades por onde passou. Como observa Leonard Brown (2010): Ele foi exposto a estilos musicais, abordagens e sons que eram únicos em regiões geográficas específicas, pois durante esse período existia uma sonoridade negra de Chicago, uma sonoridade negra de Nova York, uma sonoridade negra de Nova Orleans, uma sonoridade negra de Baltimore, uma sonoridade negra de Detroit e uma sonoridade negra de Kansas City. Ele teve a oportunidade de tocar em sessões de improviso que o apresentaram a essas estéticas regionais e até mesmo estar ao lado de mestres locais41. (Brown, 2010, p. 7-8)42. Ou seja, seu início de carreira, ainda que não tão comercial, esteve ancorado nas mais conhecidas formas do hardbop e bebop que se consolidaram após a Segunda Guerra Mundial nos Estados Unidos, tocando esporadicamente com músicos de renome, como Dizzy Gillespie, entre 1949 e 1951. Além disso, essa variedade destacada de formas de tocar jazz à época é importante para redimensionar um possível olhar homogeneizador sobre a cultura negra e as sonoridades da América. O hardbop dos anos 1940 e 1950, embora não ocupasse a mesma posição de destaque que o swing outrora gozou na sociedade estadunidense dos anos 1930, não configurava ainda um cenário fecundo para que Coltrane pudesse pôr à prova todo seu potencial de criação. Ainda que o estilo já configurasse uma forma contestatória muito sólida sobre a condição do negro nos Estados Unidos, sua forma estética ainda possuía alguns ditames dos quais alguns músicos conseguiriam se desvencilhar somente posteriormente (Gioia, 2011). Seus músicos, notoriamente marcados como influências centrais na juventude de Trane, como Charlie Parker e os já citados Dizzy Gillespie e Thelonious Monk, expressam um deslocamento singular que o jazz realizou a partir da década de 1940. Segundo Gioia (2011), o ethos modernista que habitava a produção artística europeia desde décadas anteriores, altamente influenciados por ideais iluministas de progresso, se instalou no jazz quase como um processo natural. 41 He was exposed to musical styles, approaches, and sounds that were unique to specific geographic regions, for during this time there was a black Chicago sound, a black New York sound, a black New Orleans sound, a black Baltimore sound, a black Detroit sound, and a black Kansas City sound. He was able to play in jam sessions that exposed him to these regional aesthetics and to even sit in with local masters. (Tradução nossa) 42 BROWN, Leonard. L. You Have Been Invited: Reflections on Music and Music Making Creation in Black American Culture. Oxford University Press In: John Coltrane and the America’s Quest for Freedom: Spirituality and the Music. (3 - 11), 2010. 39 Obviamente, não há processos que sejam naturais em se tratando de cultura, mas a força da expressão busca explicitar que o campo construído pela música jazzística era historicamente mais propício para se adaptar ao expansivo modernismo que acometia o centro do mundo ocidental, uma vez que as mudanças compuseram a história do jazz quase que genealogicamente para que ele pudesse sobreviver às investidas que recebeu desde seu nascimento. O autor explica melhor: [...] Dado esse feito, a ascensão de um modernismo mais evidente no começo dos anos 1940 não deveria ser visto como uma mudança brusca, como uma grande descontinuidade na história da música. Foi uma simples extensão da tendência inerente de mudança e de expansão do jazz. O jazz já havia revelado sua habilidade de engolir outros idiomas músicas – como as marchs, o blues, os spirituals, as músicas populares americanas, o rad – e fazê-los parte de si mesmo. Para fazer o mesmo com Stravinsky e Hindemith, Schoenberg e as apresentações de Ravel, sem dúvida um desafio extraordinário, mas também inevitável. Nos anos 1930, a questão não era se o jazz iria abraçar o modernismo, mas quando, como e por quem43 (Gioia, 2011, p. 186)44. Isso é, as características que o modernismo conferiu ao jazz iam em desencontro ao cenário cultural estabelecido do swing. Gioia (2011) observa com mais atenção que: Ainda assim, a forma como esses instrumentos eram tocados passou por uma profunda mudança no contexto do jazz moderno. Linhas improvisadas cresciam rapidamente, com mais complexidade. As síncopes e frases com melodias de notas oitavadas que caracterizaram o jazz anterior eram agora muito menos proeminentes. Ao contrário, longas frases se mantinham nas batidas dos compassos por vez, construídas em um fluxo constante de oito das dezesseis notas executadas com precisão quase mecânica, ocasionalmente quebradas por um triplet, uma grave pausa, uma interpolação de melodias oitavadas, ou um redemoinho de trinta segundos de notas, ou um perfurante fraseado fora do tempo. O conceito de tempo musical também mudou de mão em mão com essas novas formas de fraseado; do contrário, essa aproximação menos sincopada talvez soasse ritmicamente menos viva, um jazz tépido 43 “Given this feat, the rise of a more overt modernism in the early 1940s should not be viewed as an abrupt shift, as a major discontinuity in the music’s history. It was simply an extension of jazz’s inherent tendency to mutate, to change, to grow. Jazz had already revealed its abality to swallow other musical idioms – the march, the blues, the spiritual, the American popular song, the rad – and make them a part of itself. To do the same with Stravinsky and Hindemith, Schoenberg and Ravel presented, no doubt, an extraordinary challenge, but also an inevitable one. By the 1930s, the question now was not wheter jazz would embrace modernism, but when, and how and by whom”. (Tradução nossa) 44 GIOIA, Ted. The History of Jazz. Oxford University Press, 2011. 40 equivalente à música barroca de dezesseis notas. (...)45 (Gioia , 2011, p.187) 46. Mas, como a musicologia não se descola do conteúdo social que lhe dá forma, os músicos de bebop e hardbop traziam consigo também características muito distintas de seus antecessores. Ted Gioia (2011) ressalta que considera o surgimento da geração de bebopers uma revolução protagonizada por “sidemen”, isso é, acompanhantes dos grandes nomes da geração anterior. Lembre-se, essa foi uma revolução musical feita, primeiramente e acima de tudo, por homens de acompanhamento, não estrelas. Não por Benny Goodman, mas por seu guitarrista Charlie Christian. Não por Duke