UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JULIO DE MESQUITA FILHO”
FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
ANDRÉ CÉSPEDES PIMENTA
A LOVE SUPREME: JAZZ E CONTRACULTURA EM JOHN COLTRANE
FRANCA
2023
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JULIO DE MESQUITA FILHO”
FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
ANDRÉ CÉSPEDES PIMENTA
A LOVE SUPREME: JAZZ E CONTRACULTURA EM JOHN COLTRANE
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em História da Faculdade de Ciências
Humanas e Sociais (FCHS) da UNESP, como pré-
requisito para a obtenção do título de Mestre em
História
Linhas de Pesquisa: História e Cultura Social.
Orientador: Prof. Dr. José Adriano Fenerick
FRANCA
2023
ANDRÉ CÉSPEDES PIMENTA
A LOVE SUPREME: JAZZ E CONTRACULTURA EM JOHN COLTRANE
Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade
de Ciências Humanas e Sociais (FCHS) da UNESP, como pré-requisito para a obtenção do
título de Mestre em História
BANCA EXAMINADORA
Orientador: _______________________________________________
Prof. Dr. José Adriano Fenerick
Membro titular: ____________________________________________
Prof. Dr. Gustavo José de Toledo Pedroso (UNESP/Franca)
Membro titular: ____________________________________________
Prof. Dra. Rosa Aparecida do Couto Silva (Museu Afro Brasil – São Paulo)
Franca, 24 de outubro de 2023.
AGRADECIMENTOS
À CAPES, que financiou parte desta pesquisa em anos de tantas adversidades para a
produção intelectual.
Aos amigos de longa data: Arthur, Bernardo, Diego, Ivan, João, João Lucas e Rodolfo,
que, por meio da experimentação das mais distintas sonoridades, parecem ter criado comigo
um vínculo fraternal; além de abrirem cotidianamente as portas da minha sensibilidade para o
mundo.
Às amigas e amigos que a vida adulta me trouxe e mostrou como é bom tê-los por perto:
Giovana, Isadora, Manuela, Nanda, Renzo, Tarley, Yohana, entre tantos outros que fariam desta
lista um livro à parte.
Aos amigos que fiz durante a Pós-Graduação, especialmente Renan e Vinícius, que me
mostraram como a pesquisa pode nos ofertar também locais de acolhimento afetivo e trocas
sinceras.
À Maísa, amiga que, desde os primeiros dias no curso de História, tem me dado suporte
em momentos de turbulência e me inspirado existencialmente.
À Rosa e Gustavo, por terem aberto caminhos para que minha pesquisa pudesse ocorrer,
contribuindo nas minhas bancas de qualificação e defesa.
Aos amigos e membros do Grupo de Estudos Culturais de Franca, suporte diário para
as mais vastas reflexões.
Ao meu querido orientador, José Adriano Fenerick, que, com simplicidade e sabedoria,
tem me mostrado as diferentes formas que tantos artistas forjam a realidade ao nosso redor.
Àqueles e aquelas que se dispõem a fazer de meu estudo objeto de suas leituras e
reflexões também. O conhecimento em movimento ganha vida, se oxigena, transformando as
pessoas e, consequentemente, o mundo.
E, especialmente, à minha família – meus pais, irmão e avó – da qual sou eternamente
grato por serem como são. Não fossem eles, eu nada seria.
Por fim, aos sons, motivos principais de minha escrita e contínua curiosidade.
Sou extremamente grato a todas e todos.
RESUMO
O álbum A Love Supreme, de 1965, do saxofonista John Coltrane, figura como uma das
principais obras musicais modernas, podendo ser compreendida a partir de uma série de
referenciais teóricos musicais e historiográficos. Seu disco conjuga um vasto leque de
elementos que dão luz a uma série de outros fatores que ocorreram nos Estados Unidos e no
mundo desde o começo do século. Esta dissertação buscou situá-lo em meio à contracultura dos
anos 1960, com enfoque para os elementos de sua obra que tiveram contribuição e contribuíram
para o estabelecimento de um momento de singular efusão social e cultural do Ocidente. A obra
marca a passagem da primeira para a segunda metade da década, momento em que o jazz passa
por uma série de experimentalismos, ao passo que vê também o nascimento do rock.
Neste cenário, Coltrane é uma personagem incontornável. Sua relação com as mais diferentes
formas de religiosidade, seu contínuo interesse por sonoridades distintas, seu imperativo de auto
renovação e, sobretudo, sua afinidade pelo improviso, o tornaram uma referência
imprescindível para as possibilidades que se abriram durante a contracultura. Na pesquisa
adiante, buscamos examinar o disco, o campo de forças em que ele estava inserido e quais as
possibilidades históricas e materiais para que ele pudesse ser elaborado.
Palavras-chave: John Coltrane; A Love Supreme; jazz; contracultura.
ABSTRACT
The album “A Love Supreme”, released in 1965 by saxophonist John Coltrane, stands as one
of the key modern musical works, and it can be understood within a framework of musical and
historiographical references. The album incorporates a wide range of elements that shed light
on a series of other factors that occurred in the United States and the world since the beginning
of the century. This dissertation aimed to place it within the context of the counterculture of the
1960s, with a focus on the elements of his work that both contributed to and were influenced
by the establishment of a unique moment of social and cultural effusion in the Western world.
The work marks the transition from the first to the second half of the decade, a period when
jazz underwent various experiments while also witnessing the birth of rock.
In this setting, Coltrane is an indispensable figure. His relationship with various forms of
spirituality, his continuous interest in distinct sounds, his imperative for self-renewal, and,
above all, his affinity for improvisation made him an essential reference for the possibilities
that emerged during the counterculture. In the following research, we aim to examine the album,
the field of forces in which it was situated, and the historical and material possibilities that
allowed it to be created.
Keywords: John Coltrane, A Love Supreme; jazz; counterculture
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 10
CAPÍTULO 1 – O CENÁRIO PARA IRRUPÇÃO DO DISCO ............................................ 22
1.1 – O JAZZ E A CRISE DE 1929 ...................................................................................... 22
1.2 – UM NOVO TIPO DE SUBJETIVIDADE EMERGIA? ............................................. 24
1.3 – UM CENÁRIO ENCURRALADO ............................................................................. 28
1.4 – A CONTRACULTURA COMO ESTRUTURA DE SENTIMENTO ....................... 29
1.5 – DO BEBOP AO COOLJAZZ ....................................................................................... 35
1.6 – A CENTRALIDADE DO IMPROVISO ..................................................................... 46
1.7 – A SUBJETIVIDADE: COLTRANE EM CONTÍNUA RENOVAÇÃO .................... 52
1.8 – O PRÉ-MODERNO E A AUTONOMIA ................................................................... 55
1.9 – A INDÚSTRIA CULTURAL E A TÉCNICA ............................................................ 59
1.10 – AS RELIGIÕES E O JAZZ ESPIRITUAL ............................................................... 65
CAPÍTULO 2 – AS LIMITAÇÕES HISTÓRICAS E MATERIAIS DO DISCO ................. 69
2.1 – O TÍTULO ................................................................................................................... 69
2.2 – A CAPA ....................................................................................................................... 72
2.3 – O ELEPÊ ..................................................................................................................... 76
2.4 – O AGRADECIMENTO .............................................................................................. 79
2.5 – A PINTURA ................................................................................................................ 82
2.6 – A ORAÇÃO INTERNA .............................................................................................. 83
2.7 – A GRAVADORA E SELO IMPULSE! RECORDS.................................................... 85
2.8 – AS DISPUTAS SOBRE O JAZZ ................................................................................ 86
2.9 – ANTIJAZZ, NEW THING, AVANT-GARDE JAZZ... OU FREEJAZZ? ....................... 89
CAPÍTULO 3 – O DISCO .................................................................................................... 100
3.1 – A ESTRUTURA DO ÁLBUM.................................................................................. 100
3.2 PT.1 – ACKNOWLEDGEMENT .................................................................................. 103
3.2.1 – Reconhecimento ................................................................................................. 103
3.2.2 – A temporalidade ancestral .................................................................................. 105
3.2.3 – O gongo .............................................................................................................. 107
3.2.4 – A voz de Trane ................................................................................................... 110
3.3 PT.2 – RESOLUTION .................................................................................................. 113
3.3.1 – A transição .......................................................................................................... 113
3.3.2 – Resolução ........................................................................................................... 115
3.3.3 – A presença de Jiddu Krishnamurti...................................................................... 117
3.4 – OS LADOS “A” E “B” .............................................................................................. 122
3.5 PT. 3 – PURSUANCE ................................................................................................... 123
3.5.1 – Continuidades e rupturas .................................................................................... 123
3.5.2 – O improviso inicial ............................................................................................. 124
3.5.3 – A aceleração dos andamentos ............................................................................. 128
3.5.4 – Perseguição ......................................................................................................... 130
3.6 PT. 4 – PSALM ............................................................................................................. 133
3.6.1 – A oração A Love Supreme .................................................................................. 133
3.6.2 – O poema .............................................................................................................. 136
3.6.3 – O salmo ............................................................................................................... 138
3.6.4 – O fim como começo ........................................................................................... 140
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 143
REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 147
APÊNDICES ......................................................................................................................... 151
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 – A capa do disco ....................................................................................................... 72
Figura 2 – John Coltrane: Appeared in A Love Supreme ......................................................... 82
Figura 3 – Poema A Love Supreme de John Coltrane.............................................................. 84
Figura 4 – Escala básica de A Love Supreme ......................................................................... 101
Figura 5 – Linha melódica de Acknowledgement ................................................................... 110
Figura 6 e Figura 7 – Linha melódica de Resolution .............................................................. 114
Figura 8 e Figura 9 – Linhas melódica de Pursuance ........................................................... 129
Figura 10 – Mandala com ciclo de quintas e quartas desenhada por Coltrane ...................... 131
Figura 11 – Rascunho inicial da obra. .................................................................................... 151
Figura 12 – Segundo rascunho (Já com indicação da música Resolution). ............................ 151
Figura 13 – Rascunho de Trane com indicações da oração. ................................................... 152
Figura 14 – Mais um rascunho com desenhos e indicações da oração................................... 153
Figura 15 – Rascunho com música que não consta no álbum. ............................................... 153
Figura 16 – Rascunho da oração A Love Supreme ................................................................. 154
Figura 17 – Transcrição parcial de Psalm .............................................................................. 155
10
INTRODUÇÃO
Nascido na cidade de Hamlet, em 1926, na Carolina do Norte, John William Coltrane
viveu sua primeira infância em um dos estados mais marcados pela forte segregação racial dos
Estados Unidos da América. Seu nascimento se deu no equinócio de setembro, precisamente
no dia 23, data que marca a equivalente distribuição de luz solar nos hemisférios Norte e Sul.
Ainda que esse fenômeno não implique necessariamente algo em sua vida, há um certo
simbolismo sobre o que viria a se tornar sua obra: a busca por igualdade; pela equidade de
diferentes povos; a completude entre luz e escuridão; o senso de unidade entre diversas partes
do mundo; a inexorável relação humana com o cosmos. Coltrane foi e continua sendo um dos
mais importantes protagonistas para o surgimento de uma música que se quis espiritualizada
em meio a um cenário de expansão comercial dos bens culturais que eram produzidos e
circulados.
Criado em uma família de classe média em High Point, cidade vizinha àquela em que
nasceu, perdeu seus avós, seu pai e um tio em um período de seis meses, quando tinha apenas
12 anos. Esta situação reformulou sua dinâmica familiar e consequentemente sua condição
financeira, marcando sua infância e adolescência com um trauma que certamente teria
ressonância futura em sua vida adulta. Cinco anos após o acontecimento, criado apenas por sua
mãe, sua família se mudou para a Filadélfia, onde Trane passou a aprofundar sua relação com
instrumentos de sopro, iniciada anteriormente nos cultos da Igreja Metodista em que seu avô
era reverendo.
O primeiro contato com o saxofone alto foi já morando na Filadelfia (Porter, 1999, p.
28), após o as sucessivas perdas que o abalaram anteriormente, especialmente a morte de seu
pai. Em sua biografia de maior densidade, John Coltrane: His Life and Music, o autor Lewis
Porter afirma que “talvez, em algum sentido, a música tenha sido um pai substituto” (Porter,
1999, p.17) na vida de Trane, se tornando o fio condutor de seus interesses e de suas
experiências, assim como de sua construção estética e espiritual – responsável tanto por suas
limitações, quanto por suas superações. Em outras palavras, a música o criou, para que assim,
em sua maturidade, ele pudesse criá-la também.
Após a perda de seus familiares, a personalidade de Trane se alterou, tornando-se um
rapaz de poucas palavras e de presença discreta. Ainda que tenha se tornado mártir de uma
geração política e espiritualmente engajada, poucas são suas entrevistas documentadas, ou
11
discursos com objetiva demarcação de suas crenças. A potente força de seus sopros, tão
características dos momentos amadurecidos de sua vida, talvez carreguem consigo o indício da
liberação de antigas angústias recalcadas e reprimidas de sua infância. Seu encontro com Miles
Davis, quando adulto, é reconhecido por uma certa contradição irônica e complementar entre
as personalidades e maneiras de tocar de cada um. Miles, explosivo em sua forma de lidar com
o público, jornalistas e artistas, tocava na maioria das vezes de forma lenta, baixa e intimista;
Coltrane, afeito ao silêncio no convívio diário, com certa timidez e simpatia, ficou conhecido
por tocar de forma estridente, frases rápidas, solos de timbres encorpados, muito altos e fortes.
De origem protestante, John não se restringiu aos interesses metodistas de sua família,
embora não os tenha abandonado. Sua jornada existencial não cessou em desbravar expressões
espirituais das mais diversas localidades do mundo. Como dito anteriormente, a música parece
ter sido um caminho pelo qual Coltrane pôde enveredar-se pelas mais distintas formas do ser
humano de expressar os questionamentos de sua condição perante à existência. Isso o levou a
caminhos que têm, sobretudo para o historiador da arte, importância ímpar, uma vez que se
entrelaçam em sua obra o mundo pré-moderno, o mundo moderno e alguns elementos que se
relacionam com a arte de vanguarda1. Assim, a proposta de análise que aqui se coloca é
sobretudo compreender quais são esses elementos, se eles estavam realmente presentes, e se de
fato a condição de entrelaçamento entre eles guarda alguma relação com o surgimento da
contracultura.
Mais do que uma análise restrita sobre a produção de Trane, o trabalho intenta se
aprofundar sobre a noção de contracultura para compreender se ela própria não pode ser
tensionada de forma a abarcar uma gama mais vasta de expressões musicais do que as que
recorrentemente é associada. Não no sentido de torná-la a-histórica, como um fenômeno capaz
de ser transplantado e observado em diferentes momentos e localidade; mas na tentativa de
ampliá-lo em suas nuances, origens e desdobramentos.
O disco A Love Supreme – gravado em apenas uma sessão, num fim de tarde do dia 9
de dezembro de 1964 (Kahn, 2002, p. 83)2, e lançado já em janeiro de 1965 – é fruto do
amadurecimento de John como artista e talvez seja o ponto máximo de sua carreira, se levado
em consideração o aspecto comercial, ou quaisquer outros que estejam associados à sua
popularidade como músico. A gravação e o lançamento do álbum marcam também a passagem
da primeira para a segunda metade da década de 1960, o que guarda mais uma vez certo
1 Nos capítulos seguintes, tentaremos esclarecer as diferenças entre tais noções.
2 Houve também uma gravação no dia seguinte, com a participação dos convidados Art Davis (baixista) e Archie
Shepp (saxofonista), mas não foram para a versão final do disco (Kahn, 2002, p. 129).
12
simbolismo, já que os anos mais característicos da contracultura estão comumente localizados
na segunda metade dos anos 1960. Mas, além de marcar a divisão da década, o disco também
pode ser encarado como um divisor de águas na produção do próprio Coltrane. Veremos adiante
também alguns outros pontos de inflexão em sua vida artística, como ter tocado com músicos
de estatura dentro do jazz, entre eles: Dizzy Gillespie, Miles Davis e Thelonious Monk. Mas,
em se tratando de sua carreira como líder de banda, o disco foi responsável por criar um cenário
possível para posteriores experimentações que seriam inimagináveis caso John não tivesse
alçado um patamar tão proeminente no cenário jazzístico estadunidense.
A divisão entre os primeiros e últimos anos da década tem ainda mais valor simbólico,
pois, a partir de 1966, os Estados Unidos e a Inglaterra (juntamente com outras localidades do
mundo) viram a ascensão de um novo tipo de música, mais vinculada à psicodelia e sobretudo
à juventude branca: o rock. Por mais que a contracultura esteja associada a esses elementos,
veremos alguns antecedentes que pavimentaram caminhos pelos quais diferentes artistas
percorreram para que o rock pudesse emergir nesse cenário e alçar um voo tão alto como
ocorreu na segunda metade da década de 1960. Não são poucos os músicos de rock que atribuem
a Trane importância incontestável em seus trabalhos, seja como inspiração meramente musical,
ou por todo o complexo de referências que seu personagem mobiliza3.
O caminho trilhado por Coltrane em sua carreira ocorreu em paralelo com uma série de
eventos relevantes em seu país. O século XX foi palco da ascensão dos Estados Unidos da
América ao topo da economia mundial e depois da figura central do ocidente na disputa pela
hegemonia em um mundo bipolarizado pela Guerra Fria. Nesse contexto, o jazz pode ser
considerado sua trilha sonora, até ser desbancado pelo rock como principal produto da indústria
fonográfica. Portanto, é importante uma recapitulação que remonte alguns períodos
incontornáveis para que o disco A Love Supreme possa ser mais bem alocado em termos
históricos.
Nos conturbados anos de 1950 e 1960, época de efusão cultural, crise política, ameaça
nuclear, segregação racial, massificação dos meios de comunicação e tantas outras
características peculiares, Coltrane reuniu em sua vasta obra uma série de elementos que
confluíram no sentido de criar, juntamente com outros músicos de jazz, um campo de
experimentações que viria a tomar dimensões inimagináveis anos após seu falecimento.
O álbum A Love Supreme, objeto de análise desta dissertação, é um importante recorte
capaz de ofertar uma gama de elementos para a compreensão, ainda que parcial, da importante
3 Guitarristas como John McLaughlin e Carlos Santana chegaram a gravar um álbum juntos, em 1972, denominado
“Love Devotion Surrender”, em homenagem ao saxofonista.
13
contribuição de Coltrane para o cenário da contracultura sessentista – momento histórico tão
caro aos que buscam refletir sobre novas formas de sociabilidade e de superar os impasses de
nossa organização social e cultural. O vasto interesse do músico, por ultrapassar
substancialmente os limites impostos pela música comercial de seu tempo, contribuiu para
expandir o campo de sensibilidades de seus ouvintes, gerando com isso desencadeamentos que
alteraram radicalmente a estruturação política, social e cultural de sua época.
Muito distante de ter sido o único responsável por colocar em xeque as condições de
reprodução social da desigualdade naquela época, o disco compõe uma constelação de outras
produções artísticas que criaram um amálgama capaz de confrontar um complexo sistema de
negociações culturais que confluíam em prol da manutenção do status quo. A relação do álbum
com esse amálgama é, mais precisamente, o objeto de análise que aqui se apresenta. Portanto,
a análise do álbum em questão trata não somente de elementos que foram importantes para a
vida de Trane e que se expressam no disco, como também a relação do músico com a sociedade,
para que melhor se compreenda a ascensão de uma nova sociabilidade subversiva aos ditames
de seu tempo.
Ainda que pareça haver um substancial hiato entre jazz e contracultura – uma vez que a
história do jazz abrange quase todo o século XX – possíveis pontos de convergência podem ser
traçados nos arredores da década de 1960 para que eventuais relações entre uma coisa e outra
possam ser verificadas.
O desenvolvimento do jazz no século XX e o nascimento da contracultura, no fim dos
anos de 1950 e começo da década de 1960 são essenciais para compreensão da problemática
dessa discussão, assim como a própria história pessoal do músico. A interpolação dessas
narrativas é o caminho pelo qual se é possível aferir as mediações ocorridas entre a vida do
artista e as condições sociais para que sua obra erigisse em um cenário até pouco tempo tão
improvável. Desta interpolação, temas como o racismo, o orientalismo, as espiritualidades e
religiões, a Indústria Cultural e tantos outros serão fios condutores para que a análise musical
não se desprenda do conteúdo social que está inserida e lhe dá forma.
Primeiramente, é conveniente compreender como o jazz se configurou, entre outras
coisas, como mercadoria a partir da década de 19205. Pois seu desenvolvimento, ao longo do
século XX, guarda consigo indícios capazes de esclarecerem uma série de outros
acontecimentos de notória relevância para o estabelecimento da cultura da época até a atual.
5 Vale ressaltar que ele não se expressa única e exclusivamente como mercadoria, mas passa gradativamente a se
relacionar com o expansivo mercado capitalista do período entreguerras e, portanto, sofre pressão para que
expresse também valor de troca.
14
Ainda que atualmente o jazz ocupe uma posição marginal no cenário comercial da música é
necessário que se compreenda sua incontornável importância para o estabelecimento do
massivo consumo da produção fonográfica de alto alcance. O papel da música na sociedade
moderna, embora tenha mudado substancialmente no decorrer das últimas décadas, guarda
ainda algumas características quase essenciais advindas do nascimento e da assimilação do jazz
pela indústria fonográfica estadunidense na primeira metade do século passado. A saber,
principalmente: o consumo massificado.
O emergente estilo musical afro-referenciado nascido em Nova Orleans – que se
espraiou por Chicago, Nova Iorque e não tardou chegar na Europa – teve relação direta com as
demandas impostas pela efervescente economia estadunidense na década 1920, e, sobretudo,
pela reconstrução econômica do país na década seguinte, necessária após a crise de 1929.
O jazz passou a figurar como elemento central da vida cotidiana dos cidadãos
estadunidenses, seja pelo consumo aliado ao nascente american way of life; com o aumento
substancial na venda de rádios6, toca-discos, discos etc.; ou em shows de casas noturnas, onde
a figura do jovem se tornava cada vez mais relevante como elemento capaz de impulsionar um
novo filamento à atividade econômica, sobretudo como consumidor.
As duas condições se complementam e se entrelaçam em um complexo cenário cultural,
no qual a música e economia criam um vínculo tão estreito em que dificilmente é possível falar
de uma coisa sem necessariamente remeter à outra. Não que o jazz possa ser resumido
simplesmente como uma mercadoria que circulava entre a prateleiras dos mercados da época,
ou a alguma commodity nacionalista estadunidense. Isso seria reduzi-lo em sua complexidade
e profundidade. No entanto, não há como contornar o peso das forças que exerciam sobre essa
música influência de moldá-la com o intento de atender suas finalidades.
Se, no século anterior, sobretudo na Europa, muitos artistas não mediram esforços para
se emanciparem das estruturas do Antigo Regime – que basicamente ditavam os limites das
expressões artísticas, como a Igreja ou as academias reais; nesse momento, a arte é rearranjada
conforme os sofisticados ditames de um mercado capitalista já amadurecido, capaz de assimilar
expressões culturais folclóricas, como os precursores do jazz (dixieland, ragtime e afins), e lhes
6 Rodrigo Duarte (2010) nota que: “Somente a partir de meados da década de 1930, quando a produção em massa
de receptores tornou-os mais acessíveis, o rádio começou a se constituir como um meio típico da cultura de massas,
inclusive com uma drástica redução de elementos da “alta cultura” nos programas e um acréscimo de transmissão
de música popular, principalmente na forma de discos produzidos pela recém-estabelecida indústria fonográfica.”
(Duarte, 2010, p. 25)
15
conferir formas mercadológicas rentáveis e capazes de cruzarem o Atlântico, como rapidamente
foi o caso do jazz.
Esta forma talvez mais sutil de manipulação do material que era produzido
artisticamente orienta a pesquisa ao campo de forças estabelecidas e atuantes nos anos de 1950
e seus arredores. Sendo ou não mais sutil, é possível se afirmar apenas que os mecanismos para
se descortinar quais eram as reais finalidades da arte naquele contexto estavam se
complexificando. Portanto, a imbricada relação entre indivíduos, sociedade e cultura, em seus
enlaces, se mostra um campo de fértil análise para que as mediações ocorridas entre e dentro
de cada uma dessas esferas explicite qual papel o jazz ocupava nesse cenário.
A década de 1960 passou a ser o palco de um fenômeno peculiar não somente no cenário
jazzístico, mas da cultura popular de forma mais abrangente: produções artísticas críticas às
formas massificadas que eram difundidas naquele momento passaram a compor o próprio rol
da cultura de largo alcance. Aflorou-se, portanto, uma contradição no seio da indústria musical,
onde o aparato montado para difusão da música comercial espraiava para seus ouvintes a
semente de uma forma de arte crítica a si mesma.
As condições para o estabelecimento dessa contradição serão exploradas adiante, de
forma a compreender a inserção do músico, com destaque para seu álbum de 1965, nesse
cenário de “anomia” cultural. Sobretudo com vias de entender quais dialetos jazzísticos ele
estava familiarizado e quais as práticas culturais externas às americanas Coltrane se sentiu
impelido a buscar e reinterpretar à sua moda, para que assim pudessem circular entre os
ouvintes.
Posto isto, a relação entre o artista e as condições de sua produção artística também
compõe o arcabouço deste trabalho, uma vez que esse hiato é composto pelo conteúdo social
capaz de dar corpo ao que realmente se pretende esboçar com a pesquisa: a busca por índices
de realidade capazes de darem contornos coerentes para o surgimento e expansão da peculiar
contracultura sessentista, especialmente a estadunidense, mas que ressoa até hoje residualmente
em diversos lugares do mundo.
A partir desses contornos, é possível que se tensione também a noção de “contracultura”,
podendo assim extrair dessa categoria maior riqueza analítica para compreender os fenômenos
que ocorriam às margens da centralidade do mundo capitalista. A obra de Coltrane mobiliza
questões como ancestralidade, espiritualidade, diáspora africana, islamismo etc. Todos esses
temas são caros à ruptura representada pela contracultura, mas que algumas vezes são
correlacionados com questões de outra ordem e secundarizados quando trabalhados em relação
à própria cultura dos anos de 1960.
16
Em outras palavras, a contracultura só é minimamente apreensível historicamente a
partir de uma recapitulação da condição para que seus elementos principais pudessem circular
e tomar corpo na nova juventude que se afigurava. Isso só foi possível a partir da relação
supracitada, entre o artista e seu público. Na maioria das vezes, o desenvolvimento das obras
de um artista somente se dá se houver um certo grau de sintonia entre o que ele produz e o que
o público está disposto a consumir. Para que as condições objetivas comerciais de
experimentação de um artista se deem (como gravadoras, músicos, engenheiros de som e selos
musicais aceitarem participar de um certo projeto proposto), é comum que se espere um retorno
de alguma natureza do público.
Por conseguinte, o olhar e escuta direcionados ao álbum buscam também seus arredores.
Buscam expandir o mero aspecto sonoro (ainda que ele seja fundamental) para que se revelem
condições objetivas e subjetivas da circulação cultural ocorrida na passagem da primeira para
a segunda metade da década de 1960. Desse modo, pode-se apreender como determinadas
atitudes e princípios que se delineavam no campo da literatura, das artes cênicas, ou até mesmo
de aspectos comportamentais de uma forma geral, passaram a compor o campo da música.
Essa passagem é marcada pela consolidação do deslocamento do jazz de uma posição
central dentro da indústria fonográfica para sua periferia. O surgimento do rock, no meio da
década, teve incontornável participação nesse processo (principalmente como beneficiário) que
vinha ocorrendo desde anos anteriores, com o surgimento e difusão de novos gêneros derivados
do blues, como o soul, o R&B ou o rock’n’roll dentro do espectro musical da época. Se as
décadas anteriores tiveram grandes nomes como Louis Armstrong, Duke Ellington ou Benny
Goodman figurando o estrelato máximo da música norte americana; a partir do surgimento do
bebop, os principais nomes do jazz se tornaram figuras secundárias dentro do cenário musical,
muitas vezes até agonizando de pobreza, miséria ou condições equivalentes.
O historiador Ted Gioia (2011), ao analisar uma primeira aproximação do jazz com o
modernismo, culminando no bebop, observa que esse movimento se dá de forma inesperada,
não pela assimilação dos grandes nomes estabelecidos na era do swing, mas por músicos
viajantes em ambientes de underground. Como podemos observar no excerto a seguir.
A ironia é que o jazz moderno não nasceu de nenhuma dessas raízes. Ele não
veio nem dos concertos do Carnegie Hall do Duke Ellington ou do Goodman,
nem dos pianistas virtuosos do Harlem Stride, nem de sons experimentais das
big bands da era do swing. É verdade que parte de suas inspirações estão
nessas fontes, mas não soavam nada como elas. Ao contrário, os principais
jazzistas modernos desenvolveram seu estilo único, impetuoso e sem remorso,
em salas dos fundos e clubes da madrugada, em sessões de jam e com bandas
17
itinerantes. Essa música não era para consumo comercial, nem era para estar
nesse estágio embrionário. Ela sobreviveu nos interstícios do mundo do jazz.
Suas idas e vindas não eram anunciadas nos jornais de registro. Suas primeiras
figuras eram, na melhor das hipóteses, figuras cultas por trás das cortinas, não
estrelas da casa7 (Gioia, 2011, p. 186-187)8.
No entanto, a condição secundária legada ao jazz pela indústria fonográfica expandiu de
forma significante o campo das possibilidades de criação e de experimentações para seus
artistas. As rígidas formas impostas pelo mercado musical, na busca de sucessos que
emplacassem nas rádios, se afrouxavam, uma vez que já não recaía tanto mais sobre os ombros
dos jazzistas a responsabilidade de produzir hits que movimentassem a vida noturna da
economia do pós-guerra. Portanto, a relação do jazz com o modernismo lhe ofertou um grau de
autonomia por afastá-lo do epicentro comercial da música (um efeito contrário ao modernismo
europeu, que surgiu a partir de demandas efetivas por um mercado de arte).
Não fosse, portanto, a relação estabelecida com um novo público que se afigurava, os
jazzistas tinham todas as razões para caírem no ostracismo ou se adaptarem às novas demandas
mercadológicas do mundo musical que emergiam. No entanto, o jazz se aproximou cada vez
mais de um tipo de jovem muito específico: uma juventude intelectualizada, experimental,
porém marginalizada e exaurida de grandes aspirações materiais, dado o desgaste advindo do
contexto da sociedade de consumo e da iminente guerra nuclear que se prospectou no decorrer
de toda a Guerra Fria. Norman Mailer, escritor e jornalista precursor do movimento
denominado New Journalism os define assim, em seu seminal e polêmico ensaio de 1957, The
White Negro:
É nesse cenário desolador que um fenômeno apareceu: o existencialista
americano – o hipster, o homem que sabe que se é nossa condição coletiva
viver com a morte instantânea pela bomba atômica, relativamente rápida
morte pelo Estado como em L’Univers concentrationnaire*, ou com uma
morte lenta pelo conformismo, com cada instinto criativo e rebelde reprimido
(em que os danos na mente, no coração, no fígado e nos nervos nenhuma
fundação de pesquisa do câncer vai descobrir), se o destino do homem do
século XX é viver com a morte na adolescência por uma demência prematura,
porque a única resposta que a vida dá é a aceitação dos termos da morte, para
viver com a morte como perigo imediato, para divorciar si mesmo da
7 The irony is that modern jazz sprang from none of these roots. It came neither from de Carnegie Hall concerts of
Ellington and Goodman, nor from the virtuoso pianists of Harlem Stride, nor from the other experimental big band
sound of the Swing Era. True, it Drew bits and pieces of inspiration from all these sources, but it sounded like
none of them. Instead, the leading jazz modernists of the 1940s developed their own unique style, brash and
unapologetic, in backrooms and after-hours clubs, at jam sessions and on the road with traveling bands. This music
was not for comercial consumption, nor was it meant to be at this embryonic stage. It survived in the interstices of
the jazz world. Its comings and goings were not announced in the newspaper of record. Its early stars were, at best,
cult figures from beyond the fringe, not household names. (Tradução nossa)
8 GIOIA, Ted. The History of Jazz. Oxford University Press, 2011.
18
sociedade, para existir sem raízes, para se estabelecer nessa desconhecida
jornada dentro de imperativas rebeliões de si mesmo9 (Mailer, 2007)10.
Os assim chamados hipsters, os quais faremos menção mais aprofundada no primeiro
capítulo, esmorecidos em face à dinâmica social do capitalismo tardio, tornaram-se elemento
imprescindível para dar liga entre um grupo de músicos escanteados pela nova configuração da
indústria fonográfica e um contingente inimaginável de jovens. Mais precisamente, os hipsters
se tornaram o pontapé inicial de um processo de aglutinação social entre uma juventude à deriva
e um grupo de músicos que habitavam as bordas do complexo da indústria fonográfica, pois
foram aqueles que buscaram no jazzman – um genérico sujeito marginalizado que vivia à
espreita da sociedade – grande parte de suas inspirações.
Dificilmente, A Love Supreme teria obtido a circulação que obteve não fosse tal
assimilação por esse grupo de jovens: um elemento mediador para a circulação de ideias
subversivas, de hábitos não convencionais e de uma estética alternativa à padronização da
época, ensejando com isso um cenário contracultural até então inimaginável.
Assim sendo, a contracultura configura um dos momentos mais instigantes da história
contemporânea por conjugar uma série de contradições. Ainda que a história seja repleta delas
– para muitos, ela até é movimentada pelo combustível das contradições –, o que impressiona
nos anos em que a contracultura já estava amadurecida era justamente como essas contradições
se tornaram tão evidentes e próximas, ou mais precisamente como elas se conjugavam de forma
destrutiva e criativa. Mais do que isso: de como a dinâmica dessas contradições quase deu lugar
a um estágio de superação do capitalismo dentro de seu sistema nervoso central por meio de
vias que a ortodoxia jamais poderia prever.
Todo o complexo da indústria fonográfica e de rádio de largo alcance se tornar
responsável pela difusão de um material artístico crítico a si mesmo, por exemplo, foi um
fenômeno singular na história dos meios de comunicação em massa. Os jovens de classe média
abastada tornarem-se quase espécies de eremitas que cortavam o país atrás de shows e
9 It is on this bleak scene that a phenomenon has appeared: the American existentialist — the hipster, the man who
knows that if our collective condition is to live with instant death by atomic war, relatively quick death by the State
as l’univers concentrationnaire, or with a slow death by conformity with every creative and rebellious instinct
stifled (at what damage to the mind and the heart and the liver and the nerves no research foundation for cancer
will discover in a hurry) , if the fate of twentieth century man is to live with death from adolescence to premature
senescence, why then the only life-giving answer is to accept the terms of death, to live with death as immediate
danger, to divorce oneself from society, to exist without roots, to set out on that uncharted journey into the
rebellious imperatives of the self. (Tradução nossa)
10 MAILER, Norman – The White Negro: Superficial Reflections on the Hipster. Dissent Magazine, Julho, 2007.
University of Pennsylvania Press. Disponível em:
19
experiências psicodélicas, abdicando da abundante variedade de mercadorias que a sociedade
de consumo lhes imprimia por todos os lados, também. O folk, historicamente marcado pela
música acústica e itinerante, aderiu a guitarra elétrica e as grandes gravadoras11. O jazz criar
um forte vínculo com religiões orientais, sobretudo o Islamismo. A criação de um partido
político composto por integrantes negros de orientação marxista e maoísta, como foram os
Panteras Negras, com uma estética aliada a uma filosofia altamente sofisticada no epicentro da
Indústria Cultural é outro exemplo. A aproximação de jovens brancos com a juventude negra,
ainda que muitas vezes de forma atritada, em um país marcado por séculos de segregação racial,
também não poderia ficar de fora da extensa lista possível de ser elencada aqui.
A verdade é que, mais do que anos de contradições afloradas, a contracultura foi um
momento em que essas contradições flertaram com possíveis resoluções, devido à proximidade
que polos historicamente opostos passaram a ter. Também é verdade que possíveis novas
contradições poderiam surgir desse processo histórico, assim como de fato vieram a ocorrer.
No entanto, não por meio da superação e assimilação dos impasses colocados na década de
1960, mas sim pelo aprofundamento das diferenças que outrora estiveram tão próximas. A
década que se sucedeu, de 1970, foi exitosa em desmantelar o cenário coeso que se prospectou
em fins dos anos 1960. E os mecanismos que foram fundados e usados para tal
desmantelamento se acentuaram desde então.
Compreender o papel incontornável de Coltrane para a emergência desse fenômeno é o
que se intenta como objetivo central desta pesquisa. Sobretudo por meio do disco citado, uma
vez que ele se situa no centro das atenções dos músicos que vieram posteriormente, em se
tratando de sua obra como um todo.
O ponto de partida a ser trabalhado no decorrer desta dissertação é que o disco conjuga
grande parte dos elementos que estavam colocados de forma esparsa anteriormente à sua
realização, de forma a dar um corpo coerente para posteriores experimentações. Sejam esses
elementos no cenário do jazz; da cultura suburbana de bares; do consumo de entorpecentes
como forma de atingir estágios de superação do sofrimento; dos hipsters desiludidos; da
espiritualidade mambembe; do fetiche orientalista etc. Além de conjugar tais elementos, o disco
parece ter sido capaz de transmitir à juventude branca, ainda que minimamente, o sentido que
a experiência negra nos Estados Unidos da América vinha adquirindo desde os anos iniciais de
diáspora, mas sobretudo no século XX.
11 O enfurecimento do público no Newport Folk Festival, em 1965, ao ver Bob Dylan usando a guitarra elétrica
talvez seja o símbolo maior dessa tensão.
20
Isso é, compreender como o álbum figura em uma miríade de outras obras, incluindo
obras de outros artistas – como Miles Davis ou Charles Mingus – pode elucidar a origem de
tais aproximações surpreendentes que configuram este recorte temporal e espacial ímpar que
denominamos contracultura.
Assim sendo, decidimos por dividir a dissertação em três capítulos: cada um com um
enfoque específico, para nos aproximar cada vez mais da proposta do músico, conforme as
condições materiais para os surgimento e circulação do disco.
O primeiro capítulo discute alguns tópicos um pouco mais distantes do álbum em si,
para familiarizar o leitor aos antecedentes do disco: o rearranjo econômico norte-americano
após a quebra da Bolsa de Nova Iorque, suas consequências sobre as condições dos jovens e a
decorrente reestruturação social proveniente disso; o nascimento da Indústria Cultural e suas
consequências nos processos de uniformização das produções culturais; e, posteriormente, a
decorrente bonança material pra jovens brancos por meio da socialdemocracia, acarretando um
vazio existencial responsável pelo nascimento dos hipsters; o encontro de tais jovens com o
músicos negros de jazz que estiveram apartados do processo de reestruturação econômica etc.
Tal capítulo contém a maioria dos conceitos que serão posteriormente articulados na elaboração
da dissertação.
No segundo capítulo, focamos em dois pontos interpolados: as características materiais
do disco em si e as limitações objetivas para a consolidação dos processos criativos e subjetivos
dos músicos majoritariamente negros – fossem elas materialmente delimitadas por questões
objetivas de estúdio, ou, na maioria das vezes, estabelecidos por uma crítica branca que se
esforçava mais em interromper os processos criativos de músicos negros do que realmente
tentar compreender quais aspectos estavam sendo mobilizados a partir daquela estética
nascente.
Por fim, o terceiro capítulo buscou analisar as faixas do álbum, uma a uma, com suas
rupturas e continuidades em sua relação com aspectos da contracultura. Obviamente, alguns
pontos foram escolhidos em detrimento de outros. Talvez algum aspecto relevante tenha sido
pouco explorado, mas parece haver na pesquisa intelectual um índice que sempre nos foge e
nos impulsiona a continuar pesquisando. Lewis Porter (2020) escreveu em artigo recente
denominado A Deep Dive Into John Coltrane’s “A Love Supreme”12, para a revista WBGO,
12 PORTER, Lewis. A Deep Dive into John Coltrane’s “A Love Supreme” by his Biographer: Pt. 1. WBGO, Julho,
2020. Disponível em:
21
que “uma vez que você entra no mundo do Coltrane, ele se torna cada vez mais abrangente”13
e, certamente, esta afirmativa guarda certa correspondência com a realidade. Coltrane foi um
dos grandes artistas do século XX – um daqueles que fundou sua vida na arte e que certamente
a revolucionou; tentar traduzi-lo à exaustão em uma dissertação seria, além de certa
ingenuidade, um trabalho fadado à ingratidão. Por isso, alguns pontos foram objeto de maior
profundidade em razão de outros. Ainda que tentando dar primazia ao objeto, a miríade de
possibilidades que emergem desse processo é de complexa organização textual, tal como de
difícil compreensão intelectual.
13 “once you get into the world of Coltrane, it becomes all-encompassing”. (Tradução nossa)
22
CAPÍTULO 1 – O CENÁRIO PARA IRRUPÇÃO DO DISCO
1.1 – O JAZZ E A CRISE DE 1929
O jazz foi um dos mais importantes elementos para que os Estados Unidos pudessem
superar a crise econômica causada a partir da quebra da bolsa de Nova Iorque, em 1929. O
planejamento sobre a produção e consumo de cultura tornou-se uma alternativa à saturada
economia que anteriormente havia empreendido seus esforços na produção industrial pesada,
visando atender uma Europa até então devastada pelos efeitos da Primeira Guerra Mundial.
Com o colapso proveniente da reestruturação econômica europeia no Entreguerras e o
natural recuo de demanda pela produção do país, os Estados Unidos se viram sem alternativas
para escoar o alto fluxo de mercadorias provenientes de sua indústria. Esse descompasso, com
muitas nuances, culminou na já referida Crise de 1929, momento ímpar para se compreender a
necessidade de expansão do capital para além da estrita esfera de produção e circulação de
mercadorias advindas do complexo industrial americano. O pesquisador Jon Savage (2007)
detalha a situação da juventude em decorrência da quebra da bolsa.
A Depressão atingiu com força os adolescentes. Entre aqueles com idade para
estar no ensino secundário, 40% não estavam na escola, enquanto subiam os
números dos que abandonavam os estudos antes de se formar. Ao mesmo
tempo, o desemprego entre jovens subia vertiginosamente. Quatro milhões de
jovens americanos dos 16 aos 24 anos estavam na rua procurando trabalho:
cerca de 40% eram adolescentes. Em 1932, o “Exército Infantil” tinha 200 mil
andarilhos e esse número subia rápido, uma proporção muito pequena mas
altamente visível dos 14 ou mais milhões de americanos com idades entre 10
e 20 anos (Savage, 2007, p. 302-303)15.
Na urgência de oxigenar o mercado, novos filões de consumidores se fizeram
necessários. A criação de um conceito de juventude, no sentido moderno de utilização de seu
termo – um alargamento da fase transitória entre a infância e a vida adulta – teve papel crucial
para isso. Se a infância demarcava o momento da vida em que se era basicamente um
consumidor, enquanto a fase adulta estava imbuída do dever de sobretudo produzir e sustentar
a família (ainda que consumindo também), a criação de um hiato entre uma coisa e outra poderia
contribuir para equalizar o descompasso causador da crise. Assim, prolongar a infância se
tornou uma alternativa capaz de arrefecer as duras consequências da quebra da bolsa.
15 SAVAGE, Jon. A criação do conceito de juventude: como o conceito de teenage revolucionou o século XX.
RJ: Rocco, 2009.
23
Mas, além disso, como a juventude não se caracterizava apenas como um
prolongamento da infância, se tornou necessário também criar uma finalidade para esse estágio
da vida, uma razão que justificasse esse rearranjo: a vida universitária.
O jovem que até então se tornaria mão de obra industrial ou do campo assim que
atingisse a maioridade, nesse momento passava a ser atribuído com uma ocupação que estendia
sua permanência em um estágio menos produtivo e mais consumidor. De quebra, a universidade
expandia as barreiras do conhecimento científico e tecnológico de seu tempo, mantendo os
Estados Unidos no patamar de maior potência econômica mundial, alçado após o fim da
Primeira Guerra Mundial. Posteriormente, com o panorama de Guerra Fria, esse papel se fez
ainda mais importante.
Dessa forma, o Estado, ao solucionar em partes um problema, aumentava ainda o corpo
de mão de obra especializada para complexificar sua economia, que padecia em suas antigas
formas. Foi uma solução duplamente proveitosa muito associada ao famoso plano econômico
New Deal.
No entanto, já estava em curso a consolidação de um novo filamento na dinâmica social
estadunidense, antes mesmo do novo plano econômico, dado que a economia pós-guerra já
demandava certa sofisticação da organização industrial estadunidense. Savage (2007) observa
que:
Entre 1919 e 1922, o número de alunos universitários duplicou. Este impulso
para a educação de terceiro grau foi facilitado por famílias menores, um
grande grupo de 15 a 24 anos, e a crescente sofisticação dos negócios
americanos. A corporatização precisava de toda uma nova classe de
executivos, conforme o número daqueles que trabalhavam na administração
triplicava entre 1899 e 1929 (Savage, 2007, p. 229)16.
No entanto, havia ainda uma grande resistência da população e dos setores
conservadores acerca da autonomia que a juventude passou a gozar. Principalmente, a partir do
momento em que ela era reconhecida como um setor autenticamente importante para a
economia política do país. Além disso, o jazz era a expressão cultural mais associada às novas
práticas de uma juventude que se diferenciava muito da geração anterior em relação aos
costumes. Como explicita Savage (2007).
No início dos anos 1920, o jazz era um divisor de gerações. A Ladies Home
Journal lançou uma “cruzada” antijazz: “Quem diz que ‘jovens de ambos os
sexos podem se misturar num abraço íntimo’ - com braços e pernas
16 Ibidem.
24
entrelaçados e os troncos em contato -, sem sofrer danos, mente. Acrescente a
esta posição o movimento oscilante e o sensual estímulo da abominável
orquestra de jazz com seus acordes de origem vodu e seu direto apelo ao centro
sensorial, e se você é capaz de acreditar que a juventude é a mesma depois
desta experiência, então que Deus tenha piedade do seu filho (Savage, 2007,
p. 232)17.
No entanto, conforme a quebra da bolsa de valores se deu, a juventude que se
prospectava ainda de forma incipiente e sob olhar duvidoso tornou-se um impulsionador crucial
para a saída da crise, e sua condição social deu um salto. Assim, é necessário que esse processo
seja compreendido dialeticamente, conforme as possibilidades de seu momento histórico. Não
se trata, portanto, de uma agenciação ocorrida em via de mão única, na qual uma nova forma
de juventude foi criada somente visando superar uma crise, onde cada etapa é milimetricamente
elaborada. Há uma certa espontaneidade guiada nesse processo, que já ocorria desde o fim do
século anterior, onde paulatinamente a fase de transição entre infância e vida adulta se expande
e acaba se naturalizando aos olhos das famílias estadunidenses, já que se tornava muito
conveniente o nascedouro e a consolidação de uma etapa da vida até então desaprovada pela
geração anterior.
Como observado anteriormente, fez-se necessária a expansão do ensino superior nos
Estados Unidos para que essa juventude fosse alocada socialmente. A nova noção de juventude
que ali nascia estava, entre outras coisas, muito vinculada à vida universitária, ao pertencimento
a uma instituição de ensino superior.
Além disso, como não somente se criava um ambiente aglutinador de elementos joviais,
mas também se investia na produção de conhecimento do país, a economia industrial
estadunidense passou por uma reconfiguração muito importante após a crise: a produção em
larga escala teve que se adaptar às demandas individuais para se manter competitiva, embora a
maioria dos produtos não diferisse tanto assim um do outro, se observados de um ponto de vista
utilitário.
Na verdade, para conseguir oxigenar a já exaurida dinâmica do american way of life,
foram criadas diversificações das mesmas mercadorias, com finalidade de criar vagas
estratificações capazes de impulsionar a competitividade de mercados que tendiam a estágios
avançados de monopólio e de uniformização.
1.2 – UM NOVO TIPO DE SUBJETIVIDADE EMERGIA?
17 Ibidem.
25
As novas noções de individualidade que emergiam desse processo de reconfiguração do
pós-guerra, cada vez mais uniformes, tinham maior finalidade para a circulação financeira do
que para um processo de individuação de seus partícipes – em que supostamente os indivíduos
de uma determinada sociedade buscariam refletir sobre suas condições de sujeitos, das forças
que os coagem e sobre quais as possibilidades concretas de superação disso. Theodor Adorno
e Max Horkheimer notam, em seu famoso ensaio “A Indústria Cultural”, no livro A Dialética
do Esclarecimento, de 1947, essa característica de “diferenciação” de um mesmo produto:
O esquematismo do procedimento mostra-se no fato de que os produtos
mecanicamente diferenciados revelam-se, no final das contas, como sempre
os mesmos. A diferença entre a série de Chrysler e a série de General Motors
é substancialmente ilusória, como sabem até mesmo as crianças “vidradas”
por elas. As qualidades e as desvantagens discutidas pelos conhecedores
servem apenas para manifestar uma aparência de concorrência e possibilidade
de escolha. As coisas não caminham de modo diverso com as produções da
Warner Brother e da MGM. Porém, as diferenças se reduzem cada vez mais,
mesmo entre os tipos mais caros e os mais baratos da coleção de modelos de
uma mesma firma: nos automóveis, a variação no número de cilindros, no
tamanho, nas novidades do gadgets; nos filmes, a diferença no número de
astros, na fartura dos meios técnicos, mão de obra, figurinos e decorações, no
emprego das mais recentes formas psicológicas (Adorno; Horkheimer, 2021,
p. 11)18.
Para a expansão desse tipo de economia superficialmente diversificada era necessária
uma nova forma de mão de obra capaz de atender às demandas técnicas que também se
especializavam cada vez mais. A expansão universitária, portanto, está altamente ligada à
expansão do consumismo da época. De forma que os cursos que surgiam tinham por finalidade
abastecer e gerir o mercado interno e externo com profissionais capazes de atender
rigorosamente as demandas que surgiam de uma engrenagem de funcionamento cada vez mais
sofisticada. Além disso, esses mesmos jovens se tornariam parcela responsável pelo consumo
dos bens produzidos. Assim, a expansão do capital se dava de forma a balancear sua produção
e consumo, que outrora esteve muito desigual.
Como consumir se tornou gradativamente um elemento fundamental dessa nova
configuração pessoal, nada mais compreensível do que as mudanças superficiais em
mercadorias fundamentalmente iguais tivessem decorrências análogas nos processos de
subjetivação dos indivíduos daquela sociedade, uma vez que a existência e o psiquismo são
18 ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Indústria Cultural e Sociedade. RJ: Paz & Terra, 2021.
26
forjados nos processos materiais e cotidianos que os constituem19. Se se consumia mais, maior
era a influência que as mercadorias exerciam sobre suas vidas e nas elaborações conscientes e
inconscientes sobre si e o mundo. Surgiu com esse processo a ascensão de uma subjetividade
muito uniforme, que se objetivava conforme os ditames de mercado e que, posteriormente, viria
a ser questionada e defrontada por parcela dos jovens da contracultura.
O jazz da época, ao ser constantemente pressionado também por forças de
uniformização com diferenciações mais superficiais do estruturais, acabou assumindo com isso
uma forma pré-estabelecida de sucesso. O historiador inglês Eric Hobsbawm (2017) esboça,
em seu clássico História Social do Jazz, um esqueleto dessa forma:
A variedade de música não processada é reduzida uniformemente a uns
poucos modelos de produção principais, ou até na imensa maioria dos casos,
a um só, que é o de 32 compassos com coro em três partes, consistindo em
uma melodia de oito compassos (o carro-chefe), repetido, o release, a ponte,
o canal ou apenas a parte intermediária, e a repetição do início (Hobsbawm,
2017, p. 217 - 218)20.
Para além disso, como também observam Adorno e Horkheimer (2021), nessa mesma
época, como uma alternativa de expansão ainda maior, surge um sofisticado entrelaçamento
entre cultura e capital21, o qual eles conceitualizaram já na década de 1940 como Indústria
Cultural. Mais precisamente, o capital adentra o campo da cultura, fazendo com que a precisão
técnica que domina o campo industrial e financeiro também se aplicasse à produção cultural.
Mais do que uma investida completamente elaborada, esse cenário se desenhou num processo
histórico repleto de complexidades e idiossincrasias (Adorno; Horkheimer, 2021).
Isso é, as condições objetivas para que a cultura da época se tornasse um instrumento
acessório no movimento de realização do capital vinham de um desenvolvimento conflituoso
entre as condições moderna e pré-moderna da arte no centro do mundo capitalista, ainda que
cada local guardasse suas singularidades (o caso do modernismo norte-americano dialogava
com uma tradição pré-moderna muito diferente da europeia, por exemplo).
Além disso, como vimos anteriormente, uma nova forma de subjetividade comum se
desenhava em decorrência das agenciações entre o imbricado campo da cultura e economia:
19 Não se trata, no entanto, de um mero processo de reflexo. Há uma série de diferentes mediações que podem
ocorrer nessa relação das quais são objetos de estudo sobretudo de áreas como a psicanálise.
20 HOBSBAWM, E. J. História social do jazz. SP: Paz e Terra, 2017.
21 Rodrigo Duarte (2010) resume da seguinte maneira: “Em outras palavras, era a invasão da esfera da cultura pela
reificação potencializada do esclarecimento” (Duarte, 2010, p. 43).
27
uma subjetividade mais homogênea, que retroalimentava a homogeneidade formal das
produções de mercadorias do capitalismo tardio.
O conflito entre as condições da arte descrito acima é de suma importância, posto que
dele se extrai a tônica da obra de Coltrane. Veremos adiante que anteriormente à Crise de 1929
as formas pré-modernas ainda habitavam com certa força alguns poucos recintos ritualísticos,
religiosos e litúrgicos do qual John frequentava enquanto jovem. Portanto, as contradições
encontradas em sua produção expressam, em partes ao menos, as contradições que avançavam,
estagnavam, ou regrediam o desenvolvimento do material artístico de seu tempo.
As resoluções encontradas para determinados impasses constituem também matéria de
suma importância, pois a subjetividade do artista foi um fator crucial como forma de resistir às
investidas formais que o grande complexo musical estabelecido realizava diante dos artistas
que gozavam de certa relevância no cenário cultural. A impressão da subjetividade em suas
obras será tema que se discorrerá recorrentemente adiante no trabalho.
Ao se referir à obra de Coltrane (e também de Charles Mingus), o musicólogo americano
Scott Saul (2003) foge do determinismo de atribuir suas criações às condições concretas
contextuais em que estava inserida a população negra da época, tais como expressões que
necessariamente surgiriam num cenário de tanta desigualdade social. Tampouco descola desse
cenário o material pelo qual Coltrane pôde substanciar sua produção de maneira singular. Em
outras palavras, o autor ressalta como as condições objetivas permitiram a realização subjetiva
de Trane (Saul, 2003, p. X):
Enquanto artistas como Mingus e Coltrane estavam constante e heroicamente
determinados e intencionados – de fato, muito do magnetismo de suas músicas
vem de como eles tornaram palpável seus atos de auto concentração – eles
também estavam submetidos ao familiar predicado de fazer história sob
condições que eles mesmos não escolheram. Além disso, essas condições
colocadas geralmente tinham um efeito poderoso sobre suas músicas que seria
não muito sábio atribuí-las sempre ao pano de fundo; certamente, poucos
jazzistas poderiam proporcionar tanto no contexto de suas vidas e trabalho22
(Saul, 2003, p. X)23.
Neste excerto, o autor emprega uma análise materialista para situar tanto Mingus quanto
Coltrane, objeto da análise aqui empreendida, como artistas que conscientemente faziam
22 While artists like Mingus and Coltrane were often heroically determined and willful—in fact, much of the
magnetism of their music comes from the way that they made palpable this act of self-concentration—they were
also stuck in the familiar predicament of making history under conditions not of their own choosing. Moreover,
these unchosen conditions often had such a powerful effect on the music that it is unwise to push them always to
the background; certainly few jazz musicians could afford to do so in the context of their own life and work.
(Tradução nossa)
23 SAUL, Scott. Freedom Is, Freedom Ain’t: Jazz and the making of the sixties. Harvard University Press, 2003.
28
história diante das circunstâncias que estavam colocadas concreta e historicamente. Se o
paradigma colocado a esses artistas naquele tempo era sobretudo a liberdade do povo negro
estadunidense, expressas legalmente pelas Leis de Jim Crow, que regulamentavam a segregação
racial nos Estados Unidos, é compreensível que a liberdade fosse a tônica expressa em suas
manifestações artísticas, seja em forma ou em conteúdo.
Não é por acaso, portanto, que A Love Supreme tenha sido gravado justamente em 1964,
no mesmo ano em que as Leis de Jim Crow – exemplo máximo da segregação racial
institucionalizada legalmente nos Estados Unidos – se extinguiram definitivamente.
1.3 – UM CENÁRIO ENCURRALADO
Em uma acepção ainda genérica do contexto, o cenário para a liberdade de criação de
um artista se via encurralado por uma série de fatores, mas que podem aqui ser reduzidos a dois
polos para fins de clareza argumentativa. Em suma, ou o artista poderia incorrer em produzir
sobre as formas pré-concebidas pelo mercado artístico e, caso se destacasse por algum adereço
adicionado, gozaria de algum prestígio a mais, podendo escalar sua carreira no meio em que
estivesse inserido; ou o artista poderia ousar radicalmente e produzir algo incapaz ou
dificilmente assimilável por seu público, ficando à deriva no mercado artístico estabelecido e
fazendo um tipo de arte retroflexa, inócua, solipsista e voltada somente para si.
Adiante veremos então como a forte relação de Coltrane com um público específico,
sobretudo uma juventude que se cansou do panorama descrito no tópico anterior, foi essencial
para que os processos de experimentações pudessem ocorrer e tomar corpo quase
organicamente na sociedade em que estava inserido. Posto isto, o primeiro dos casos, em que o
artista busca brechas em um cenário consolidado, com vias de se destacar por meio de algo
superficialmente novo, mas que mantém a estrutura inicial quase intacta, possui uma função
muito importante para a circulação cultural controlada. Isso é, pequenas mudanças possuem um
importante papel de oxigenar o mercado, mas sem causar um choque capaz de colocar em xeque
a fidelidade de seus consumidores. Dessa forma, evita-se o novo24, mas podia-se vender algo
com aparência de novo.
24 Peter Burger resume a noção de “novo” para Adorno, a qual nos tem utilidade aqui, de tal forma: “Adorno deduz
o novo, como categoria da arte moderna, a partir da renovação dos temas, motivos e procedimentos artísticos, que
também marcaram o desenvolvimento da arte antes do aparecimento do modernismo. E o faz por ver essa categoria
fundada na hostilidade – que caracteriza a sociedade capitalista-burguesa – à tradição.” (Burger, 137, p. 136-137).
Isto posto, a forma de operar a qual nos referimos é justamente uma forma de submeter mudanças pontuais sem
hostilidade à tradição (ou, se preferirmos, às formas).
29
O segundo caso, em que o artista assume postura radicalmente afrontosa diante da
rigidez imposta pelo mercado, não parece causar tanto perigo ao estado de coisas, uma vez que
sua ressonância se dá em circuitos muito restritos de circulação cultural, não ocasionando real
ameaça a toda a complexa estruturação da produção e circulação de bens culturais. Uma vez
abafada a voz que aponta a direção do novo, seu teor de verdade, seu potencial risco de
desestabilizar e reorganizar o estado de coisas, de tensionar as noções que juntas explicam a
realidade, é quase nulo.
No entanto, como esses dois cenários não se apresentam de formas completamente
independentes, excludentes e rígidas, alguns momentos históricos apresentam uma tênue fresta
para a atuação de um artista – ora muito estreita, quase inexistente; ora mais larga, capaz de
abrigar uma vasta gama de expressões sobre o novo e ainda assim ganhar corpo na cultura
popular. Um local onde o novo não serve somente à retroalimentação do já existente, nem onde
seus apontamentos mais radicais são inócuos em face do que se encontra estabelecido. É nessa
fresta que Coltrane atuou durante parte de sua vida, de forma a alargá-la para que seus ouvintes
pudessem experimentar algo substancialmente transformador a partir de uma experiência
estética muitas vezes hostil à tradição e às formas.
Se a seguinte afirmação de Hobsbawm (2017) guarda de fato correspondência com a
realidade do jazz, pode-se dizer que Coltrane esteve imerso em ambos os trajetos.
Mas o jazz percorreu dois caminhos distintos. Um deles passando pela
indústria de entretenimento popular comum, comercial, dentro da qual ele
viveu, e ainda vive, e para a qual ele constantemente empresta aquilo que ela
não pode, sozinha, dar ao seu público, até que acaba por enfraquecer a fonte
de seus empréstimos. O jazz fez grande parte das suas conquistas como
integrante do mundo pop, emprestando um sabor especial a uma música pop
cada vez mais influenciada pelo jazz. Mas também traçou um caminho
independente, como uma arte isolada, apreciada por grupos especiais de
pessoas, separadamente, e muitas vezes em franca oposição à música pop
comercial (Hobsbawm, 2017, p. 44)25.
1.4 – A CONTRACULTURA COMO ESTRUTURA DE SENTIMENTO
O pensador galês Raymond Williams possui uma farta elaboração sobre a dinâmica da
cultura capaz de enriquecer a análise do cenário esboçado. Tributário da filosofia de Antônio
Gramsci, Williams busca articular a noção de hegemonia formulada pelo italiano com
ferramentas capazes de compreenderem os fenômenos marginais de um processo hegemônico.
25 HOBSBAWM, E. J. História social do jazz. SP: Paz e Terra, 2017.
30
Mais do que isso, Williams busca trazer vida ao dinâmico sistema de pensamento do italiano,
uma vez que suas noções sobre “hegemônico” e “dominante” se tornavam cada vez mais
conceitos deterministas ou a-históricos, devido a um uso corrente que descartava as nuances
que pressionavam e ameaçavam o que era hegemônico. Segundo Williams, “Uma hegemonia
vivida é sempre um processo. Não é, exceto analiticamente, um sistema ou uma estrutura
(Williams, 1979, p. 115)”. E ainda completa:
Uma hegemonia estática, do tipo indicado pelas definições abstratas
totalizadoras de uma ideologia dominante, ou de uma visão do mundo, pode
ignorar ou isolar essas alternativas e oposição, mas, na medida em que são
significativas, a função hegemônica decisiva é controlá-las, transformá-las ou
mesmo incorporá-las. Nesse processo ativo, o hegemônico tem de ser visto
como mais do que a simples transmissão de um domínio (inalterável). Pelo
contrário, qualquer processo hegemônico deve ser especialmente alerta e
sensível às alternativas e oposição que lhe questionam ou ameaçam o domínio.
A realidade do processo cultural deve, portanto, incluir sempre os esforços e
contribuições daqueles que estão, de uma forma ou de outra, fora, ou nas
margens, dos termos da hegemonia específica (Williams, 1979, p. 116)26.
Dessa forma, o galês volta suas atenções àquilo que permanece de outros momentos
históricos, antes da constituição de uma nova hegemonia cultural, assim como ao que de novo
circula dentro desse cenário. Em outras palavras, Williams (1979) elabora formas de
compreender as reminiscências e emergências dentro de um cenário cultural. Seus estudos,
portanto, se voltam ao que ele denominou como “residual” e “emergente”.
Se, como dito anteriormente, a tônica da obra de Coltrane está no entrelaçamento entre
as condições pré-moderna e moderna da obra de arte27, além dos apontamentos vanguardistas,
um estudo aprofundado sobre quais aspectos residuais habitavam a hegemonia cultural dos anos
1950 e 1960 ajuda a esclarecer como sua obra estava inserida no emaranhado cultural e
contribuiu para abrir uma fresta para possíveis emergências. Mais do que isso, além de entender
como os fenômenos residuais ainda circulavam minimamente no meio em que Coltrane estava
inserido, a análise em questão também amplia a profundidade de quais as possibilidades
estavam colocadas para o músico e o que ele fez delas.
No entanto, Williams (1979), explica como esse processo não é tão simples:
Na análise histórica autêntica, é necessário, em todos os pontos, reconhecer as
inter-relações complexas entre movimentos e tendências, tanto dentro como
26 WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
27 Veremos no tópico sobre a faixa “Acknowledgement”, no capítulo 3, como tal atrito passa por uma reformulação
resolutiva a partir do momento em que é elaborado por meio de outra temporalidade.
31
além de um domínio específico e efetivo. É necessário examinar como estes
se relacionam com a totalidade do processo cultural, e não apenas com o
sistema dominante selecionado e abstrato (Williams, 1979, p. 124)28.
Tanto “residual”, “hegemônico” e “emergente” se mesclam em uma contínua totalidade
onde tais categorias são articuladas em torno de sua funcionalidade específica histórica, além
de não serem categorias inertes que servem como ferramentas analíticas em qualquer momento.
Isso é, não há fórmula de distinção bem estabelecida que funcione para além das singularidades
locais e temporais. Um elemento residual para uma determinada sociedade pode compor a
hegemonia de uma outra sociedade contemporânea, assim como elementos outrora
hegemônicos podem ou não compor o que atua de forma residual ou “arcaica” numa dada
organização social.
Para melhor esclarecer o que aqui figura como residual e arcaico:
O residual, por definição, foi efetivamente formado no passado, mas ainda
está ativo no processo cultural, não só como um elemento do passado, mas
como um elemento efetivo do presente. Assim, certas experiências,
significados e valores que não se podem expressar, ou verificar
substancialmente, em termos da cultura dominante, ainda são vividos e
praticados a base do resíduo – cultural bem como social – de uma instituição
ou formação social e cultural anterior. É importante distinguir esse aspecto do
residual que pode ter uma relação alternativa ou mesmo oposta com a cultura
dominante, daquela manifestação ativa do residual (distinguindo-se este do
arcaico) que foi incorporada, em grande parte ou totalmente, pela cultura
dominante (Williams, 1979, p. 125)29.
Algumas das características que há de residual no capitalismo estadunidense dos anos
de 1950 são os vestígios da religiosidade pré-moderna e da ancestralidade afrodiaspórica, em
meio a um capitalismo que aderiu para si o valor de culto e passou a conferir às suas mercadorias
o elemento de adoração. De tal forma que religião e espiritualidade tomaram rumos distintos.
Este é um tema que será mais bem explicitado adiante, sobre como o capitalismo em estado
avançado incorpora práticas religiosas em seu movimento, enquanto esvazia de sentido
espiritual as antigas práticas religiosas que continuam a ocorrer em seu meio.
Por ora, é importante frisar que as práticas religiosas de cunho espiritualizante eram um
elemento notoriamente mobilizado na infância protestante de Coltrane, ainda nos de 1930, mas
passam a se dissipar socialmente conforme o capitalismo incorpora o elemento espiritualizante
28 Ibidem.
29 Ibidem.
32
das religiões em suas práticas cotidianas. Nesse sentido, Porter (1999) nos elucida como foi a
trajetória de Coltrane.
Foi na igreja de seu avô, ainda criança, que Trane teve contato com a música, com
instrumentos de sopro e com cultos, onde músicas gospel e folclóricas de seu povoado eram
tocadas em forma de adoração. Supõe-se que o movimento de busca realizado por Trane em
sua maturidade por expressões culturais que guardavam consigo ainda algum valor de culto
provém de uma infância calcada nesse tipo de prática (Porter, 1999).
Assim sendo, havia ainda um elemento pré-moderno, se concebermos tal terminologia
como uma “arte funcional”, que exercia certo papel no funcionamento na comunidade de
Trane30. Adiante este tema também será desdobrado com mais profundidade, mas é importante
compreender como esse elemento vai se enfraquecendo com o passar dos anos e o avanço das
forças produtivas e culturais no entorno da Segunda Guerra Mundial, mas igualmente
importante ressaltar que ele não se dissipa completamente – do contrário deixaria de ter função
para obra de Trane. Não à toa Williams (1979) observa:
Um elemento residual cultural fica, habitualmente, a certa distância da cultura
dominante efetiva, mas certa parte dele, certa versão dele – em especial se o
resíduo vem de alguma área importante do passado – terá, na maioria dos
casos, sido incorporada para que a cultura dominante tenha sentido nessas
áreas. Além disso, em certos pontos, a cultura dominante não pode permitir
demasiada experiência e prática residuais fora de si mesma, pelo menos sem
um risco. É pela incorporação daquilo que é ativamente residual – pela
reinterpretação, diluição, projeção e inclusão e exclusão discriminativas – que
o trabalho de tradição seletiva se faz especialmente evidente (Williams, 1979,
p. 126)31.
E é justamente na permissão da demasiada experiência residual que a obra de Coltrane
passa a figurar um “risco” ao que estava estabelecido hegemonicamente. Suas elaborações a
partir de experiências com o que era residual e ancestral não se traduziram em odes ao passado,
em arcaísmos ou visões nostálgicas de experiências comungadas por povos distantes. Muito
pelo contrário, foram criações disruptivas no cenário estabelecido, onde a circulação cultural se
dava de forma muito controlada. As forças residuais passaram a figurar suas produções como
atuantes e geradoras de sentidos e tensões32 no campo hegemônico predominante. Como
30 Vale ressaltar: a função da música estava sobretudo relacionada à sociabilidade em sua comunidade. Os ritos
litúrgicos, além de expressarem uma forma de comunicação com o divino, de explicação de mundo, exerciam
também papel de coesão social.
31 Ibidem.
32 Williams (1979) compreende “tensão” de tal modo: “Mas a tensão é, frequentemente um constrangimento, uma
tensão, um deslocamento, uma latência: o momento de comparação consciente que ainda não chegou e por vezes
não está nem mesmo chegando. E a comparação não é, de modo algum, o único processo, embora seja poderoso e
33
também observa Williams (1979, p.128): “Nesse processo complexo há realmente uma
confusão constante entre o localmente residual (como uma forma de resistência a incorporação)
e o geralmente emergente” e, para melhor compreender aquilo que determinamos como
emergente, Williams (1979) pontua no excerto a seguir.
O que importa, finalmente, no entendimento da cultura emergente, em
distinção da cultura dominante e residual, é que ela não é nunca apenas uma
questão de prática imediata. Na verdade, depende crucialmente de descobrir
novas formas ou adaptações da forma. Repetidamente, o que temos de
observar é, com efeito, uma emergência preliminar, atuante e pressionante,
mas ainda não perfeitamente articulado, e não o aparecimento evidente que
pode ser identificado com maior confiança (Williams, 1979, p. 129)33.
Posteriormente, poderemos ver na prática como Trane pressionava as formas pré-
estabelecidas comercialmente conforme as possibilidades históricas lhe permitiam, num
processo em partes espontâneo, mas que tinha princípios norteadores que foram capazes de
mesclar elementos residuais à uma dinâmica hegemônica, contribuindo fortemente para a
abertura de uma fenda de possibilidades históricas que Raymond Williams denomina “estrutura
de sentimento”.
O galês desenvolve essa terminologia com vias de arejar as formas de análise social que
tomam as formações sociais como processos já terminados. Pois, segundo o autor, podemos
observar que:
[...] Isso é especialmente relevante para as obras de arte que realmente são,
num certo sentido, formas explícitas e acabadas – objetos reais nas artes
visuais, convenções objetificadas e notações (figuras semânticas) na literatura.
Mas não é apenas isso; para completar seu processo inerente, temos de torná-
las presentes, em “leituras” especificamente ativas. E é também o fato de que
a feitura da arte nunca está, em si, no tempo passado (Williams, 1979, p. 131).
E isso implica dizer que as obras de arte têm potencial de fazer com que categorias
analíticas e seu real valor histórico, singular e derivado da experiência única do tempo, possam
se diferenciar. Para uma análise materialista da contracultura, essa noção é riquíssima, pois
permite que as categorias exaustivamente usadas pelo materialismo histórico vulgar, como
“infraestrutura”, “superestrutura” ou “determinação” ganhem maleabilidade e não empobreçam
importante. Há as experiências de que as formas fixas não falam absolutamente, e que na verdade não reconhecem.
Há importantes experiências combinadas, onde o significado existente converte a parte ao todo, e o todo a parte
(Williams, 1979, p. 132)".
33 Ibidem.
34
a discussão de um período tão rico de contradições com determinismos limitantes. Articular a
contracultura – historicizada geralmente entre a segunda metade da década de 1960 e o início
da década seguinte – com questões de maior alcance, profundidade histórica e temporalidades
menos habituais, tais como ancestralidade e espiritualidade, podem ser a chave para mobilizar
questões que desde então estão fossilizadas em categorias analíticas que não dialogam com a
vida das obras de arte deste momento histórico.
Em outras palavras, as contradições expressas nos anos de contracultura só podem ser
minimamente expressas por vias materialistas se forem levadas em considerações as
singularidades do momento histórico, do choque específico entre aquelas gerações e das
diferentes noções sobre tempo entre eles. Analiticamente, Williams (1979) cunha a noção de
estrutura de sentimento porque:
[...] Talvez os mortos possam ser reduzidos a formas fixas, embora os seus
registros que sobrevivem sejam contra isso. Mas os vivos não serão reduzidos,
pelo menos na primeira pessoa; as terceiras pessoas vivas podem ser
diferentes. Todas as complexidades conhecidas, as tensões experimentadas,
desvios e incertezas, as formas intrincadas da desigualdade e confusão são
contra os termos da redução e logo, por extensão, contra a própria análise
social (Williams, 1979, p. 132)34.
O que faz da “estrutura de sentimento” um termo contraditório de ser usado em uma
análise social, mas ainda assim importante, pois ressalta a possibilidade de se olhar para o
passado de forma viva, de compreender como presente e passado estão interligados
umbilicalmente, numa espiral onde passados e futuros podem ter apontamentos singulares, e as
formas que outrora vigoravam hegemonicamente podem atuar, residual ou emergentemente,
nas formas presentes.
Ainda segundo Williams (1979): “Apesar de continuidades substanciais, e em certos
níveis decisivas, em gramática e vocabulário, nenhuma geração fala exatamente a mesma língua
de seus antecessores” (1979, p. 133), o que torna todo conflito geracional um conflito também
singular.
Por isso, a proposição aqui da contracultura como uma estrutura de sentimento que se
afigura mais largamente entre fins da década de 1950 e começo dos anos de 1970, mas com
atuações residuais muito mais distantes. Williams (1979) continua definindo o termo de tal
modo:
34 Ibidem.
35
[...] É uma questão aberta – isto é, uma série de questões históricas específicas
– se em qualquer dessas modificações, este ou aquele grupo predominou ou
foi influente, ou se elas são resultado de uma interação muito mais geral. O
que estamos definindo é uma qualidade particular da experiência social e das
relações sociais, historicamente diferente de outras qualidades particulares
que dá o senso de uma geração ou de um período. As relações entre essa
qualidade e as outras marcas históricas especificadoras de instituições,
formações e crenças mutáveis, e, além destas, as também mutáveis relações
sociais e econômicas entre e dentro das classes, são novamente uma questão
aberta: isto é, uma série de questões históricas específicas. A consequência
metodológica dessa definição, porém, é que as modificações qualitativas
específicas não são consideradas como epifenômenos das instituições,
formações e crenças modificadas, ou simplesmente evidências secundárias, de
novas relações econômicas entre e dentro das classes (Williams, 1979, p.
133)35.
E é justamente este o ponto crucial de compreender a contracultura de tal forma: não a
encarar como um epifenômeno de outras estruturas, visando não apagar a contribuição singular
dos artistas que a compuseram, para que somente assim uma discussão sobre a autonomia de
seus protagonistas e a vida de suas obras possam ser melhor elaboradas, de forma que os índices
de verdade que tais produções apontam possam ser confirmados ou postos em xeque.
As possibilidades de elaboração sobre a contracultura, portanto, se abrem justamente
pelas contribuições dadas por ela própria. A estrutura de sentimento comungada naquele
momento relega a possibilidade de que ainda se possa tensionar, mesmo que residual ou
marginalmente, as elaborações até então estabelecidas. É isso, em partes, o que buscamos fazer
aqui.
Não há dúvida que exista uma noção relativamente bem estabelecida, num período de
tempo minimamente bem recortado, sobre a contracultura, seja temporal ou espacialmente. Mas
tensionar essa noção e esse recorte é justamente uma possibilidade que se expressa também por
meio da fenda subjetiva que aquele momento possibilitou.
Se há aqui a intenção em aproximar ainda mais Coltrane das noções de contracultura é
justamente a intenção ativa de tensionar tanto a condição que a história legou ao artista, como
às expressões dominantes sobre a contracultura.
1.5 – DO BEBOP AO COOLJAZZ
Os anos de 1960 viram a ascensão de fenômenos até então inimagináveis do ponto de
vista artístico e social. A pop-art transformava utensílios cotidianos em obras de arte (Danto,
35 Ibidem.
36
2020); o cinema e a música com inclinações vanguardistas tornaram-se fenômenos largamente
difundidos; jovens filhos de famílias burguesas tornaram-se o elemento potencialmente
revolucionário daquele cenário (Roszak, 1972).
Certamente, esse improvável panorama se ligava às formas de vanguarda do início do
século – seja à obra dadaísta, Fonte (1917), de Duchamp, ao Expressionismo Alemão ou às
vanguardas políticas revolucionárias dos países europeus – mas, sem dúvida, não sem um
conteúdo já decantado da cultura ocidental contemporânea, muito ligado à cultura de massa36.
Havia, portanto, nesse cenário, um vivo e complexo sistema de trocas culturais que
guardava reminiscências de décadas anteriores. A Indústria Cultural, hegemonia que se
estabeleceu a partir da virada da década de 1930 para 1940, via a potencial semente de sua
superação nascer em seu próprio âmago, muito provavelmente por conta do excessivo convívio
com formas culturais residuais do início do século. A massificação característica da Indústria
Cultural servia de meio para difundir as formas artísticas contestatórias dos próprios processos
de massificação. Nos termos definidos no tópico anterior, elementos residuais, hegemônicos e
emergentes figuravam um imbricado cenário capaz de implodir o estado de coisas.
Em se tratando de Coltrane, as formas as quais o músico se ligou estavam espalhadas
não só ao redor do mundo, como também a momentos históricos distintos. O saxofonista amigo
de longa data e companheiro de Trane no começo de sua carreira, Jimmy Heath, relata, por
exemplo, que eles ficaram próximos frequentando a biblioteca da Filadélfia atrás de alguns
tipos discos específicos:
[...] (Nós costumávamos visitar) a biblioteca da Filadélfia para ouvir
Stravinsky e música clássica oriental... Nós não estávamos tentando tocar as
notas por si só. Nós estávamos tentando extrair as cadências e torná-las
cabíveis para o nosso próprio groove37 (Heath apud Kahn, 2002, p. 11)38.
36 Em tempo: “Exatamente nesse período, ocorre o fato que pode ser considerado o marco inicial da moderna
cultura de massas: a ascensão de Hollywood como principal centro produtor de filmes em bases verdadeiramente
industriais. Por volta de 1910 já havia na Costa Leste dos Estados Unidos, principalmente em Nova York, Chicago
e Filadélfia, muitos estúdios de produção cinematográfica pertencentes a anglo-saxões, os quais produziam filmes
dirigidos a uma classe trabalhadora urbana, composta principalmente por imigrantes das mais diversas origens,
com um conteúdo quase sempre moralista e potencialmente “disciplinador” das massas. Nessa época entraram em
cena vários judeus, emigrados da Europa Central e do Leste, no fim do século XIX, principalmente em virtude de
violentas perseguições antissemitas nas suas regiões de origem (Duarte, 2010, p. 30).”
37 (We used to visit) Philadelphia library to listen to Stravinsky and Western classical music... We weren’t trying
to play the scores per se. We were extracting the cadenzas and turning them around to fit our groove. (Tradução
nossa)
38 KAHN, Ashley. A Love Supreme: The Story of John Coltrane’s Signature Album, London: Penguin Books,
2002.
37
De tal forma que se insinua a presença da música de vanguarda da metade anterior do
século em sua formação subjetiva e, decorrentemente, artística. Mas, assim como a arte crítica
da década de 1910, passaram também a figurar cada vez mais a presença de elementos pré-
modernos no decorrer de sua maturidade estética – sobretudo em sua compreensão de música
como expressão de uma espiritualidade necessária para resolução dos conflitos de sua realidade
interna e externa.
Compreender a dimensão da presença do indiano Ravi Shankar em sua música, por
exemplo, é incontornável nesse cenário embrenhado que se desenhava. Como ele mesmo
observa em entrevista (2010):
[...] Eu gosto muito do Ravi Shankar. Quando ouço sua música, eu quero
copiá-la – não nota por nota, é claro, mas em seu espírito. O que me traz para
mais perto do Ravi é o aspecto modal de sua arte. Recorrentemente, no estágio
em que me encontro, eu pareço estar passando por uma fase modal... Há muito
da música modal que é tocada todo dia pelo mundo afora. É particularmente
evidente na África, mas se você olhar a Espanha ou a Escócia, Índia ou China,
você descobrirá isso novamente em cada caso. Se você quiser olhar além das
diferenças de estilo, você vai confirmar uma base comum. Isso é muito
importante. Certamente, a música popular da Inglaterra não é a mesma da
América do Sul, mas tire suas características puramente étnicas – isso é, seus
aspectos folclóricos – e você irá descobrir a presença da mesma sonoridade
pentatônica, comparáveis à estrutura modal. É esse aspecto universal da
música que tem me atraído; é isso que estou visando39 (Coltrane apud Porter,
2010, p. 211)40.
Sobre a importância do aspecto modal na construção da estética de Coltrane, trataremos
em sua relação com o jazz modal mais adiante. De toda forma, podemos enxergar, ainda que de
forma incipiente, como dois polos distintos – a música de vanguarda de Stravinsky e a expressão
modal de Shankar – compuseram um vasto leque que foi se adaptando à realidade de Coltrane.
Em ambas as citações, é frisado que não havia intenção alguma de copiar aquilo que era
produzido na Europa ou Ásia, mas sim assimilá-las como possibilidades em suas próprias
produções, nas condições concretas que sua posição no mundo e na história lhe permitiam.
39 I like Ravi Shankar very much. When I hear his music, I want to copy it – not note for note of course, but in his
spirit. What brings me closest to Ravi is the modal aspect of his art. Currently, at the particular stage I find myseld
in, I seem to be going through a modal phase... There’s a lot of modal music that is played every day in troughout
the world. It’s particularly evident in Africa, but if you look at Spain or Scotland, India ou China, you’ll discover
this again in each case. If you want a look beyond the diferences in style, you will confirm that there is a commom
base. That’s very important. Certainly, the popular music of England is not that of South America, but take away
their purely ethnic characteristics – that is, their folkloric aspect – and you’ll discover the presence of the same
pentatonic sonority, of comparable modal structures. It’s this universal aspect of music that interests me and
attracts me; that’s what I’m aiming for. (Tradução nossa)
40 PORTER, Lewis. John Coltrane: His Life and Music. Michigan: Ed. Michigan, 2010.
38
O cenário cultural que permitia que tais experimentações fossem realizadas era o do
hardbop. O dialeto que Trane desenvolveu no decorrer de sua juventude foi aquele ensinado
pelos jazzistas suburbanos de Chicago, Filadélfia, Nova Iorque, Nova Orleans e tantas outras
cidades por onde passou.
Como observa Leonard Brown (2010):
Ele foi exposto a estilos musicais, abordagens e sons que eram únicos em
regiões geográficas específicas, pois durante esse período existia uma
sonoridade negra de Chicago, uma sonoridade negra de Nova York, uma
sonoridade negra de Nova Orleans, uma sonoridade negra de Baltimore, uma
sonoridade negra de Detroit e uma sonoridade negra de Kansas City. Ele teve
a oportunidade de tocar em sessões de improviso que o apresentaram a essas
estéticas regionais e até mesmo estar ao lado de mestres locais41. (Brown,
2010, p. 7-8)42.
Ou seja, seu início de carreira, ainda que não tão comercial, esteve ancorado nas mais
conhecidas formas do hardbop e bebop que se consolidaram após a Segunda Guerra Mundial
nos Estados Unidos, tocando esporadicamente com músicos de renome, como Dizzy Gillespie,
entre 1949 e 1951. Além disso, essa variedade destacada de formas de tocar jazz à época é
importante para redimensionar um possível olhar homogeneizador sobre a cultura negra e as
sonoridades da América.
O hardbop dos anos 1940 e 1950, embora não ocupasse a mesma posição de destaque
que o swing outrora gozou na sociedade estadunidense dos anos 1930, não configurava ainda
um cenário fecundo para que Coltrane pudesse pôr à prova todo seu potencial de criação. Ainda
que o estilo já configurasse uma forma contestatória muito sólida sobre a condição do negro
nos Estados Unidos, sua forma estética ainda possuía alguns ditames dos quais alguns músicos
conseguiriam se desvencilhar somente posteriormente (Gioia, 2011).
Seus músicos, notoriamente marcados como influências centrais na juventude de Trane,
como Charlie Parker e os já citados Dizzy Gillespie e Thelonious Monk, expressam um
deslocamento singular que o jazz realizou a partir da década de 1940. Segundo Gioia (2011), o
ethos modernista que habitava a produção artística europeia desde décadas anteriores, altamente
influenciados por ideais iluministas de progresso, se instalou no jazz quase como um processo
natural.
41 He was exposed to musical styles, approaches, and sounds that were unique to specific geographic regions, for
during this time there was a black Chicago sound, a black New York sound, a black New Orleans sound, a black
Baltimore sound, a black Detroit sound, and a black Kansas City sound. He was able to play in jam sessions that
exposed him to these regional aesthetics and to even sit in with local masters. (Tradução nossa)
42 BROWN, Leonard. L. You Have Been Invited: Reflections on Music and Music Making Creation in Black
American Culture. Oxford University Press In: John Coltrane and the America’s Quest for Freedom: Spirituality
and the Music. (3 - 11), 2010.
39
Obviamente, não há processos que sejam naturais em se tratando de cultura, mas a força
da expressão busca explicitar que o campo construído pela música jazzística era historicamente
mais propício para se adaptar ao expansivo modernismo que acometia o centro do mundo
ocidental, uma vez que as mudanças compuseram a história do jazz quase que genealogicamente
para que ele pudesse sobreviver às investidas que recebeu desde seu nascimento. O autor
explica melhor:
[...] Dado esse feito, a ascensão de um modernismo mais evidente no começo
dos anos 1940 não deveria ser visto como uma mudança brusca, como uma
grande descontinuidade na história da música. Foi uma simples extensão da
tendência inerente de mudança e de expansão do jazz. O jazz já havia revelado
sua habilidade de engolir outros idiomas músicas – como as marchs, o blues,
os spirituals, as músicas populares americanas, o rad – e fazê-los parte de si
mesmo. Para fazer o mesmo com Stravinsky e Hindemith, Schoenberg e as
apresentações de Ravel, sem dúvida um desafio extraordinário, mas também
inevitável. Nos anos 1930, a questão não era se o jazz iria abraçar o
modernismo, mas quando, como e por quem43 (Gioia, 2011, p. 186)44.
Isso é, as características que o modernismo conferiu ao jazz iam em desencontro ao
cenário cultural estabelecido do swing. Gioia (2011) observa com mais atenção que:
Ainda assim, a forma como esses instrumentos eram tocados passou por uma
profunda mudança no contexto do jazz moderno. Linhas improvisadas
cresciam rapidamente, com mais complexidade. As síncopes e frases com
melodias de notas oitavadas que caracterizaram o jazz anterior eram agora
muito menos proeminentes. Ao contrário, longas frases se mantinham nas
batidas dos compassos por vez, construídas em um fluxo constante de oito das
dezesseis notas executadas com precisão quase mecânica, ocasionalmente
quebradas por um triplet, uma grave pausa, uma interpolação de melodias
oitavadas, ou um redemoinho de trinta segundos de notas, ou um perfurante
fraseado fora do tempo. O conceito de tempo musical também mudou de mão
em mão com essas novas formas de fraseado; do contrário, essa aproximação
menos sincopada talvez soasse ritmicamente menos viva, um jazz tépido
43 “Given this feat, the rise of a more overt modernism in the early 1940s should not be viewed as an abrupt shift,
as a major discontinuity in the music’s history. It was simply an extension of jazz’s inherent tendency to mutate,
to change, to grow. Jazz had already revealed its abality to swallow other musical idioms – the march, the blues,
the spiritual, the American popular song, the rad – and make them a part of itself. To do the same with Stravinsky
and Hindemith, Schoenberg and Ravel presented, no doubt, an extraordinary challenge, but also an inevitable one.
By the 1930s, the question now was not wheter jazz would embrace modernism, but when, and how and by whom”.
(Tradução nossa)
44 GIOIA, Ted. The History of Jazz. Oxford University Press, 2011.
40
equivalente à música barroca de dezesseis notas. (...)45 (Gioia , 2011, p.187)
46.
Mas, como a musicologia não se descola do conteúdo social que lhe dá forma, os
músicos de bebop e hardbop traziam consigo também características muito distintas de seus
antecessores. Ted Gioia (2011) ressalta que considera o surgimento da geração de bebopers
uma revolução protagonizada por “sidemen”, isso é, acompanhantes dos grandes nomes da
geração anterior.
Lembre-se, essa foi uma revolução musical feita, primeiramente e acima de
tudo, por homens de acompanhamento, não estrelas. Não por Benny
Goodman, mas por seu guitarrista Charlie Christian. Não por Duke