REGINALDO ANSELMO TEIXEIRA ESCOLAS DO CAMPO DE ARARAQUARA (2001/2012): HISTÓRIA, MEMÓRIAS E EXPERIÊNCIA PERCEBIDA Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Faculdade de Filosofia e Ciências Campus de Marília Programa de Pós-Graduação em Educação Marília - SP Fevereiro de 2019 REGINALDO ANSELMO TEIXEIRA ESCOLAS DO CAMPO DE ARARAQUARA (2001/2012): HISTÓRIA, MEMÓRIAS E EXPERIÊNCIA PERCEBIDA Tese de doutorado, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Filosofia e Ciências – UNESP/Marília, como requisito para a obtenção do título de Doutor em Educação. Linha de Pesquisa: Filosofia e História da Educação no Brasil Orientadora: Profª. Dra. Rosa Fátima de Souza Chaloba MARÍLIA – SP 2019 T266e Teixeira, Reginaldo Anselmo Escolas do Campo de Araraquara (2001/2012): História, Memórias e Experiência Percebida / Reginaldo Anselmo Teixeira. -- Marília, 2019 204 p. : il. Tese (doutorado) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Filosofia e Ciências, Marília Orientadora: Rosa Fátima de Souza 1. Escolas do Campo. 2. Educação Rural. 3. Assentamento. 4. Araraquara. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca da Faculdade de Filosofia e Ciências, Marília. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. REGINALDO ANSELMO TEIXEIRA ESCOLAS DO CAMPO DE ARARAQUARA (2001/2012): HISTÓRIA, MEMÓRIAS E EXPERIÊNCIA PERCEBIDA Tese de doutorado, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Filosofia e Ciências – UNESP – Campus de Marília, como requisito para a obtenção do título de Doutor em Educação. Linha de Pesquisa: Filosofia e História da Educação no Brasil Data da defesa: 28/02/2019 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: _________________________________________________________________ Presidenta o Orientadora: Rosa Fátima de Souza Chaloba (Profª. Dra.) Faculdade de Ciências e Letras – Campus de Araraquara – UNESP _____________________________________________________________________________ Membro Titular: Sandra Cristina Fagundes de Lima (Profª. Dra.) Universidade Federal de Uberlândia Membro Titular: Mauro Castilho Gonçalves (Profº. Dr.) Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP ____________________________________________________________________________ Membro Titular: Dulce Consuelo Andreatta Whitaker (Profª. Dra.) Profª. Emérita da Faculdade de Ciências e Letras – Campus de Araraquara – UNESP Universidade de Araraquara – UNIARA Membro Titular: Marcelo Augusto Totti (Profº. Dr.) Faculdade de Filosofia e Ciências – Campus de Marília - UNESP Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Filosofia e Ciências UNESP – Campus de Marília Este trabalho é dedicado aos companheiros e companheiras da Reforma Agrária e aos educadores e demais profissionais que atuam nas Escolas do Campo. À vocês, a minha gratidão e admiração. AGRADECIMENTOS À minha família pelo apoio incondicional e pela compreensão das minhas ausências por motivo de estudos. À professora Rosa Fátima de Souza, pela confiança em mim depositada, pelo rigor acadêmico, generosidade, paciência e afeto com que conduziu a minha orientação, a quem sou muito grato. Às professoras Dulce Consuelo Andreatta Whitaker e Vera Lúcia Silveira Botta Ferrante pelo encorajamento e pelas contribuições no aprimoramento deste estudo, gratidão. Aos entrevistados, sem os quais teria sido impossível a produção desta pesquisa. Obrigado pela partilha das histórias de vida e de resistência. Aos colegas do GEPCIE (Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Cultura e Instituições Educacionais) da Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara pela colaboração e oportunidade de aprendizado em grupo. Aos colegas do NUPEDOR (Núcleo de Pesquisa e Documentação Rural) da UNIARA - Universidade de Araraquara, pelas pesquisas e pelo interesse na Reforma Agrária, em especial agradeço a generosidade intelectual e o acolhimento fraterno. Aos integrantes do GPHEELLB (Grupo de Pesquisa História da Educação e do Ensino de Língua e Literatura no Brasil) da Faculdade de Filosofia e Ciências - UNESP, campus de Marília pelo aprendizado em grupo. Em especial agradeço à Profª. Dra. Maria do Rosário Longo Mortatti pelo acolhimento. À Secretaria Municipal de Educação de Araraquara pela concessão da dispensa parcial de trabalho para que fosse possível cursar o doutoramento. Às equipes escolares das Escolas do Campo de Araraquara pela facilitação do acesso às fontes documentais de pesquisa. Em especial agradeço às diretoras Cristiane F. Oliveira (EMEF do Campo Eugênio Trovatti), Fernanda C. Paulino (EMEF do Campo Prof. Hermínio Pagôtto) e Lúcia H. G. Pani (EMEF do Campo Maria de Lourdes da Silva Prado). Aos colegas de doutorado (especialmente Agnes Moraes, Aparecido Borges, Kamila Leite e Geraldo Filho), pelas incertezas e conquistas que juntos partilhamos. A vocês minha gratidão. Aos amigos e amigas, agradeço pela amizade de todas as horas que trago guardada com muito carinho, certamente sem vocês seria tudo bem mais difícil, obrigado. TEIXEIRA, Reginaldo Anselmo. Escolas do Campo de Araraquara (2001/2012): História, Memória e Experiência Percebida. 204f. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista, Marília, 2019. Resumo As instituições escolares assim como as pessoas são portadoras de memórias, então se faz necessário que recuperemos tais memórias e as transformemos numa história possível de ser registrada. Assim esta tese tem por finalidade reconstruir a história das escolas do campo da região de Araraquara no Estado de São Paulo desde a sua implantação em 2001 até o ano de 2012, valendo-se da história oral como metodologia para coleta de dados juntamente com a análise de fontes documentais provenientes de diferentes instituições públicas envolvidas na construção do processo educacional das instituições de ensino pesquisadas. Partindo de uma abordagem relacionada com a História Cultural, utilizou um referencial teórico que possibilitou construir uma narrativa histórica a partir das diferentes experiências dos sujeitos envolvidas no processo. Foram realizadas nove entrevistas sendo três docentes das escolas pesquisadas, três agricultoras assentadas da reforma agrária e três representantes do poder público que tornaram possível a percepção sobre o processo de construção e manutenção das Escolas do Campo de Araraquara. Assim, o pretendido foi, a partir das prerrogativas da história do tempo presente, contribuir com os estudos historiográficos sobre instituições educativas rurais, evidenciando a importância da experiência histórica dos sujeitos do campo, do corpo docente e dos gestores públicos na construção de uma proposta de Educação do Campo comprometida com uma educação de qualidade. Palavras-chave: Escolas do Campo, Educação Rural, Assentamento, Araraquara. TEIXEIRA, Reginaldo Anselmo. Escuelas del Campo de Araraquara (2001/2012): Historia, Memoria y Experiencia Percibida. 204f. Tesis (Doctorado en Educación) - Facultad de Filosofía y Ciencias, Universidad Estadual Paulista, Marília, 2019. RESUMEN Las instituciones escolares así como las personas son portadoras de memorias, entonces se hace necesario que recuperemos tales memorias y las transformemos en una historia posible de ser registrada. Así esta tesis tiene por finalidad reconstruir la historia de las escuelas del campo de la región de Araraquara en el Estado de São Paulo desde su implantación en 2001 hasta el año 2012, valiéndose de la historia oral como metodología para recolección de datos junto con el análisis de fuentes documentales provenientes de diferentes instituciones públicas involucradas en la construcción del proceso educativo de las instituciones de enseñanza investigadas. A partir de un abordaje relacionado con la Historia Cultural, utilizó un referencial teórico que posibilitó construir una narrativa histórica a partir de las diferentes experiencias de los sujetos involucrados en el proceso. Se realizaron nueve entrevistas siendo tres docentes de las escuelas investigadas, tres agricultoras asentadas de la reforma agraria y tres representantes del poder público que hicieron posible la percepción sobre el proceso de construcción y mantenimiento de las Escuelas del Campo de Araraquara. Así, lo pretendido fue, a partir de las prerrogativas de la historia del tiempo presente, contribuir con los estudios historiográficos sobre instituciones educativas rurales, evidenciando la importancia de la experiencia histórica de los sujetos del campo, del cuerpo docente y de los gestores públicos en la construcción de una propuesta de "Educación del Campo” comprometida con una educación de calidad. Palabras clave: Escuelas del Campo, Educación Rural, Asentamiento, Araraquara TEIXEIRA, Reginaldo Anselmo. Schools of the Field of Araraquara (2001/2012): History, Memory and Experience Perceived. 204f. Thesis (Doctorate in Education) - Faculty of Philosophy and Sciences, Paulista State University, Marília, 2019. ABSTRACT School institutions as well as people carry memories, so it is necessary that we retrieve such memories and make them a recordable history. Thus, this thesis aims to reconstruct the history of the schools of the Araraquara region in the State of São Paulo from its implementation in 2001 to the year 2012, using oral history as methodology for data collection along with the analysis of documentary sources from different public institutions involved in the construction of the educational process of the researched educational institutions. Starting from an approach related to Cultural History, it used a theoretical framework that made it possible to construct a historical narrative based on the different experiences of the subjects involved in the process. Nine interviews were conducted: three teachers from the schools surveyed, three farmers based on agrarian reform and three representatives from the public authorities who made it possible to perceive the process of construction and maintenance of the Campo de Araraquara Schools. The purpose of this study was to contribute to the historiographic studies of rural educational institutions, highlighting the importance of the historical experience of field subjects, teaching staff and public managers in the construction of a proposal of Field Education committed to quality education. Key words: Field Schools, Rural Education, Settlement, Araraquara LISTA DE FIGURAS Figura 1. Localização do Município de Araraquara no Estado de São Paulo ............... 48 Figura 2. Localização do Assentamento Monte Alegre ................................................ 57 Figura 3. Localização do Assentamento Horto de Bueno de Andrada ........................ 58 Figura 4. Vista aérea da Agrovila do Assentamento Bela Vista ................................... 60 Figura 5. Localização das 3 Escolas do Campo de Araraquara (2001).......................... 61 Figura 6. EMEF do Campo Profª. Maria de Lourdes da Silva Prado (2018)................. 62 Figura 7. EMEF do Campo Eugênio Trovatti (2018) .................................................. 63 Figura 8. EMEF do Campo Prof. Hermínio Pagôtto (2010) ......................................... 64 Figura 9. Membros do Grupo de Trabalho Escola Rural durante a I Conferência Municipal de Educação em 2001 ................................................................................... 75 Figura 10. Padaria Artesanal do Assentamento Monte Alegre ................................... 105 Figura 11. Trabalho de Campo da Profª. Neli Oliveira Gasioroski e seus alunos no Assentamento Monte Alegre (2011) ............................................................................ 118 Figura 12. Práticas educativas em espaços diferenciados desenvolvidos pela docente Gisele Cristina Tiozzo Iroldi na EMEF do Campo Hermínio Pagôtto ........................ 132 LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 1. Número de escolas rurais de ensino comum no Estado de São Paulo (1934 – 1991) .............................................................................................................................. 37 Gráfico 2. Evolução da população urbana e rural do Município de Araraquara – SP (1940 – 2010) ................................................................................................................. 50 LISTA DE QUADROS Quadro 1. Fontes documentais utilizadas na pesquisa................................................... 26 Quadro 2. Escolas rurais de Araraquara em 1987 ......................................................... 52 Quadro 3. Reuniões do Grupo de Trabalho Escola Rural (2001/2002) ......................... 68 Quadro 4. Complexos temáticos da educação municipal do campo ............................. 81 Quadro 5. Espaços pedagógicos por ano de ciclo de ensino ........................................ 82 Quadro 6. Espaços educativos das escolas do campo durante a 1ª década de vigência do Programa Escola do Campo .......................................................................................... 83 Quadro 7. Atividades permanentes das Escolas do Campo de Araraquara ................... 84 Quadro 8. Projetos desenvolvidos nas Escolas do Campo de Araraquara .................... 87 Quadro 9. Calendário Anual de datas comemorativas das Escolas do Campo de Araraquara (2001-2012) ................................................................................................ 89 Quadro 10. Caracterização dos entrevistados .............................................................. 99 Quadro 11. Escolas de ensino fundamental municipalizadas em Araraquara no período de 1998 a 2000 ............................................................................................................. 138 LISTA DE TABELAS Tabela 1. Oferta de ensino na zona rural do Estado de São Paulo ................................ 44 Tabela 2. Evolução da população urbana e rural no Município de Araraquara-SP ....... 49 Tabela 3. Escolas rurais de Araraquara (1985-1992) .................................................... 51 Tabela 4. Caracterização do Assentamento Monte Alegre ............................................ 56 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ALESP – Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo ARCAFAR – Associação das Casas Familiares Rurais ARENA – Aliança Renovadora Nacional CAIC – Centro de Atenção Integral à Criança CEP – Comitê de Ética em Pesquisa CER – Centro de Educação e Recreação CLT – Consolidação das Leis do Trabalho CNBB – Confederação Nacional dos Bispos do Brasil CNER – Campanha Nacional de Educação Rural CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico CODASP – Companhia de Desenvolvimento Agrícola de São Paulo CONTAG – Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura COMPHARA – Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico de Araraquara CUT – Central Única dos Trabalhadores EE – Escola Estadual EEBA – Escola Estadual Bento de Abreu EMEF – Escola Municipal de Ensino Fundamental EEPG – Escola Estadual de Primeiro Grau EEPG(R) – Escola Estadual de Primeiro Grau Rural EJA – Educação de Jovens e Adultos FCLAR – Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara FDE – Fundação para o Desenvolvimento da Educação FEPASA – Ferrovia Paulista S. A. FERAESP – Federação dos Empregados Rurais Assalariados do Estado de São Paulo FIESP - Federação das Indústrias do Estado de São Paulo FUNDEF – Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental FUNDESP – Fundo do Desenvolvimento da Educação em São Paulo GT – Grupo de Trabalho GO – Goiás IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IEBA – Instituto de Educação Bento de Abreu INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais IPTU – Imposto Predial e Territorial Urbano ISS – Imposto Sobre Serviços ITESP – Instituto de Terras do Estado de São Paulo MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra MG – Minas Gerais MS – Mato Grosso do Sul NUPEDOR – Núcleo de Pesquisa e Documentação Rural ONG – Organização Não Governamental PB - Paraíba PE – Pernambuco PEB – Professor da Educação Básica PI – Piauí PMDB – Partido do Movimento Democrático Brasileiro PNLD – Programa Nacional do Livro Didático PPB – Partido Progressista Brasileiro PR – Paraná PRONERA – Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária PSDB – Partido da Social Democracia Brasileira PSL – Partido Social Liberal PT – Partido dos Trabalhadores PUC – Pontifícia Universidade Católica RJ – Rio de Janeiro RO - Rondônia SP – São Paulo SME – Secretaria Municipal de Educação SE – Sergipe SECADI - Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão SESI – Serviço Social da Indústria TCLE – Termo de Compromisso Livre e Esclarecido UEAC – Unidade Escolar de Ação Comunitária UFSCAR – Universidade Federal de São Carlos UNESP – Universidade Estadual Paulista UNEFAB – União Nacional das Escolas Família Agrícola do Brasil UNIARA – Universidade de Araraquara SUMÁRIO INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 19 1 A EDUCAÇÃO PARA O MEIO RURAL NO ESTADO DE SÃO PAULO ... 30 1.1 A expansão das escolas rurais nas décadas finais do Século XX ......................... 38 1.2 O fechamento das escolas rurais em Araraquara .................................................... 46 2 OS ASSENTAMENTOS DA REFORMA AGRÁRIA E A CONSTITUIÇÃO DAS ESCOLAS DO CAMPO NO MUNICÍPIO DE ARARAQUARA ........... 54 2.1 Assentamentos de reforma agrária e as lutas pela escola no meio rural................. 54 2.1.1 Assentamento Monte Alegre ............................................................................. 56 2.1.2 Distrito de Bueno de Andrada e Assentamento Horto de Bueno .................... 57 2.1.3 Assentamento Bela Vista do Chibarro ............................................................... 58 2.1.4 As áreas rurais de Araraquara e a luta por educação ...................................... 61 2.2 Programa Escola do Campo: os sujeitos do campo e o poder público na elaboração de uma política educacional para o meio rural araraquarense ................................. 64 2.2.1 Grupo de Trabalho de Educação do Campo ......................................................... 67 2.3 I Conferência Municipal de Educação de Araraquara: construção do Programa Escola do Campo ..................................................................................................... 72 2.4 Trajetória do Programa Escola do Campo no período pós implantação ................. 78 2.4.1 Os Espaços Educativos Alternativos das Escolas do Campo de Araraquara ... 82 2.4.2 As atividades Permanentes das Escolas do Campo de Araraquara ................... 84 2.4.3 Os projetos permanentes das Escolas do Campo de Araraquara ....................... 87 2.4.4 O calendário de Datas Comemorativas ........................................................... 88 2.5 O Método SESI e a imposição da ideologia industrial nas Escolas do Campo de Araraquara ..................................................................................................................... 92 3 ESCOLAS DO CAMPO DE ARARAQUARA: A CONSTRUÇÃO DA EXPERIÊNCIA PERCEBIDA.............................................................................. 96 3.1 Procedimentos da memória através da História Oral .............................................. 97 3.1.1 Caracterização dos entrevistados ........................................................................ 99 3.2 Memórias sobre a Educação do Campo de Araraquara ......................................... 101 3.2.1 Agricultoras assentadas da reforma agrária ........................................................ 101 3.2.2 Os profissionais da educação .............................................................................. 115 3.2.3 Os gestores públicos ........................................................................................... 133 3.3 A prática docente como experiência histórica de resistência ................................ 154 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 158 REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 171 FONTES ..................................................................................................................... 178 ENTREVISTAS ........................................................................................................ 179 INSTITUIÇÕES, ACERVOS E SITES CONSULTADOS ................................... 180 APÊNDICE A. Roteiro de Orientação para Coleta de Depoimentos Orais ............... 181 APÊNDICE B. Termo de Consentimento Livre e Esclarecido ................................. 183 APÊNDICE C. Parecer do Conselho de Ética em Pesquisa ...................................... 186 ANEXO A. Listas de Presença das Reuniões do G. T. de Educação Rural ............... 188 ANEXO B. Programação do I Seminário Estadual de Educação do Campo (2003) ..199 ANEXO C. Convite do I Seminário Estadual de Educação do Campo (2003) .......... 201 ANEXO D. Requerimento 0626/04 da Câmara Municipal de Araraquara ................. 203 19 Introdução Eu quero uma escola do campo Que tenha a ver com a vida e com a gente Querida e organizada E conduzida coletivamente. Eu quero uma escola do campo Que não enxerga apenas equações Que tenha como chave mestra O trabalho e os mutirões. Eu quero uma escola do campo Onde o saber não seja limitado Que a gente possa ver o todo E possa compreender os lados. Eu quero uma escola do campo Onde esteja o símbolo da nossa semeia Que seja como a nossa casa Que não seja como a casa alheia. Eu quero uma escola do campo Que não tenha cercas, que não tenha muros Onde iremos aprender A sermos construtores do futuro. Construtores do Futuro Gilvan Santos (Compositor e Cantor do MST) Vivo com minha família no Assentamento Bela Vista, distante apenas 20 km da cidade de Araraquara no interior do estado de São Paulo, localizada a 274 Km da capital. Lugar em que me tornei rural com apenas 12 anos de idade em 1989. Posso afirmar que minha vida, a partir de então, passou a girar em torno de um eixo inegavelmente ligado às questões da terra. A minha passagem pelo curso de graduação em Pedagogia na UNESP de Araraquara aguçou ainda mais meu interesse pelas coisas do rural, então, me tornei professor efetivo na escola localizada no assentamento em que vivo. Em seguida, durante o curso de mestrado pesquisei o histórico daquela instituição de ensino desde sua criação em 1942 até sua incorporação ao projeto de Reforma agrária em 1989. Para tal empreitada intelectual, me debrucei sobre a análise de fontes documentais encontradas em seu arquivo. Em Teixeira (2010) ao dissertar sobre o tema durante o mestrado em Educação Escolar, tentando reconstituir o sentido histórico da instituição de ensino rural, pretendi contribuir para uma compreensão maior dos elementos que compuseram a cultura escolar da instituição de ensino ao longo dos tempos, assim como registrei quais foram os fatores que a mantiveram em funcionamento por tanto tempo. Pude indicar num 20 trabalho sistemático, as inúmeras permanências e rupturas que deram sentido à existência do Grupo Escolar Comendador Pedro Morganti durante longo tempo nas terras onde se constituiu o Assentamento Bela Vista do Chibarro. Para o doutoramento, pareceu importante tentar me aprofundar no histórico das escolas rurais da região de Araraquara, no sentido de tentar entender melhor porque atualmente só restaram três escolas rurais no município e, além disso, entender qual importância tiveram os diferentes sujeitos históricos no enfrentamento para que tais instituições de ensino rural pudessem existir até os dias de hoje, transformadas de escolas rurais em escolas do campo. O pretendido com este trabalho1 foi interpretar e sistematizar a história das escolas do campo da região de Araraquara dentro de uma perspectiva de valorização da experiência dos diferentes indivíduos envolvidos no processo de efetivação e manutenção desses espaços escolares, realizando um levantamento historiográfico de 2001 a 2012 sobre as seguintes instituições de ensino do meio rural: Escola Municipal de Ensino Fundamental ( EMEF) do Campo Eugênio Trovatti, EMEF do Campo Maria de Lourdes da Silva Prado e EMEF do Campo Prof. Hermínio Pagôtto. A intenção, portanto, foi descobrir em que medida os sujeitos históricos da pesquisa influenciaram a construção dos projetos educacionais financiados pelo poder público e em que medida o poder público contribuiu para a construção de projetos alternativos para as escolas do campo. Também tivemos como objetivo verificar a existência de tensões e conflitos ideológicos em relação à instauração do Programa Escola do Campo de Araraquara. Há trabalhos acadêmicos: Brancaleone (2005), Bastos (2006), Fraiz (2006), Feng (2008), Amaral (2010), Silva (2015), entre outros2, que se debruçaram sobre a questão da construção da proposta de educação do campo de Araraquara, no entanto, a presente pesquisa pretendeu avançar na abordagem tendo a memória dos sujeitos históricos como seu principal diferencial, a fim de apresentar um olhar acerca da consolidação do Programa Escola do Campo e dos desafios enfrentados neste processo. 1 Esta pesquisa está vinculada ao Projeto Formação e Trabalho de Professores e Professoras Rurais no Brasil: PR, SP, MG, RJ, MA, MS, PE, PI, SE, PB, RO, RS (décadas de 40 a 70 do século XX), processo nº 405240/2016-3, financiado pelo CNPq e ao GEPCIE – Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Cultura e Instituições Educacionais, ambos coordenados pela Profª. Drª. Rosa Fátima de Souza. 2 Há uma vasta gama de pesquisas desenvolvidas sobre os assentamentos rurais do estado de São Paulo no interior do NUPEDOR (Núcleo de Pesquisa e Documentação Rural) coordenado pela Profª. Drª. Vera Lúcia Silveira Botta Ferrante. 21 Partindo do entendimento da história cultural como uma abordagem teórica que permite a valorização das estratificações e dos conflitos socioculturais na investigação e no tratamento das fontes de pesquisa utilizamos como suporte teórico-metodológico, a história da cultura produzida pelo inglês Edward Palmer Thompson. A relação estabelecida entre este autor e a perspectiva teórica de Karl Marx, segundo ele, longe de se constituir por meio de uma reverência servil, constitui-se como um diálogo, um estímulo que “deve nascer do entendimento da natureza provisória e exploratória de toda a teoria, e da abertura de espírito com que se deve abordar todo conhecimento” (THOMPSON, 1981, p. 186). Para este autor, que parte do princípio da dialética marxista da historicidade e totalidade de todo fenômeno social, a história é concebida como processo da vida real dos homens e das relações que estabelecem entre si, entre si e a natureza, por meio do trabalho. Para Thompson, entender um processo histórico é buscar, por meio das evidências históricas, apreender como homens e mulheres agem e pensam dentro de determinadas condições: Estamos falando de homens e mulheres, em sua vida material, em suas relações determinadas, em sua experiência dessas relações, e em sua autoconsciência dessa experiência. Por ‘relações determinadas’ indicamos relações estruturadas em termos de classe, dentro de formações sociais particulares. (THOMPSON, 1981, p. 111) O pretendido foi traçar um caminho narrativo que percebesse e apontasse as tensões existentes no processo histórico, tensões nem sempre tão aparentes. Neste sentido, fez-se necessário que nos debruçássemos sobre a relação de aproximação e afastamento existente entre o poder público e os movimentos sociais, nos diferentes momentos do período da pesquisa. No percurso de pesquisa foi possível vasculhar um universo histórico que nos permitiu vislumbrar a existência de diversas experiências históricas, individuais e coletivas, que se formaram a partir dos choques e embricamentos provenientes da relação entre os movimentos sociais do campo e as instituições públicas. Esse estudo tem a perspectiva de apontar os sujeitos históricos que contribuíram para a construção do projeto educacional para as escolas do campo da região de Araraquara, visto que eles surgiram na região de Araraquara durante a década de 1980, justamente no momento em que os autos oficiais3 indicavam explicitamente o interesse 3 Autos oficiais aqui são entendidos como os diversos decretos estaduais outorgados durante a década de 1980 que ocasionaram o fechamento das escolas rurais no estado. Mais adiante, ao tratar da Política de fechamento das escolas rurais no estado de São Paulo, o tema será abordado de maneira mais detalhada. 22 no fim das escolas isoladas rurais. Acreditamos que os novos sujeitos acrescentados à história das escolas rurais a partir da década de 1980 nessa região contribuíram para a criação de uma nova concepção de escola rural, onde o peso dos movimentos sociais se fez presente, participando da modelagem do próprio sistema de educação nas escolas dos assentamentos. Assim, eles são entendidos aqui como produtores de uma experiência histórica, como construtores de uma categoria sociológica, a classe dos agricultores assentados da reforma agrária em processo de luta por educação em suas áreas rurais. A contribuição de Edward P. Thompson para a pesquisa em educação parece- nos essencial no sentido de apreender um “modo de fazer história” e também um modo de “entender a história”. Faria Filho (2005), coloca-nos uma questão fundamental na justificativa do porquê de se usar este historiador inglês para a realização de pesquisas no campo da educação. Segundo ele, a dimensão política é fundamental da obra de Thompson e se desdobra numa exigência ética de comprometimento do historiador com o seu tempo, além de uma sensibilidade para com os problemas dos esquecidos pela história. Thompson nos oferece um aprendizado, como candidatos a historiadores, no sentido de tentar buscar na luta, no conflito, nas negociações o locus fundamental de nosso trabalho de pesquisador na história. Aliás, toda sua produção, não prescinde jamais do conflito e da relação com o outro, seja este representado por uma classe ou por indivíduos tomados isoladamente. O conceito formulado pelo autor sobre experiência histórica e cultural catalisa a ação social dos indivíduos, trazendo à tona as diferentes experiências dos sujeitos no espaço e no tempo concreto, permitindo-nos a partir delas elaborar uma explicação racional das mudanças históricas. Sendo assim, possibilita a visualização das diferentes experiências históricas dos sujeitos envolvidos na construção da história das escolas do campo da região de Araraquara como fontes que nos permitem construir um trabalho historiográfico que dê conta de dar voz aos protagonistas dessa história. Por classe, entendo um fenômeno histórico, que unifica uma série de acontecimentos díspares e aparentemente desconectados, tanto na matéria-prima da experiência como da consciência. Ressalto que é um fenômeno histórico. Não vejo a classe como uma “estrutura” nem mesmo como uma “categoria”, mas como algo que ocorre efetivamente (e cuja ocorrência pode ser demonstrada) nas relações humanas. (THOMPSON, 1987, p. 9) O pretendido foi desenvolver esta pesquisa como um exercício intelectual acadêmico de incursão no tempo e no espaço em busca de informações em História, em 23 nosso caso específico, em História da educação, tivemos obrigatoriamente, a partir da perspectiva desse autor, ou seja, a partir do materialismo histórico, que interpretar nossas fontes documentais e orais à luz da busca do reconhecimento do humano e das relações estabelecidas no espaço e no tempo. Thompson nos permitiu entender os fatos sociais como fatos históricos, e nesta perspectiva pudemos descartar uma visão da teoria como “verdade” assim como nos aventuramos em tentar abraçar o desafio do conhecimento como percurso, sempre provisório e aproximado, salpicado de silêncios e impurezas. É perceptível a recusa do autor em tratar a totalidade conceitual presente no materialismo histórico como uma verdade teórica acabada ou como um modelo fictício. Para ele: O materialismo histórico distingue-se de outros sistemas interpretativos pela sua obstinação teimosa (teimosia que foi por vezes doutrinária) em elaborar essas categorias, e em articulá-las numa totalidade conceptual. Essa totalidade não é uma “verdade” teórica acabada (ou Teoria); mas também não é um “modelo” fictício, é um conhecimento em desenvolvimento, muito embora provisório e aproximado, com muitos silêncios e impurezas. (THOMPSON, 1981, p. 61) Para Thompson o desenvolvimento desse conhecimento se dá tanto na teoria quanto na prática, ele surge de um diálogo e seu discurso de demonstração é conduzido nos termos da lógica histórica. A lógica histórica que mobilizou a presente pesquisa trouxe implícitas as motivações de seu pesquisador, tanto a necessidade da resistência em permanecer no ambiente rural e nele desenvolver uma agricultura de subsistência, mesmo estando cercado por latifúndios de todos os lados, quanto a necessidade de haver um sistema educacional para essas populações rurais que considere suas especificidades e aspirações. Sem deixar de mencionar a motivação da docência do pesquisador, realizada na própria comunidade rural que reside, daí a necessidade de apresentar os verdadeiros sujeitos deste processo historiográfico. Assim, a possibilidade conceitual de Thompson, mais do que favorecer o estabelecimento de uma relação entre a teoria e as fontes, favorece a criação de uma aura criativa na operacionalização efetiva da lógica histórica: As operações efetivas dessa lógica não são visíveis, passo a passo, em cada página do trabalho de um historiador. Se o fossem, os livros de história esgotariam qualquer paciência. Mas essa lógica deveria estar implícita em cada confronto empírico, e explícita na maneira como o pesquisador se posiciona ante as evidências e nas perguntas propostas. Não pretendo que a lógica histórica seja sempre tão rigorosa ou tão autoconsciente como deveria ser; nem que nossa prática corresponda 24 muitas vezes àquilo que professamos. Afirmo apenas que existe essa lógica. (THOMPSON, 1981, p. 62) As proposições thompsonianas, embora imprescindíveis no processo de construção do conhecimento científico, devem estar em permanente diálogo com a realidade, para que assim, possam ser capazes de ajudar a compreender as mudanças em curso em determinada realidade histórico-social. Isso significa, entender a realidade social dos envolvidos com a construção da proposta das escolas do campo de Araraquara em seu movimento e complexidade, na qual, sob condições determinadas homens e mulheres constituíram-se como sujeitos. É cabível aqui um melhor entendimento sobre o conceito de experiência. Para Thompson, entender a experiência na vida de homens e mulheres reais é compreender o diálogo existente entre ser social e consciência social. Aqui ele se distancia do determinismo presente nas tendências ortodoxas do marxismo4. Para ele, é por meio da categoria de experiência que homens e mulheres definem e redefinem suas práticas e pensamentos: A explicação de Althusser também deixa de lado a força propulsora do “mundo real”, espontaneamente e sem nenhuma cerimônia, propondo aos filófosos questões até então inarticuladas. A experiência não espera discretamente, fora de seus gabinetes, o momento em que o discurso da demonstração convocará a sua presença. A experiência entra sem bater à porta e anuncia mortes, crises de subsistência, guerra de trincheira, desemprego, inflação, genocídio. Pessoas estão famintas: seus sobreviventes têm novos modos de pensar em relação ao mercado. Pessoas são presas: na prisão pensam de modo diverso sobre as leis. Frente a essas experiências, velhos sistemas conceituais podem desmoronar e novas problemáticas podem insistir em impor sua presença. (THOMPSON, 1981, p. 17) Então, posicionado em direção a não construir verdades históricas absolutas, o presente trabalho apresentou-se como interessado em dar voz aos sujeitos envolvidos no processo histórico de construção das escolas do campo da região de Araraquara, tentando reconstruir aspectos, fragmentos, indícios, que nos permitiram registrar a história dessas instituições escolares, história que deve ser encarada como uma interpretação possível, como uma experiência. As pessoas envolvidas nesta pesquisa, 4 Embora não sendo o objetivo deste trabalho, cabe ressaltar o debate existente a partir da segunda metade do século XX entre os intelectuais marxistas ingleses, em torno do embate entre a perspectiva teórica estruturalista de Louis Althusser e a perspectiva de E. P. Thompson e demais historiadores. Há muitas críticas provocativas de Thompson em As peculiaridades dos ingleses e em A miséria da teoria. Em ambos, Thompson se posiciona contra o dogmatismo, o teoricismo e determinismo presentes, sobretudo, no marxismo althusseriano. FORTES; NEGRO; FONTES (1998). 25 portanto, foram compreendidas como sujeitos históricos, portadores de experiência humana passível de ser incorporada à narrativa historiográfica. Nesta pesquisa, a partir das memórias dos entrevistados, pudemos dar conta de unir as experiências individuais a um universo coletivo, ou seja, um universo composto de memórias individuais que passam então a confeccionar um ser coletivo. Este trabalho também está situado dentro de uma perspectiva da história do tempo presente dada a aproximação temporal do recorte de pesquisa. Essa possibilidade historiográfica utiliza o presente, o momento em que o fato histórico ocorreu como fonte de questões para o conhecimento de determinado aspecto do passado. Como aponta Glezer (2007): A História é construção de conhecimento sobre uma questão perturbadora do presente, que analisa o passado para explicar, compreender ou interpretar o fenômeno em questão. [...] a História é configurada no momento em que é construída, sempre no presente, determinada pelos problemas e condições socioculturais do conhecimento na/da sociedade em que se insere. (GLEZER, 2007, p. 24) Ainda sobre a possibilidade de se produzir uma historiografia embebida no tempo presente se faz necessário apontar aqui o grau de aproximação do pesquisador com o objeto pesquisado. Como militante das questões ligadas à terra, ao meio rural em que está inserido e ao processo que tenta historicizar, fica aparente a produção de uma investigação histórica mediada pelo próprio discurso do envolvido. Por mais que tente se pautar pela neutralidade e objetividade científica, não está imune ao seu lugar de enunciação. Sobre esse aspecto observemos Dossê (2011): Além disso, a história do presente ou a história no presente exige uma reflexão sobre o ato de escrever a História, sobre a equação subjetiva do historiador. [...] Essa escritura do historiador, tendo em vista uma subjetividade publicamente assumida, encontrou muita resistência em um meio pouco habituado a escrever “a descoberto”. Mas consideramos que esse desvio é indispensável para a história do presente, ou seja, de conhecer o lugar de enunciação do historiador, a instituição necessária em função da qual ele conduz sua investigação e o momento preciso durante o qual ele escreve sua prática. (DOSSÊ, 2011, p. 7) Nesse trabalho há, portanto, duas situações que delimitam o lugar de memória do pesquisador: a primeira situação diz respeito à escolha do objeto e a segunda diz respeito à escolha do período de pesquisa, nos dois casos ele encontra-se imerso, tendo vivenciado o próprio processo histórico que tenta sistematizar aqui. O entendimento sobre a arbitrariedade da escolha temporal de pesquisa deve-se ao fato de que foi a 26 partir do ano de 2001 que foi instituído o Programa das Escolas do Campo de Araraquara, já a outra margem temporal, o ano de 2012, é justificado a partir da interpretação de que o Programa Escola do Campo, enquanto uma política pública, já possa ser analisado, ou seja, o recorte de pesquisa delimitou a outra margem temporal, entendendo-a como o momento em que já se encontravam prontas e articuladas as estruturas escolares formuladas anteriormente ao ano de 2001, data da criação do Programa Escola do Campo em Araraquara, e postas em prática durante uma década até o ano de 2012. Assim, optou-se pela cronologia no sentido de delimitar um período de tempo em que as propostas formuladas, implantadas e efetivadas tomaram forma e sentido no seio das instituições escolares pesquisadas. O período de 12 anos pode ser observado a partir das diferentes fases pelas quais passaram as escolas rurais sobreviventes no meio rural araraquarense. A intenção não foi prender-se somente à análise de tais fases pelas quais passaram as instituições rurais, fazendo dela um constructo indubitável, todavia foi tentar utilizar tal roteiro de análise na empreitada de pesquisa nos arquivos documentais da Secretaria Municipal de Educação, nos arquivos das instituições de ensino do meio rural pesquisadas e nos arquivos pessoais de diferentes sujeitos da pesquisa, assim como também na organização das nove (09) entrevistas que foram realizadas para esta pesquisa. Para este trabalho, foi realizada a análise das fontes documentais provenientes de diferentes locais, conforme disposto no Quadro 1. Quadro 1. Fontes documentais utilizadas na pesquisa Arquivo proveniente Fonte Data Secretaria Municipal de Educação de Araraquara - Anais da I Conferência Municipal de Educação “Educação para a cidadania”. - Projeto Escola do Campo - Ciclos de formação do Campo: uma proposta político-pedagógica transformadora. - Anais da III Conferência Municipal de Educação 2001 2001 2002 2009 EMEF do Campo Maria de Lourdes da Silva Prado - Proposta Pedagógica da pré-escola do campo - Projeto Político Pedagógico - Projeto Político pedagógico - Regimento escolar - Mapa do Assentamento Monte Alegre 2002 2003 2009 2009 Sem data EMEF do Campo Prof. Hermínio Pagôtto - Projetos Políticos Pedagógicos - Projetos Políticos Pedagógicos - Projetos Políticos Pedagógicos 2003-2006 2008-2010 2011-2013 27 - Fotografias diversas referente ao cotidiano escolar 1990-2018 EMEF do Campo Eugênio Trovatti - Memorial das Escolas do Campo: registro do trabalho docente, socializações e orientações - Projeto Político Pedagógico 2012 2003 Arquivo Pessoal do Prof. Alexandre L. M. de Freitas - Cópia das listas de presenças das reuniões dos Grupos de Trabalhos da Escola do campo - Cópias das correspondências recebidas e enviadas entre a SME e os demais participantes da elaboração da proposta de Educação do Campo - recortes de jornais com matérias sobre a Educação do Campo de Araraquara - Cópia da Programação, da Ata Final e das Listas de presença do I Seminário Estadual de Educação do Campo de Araraquara - Cópia do certificado “Selo de Escola Solidária 2003” concedido à EMEF do Campo Prof. Hermínio Pagôtto 2001-2002 2001-2003 2001-2003 2003 2003 Fonte: Quadro elaborado pelo autor (2018) Além das fontes documentais também houve aqui a opção pela metodologia de obtenção dos dados pela coleta de depoimentos orais. A característica do método está na entrevista realizada a partir de um roteiro estruturado ou semi-estruturado, na gravação, no entrevistado, na confecção do documento escrito (transcrição) e na análise. Para a elaboração deste trabalho foi realizada a coleta de nove depoimentos gravados e transcritos que foram recolhidos a partir de um roteiro pré-estabelecido (APENDICE B), elaborado a partir de critérios definidos pelo pesquisador com anuência da orientadora. A escolha dos entrevistados deu-se pelo fato de tentar reunir pessoas de diferentes posições sociais que participaram de alguma maneira do processo de construção do Programa Escola do Campo na cidade Araraquara. Assim, foram entrevistadas três agricultoras assentadas da reforma agrária sendo uma do Assentamento Bela Vista, uma do assentamento Monte Alegre e outra do Assentamento Horto de Bueno de Andrada. Também foram entrevistados três profissionais docentes das escolas do campo locais, sendo um de cada escola pesquisada. A seleção do corpo docente para a pesquisa aconteceu em função do tempo de permanência que esses profissionais lecionavam nas referidas instituições de ensino, sendo preferidos aqueles que por mais tempo permaneceram lotados nesses locais. Finalmente, a escolha dos 28 últimos três entrevistados está ligada ao fato de serem pessoas que se envolveram no processo de constituição das Escolas do campo enquanto gestores públicos da Prefeitura Municipal de Araraquara. Já as questões que compuseram o roteiro de entrevista foram elaboradas na tentativa de captar as premissas e contradições que permitissem sistematizar e organizar a trajetória do processo de construção da política pública envolvendo as Escolas do Campo de Araraquara. Sendo assim, as questões do roteiro permitiram perceber através das respostas o envolvimento dos sujeitos da pesquisa dentro desse processo. Observou-se um grande movimento de luta por escola para as áreas rurais do município, em que a comunidade assentada, o corpo docente das escolas do campo, assim como a gestão pública municipal, precisaram desempenhar um papel de resistência e luta frente aos entraves que se instauraram no percurso. É preciso, portanto, registrar os limites impostos à pesquisa pela própria metodologia utilizada que, embebida na História do Tempo Presente, impediu a visualização da totalidade deste processo de resistência, nos fornecendo somente elementos parciais, fragmentos de memória, indícios de uma experiência histórica de resistência. Tais indícios, todavia, possibilitaram que compreendêssemos aspectos das estratégias de resistência destes sujeitos, que, por serem contraditórias apresentam avanços e recuos dentro do processo. O trabalho está organizado em três capítulos. No primeiro, “A Educação para o Meio Rural no Estado de São Paulo”, busca-se apresentar considerações acerca do processo de expansão das escolas rurais nas décadas finais do século XX, assim como sobre o fechamento das escolas rurais de Araraquara durante a década de 1980. O segundo capítulo “Os Assentamentos de Reforma Agrária e a constituição das Escolas do Campo no Município de Araraquara” é dedicado à caracterização dos assentamentos existentes em Araraquara; à contextualização das lutas por escola para essas populações rurais; ao processo de constituição do Programa Escola do Campo no município, assim como ao percurso deste programa durante a década inicial, a partir de sua criação. Para finalizar o capítulo, busca-se apresentar as contradições impostas ao Programa Escola do Campo de Araraquara devido à introdução do material apostilado do sistema SESI nas unidades escolares do campo. No terceiro capítulo intitulado “Escolas do Campo de Araraquara: a construção da experiência percebida”, através da História Oral, busca-se a partir da memória dos entrevistados, reconstituir aspectos históricos da educação do campo no 29 município, apresentando as contradições e resistências existentes no processo de criação e manutenção do programa. Como fecho do trabalho, são tecidas algumas considerações acerca do percurso da pesquisa e dos objetivos alcançados, assim como são apresentadas as expectativas e os desafios políticos das escolas do campo atualmente. 30 1 – A EDUCAÇÃO PARA O MEIO RURAL NO ESTADO DE SÃO PAULO Duas questões a serem consideradas no estudo histórico da educação no meio rural são de ordem conceitual. A primeira questão é referente ao uso dos termos Educação Rural e Educação do Campo. O termo Educação Rural foi empregado no decorrer do século XX para designar ações educativas de diversas naturezas em áreas consideradas não urbanas, enquanto o termo Educação do/no Campo é mais recente e ganhou proeminência na década de 1990 a partir da participação ativa dos movimentos sociais e associações civis do campo5. A segunda consideração diz respeito a necessidade de superação da razão dualista que costuma dicotomizar os fenômenos humanos contrapondo-os em pares antagônicos, aqui especificamente o que interessa é a relação rural x urbano. Sobre esta necessidade de superação aponta Whitaker: Tal maneira conceitual de organizar o raciocínio pode ajudar a compreender os fenômenos a partir da ciência positivista, mas é obscurecedora do real em sua complexidade/totalidade. (WHITAKER, 2008, p. 283). A autora chama a atenção para a necessidade de uma compreensão dialética sobre a maneira como se articulam o rural e o urbano na sociedade brasileira: Somente o raciocínio dialético permite observar como os objetos reais se interpenetram de forma ora articulada ora integrada, mas sempre compondo com a totalidade. Superar a razão dualista é, portanto, o primeiro passo para compreender como se articulam o rural e o urbano no Brasil hoje. (WHITAKER, 2008, p. 283). Aqui neste trabalho o termo rural é pensado articulado ao urbano e não separadamente como se houvesse dois mundos distintos numa mesma realidade social. O rural e o urbano devem ser entendidos como unificados que estão hoje pelo capital, através principalmente do avanço do complexo agroindustrial sobre as áreas onde anteriormente existiam as pequenas propriedades rurais com sua diversificação de produção animal e vegetal. O debate sobre educação rural já estava presente na sociedade brasileira desde o século XIX. Como mostra Silva (2016), várias propostas educacionais foram 5 Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Confederação Nacional do Trabalhador e Trabalhadora na Agricultura (CONTAG), Pastoral da Terra da Confederação dos Bispos do Brasil (CNBB), União Nacional das Escolas Família Agrícola do Brasil (UNEFAB), Associação das Casas Familiares Rurais (ARCAFAR), entre outros, são os movimentos que têm enfaticamente reivindicado políticas específicas para a Educação do Campo. (SILVA; MORAIS e BOF, 2006, p. 76). 31 apresentadas e discutidas pelas classes produtoras no Congresso Agrícola, Industrial e Comercial de Minas Gerais, realizado em 19036, debate que se estendeu por todo o século XX. A partir de 1920 começaram a ser debatidas propostas específicas para o ensino primário localizado nas zonas rurais. Foi no decorrer da década de 1930 que o tema da educação rural intensificou-se no país com políticas do governo federal para disseminação da educação nas zonas rurais do país. De acordo com Souza (2015) o presidente Getúlio Vargas deu especial atenção a esse tema, considerando a educação rural temática relevante para a modernização do Brasil e fixação dos trabalhadores no campo. Prossegue ainda que, durante o Estado Novo, foram implementadas algumas políticas nacionais para o desenvolvimento do ensino primário rural7, tendo a atuação do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP) de maneira intensa em prol da difusão do ensino primário rural durante o final da década de 1940 e durante a década de 1950. Inclusive no ano de 1952 foi lançada a Campanha Nacional de Educação Rural (CNER) que durou até 19638. É possível perceber que essas políticas nacionais foram imprescindíveis para o processo de oferecer o acesso à educação escolar para as populações das áreas rurais, fatores que justificam seu crescimento exponencial durante as décadas que se seguiram. Evidentemente a expansão não assegurou a qualidade da educação oferecida a essa população e nem conseguiu esconder a precariedade histórica do sistema de educação rural no país, além de cometer equívocos em relação ao ensino rural. O Estado de São Paulo adentrou o século XX como o centro dinâmico da economia brasileira (COSTA, 1983). Além do poder político e econômico, os governantes do estado de São Paulo investiram – após o advento da República – na instauração de um sistema de ensino modelar para os demais estados da federação, assim, o estado era reconhecido como possuidor dos métodos e organização de ensino dos mais aperfeiçoados (FIORI, 1991; MOREIRA, 1954; TEIVE, 2008). Após a instituição da República, os governantes do estado de São Paulo, representantes do setor oligárquico investiram na organização de um sistema de ensino que fosse modelo aos demais estados da federação. Foi assim, segundo Carvalho (2000): 6 Sobre a educação rural na Primeira República vale destacar os trabalhos de Mendonça (1997, 2006, 2007) e Ávila (2013) 7 Em 1942 foi criado o Fundo Nacional do Ensino Primário, o que possibilitou o investimento na construção de escolas rurais e formação de professores em várias regiões do país, mediado pela supervisão do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP) 8 Estudo detalhado sobre a CNER foi realizado por Barreiro (1997) 32 “[...] que a escola paulista estrategicamente constituiu-se como signo do progresso que a República instaurava; signo do moderno que funcionava como dispositivo de luta e de legitimação na consolidação da hegemonia desse Estado na Federação (CARVALHO, 2000, p. 112). Todavia, pode ser observado por outro lado que na transição do século XIX até a metade do século XX uma parte significativa da população do Estado de São Paulo residia na zona rural, local onde se concentravam os maiores índices de analfabetismo e evasão escolar, conforme aponta Ferraro: Na maior parte da história do Brasil, o analfabetismo esteve fortemente associado à sua condição de país agrícola, com a maior parte de sua população residindo no campo. Apesar do forte movimento de urbanização do país desde a primeira metade do século XX, em 1980 o número absoluto de analfabetos entre as pessoas de 15 anos ou mais ainda era mais elevado na população rural (10,0 milhões) do que na urbana (8,7 milhões). Em termos relativos, porém, a taxa de analfabetismo rural (46,3%) era 2,8 vezes superior à taxa urbana (16,8%).(FERRARO, 2012, p. 944) Até meados do século XX a educação rural (na realidade, a educação da maioria da população brasileira, até então predominantemente rural) esteve fora do quadro de preocupações do Estado. Isto significa que o interesse pela educação rural surgiu, no Brasil, no momento em que o analfabetismo começou a incomodar a cidade, para onde o desenvolvimento industrial e a expansão do comércio e dos serviços em geral passaram a carrear levas crescentes de migrantes rurais, em grande parte analfabetos. Pode-se afirmar que o interesse pela educação rural por parte do Estado é produto dos movimentos de industrialização e urbanização do país; ou então, que passou a ser importante alfabetizar e escolarizar o campo, porque a cidade assim o exigiu. Percebe-se neste ponto a tentativa de enxergar a educação no meio rural como um aspecto secundário, com relação à discussão dos problemas educacionais em geral e em áreas urbanas em particular, numa posição de subordinação que é a do próprio meio rural diante do urbano. Como já mencionado anteriormente é uma característica típica do modo dualista e simples de pensar a sociedade, dividida antagonicamente entre o rural e o urbano. No tocante ao Estado de São Paulo, Demartini (1988) apresentou resultados de um estudo realizado no qual questionava as posições teóricas de estudiosos do meio rural e da educação a partir da década de 1960, que consideravam a população rural como indiferente à instrução escolar, dada a inutilidade desta instrução para a sua vida diária. Os resultados da sua pesquisa permitiram constatar um interesse generalizado 33 pela escolarização entre a população rural do estado anteriormente ao processo de industrialização. Segundo a autora: Contrariamente ao que se supunha, uma valorização constante da educação escolar (e mesmo extra-escolar) foi constatada entre os habitantes de sítios e fazendas, em períodos anteriores à industrialização. Além da valorização, havia procura efetiva de escolarização. Isto é, não se tratava apenas de mera valorização; esta se concretizava em comportamentos efetivos, numa procura educacional que, muitas vezes, providenciava suas próprias soluções para uma oferta educacional sempre deficitária. (DEMARTINI, 1988, p. 28) Nesta perspectiva, a hipótese aventada é a de que o interesse pela instrução tendeu a se expandir, ao mesmo tempo, no meio rural e nas camadas urbanas: [...] a razão estaria no fato de que os sitiantes, trabalhadores rurais, etc. nunca viveram isolados uns dos outros (FUKUI, 1972; DIAS, 1978), e desta forma, estavam sob a influência dos mesmos valores que agiam para os demais setores da sociedade global. (DEMARTINI, 1988, p. 28) Sobre esse fato é possível pensar nas contradições sociológicas que acompanharam a modernização subdesenvolvida do Estado de São Paulo durante o século XX: Com a urbanização acelerada do país no pós-guerra (que a partir dos anos 60 inverteu rapidamente a relação percentual entre população rural e urbana), a escola pública foi se tornando gradativamente a escola dos pobres, à medida que as classes privilegiadas transferiam seus filhos para o sistema particular de ensino. Com isso ela foi sendo abandonada por sucessivos governos insensíveis às necessidades de escolarização, decorrentes da própria modernização da economia. No que se refere à escola rural, que continuou relegada ao último plano, o problema tornou-se tanto mais grave quanto mais o campo se modernizou no Estado mais modernizado do país. E como essa modernização se dá envolta em graves contradições, a política educacional no Estado de São Paulo não conseguiu criar ainda um modelo de escola rural que se ajuste às necessidades do sistema econômico e seja capaz de dar conta das realidades várias enfrentadas pelo homem rural em cada situação específica por ele vivenciada dentro da heterogeneidade que marca o campo brasileiro, varrido pela modernização. (WHITAKER, 1995, p. 60) Segundo Whitaker, a educação escolar rural no Estado de São Paulo durante o século XX foi tratada com abandono ou com discursos de pura retórica por parte dos governantes. Ao traçar um panorama secular, ela sugere que o dividamos em quatro períodos. O primeiro que abrange as três primeiras décadas do século, foi o momento que segundo ela, a ideologia da dominação afirmava que os homens rurais não 34 valorizavam a educação escolar, discurso que deixava os governantes muito a vontade para dar péssimas (e pouquíssimas) escolas às populações rurais, pagando menor salário aos professores que corajosamente enfrentavam descaminhos e desconfortos. O segundo momento abrange as décadas de 1930 e 1940 em que havia uma preocupação dos governos com as questões de nacionalidade. Para Whitaker, foi o momento de integração dos filhos de imigrantes e caboclos à sociedade que se queria industrializada e articulada aos países líderes do processo. É importante frisar que, houve neste período um grande debate teórico que produziu reflexos na legislação em torno do ruralismo pedagógico9. Num terceiro período que foi de 1960 até meados dos anos 1980, o Estado de São Paulo conseguiu realmente expandir a escola rural às regiões mais remotas do seu território, o que pôde ser considerado um avanço considerável quando comparado a outras regiões mais pobres do país. Eram escolas isoladas ou de emergência, em prédios precários, com pouca infra-estrutura. [...] Assim, uma supervisão burocrática constante, merenda escolar fornecida pelas prefeituras ou até mesmo pelo complexo agroindustrial interessado na reprodução da mão de obra, transporte deficiente em alguns municípios, eficiente em outros, e o que é o mais importante – professoras todas diplomadas em curso oficial de formação de magistério caracterizaram o momento (WHITAKER, 1995, p. 66) Para a pesquisadora, o quarto momento se inicia com o processo de reforma da escola pública localizada na zona rural a partir da política de agrupamento das escolas rurais. Uma análise desse período será feita um pouco mais adiante nesse trabalho. Há neste trabalho a tentativa de traçar um breve panorama da educação rural paulista, no entanto, juntar a análise histórica à análise sociológica, nem sempre é uma tarefa fácil e de percurso linear. Assim, segundo Souza (2012), no estado de São Paulo, durante a Primeira República (1889-1930), o processo de expansão do ensino primário ocorreu lentamente. Mesmo criando escolas de diferentes tipos (escolas preliminares, intermediárias e provisórias, cursos noturnos, escolas isoladas, grupos escolares, escolas ambulantes, escolas modelos e escolas reunidas), essas instituições não acompanharam o elevado número de crianças em idade escolar. Dentre os modelos citados, as escolas singulares (escolas isoladas) e as escolas graduadas (grupos escolares e as escolas 9 No Brasil, nas décadas de 1920 e 1930, um contingente de intelectuais e educadores se intitulou ruralista, dando origem ao termo ruralismo pedagógico. Esse grupo colocava em destaque os problemas que envolviam a educação rural no Brasil, estabelecendo relações com o contexto sócio-político- conômico do país (ARROYO, 1982; LEITE, 1999; LIMA, 2004;SILVEIRA, 2008). Entre os principais representantes desse grupo estavam Alberto Torres, Carneiro Leão, Sud Mennucci e Noemia Cruz. Moraes (2014, p. 40). 35 reunidas) prevaleceram como os principais tipos de escolas primárias. Entretanto o modelo de escola primária que mais se destacou no estado de São Paulo foi o grupo escolar, localizados nas zonas urbanas. Na zona rural, entre as décadas de 1930 e 1970, predominaram as escolas isoladas, consideradas precárias e incipientes, mas necessárias para a escolarização da criança rural. No processo de expansão do ensino primário rural paulista ocorrido entre as décadas de 1940 e 1960, coexistiram dois modelos de ensino: o ensino comum (mesmo programa das escolas primárias urbanas) e o ensino típico rural (com programa de ensino e proposta pedagógica para o campo) conforme aponta Moraes (2014): Portanto, entre as décadas de 1930 e 1960, período em que ocorreu crescimento do número de escolas primárias rurais no estado de São Paulo, conviveram, nesse estado, dois tipos de propostas pedagógicas para a educação rural – o ensino comum, ministrado nas escolas isoladas, e o ensino típico rural, ministrado nas Granjas Escolares, nos Grupos Escolares Rurais e nas denominadas Escolas Típicas Rurais. (MORAES, 2014, p.15). As escolas típicas rurais segundo Moraes (2014): [...] representavam propostas pedagógicas próprias para a população rural. Nessas escolas deveriam existir, necessariamente, o edifício escolar e uma área cultivável para as atividades agrícolas. Os modelos de escolas do ensino típico rural tinham como objetivo fixar o homem à terra, cultivar hábitos de higiene e preparar para o trabalho. (MORAES, 2014, p.69). Em seu estudo, a pesquisadora identificou 253 escolas de ensino rural no estado de São Paulo, sendo cinco granjas escolares, 82 grupos escolares rurais e 166 escolas típicas rurais. Na expansão do ensino primário na primeira metade do século XX o governo do estado de São Paulo priorizou as áreas urbanas em detrimento das áreas rurais. No meio urbano prevaleceram os grupos escolares, considerados escolas primárias de melhor qualidade10. Segundo Leite (2018), no meio rural, o ritmo de atendimento da população escolar foi menor e prevaleceram as escolas isoladas, principais responsáveis pela 10 Quando instalados no estado de São Paulo no final do século XIX, os grupos escolares se opuseram ao modelo da escola monárquica, comumente encontrada durante o século XIX que era a escola de primeiras letras. Os grupos escolares eram o que existia de mais moderno em termos educacionais até a metade do século XX. Estes “templos educacionais” consagraram a imagem de um sistema orgânico e racional e se legitimaram, inclusive, pelo conjunto de dispositivos materiais e simbólicos postos em visibilidade, como por exemplo, a construção de prédios próprios para a escola compreendendo uma arquitetura imponente, mobiliário e materiais modernos e importados, sistema de inspeção técnica e realização de festas e comemorações cívicas que davam publicidade à ação escolar no meio social. Para aprofundamento sobre o tema ver Souza (1998). 36 disseminação do ensino primário entre a população rural do estado. Diferente das escolas do ensino típico rural, elas não exigiam a construção de prédios escolares caros. Muito pelo contrário, a grande maioria delas era implementada em prédios adaptados ou era construída de maneira simples. Condições essas que podem ser apontadas como um fator facilitador para a criação de escolas isoladas na zona rural e em localidades distantes dos perímetros considerados urbanos. O estudo recente de Leite (2018) apresentou o número de escolas rurais de ensino comum existentes no estado de São Paulo no período de 1934 a 1991 (Gráfico 1): 37 Gráfico 1 – Número de escolas rurais de ensino comum no Estado de São Paulo (1934 – 1991) FONTE: Anuário estatístico do Brasil (1961; 1966; 1967; 1969; 1971; 1972; 1973; 1976) Anuário estatístico do Estado de São Paulo (1964; 1979; 1983; 1986; 1987; 1988; 1989; 1991; 1992 apud Leite (2018) 38 1.1 A expansão das escolas rurais nas décadas finais do século XX No gráfico 1 é possível acompanhar o processo de expansão e fechamento das escolas rurais de ensino comum no Estado de São Paulo no período de 1934 a 1991. A avaliação da política educacional paulista do período de 1967 a 1990 realizada por Rus Perez (2000) nos forneceu elementos que colaboraram para a interpretação dos dados aqui apresentados. Segundo o autor, inegavelmente ocorreu no Estado de São Paulo um grande esforço para que se ampliasse a oferta de matrículas do ensino em geral, ou seja, em todos os níveis de ensino, para a população no período 1960/1990: São Paulo tinha 8.287.471 estudantes no ano de 1990, em todos os níveis de ensino regular, correspondendo a 27% de sua população total; em 1960 tinha 1.754.943 estudantes ou 14% da população. (RUS PEREZ, 2000, p. 27) Observamos que os dados apresentados referentes a todos os níveis de ensino estão refletidos no processo de expansão das escolas rurais de ensino comum. Aqui é preciso evitar generalizações, assim, devemos comparar os dados partir das mudanças sociais políticas e econômicas que se deram, assim como das diferentes demandas que as populações foram impondo ao poder público durante o período. Para esse autor os trinta (30) anos da política educacional no Estado de São Paulo por ele analisados apresentaram três (03) momentos distintos de ampliação da oferta das matrículas: intensa expansão (1960 a 1975); desaceleração do ritmo de crescimento (1975 a 1985) e retomada de crescimento (a partir de 1985). O período de intensa expansão ocorreu, segundo o mesmo autor, num momento de explosão demográfica que vai de 1940 até o início da década de 1970. Para ele esse período ficou caracterizado pela intensidade e rapidez da queda da mortalidade, manutenção de níveis elevados de natalidade, fluxos migratórios internacionais ainda expressivos e migração interna crescente. O número de imigrantes estrangeiros que entraram no Estado de São Paulo foi de 488 mil no período 1935/1959 (São Paulo, 1962: 24). No mesmo período o número de imigrantes nacionais recebidos foi de 1.970.966, sendo 73% do Nordeste, a maioria analfabeta. Entre 1960- 70, o Estado de São Paulo recebeu 996 mil migrantes, contudo, nos anos 70 cerca de 2,75 milhões de migrantes dirigiram-se para São Paulo. (RUS PEREZ, 2000, p. 29) Para entender melhor o Estado de São Paulo no momento em que houve a expansão populacional e consequentemente do número de matrículas na rede estadual 39 de educação é necessário que nos atenhamos à questão da movimentação dos grupos humanos pelo território nacional, especificamente o êxodo ocorrido a partir dos demais estados da federação. Os migrantes que se dirigiram para o Estado correspondiam a 5,6% da população no fim da década de 1960; esse percentual passou para 11% na década de 70. (CANO; PACHECO, 1990, p. 16) Percebemos, portanto, que no estado de São Paulo o processo de expansão matrícula/população aparece intimamente vinculado ao fenômeno da urbanização, que foi rápido e intenso. O desenvolvimento urbano intenso e extenso por um largo espaço geográfico tem sua origem na maneira de evolução da economia cafeeira capitalista e da industrialização. Nesse contexto, o mundo rural paulista sofreu inúmeras transformações decorrentes do seu processo de desenvolvimento capitalista. Neste espaço também se consolidou a mais moderna agricultura do país, substituindo os cultivos e iniciando a tecnificação, aumentando o êxodo rural e diminuindo a participação da população rural no total estadual (CANO; PACHECO, 1990, p. 3) Durante o período de expansão populacional e educacional a economia paulista passou por diversas transformações. A partir da segunda metade da década de 1960 realizou-se o ciclo da industrialização pesada, acompanhado de crise econômica e de desemprego industrial. De 1968 a 1975 houve o período do milagre econômico, do desenvolvimento e modernização do interior. Para Ruz Perez: [...] esse crescimento apoiou-se em bases criadas nos anos anteriores e no movimento ascendente da economia internacional. (RUS PEREZ, 2000, p. 30) Durante este período de ampla expansão das matrículas no estado ocorreram profundas transformações no cenário político nacional com o advento da passagem do regime democrático para um regime militar em 1964, assim, os governadores nomeados foram Abreu Sodré (1967-71) e Laudo Natel (1971-75). O período que segue é o de desaceleração do ritmo de crescimento de matrículas (1975 – 1985). Segundo Ruz Perez (2000) a desaceleração do ritmo de crescimento de matrículas ocorreu concomitantemente ao início da transição demográfica11. A década de 1980 foi um período caracterizado pela acentuada urbanização do estado onde 80% dos paulistas passaram a viver nas cidades. Momento também em que o interior paulista 11 Para o autor a transição demográfica se caracterizou pela queda efetiva de fecundidade e intensificação de declínio da mortalidade. 40 consolidou a industrialização do campo, a tecnificação da produção e os nexos intersetoriais que reforçaram o crescimento urbano: [...] transportes, armazenamento, comércio, crédito, e, sobretudo, o desenvolvimento dos segmentos industriais articulados diretamente ao mundo rural (...) as alterações correlatas sobre o emprego no campo repercutem diretamente nas cidades, com a urbanização da mão-de- obra rural. (CANO; PACHECO, 1990, p. 71) A infraestrutura econômica mantida pelo estado (transporte, construção de estradas e vicinais, energia, comunicações, serviços de apoio à produção) esteve articulada ao processo de escolarização da população paulista. Ou seja, a expansão da rede escolar ocorreu de forma generalizada por todas as regiões, atingindo níveis semelhantes de escolarização entre elas. Segundo Rus Perez: Foram criadas as condições de reter a população migrante, que, além de novas possibilidades ocupacionais, geradas pelo desenvolvimento ou pelas rendas derivadas a partir do crescimento dos segmentos médios, encontrou também uma rede de serviços básicos (educação e saúde). (RUS PEREZ, 2000, p 33) No entanto, para o autor, em decorrência do processo de perifização intenso, o padrão de construção escolar, mantido pelo poder púbico, não conseguiu atender satisfatoriamente à demanda. Encontraram-se dificuldades de harmonizar a movimentação da população pelas periferias dos grandes centros urbanos com o planejamento de ampliação de escolas. A desaceleração do crescimento industrial paulista iniciada na segunda metade da década de 1970 e aprofundada no início da década seguinte, a recessão, o elevado nível de desemprego e a crise social dão conta de traçar o panorama sócio-econômico do período. Quanto ao plano político, a partir de 1975 de um lado observou-se o recesso temporário do Congresso Nacional, a suspensão das eleições diretas para governador, e por outro lado, o início da distensão, que consistiu na abertura gradual do regime, na reformulação partidária, que possibilitou as eleições livres para governadores em 1982 e na escolha indireta do presidente civil em 1984. Importante ressaltar que na eleição direta para o governo do Estado de São Paulo foi eleito Franco Montoro do PMDB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro), partido de oposição ao governo federal naquele momento. O período de retomada do crescimento das matrículas (1985-1990) desenrolou- se num cenário de intensificação do processo de urbanização e de redemocratização. Segundo Rus Perez (2000) em 1991, 89% da população paulista vivia em cidades sendo 41 perceptível o decréscimo da população rural do estado que em 1980 era de 2,8 milhões e caiu para 2,2 milhões em 1991, isso dá conta de demonstrar o processo de esvaziamento do mundo rural paulista provocado principalmente pelo modelo de desenvolvimento industrial e urbanocêntrico implementado. Sobre o processo de redemocratização iniciado a partir de 1985 houve a ampliação da transição democrática, sendo eleito em 1986 para governador Orestes Quércia, ocorrendo dessa forma uma continuidade do governo peemedebista no estado de São Paulo. No plano nacional em 1988 foi aprovada a nova Constituição Federal e em 1989 realizaram-se eleições diretas para presidente da República, após 25 anos do golpe civil militar. Ao analisar a política educacional do governo do Estado de São Paulo no último quarto do século XX , foi possível constatar que o sistema educacional paulista cresceu independente do regime político e que a única variável que se manteve constante foi a urbanização, caracterizada pela incorporação de grandes contingentes populacionais que deixaram a zona rural, tanto do estado de São Paulo quanto de outros estados da federação. De fato, as cidades passaram a concentrar a maioria da população; se 47% da população ainda se encontrava, em 1960, na zona rural, 30 anos depois nela restam apenas 11%. (RUS PEREZ, 2000, p. 36) Percebemos pois, que o governo estadual desempenhou um papel relevante na sustentação de sua “modernidade” educacional. Um ponto que vale a pena ressaltar para contribuir com a discussão ora proposta, é o fato de ao contrastarmos as informações presentes no gráfico 1 com os dados apresentados por Rus Perez (2000) observamos que as escolas rurais paulistas não acompanharam o processo de retomada de seu crescimento na segunda metade da década de 1980. Pelo contrário, o que pode ser observado foi o seu declínio abissal. De acordo com os dados apresentados por Leite (2018) em 1985 havia 11.394 escolas rurais de ensino comum e em 1990 esse número caiu para 3.894 unidades. Se após a redemocratização do país a Constituição Federal garantia legalmente o acesso de todos à educação escolar, o que nos pareceu foi que a preocupação do governo paulista não foi garantir este acesso à educação nas áreas rurais. Ou seja, se na década de 1980 apresentou-se um aumento no número de alunos matriculados, não foi no meio rural que tais matrículas se deram, visto o seu perceptível declínio no período. 42 Se a partir da metade do século XX, a ênfase econômica do país estava voltada para a indústria, culminando em uma valorização do espaço urbano, não é impossível apontar que a ideologia do progresso se impusesse sobre a vocação agrícola e o mundo rural: O progresso e o desenvolvimento, principais expressões da narrativa evolucionista, exigiam o fim do campo e do camponês – já que ambos eram sinônimos de passado e atraso. (DAMASCENO; BESERRA, 2004, p. 76). É interessante observar, como já fora mencionado aqui anteriormente, que o estado de São Paulo se apresentava como a locomotiva do crescimento industrial do país, e que a ascendência industrial auxiliou no processo de migração das populações do espaço rural para o espaço urbano. Sem que pese o motivo pelo qual se mantinham escolas em áreas rurais, ao mesmo tempo em que a educação rural se tornou objeto de interesse do Estado de São Paulo e de outras regiões do país, as escolas situadas na zona rural nesse Estado iniciaram o processo de fechamento. Foi possível perceber que um fator que interferiu na expansão das escolas primárias na zona rural e auxiliou no fechamento de várias delas foi o programa de transporte escolar de crianças rurais para escolas situadas na zona urbana. A esse respeito afirma Vasconcellos: O programa de transporte de escolares tem um caráter mais emergencial, derivado do fato de que, por meio do transporte, se procura levar as crianças até as escolas disponíveis, normalmente localizadas na zona urbana. Esse direcionamento reforça o ensino urbano em detrimento do rural, tendo, portanto, implicações culturais, sociais, políticas importantes, que precisam ser avaliadas. Esse modelo é o que tem sido seguido, por exemplo, na maioria das cidades do estado de São Paulo. (VASCONCELLOS,1991, p.95). Para esse autor, o auxílio transporte no Estado de São Paulo foi regulamentado por uma série de leis e decretos complementares. O serviço teve início com a Lei n. 1.165, de 11 de novembro de 1976, que criou o Fundo de Desenvolvimento da Educação em São Paulo (FUNDESP). Esse órgão era responsável pelos prédios escolares, merenda, material escolar e transporte de alunos. O governo estadual, por meio do FUNDESP, fornecia auxílio financeiro às prefeituras para que providenciassem o transporte para os alunos de 1º grau que residiam em locais onde não havia escola acessível. O papel do transporte escolar no Estado de São Paulo era transportar crianças da zona rural para as cidades, a fim de concluírem o ensino de 1º grau. 43 As escolas rurais ofertavam apenas as primeiras séries do ensino de 1º grau (1ª a 4ª série) e as escolas urbanas ofereciam o ensino de 1º grau completo (1ª a 8ª série). Porém, em alguns casos, como constatou Vasconcellos (1985), o transporte escolar também transportava crianças da zona rural com idade para cursar as séries iniciais do ensino de 1º grau. Esse envio antecipado de alunos rurais para as cidades acelerou o processo de esvaziamento da escola rural. O decreto n. 29.499, de 5 de janeiro de 1989, implementou a reestruturação e agrupamento12 das escolas na zona rural no Estado de São Paulo. Com ele iniciou-se um novo processo para a escolarização rural, que vigora até os dias atuais. Esse processo fechou as escolas unidocentes e estimulou a criação das escolas agrupadas. Tal decreto reestruturou as escolas rurais da seguinte forma: Artigo 1º - As escolas localizadas na zona rural serão reestruturadas de acordo com as disposições deste decreto. Artigo 2º - A escola localizada na zona rural que conte com apenas uma classe passa a denominar-se Escola Estadual de Primeiro Grau Rural de Emergência EEPG (E). Artigo 3º - Observadas as características e necessidades locais, poderá ocorrer o agrupamento das unidades escolares mencionadas no artigo anterior, em conjunto de 2 (duas) a 7 (sete) classes com a denominação de Escola Estadual de Primeiro Grau Rural EEPG(R). Parágrafo único – As atuais Escolas Estaduais de Primeiro Grau Agrupadas da Zona Rural passam a denominarem-se Escolas Estaduais de Primeiro Grau Rural EEPG(R). (SÃO PAULO, 1989, p.1). Se fez perceptível o impacto que esse decreto causou no processo de educação escolar das populações residentes nas áreas rurais do estado de São Paulo. O processo educacional in locu dos povos do meio rural foi praticamente extinto; o que restou dele foi direcionado para o interior das escolas agrupadas, conforme sinaliza Leite (2018): Com a implementação da reorganização e agrupamento das escolas rurais no estado de São Paulo, as escolas isoladas são oficialmente extintas, permanecendo apenas as escolas de emergência e as escolas agrupadas, também denominadas de escolas nucleadas ou escolas polo. As escolas de emergência foram fechadas gradativamente e transformadas em escolas núcleo. (LEITE, 2018, p. 43) 12 Ao consultar fontes que informam sobre o assunto é possível se separar com o uso de múltiplos termos para designar o mesmo processo de reorganização das escolas rurais. Autores utilizam termos como “agrupamento” Vasconcellos (1993), “nucleação” Silva (2007) e Ramos (1991) e “nuclearização” Barreiro (2007). Nesse sentido pode-se considerá-los termos sinônimos. 44 A tabela 1 mostra que, até o ano de 1988, anterior à implementação do decreto 24.499/89, o número de escolas isoladas era de 5.665 unidades. Após sua implementação, o número passa a ser zero e ocorre um crescimento das escolas de emergência e, principalmente, das escolas agrupadas que ultrapassou mil unidades escolares. Tabela 1: Oferta de ensino na zona rural do Estado de São Paulo Tipo de escola Antes de 1988 % Depois de 1990 % Isolada 5.665 56,4 0 0 Emergência 3.170 31,6 3.340 59,9 Agrupada 214 2,1 1.526 27,4 UEAC13 818 8,1 344 6,1 Outras14 176 1,8 368 6,6 Total 10.043 100,0 5.578 100,0 Fonte: Vasconcellos, 1993, p.67 Até o final da década de 1980 predominavam no campo paulista as escolas isoladas (multisseriadas e unidocentes). Segundo a argumentação de Vasconcelos (1993) a favor da reforma imposta pelo decreto 29.499/89, ela significou um esforço na melhoria do ensino e da aprendizagem dos alunos das escolas rurais: As escolas unidocentes são consideradas inferiores em razão da necessidade de o professor trabalhar com várias séries simultaneamente, de não ter treinamento específico para essa tarefa e de viver um isolamento prejudicial ao seu trabalho, além da dificuldade de transporte até a escola (no caso de não morar no local) e de manter uma supervisão eficiente do processo educacional. Essas escolas, portanto, tendem a ser eliminadas no processo de agrupamento. (VASCONCELOS, 1993, p. 71) Ao defender a implantação da proposta de agrupamento das escolas rurais Vasconcelos aponta que ela proporcionaria uma economia de escala: A economia de escala constitui um dos principais argumentos a favor dos agrupamentos e estaria baseada na redução do custo médio por aluno. [...] No caso específico de São Paulo pode-se afirmar que a constituição de agrupamentos de porte médio apresenta grande potencial, e tende a refletir uma relação positiva entre benefícios e custos, desde que se dimensione adequadamente o núcleo e o seu transporte, e desde que se considerem os benefícios advindos do fim da multisseriação e da melhoria das condições de ensino e aprendizagem. (VASCONCELOS, 1993, p. 72) 13 Unidade Escolar de Ação Comunitária 14 Escolas completas de 1º e 2º graus. 45 Para Vasconcelos na defesa do processo de agrupamento das escolas rurais haveria ainda de se considerar a eficiência e a equidade na oferta de ensino na medida em que: Um agrupamento que se faça com o mínimo de obras civis e que tenha uma folha de pagamento otimizada – na relação aluno professor – pode ser considerado economicamente eficiente, em relação a um conjunto de pequenas escolas dispersas. [...] A equidade, por sua vez, diz respeito ao acesso real dos alunos à escola, o que está diretamente ligado às distâncias casa-escola [...] um agrupamento assim tenderia a produzir distâncias e tempos de deslocamento casa-escola equivalentes entre todos os alunos. (VASCONCELOS, 1993, p. 72) Ainda na defesa do processo de agrupamento, Vasconcelos apresenta a necessidade de planejamento físico-funcional e participação comunitária, de estabelecimento de padrões de prazos e de metas. Ficou evidente, portanto, que para os idealizadores e defensores do processo de nucleação o agrupamento das escolas rurais transformaria as escolas nucleadoras em melhores e mais eficientes do que as isoladas, pois resultariam na eliminação das multisséries, do isolamento pedagógico, e seria uma tentativa de se resolver os problemas mais graves das escolas rurais, como as múltiplas funções do corpo docente e a precariedade do espaço físico, mas, para isso se baseava na obrigatoriedade e na capacidade dos municípios em fornecer transporte coletivo específico para todas as crianças. Ao avaliar tal reforma Whitaker (1995) aponta algumas contradições: Acontece que a política educacional é fruto ideológico de uma visão político-administrativa que ignora a totalidade. Proclamando-se embora preocupados com o desenraizamento de milhões que trocam a pobreza rural pela miséria das periferias urbanas, os artífices da reforma pareciam incapazes de perceber o sistema econômico por detrás dessas migrações. E o que é pior: mesmo em sua área de atuação foram incapazes de perceber a impossibilidade de se criarem mecanismos no nível municipal, no sentido de fornecer o caríssimo transporte escolar exigido pela nova organização espacial da escola rural. Para muitas crianças que não obtiveram transporte, a reforma significou apenas o fechamento de uma escola próxima à sua moradia – precária é verdade, mas cuja falta foi dolorosa porque era a única possível. (WHITAKER, 1995, p. 69) Segundo Whitaker, em 1991 foi feita uma primeira avaliação15 do processo de reforma que constatou: 15 As professoras doutoras Dulce C. A. Whitaker e Maria Helena R. Antuniassi assessoraram uma avaliação e produziram um documento que foi encaminhado à FDE (Fundação para o Desenvolvimento da Educação) no sentido de contribuir com a reformulação da política educacional da Secretaria Estadual de Educação. 46 [...] foi feita uma primeira avaliação do processo e observou-se que a operacionalização dos princípios da reforma esbarrara na realidade de um rural-urbano mal explicado pelo planejamento: 53% das escolas não haviam sido beneficiadas por transporte escolar, (sendo que 80% destas estavam localizadas em algumas regiões mais pobres do Estado, como o litoral, por exemplo, para tomar só um dos dados do fracasso da reforma). Os planejadores haviam ignorado toda a complexa e caríssima infra-estrutura necessária ao bom transporte de crianças. (WHITAKER, 1995, p. 70) Os princípios legais que fundamentaram o processo de reforma buscaram criar o embrião de uma estrutura burocrática que visou inserir as escolas isoladas e emergenciais dentro de uma comunidade, o que segundo Whitaker (1995) não ocorreu pois os planejadores da reforma se esqueceram da impossibilidade de se falar em comunidade quando o que havia era uma situação agrária em que as migrações arrastavam milhões de seres humanos pelo país afora. De fato, o que ficou aparente é que o processo de nucleação das escolas rurais significou uma tentativa de se resolver os problemas das escolas localizadas no campo, como as múltiplas funções dos docentes, salas multisseriadas e a precariedade do espaço físico. No entanto, o que realmente aconteceu, segundo Basso; Bezerra Neto (2014) é que a nucleação aumentou a distância entre os alunos e a escola e a necessidade de deslocamento para as cidades, gerando contradições, pois: [...] vemos que o processo de nucleação empreendido no Estado de São Paulo a partir de 1989, foi resultado de interesses econômicos disfarçados pela busca de melhores condições de ensino e aprendizagem para as crianças do campo, e isto gerou reflexos nada positivos, pois além de não atingir seu fim último que era a extinção da multisseriação, distanciou as escolas dos alunos e das comunidades (BASSO; BEZERRA NETO, 2014, p. 316). 1.2 O fechamento das escolas rurais em Araraquara. No Estado de São Paulo a década de 1980 foi marcada por grandes mudanças na reorganização das escolas de Ensino Fundamental. Anteriormente ao decreto 24.499/89 que instaurou o agrupamento das escolas rurais, o governo de André Franco Montoro (1983/1987), por meio do Decreto Estadual 21.810 de 26 de dezembro de 1983 autorizou a celebração de convênios com municípios, objetivando a expansão e desenvolvimento do Programa de Educação Pré-Escolar (MARRAFON, 2016, p. 57). A partir desse decreto 22 municípios paulistas aderiram ao convênio, dentre eles estava o município de Araraquara. 47 Outro decreto estadual importante na época foi o 30.375 de 13 de setembro de 1989, do governo Orestes Quércia (1987/1991) no qual ficou instituído o Programa de Municipalização do Ensino Oficial do Estado de São Paulo. Para Rus Peres (2000), projetos e parcerias entre a esfera estadual e municipal foram estabelecidos para a realização e implementação do modelo de nucleamento, pois o processo implicava dois itens relevantes de custo: a construção e reforma de prédios escolares e a organização do sistema de transporte dos alunos. Ainda sobre a intenção institucional da municipalização do ensino fundamental, o Decreto 32.392 de 24 de setembro de 1990, não revogando qualquer outra medida legal, estabelecia que os municípios poderiam assinar Termo de Celebração Intergovernamental com o Estado de São Paulo, estando ou não participando do programa de municipalização instituído pelo decreto anterior (30.375/89). Para dar conta da problematização legal em torno dos processos de nucleação e da conseqüente municipalização do ensino fundamental paulista, se faz necessário entender o decreto 40.763 de 16 de fevereiro de 1996 como o documento regulatório mais abrangente para a municipalização do ensino: este decreto instituiu o Programa de Ação e de Parceria Educacional entre Estado e Municípios, com o objetivo de desenvolver o ensino fundamental através de ação conjunta dos poderes executivos Estadual e Municipal. Segundo Marrafon (2016) embora o programa tivesse justificativas embasadas na melhoria do Ensino Público Fundamental, ele gerou uma reestruturação traumática para as famílias, uma vez que elas mantinham filhos de idades diferentes nas mesmas unidades escolares e que tiveram que ser separados e algumas vezes remetidos para escolas bem mais distantes, não contribuindo em nada para a melhoria da qualidade do ensino. No contexto da educação pública paulista, a municipalização do ensino primário possui ligação direta com a extinção das escolas rurais a partir do processo de agrupamento, pois sendo a partir da década de 1990 as escolas rurais de ensino fundamental em sua maioria de competência municipal, descentralizar ações e recursos significou também deixar nas mãos dos próprios municípios a permanência ou extinção das unidades escolares rurais. No município de Araraquara, localizado no centro do Estado de São Paulo (Figura1), situado a 273 km da capital com uma população de 208.66216, a presente 16 De acordo com o Censo do IBGE de 2010. 48 pesquisa pôde verificar a quase extinção das unidades escolares rurais, que somente não ocorreu devido à interferência de novos grupos sociais que se instalaram na zona rural araraquarense e que, num processo de experiência histórica coletiva, passaram a construir uma nova história da educação rural no município. Figura 1. Localização do município de Araraquara no Estado de São Paulo. Fonte: http://www.sidra.ibge.gov.br/bda/territorio/mapa. O município teve seu início com uma grande fazenda produtora de gêneros alimentícios destinados aos desbravadores, tropeiros e mascates, que posteriormente formou a denominada Freguesia de São Bento de Aracoara, em 1817, por meio de doações de lotes para os agregados da família de Pedro José Neto. O nome Araraquara http://www.sidra.ibge.gov.br/bda/territorio/mapa. 49 surgiu somente a partir de 1838, quando foi elevada à categoria de Vila, cujo traçado estava praticamente delineado entre 1830-1869 (LIMA, 2002). Como boa parte dos municípios paulistas, inseriu-se no processo de expansão cafeeira a partir da segunda metade do século XIX. Segundo Lima (2002) no início do século XX, no entanto, a economia agrícola do município voltou-se para a policultura. Nesse período, muitos imigrantes, sobretudo os italianos (famílias Lupo, Morganti e Cruz), introduziram as indústrias de açúcar e confecções de meias no município. Entre 1930-1935, o café passou por uma fase de declínio, possibilitando que as culturas de cana-de-açúcar e algodão passassem a se destacar na região. A população urbana do município equiparou-se à rural a partir da década de 1940 e a ultrapassou na década de 1950. A partir daí, seu crescimento foi acentuando-se de tal maneira que atingiu 97% da população total no Censo Demográfico de 2010, conforme mostram os dados expostos na Tabela 1 e no Gráfico 2. Tabela 2. Evolução da população urbana e rural do município de Araraquara (SP). Anos População Urbana % População Rural % Total 1940 33.552 49% 34.552 51% 67.724 1950 36.476 58% 26.212 42% 62.688 1960 60.591 73% 22.307 27% 82.898 1970 84.582 84% 15.884 16% 100.466 1980 118.778 92% 9.331 08% 128.109 1991 156.462 93% 10.270 07% 166.732 2000* 173.332 95% 8.903 05% 182.238 2010* 202.730 97% 5.932 03% 208.662 Fonte: LIMA (2002, p.128) baseado nos Censos demográficos do IBGE de 1940 a 1991. *Dados do IBGE 2000 *Dados do IBGE, 2010 50 Gráfico 2. Evolução da população urbana e rural do município de Araraquara – SP (1940/2010) Fonte: Dados dos Sensos do IBGE de 1940 a 2010 (www.ibge.br/sensos). A tabela e o gráfico mostram o declínio da população rural de Araraquara a partir da década de 1950 e o aumento significativo da população urbana. É possível interpretar os dados da elevada urbanização no período devido ao processo de emancipação dos distritos de Rincão e Santa Lúcia17, em 1950 e 1960, respectivamente. Além disto, o aumento da população urbana e da própria expansão física da cidade pode ser explicado por um processo mais geral, em que grande parcela da população rural – devido à desestabilidade das condições de vida no campo e às políticas de modernização da agricultura – se dirigia para as cidades. Paralelo ao processo de modernização da agricultura e urbanização de Araraquara observou-se um processo acelerado de fechamento das escolas rurais. Na cidade existia um sistema de transporte de alunos da zona rural para a cidade desde o ano de 1968, fato que colocou a cidade de Araraquara como uma das pioneiras na efetivação de uma política de transporte dos alunos rurais para a cidade (VASCONCELOS, 1985), o que contribui para um melhor entendimento acerca do processo de esvaziamento pelo qual passou o meio rural araraquarense e, consequentemente, fornece subsídios para a reflexão acerca do processo efetivado no sentido de quase extinguir a rede escolar rural que havia no município. 17 Ocorre que, nesses antigos distritos, a população no período referido era predominantemente rural, o que contribuía para uma percentagem maior de população rural, pelo menos até 1960. http://www.ibge.br/sensos). 51 A tabela 3 apresenta o declínio das escolas rurais de Araraquara durante a década de 1980 e início da década de 1990. Tabela 3. Escolas Rurais de Araraquara (1985 a 1992) ANO Escolas Isoladas Estaduais Escolas de Emergência TOTAL 1985 26 6 32 1986 26 9 35 1987 21 12 33 1988 16 9 25 198918 0 16 16 1990 0 9 9 1991 0 4 4 1992 0 4 4 Fonte: Anuário Estatístico de Educação do Estado de São Paulo (1985, 1986, 1987, 1988, 1989, 1990, 1991, 1992) De acordo com Souza; Ávila (2015) foi em 1904 que se legalizou, pela primeira vez no estado de São Paulo, o termo escola isolada, no entanto, sabemos que este tipo de escola, denominadas escolas preliminares desde o início do período republicano, surgiu das transformações das escolas de primeiras letras existentes ainda no século XIX e, embora destinadas às pequenas localidades em geral, este tipo de escola foi o que se configurou como o modelo mais comum de escolas no meio rural paulista. Pelo Código de Educação do Estado de São Paulo, de 1933, as escolas isoladas poderiam ser criadas em diferentes localidades, como fábricas, cidades e vilas, mas foi na zona rural que esse tipo de escola predominou. (LEITE, 2018, p. 44). As escolas de emergência por sua