UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA – UNESP Faculdade de Ciências e Letras – Câmpus de Araraquara - SP ANA CAROLINA BONINI MENIN GESTOS DE LEITURA SOBRE AUTORIAS EM TEXTOS DE LITERATURA INDÍGENA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA: os dizeres de Márcia Wayna Kambeba e Trudruá Dorrico Araraquara - SP 2024 ANA CAROLINA BONINI MENIN GESTOS DE LEITURA SOBRE AUTORIAS EM TEXTOS DE LITERATURA INDÍGENA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA: os dizeres de Márcia Wayna Kambeba e Trudruá Dorrico Dissertação de Mestrado, apresentada ao Conselho, Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre em Estudos Literários. Exemplar apresentado para a defesa de dissertação. Área de Concentração: Teorias e Crítica da Narrativa Orientador(a): Prof. Dr. Jacob dos Santos Biziak Araraquara - SP 2024 Menin, Ana Carolina Bonini M545g Gestos de leitura sobre autorias em textos de Literatura Indígena Brasileira Contemporânea: os dizeres de Márcia Wayna Kambeba e Trudruá Dorrico / Ana Carolina Bonini Menin. -- Araraquara, 2024 103 p. Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Araraquara Orientador: Jacob dos Santos Biziak 1. Literatura Indígena Brasileira Contemporânea. 2. Análise de Discurso. 3. Autoria. I. Título Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca da Universidade Estadual Paulista (UNESP). Faculdade de Ciências e Letras, Araraquara, Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada IMPACTO POTENCIAL DESTA PESQUISA Esta pesquisa espera dar visibilidade a autoria de mulheres indígenas a partir de uma articulação teórica com a Análise de Discurso a fim de promover um deslocamento na utilização de dispositivos de análise já consolidados no campo dos Estudos Literários. Sendo assim, possui o potencial de problematizar diferentes perspectivas sobre o acolhimento das literaturas indígenas na academia e também contribuir para a atualização dos saberes ancestrais no processo de formação docente de sujeitos não indígenas. POTENTIAL IMPACT OF THIS RESEARCH This research aims to highlight the authorship of indigenous women through a theoretical articulation with Discourse Analysis, promoting a shift in the use of established analytical frameworks within Literary Studies. Consequently, it has the potential to challenge various perspectives on the reception of indigenous literature in academia and contribute to the incorporation of ancestral knowledge in the teacher training process for non-indigenous individuals. ANA CAROLINA BONINI MENIN GESTOS DE LEITURA SOBRE AUTORIAS EM TEXTOS DE LITERATURA INDÍGENA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA: os dizeres de Márcia Wayna Kambeba e Trudruá Dorrico Dissertação de Mestrado, apresentada à Universidade Estadual Paulista (UNESP), Programa de Pós Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras, Araraquara, para obtenção do título de Mestre em Estudos Literários. Data da defesa: 17/05/2024 Banca Examinadora: ______________________________________ Prof. Dr. Jacob dos Santos Biziak UNESP - Universidade Estadual Paulista – “Júlio de Mesquita Filho” - Câmpus de Araraquara ______________________________________ Profa. Dra. Águeda Aparecida da Cruz Borges Universidade Federal de Mato Grosso. ______________________________________ Profa. Dra. Karin Volobuef UNESP - Universidade Estadual Paulista – “Júlio de Mesquita Filho” – Câmpus Araraquara. Para minhas sementes, Thales e Sofia, que germinam delicadamente no solo fértil que nos envolve. AGRADECIMENTOS Agradeço ao Prof. Dr. Jacob dos Santos Biziak pelo incentivo e orientação em meu percurso de pesquisa, por me ter feito acreditar ser merecedora de pertencer a este espaço e ser a fonte de inspiração para meus estudos. Agradeço também à banca de orientação, formada pela Profa. Dra. Águeda Aparecida da Cruz Borges e Profa. Dra. Karin Volobuef, pela leitura e acolhimento deste trabalho e por terem contribuído com encaminhamentos tão valiosos. Agradeço às professoras e aos professores que cruzaram a minha vida, por terem me proporcionado momentos de aprendizado, fundamentais para trilhar esta caminhada. Agradeço aos meus amigos de jornada acadêmica, João Victor, Mayara, Patrícia, Rita, Loraine e Saulo, por suavizarem esse percurso. Sou feliz pela relação de afetos que constituímos, desejo levá-la para a vida. Agradeço especialmente ao meu esposo e companheiro de vida, Olavo, que semeou este sonho e cuidou incansavelmente para que ele germinasse e se tornasse realidade. Não tenho palavras para expressar o meu agradecimento por todos os momentos de apoio incondicional e compreensão, obrigada por estar sempre ao meu lado. Aos meus filhos, Thales e Sofia, o meu mais significativo agradecimento. Espero que possam elaborar da melhor maneira possível as minhas ausências e entender o quanto essa conquista é importante para mim, vocês são a melhor parte dos meus dias. Aos meus pais, Ricardo e Marilda, agradeço por serem “ouro de mina” e estrutura para suportar o mundo. Aos meus irmãos, Letícia e Felipe, meus cunhados, Daniel e Luane, e meu afilhado Benício, por partilharem comigo os momentos de “dor e delícia” de ser quem eu sou. Não sou violência Ou estupro Eu sou história Eu sou cunhã Barriga brasileira Ventre sagrado Povo brasileiro. Ventre que gerou O povo brasileiro Hoje está só… A barriga da mãe fecunda E os cânticos que outrora cantavam Hoje são gritos de guerra Contra o massacre imundo. (Potiguara, 2019, p. 32-33). RESUMO Nossa pesquisa tem o intuito de refletir sobre a constituição de autorias em textos que circulam na esfera da literatura escrita brasileira, numa vertente conhecida como Literatura Indígena Brasileira Contemporânea. Para realizar este percurso de investigação, nosso olhar voltou-se para determinados funcionamentos discursivos das obras de duas escritoras, Márcia Wayna Kambeba e Trudruá Dorrico, que percorrem diferentes caminhos e, ao mesmo tempo, caminhos que se cruzam, para atualizar e manter viva as suas ancestralidades e pertença étnica. Nossa escrita irá apoiar-se no embasamento teórico da Análise de Discurso desenvolvida, no Brasil, por Eni Orlandi, a partir dos trabalhos de Michel Pêcheux, na França. A utilização desse aporte tem como intuito criar um dispositivo metodológico de análise que nos permita pensar os processos de formulação, funcionamento, circulação e significação de autoria, bem como compreender a quais formações discursivas esses dizeres se filiam para criar um lócus de enunciação que desloca sentidos pré- construídos sobre o sujeito indígena na literatura brasileira. Além disso, agregamos, junto ao corpo teórico, textos críticos organizados por pensadores, escritores e pesquisadores indígenas para discutir a produção literária dos povos originários. Palavras-chave: Literatura Indígena Brasileira Contemporânea; Análise de Discurso; autoria; Márcia Wayna Kambeba; Trudruá Dorrico. ABSTRACT Our research aims to reflect on the constitution of authorship in texts circulating within the sphere of Brazilian written literature, specifically in the strand known as contemporary Brazilian Indigenous Literature. To go through this research path, we focus on the discursive functions within the works of two writers, Marcia Wayna Kambeba and Trudruá Dorrico. These authors pursue different yet intersecting paths to update and keep their ancestry and ethnic belonging alive. Our writing is supported by the theoretical basis of discourse analysis developed in Brazil by Eni Orlandi, drawing from the works of Michel Pêcheux in France. This theoretical framework aims to create a methodological device of analysis, allowing us to examine the processes of formulation, functioning, circulation, and meaning of authorship. Additionally, it helps us understand the discursive formations these texts are part of, creating an enunciative locus that shifts pre-constructed notions about the indigenous subject in Brazilian literature. Furthermore, we incorporate critical texts organized by indigenous thinkers, writers, and researchers to discuss the literary production of indigenous peoples. Keywords: Contemporary Indigenous Literature; Discourse Analysis; authorship; Márcia Wayna Kambeba; Trudruá Dorrico. SUMÁRIO 1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS..................................................................................12 2 “O REAL RESISTE”: A RELAÇÃO DE SENTIDOS ENTRE MEMÓRIA E SILÊNCIO ………………………………………………………………………………....21 2.1 A Análise de Discurso materialista como possibilidade de entremeio com os estudos literários …………………………………………………………………………...23 2.2 O trabalho de leituras em literaturas indígenas contemporâneas ………………34 3 SUJEITOS EM DESLOCAMENTO E A RE-INVENÇÃO DE SI ............................58 3.1 Memórias assugeitadas e resistências dos saberes……………………………… 65 4 AUTORIA E ESCRITA COMO (RE)CRIAÇÃO: INSISTÊNCIAS E INSUBMISSÕES ........................................................................................................77 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................92 REFERÊNCIAS...........................................................................................................96 12 1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS [...] meu ponto de escrita é, sobretudo, turvo, contudo é do lado de cá que escrevo, dessa trincheira, por detrás dessa ideia-bananeira que nasce junta, na mesma raiz e sai por outros terrenos aventurando horizontes pondo cachos próprios de si em outros mundos (Esbell, 2020, p. 21). A riqueza ancestral das culturas indígenas está presente no imaginário social do Brasil juntamente com outras interpelações culturais e linguísticas, como as africanas, a dos imigrantes europeus, asiáticos etc. No entanto, os discursos das “descobertas” proferidos pelos portugueses no contato com os povos originários produziram uma relação de forças que permitiu a circulação de certos movimentos de sentidos e, como consequência, ocasionou a interdição de outros. A sobreposição dos discursos dos colonizadores sobre os dos povos milenares, que aqui habitavam, produziu a instauração de um processo discursivo homogeneizante que interditou o reconhecimento de uma pluralidade de saberes e impediu a valorização do patrimônio cultural das comunidades originárias. A falta de compreensão da dimensão artística dos povos nativos, aliada à especificidade dessas comunidades de preservarem suas culturas por meio da tradição oral, contribuiu para que houvesse formulação e circulação tardia de suas expressões artísticas na literatura escrita brasileira. As primeiras manifestações literárias escritas reconhecidas como autoria indígena no Brasil surgiram na década de 1990, inaugurando um movimento estético político e cultural que ficou conhecido como Literatura Indígena Brasileira Contemporânea (Graúna, 2013). Dois fatores estimularam a produção dessa vertente de literatura. O primeiro foi a luta do Movimento Indígena brasileiro em meados dos anos 1970, que fortaleceu a união de grupos indígenas em prol de reivindicações de direitos territoriais e culturais, cujos pleitos foram “parcialmente” assegurados na Constituição de 1988. Já o segundo foi a promulgação da Lei 11.645/2008, (Brasil, 2008) que instituiu a obrigatoriedade dos estudos das culturas dos povos originários do Brasil em escolas da Educação Básica situadas em território nacional. Essas condições, aliadas aos tímidos avanços de políticas públicas que se seguiram, como a Lei 12.711/2012 (Brasil, 2012), conhecida como a Lei de Cotas que possibilitou o acesso a universidades a grupos considerados minorias históricas, 13 permitiram a uma parcela, ainda que pequena da população indígena, passasse a circular em territórios de poder que antes lhes eram interditados. Pela perspectiva da Análise de Discurso pecheutiana, que nos norteia metodologicamente, esses movimentos criaram um outro lócus de enunciação dos discursos indígenas em espaços de poder, que historicamente interditaram esses dizeres. A noção de lugar de enunciação é pensada por Fontana (1999) como a “[…] divisão social do direito de enunciar e a eficácia dessa divisão e da linguagem em termos da produção de efeitos de legitimidade, verdade, credibilidade, autoria, circulação, identificação, na sociedade” (Fontana, 1999, p. 16. Grifos do autor). Sob esse ponto de vista, é possível problematizar os efeitos de sentidos a partir do lugar em que a enunciação é produzida e, também, “[…] a relação desse lugar com um mecanismo institucional do qual retira sua eficácia” (Fontana, 1999, p. 17). Diante desse lócus de enunciação, pensadores, pesquisadores, intelectuais e educadores indígenas passaram a utilizar o suporte do livro como mecanismo de formulação e circulação de seus dizeres, suprindo uma demanda gerada pelas conquistas e avanços mencionados. Porém, a criação desses materiais será, em diversas ocasiões, impactada com as condicionantes e exigências da escrita canônica e do crivo de publicização. Escritoras e escritores de diversas etnias têm utilizado a língua portuguesa e/ou a língua de suas nações para narrar e recriar histórias provenientes de suas vivências e tradições ancestrais. No entanto, nem sempre encontram liberdade para dizer e há ocasiões em que esse dizer é censurado. Ademais, esses escritos são, geralmente, categorizados para um público infantojuvenil, quando, de acordo com os próprios autores, seriam destinados ao leitor de qualquer idade. Isso sugere que, da mesma forma que a literatura infantojuvenil foi preconceituosamente vista como uma literatura menor, imagina-se que seja desse lugar que partam também os escritos de autores indígenas. Sendo assim, a questão que queremos problematizar, neste trabalho, refere- se a investigar o processo de constituição, formulação, funcionamento, circulação e significação de autoria nas obras Eu sou macuxi e outras histórias, de Trudruá Dorrico (Dorrico, 2019) e Saberes da Floresta, de Márcia Wayna Kambeba (Kambeba, 2020). Em vista disso, o objetivo geral dessa pesquisa é analisar como os saberes tradicionais dessas duas escritoras são organizados na materialidade das literaturas ocidentais. Isso será realizado por meio de dispositivos da Análise de Discurso desenvolvida por Orlandi (1994, 1999, 2006, 2007, 2008, 2012, 2020a, 14 2020b, 2023) a partir dos trabalhos de Michel Pêcheux e outros, tendo como corpus de análise Sequências Discursivas das obras mencionadas. O termo Sequências Discursivas refere-se a pequenos recortes de textos que correspondem a unidades discursivas e irão compor o objeto sobre o qual iremos debruçar nossas análises. Os recortes que selecionamos serão numerados para conferir melhor organização e oferecer maior compreensão por parte do leitor, mas não seguem necessariamente uma ordem como se apresenta no texto. Passamos, agora, a apresentar alguns pontos sobre as minhas motivações na trajetória de investigação deste trabalho. Antes da pesquisar tomar forma, muitos desafios e questionamentos fizeram-se presentes. O primeiro referiu-se ao próprio processo de constituição de autoria desta pesquisa. Por diversas vezes, questionei- me sobre como realizar a aproximação de um corpus composto por textos de autoria indígena e dizer sobre ele a partir de uma posição sujeito de pesquisadora não indígena. Para justificar as minhas escolhas, trago um breve histórico sobre minhas motivações por este objeto de estudo. Ao longo de minha graduação, realizada no Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo (IFSP), Câmpus Sertãozinho, tive a oportunidade, juntamente com um grupo de colegas, de desenvolver uma sequência didática para ser aplicada no Ensino Médio cujo tema era “Identidades indígenas”. Naquele momento, iniciamos nossa busca por textos de autores e autoras indígenas para preparar o material, mas nos deparamos com dificuldades em encontrar livros de literaturas indígenas nas bibliotecas das escolas e em meios digitais. Adquirimos o livro O Banquete dos Deuses, de Daniel Munduruku (2009), e, ao elaborarmos e aplicarmos a sequência didática em salas de aula de instituições públicas, percebemos o quanto as literaturas indígenas eram pouco discutidas nas escolas e como a história e as culturas dos povos originários ainda recebem pouco ou nenhum espaço nos Projetos Políticos Pedagógicos e nos currículos escolares. Essa experiência me instigou a conhecer um pouco mais sobre essas literaturas para poder trabalhá-las em sala de aula, e foi então que decidi realizar uma iniciação científica. As primeiras leituras dos textos de autoria indígena produziram em mim um efeito de encantamento e, ao mesmo tempo, de estranhamento. Este último, em particular, por notar que os escritos não se encaixavam nas categorias de gêneros literários em que a literatura ocidental é organizada. As experiências com esta 15 pesquisa inicial conduziram-me à seguinte problemática: como escolher um corpus que não se sabe categorizar. É conto ou poema? É um ensaio autobiográfico? Mas também tem poema, isto seria um gênero híbrido? A resposta a essa pergunta me foi dada pela professora doutora Fernanda Vieira por ocasião do XVIII Congresso Nacional ABRALIC, “A Literatura Comparada e a invenção de um mundo comum”, ocorrido em junho de 2023: “Não. Isso é Literatura Indígena Brasileira Contemporânea”. Realizar um gesto de leitura sobre literaturas escritas por sujeitos indígenas é algo que demanda um esforço de decolonização da mente e um empenho para adentrar outros universos de saberes que, em muitas ocasiões, não são familiares aos leitores não indígenas. Por esta razão, peço licença às escritoras e escritores de Literatura Indígena Brasileira Contemporânea para realizar gestos de leitura dentro de minhas possibilidades como pesquisadora não indígena. O intuito deste trabalho é, também, trazer para o espaço acadêmico discussões sobre literaturas que nascem com a potência de semear outros mundos possíveis e que ainda são pouco exploradas nos ambientes escolares e recebidas como subalternas nos espaços acadêmicos. Na epígrafe da introdução, Esbell (2020) simboliza o caráter insubmisso da Literatura Indígena Brasileira Contemporânea quando reflete sobre seu próprio processo de escrita. O fato de sua escrita nascer da “mesma raiz”, ou seja, da mesma materialidade das literaturas escritas em língua portuguesa, não implica percorrer os mesmos caminhos para florescer, mas, como ele mesmo diz, em procurar “terrenos” ou espaços de circulação onde seja possível colocar “cachos de si em outros mundos”. Em outras palavras, construir um outro lócus de enunciação, visto que a Literatura Indígena Brasileira Contemporânea irrompe em um lugar que lhe é hostil, tanto que Esbell (2020), ao referir-se a esse lugar, invoca a palavra “trincheira” para representá-lo, termo que remete ao campo semântico do bélico. Pode-se pensar nesse processo como uma escrita que nasce em um espaço de confronto, de luta, de disputa. O outro desafio encontrado ao longo de meu percurso foi como lidar com tantos “cachos”, ou seja, quais dizeres, quais obras delimitar como corpus desta pesquisa. Havia muitos caminhos a seguir, a epistemologia indígena é rizomática, há diversos universos, diversas etnias e saberes plurais. O ato de deslocar-me para realizar um gesto de leitura sobre as culturas do “Outro” envolve a tentativa de 16 compreender suas subjetividades, incorrendo no risco de reduzir aspectos essenciais de seus fazeres poéticos. A escolha de um corpus significou muitas renúncias e, após várias hesitações e incertezas, optei por realizar uma análise discursiva sobre os escritos literários de Kambeba (2020) e Dorrico (2019), duas mulheres indígenas. A escolha não se deu por acaso, pois delimitar um recorte com a intenção de realizar um gesto de leitura é em si um ato político. Ao longo do meu percurso de pesquisa, fui aproximando-me dos escritos femininos como se sentisse a potência de suas vozes brotando e se enraizando nessa trincheira descrita por Esbell (2020). Os efeitos que esses textos produziram em mim, inicialmente, foram os mais variados: curiosidade, sororidade, deslumbramento, inquietação, entristecimento. Foi, de minha parte, um gesto intencional dar visibilidade à escrita feminina, uma vez que a escrita de autores indígenas identificados aos masculinos já é um território um pouco mais consolidado na academia, provavelmente fruto de uma herança patriarcal que sufoca e silencia as vozes femininas. A delimitação desse recorte não se deu com o intuito de realizar um gesto de leitura comparativo entre as duas obras. O propósito foi investigar outro problema que se derivou do problema central da pesquisa: o de analisar, por meio do arcabouço teórico da Análise do Discurso, como os escritos de Kambeba (2020) e Dorrico (2019) foram afetados pela memória de suas ancestralidades indígenas, partindo de diferentes percursos de entendimento acerca de suas pertenças étnicas, constituindo efeitos de autorias. Isso pressupõe a análise das formações discursivas que atravessam a obra das duas autoras, conceito que será discutido no próximo capítulo. Sob esse olhar, passemos agora para algumas considerações a respeito das duas autoras. Márcia Wayna Kambeba nasceu numa aldeia Tikuna, no Belém do Solimões, mas pertence ao povo Omágua/Kambeba. Mudou-se, ainda menina, para São Paulo de Olivença, cidade do interior do Estado do Amazonas, onde foi criada entre idas e vindas à aldeia. Atualmente é domiciliada no Estado do Pará e possui uma agenda atribulada como artista. Em suas redes sociais intitula-se como escritora, poeta, compositora, apresentadora, atriz, palestrante, contadora de histórias, professora, doutoranda em Letras (Universidade Federal do Pará – UFPA) e mãe de um autista. Acrescentam-se também a esse rol outras atividades como fotógrafa, produtora, cantora e ativista indígena. 17 Atualmente, viaja por todo território nacional e exterior, onde participa de feiras de livros, rodas de conversa, palestra entre outros. Com toda essa versatilidade e agenda cheia de compromissos, Márcia Kambeba tem a fala doce e ao mesmo tempo potente, pisa forte por onde passa e deixa seus/suas espectadores/as arrebatados/as. Também é Geógrafa de formação pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e, como mencionado, doutoranda em Letras pela Universidade Federal do Paraná (UFPA). Além disso, ocupa cargo público como Gestora da Ouvidoria Geral de Belém. Sua escrita transita entre textos acadêmicos, participação em antologias e obras individuais, dentre elas, Ay kakyri Tama – Eu moro na cidade (2013); Saberes da Floresta (2020); O lugar do saber ancestral (2020); Kumiça Jenó: Narrativas Poéticas dos Seres da Floresta (2021), algumas já traduzidas para outras línguas. A obra que será objeto de estudo deste trabalho é intitulada Saberes da Floresta (2020). O livro é composto por reflexões e ensinamentos acerca das pedagogias ancestrais e de poemas que contam sobre a experiência e a sabedoria de seu povo. Além disso, aborda temas que se relacionam com o sagrado, a espiritualidade, a coletividade, bem como materializa a denúncia das injustiças e crueldades cometidas contra os sujeitos indígenas por meio do questionamento das práticas discursivas que compõem a ideologia do monolinguismo eurocêntrico. Por ter nascido e vivido durante algum tempo em uma aldeia, Márcia Kambeba relata em suas redes sociais que sempre teve consciência sobre sua ancestralidade e identidade indígena e desde muito cedo começou a escrever poemas, roteiros de teatro e a exercer seu ativismo. Atualmente debate temas como a violência contra a mulher indígena, a luta pela manutenção das culturas dos povos originários, a ancestralidade, as literaturas indígenas como ferramenta de resistência, dentre outros. Muitas dessas abordagens aparecem na obra Saberes da Floresta (2020), motivo pelo qual ela foi escolhida. Já a outra obra intitula-se Eu sou macuxi e outras histórias (2019), de Trudruá Dorrico, que, além de escritora, é também artista, curadora, pesquisadora e possui intensa atuação nas redes sociais em prol dos movimentos indígenas e das literaturas indígenas. Nascida na cidade de Guajará-Mirim, em Rondônia, pertence à etnia Macuxi, cujo território está localizado na região da tríplice fronteira entre Brasil, Guiana e Venezuela. Em matéria publicada pelo jornalista Fred Di Giacomo (2020) no canal ECOA/UOL, a escritora conta que nem sempre se reconheceu como uma 18 mulher indígena e que, em virtude de ter crescido longe de seu território, em seu nascimento, foi registrada como parda e não como indígena. Isso, aliado ao fato de ter crescido distante de suas histórias, fez com que ela vivesse em um “limbo identitário” por quase vinte e seis anos, quando iniciou a retomada de sua identidade já na universidade, em um período em que teve contato pela primeira vez com autores indígenas. Essa experiência a afetou de maneira significativa e a impulsionou a percorrer um caminho para retomar sua pertença étnica, tanto que hoje se reconhece pelo nome dado recentemente por seu avô, Trudruá, que significa formiga. Contudo, na ocasião da publicação do livro, que será objeto de análise desta pesquisa, identificava-se pelo nome Julie Dorrico. O livro Eu sou macuxi e outras histórias (2019) tem uma escrita poética com belíssimas ilustrações que dialogam com o texto. A obra é organizada em dez narrativas que podem ser lidas de forma independente ou como uma sequência narrativa. O escritor indígena Daniel Munduruku diz, no prefácio do livro, que a escritora está percorrendo um caminho de reconstrução de sua memória ancestral que foi “abandonada num canto quadrado do pensamento cartesiano” (Dorrico, 2019, p. 8-9). Refletir sobre esse movimento, o do entendimento de pertencer a um povo, e compreender como os efeitos de autoria e de pertença étnica são produzidos no texto de Dorrico (2019) foram os motivos pelos quais a obra foi selecionada para fazer parte do corpus desta pesquisa. Além do livro Eu sou macuxi e outras histórias (2019), Trudruá Dorrico também possui um trabalho profícuo como pesquisadora: a autora é Mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal de Rondônia (UNIR), doutora pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e, atualmente, pós- doutoranda no Programa de Desenvolvimento da Pós-Graduação Emergentes e em Consolidação PDPG – Pós-Doutorado Estratégico/UFRR (2023). Assim como Márcia Kambeba, articula-se nas mídias sociais em prol do ativismo e da militância para o fortalecimento dos movimentos indígenas. Suas publicações acadêmicas e curadoria contribuem significativamente para o pensamento do que ela e um grupo de pesquisadores intitulou como uma “voz-práxis” da Literatura Indígena Brasileira Contemporânea. “Literatura indígena brasileira contemporânea: criação, crítica e recepção” (2018) e “Literatura indígena brasileira contemporânea: autoria, autonomia e ativismo” (2020) são exemplos de duas importantes coletâneas 19 organizadas pela autora que reúne vozes de vários/as escritores/as sobre o “pensamento-práxis” de autoria indígena. Como já mencionado, este trabalho é estruturado a partir do aporte teórico metodológico da Análise de Discurso, desenvolvida no Brasil por Eni Orlandi, tendo como base os estudos de Michel Pêcheux, precursor dessa teoria na França. Isso posto, passamos, agora, a apresentar a forma como serão organizados os capítulos. Num primeiro momento, consideramos importante situar o leitor acerca dos pressupostos teórico metodológicos para que, caso não seja familiarizado com a Análise de Discurso, compreenda as noções e a perspectiva pela qual serão realizados os gestos de leitura. Em vista disso, este trabalho inicia-se com uma breve contextualização da teoria, com intuito de abordar as noções de silêncio e memória, objetivando refletir sobre as condições de produção em que emerge a literatura escrita de autoria indígena. As noções mobilizadas para essa discussão foram, além de silêncio e memória, formação discursiva e ideologia, conceitos demandados pelo corpus numa tentativa de compreender o que significou para um percurso de sentidos das histórias indígenas o silenciamento de suas vozes ao longo de processos históricos que se deram após o contato com a sociedade envolvente. Em um segundo momento, iremos pensar sobre possíveis efeitos que a interpelação do sujeito indígena pelo Estado produziu nas comunidades dos povos originários e de que maneira foi possível se subjetivar frente às reconfigurações que foram se desenhando nas formações sociais indígenas. Mobilizamos os conceitos de Althusser (1996, 1999, 2019) sobre superestrutura e infraestrutura, Aparelhos ideológicos e repressivos de Estado e também a noção de sujeito da Análise de Discurso. Em seguida, em um terceiro momento, abordamos os conceitos de autoria, função-autor e assunção de autoria, para pensar como as escritoras Márcia Wayna Kambeba e Trudruá Dorrico organizam sua autoria, e a quais formações discursivas se filiam. Além disso, refletimos para quem estes textos que se incluem em uma Literatura Indígena Brasileira Contemporânea estão sendo escritos e quais leitores eles supõem. Enfim, ressaltamos que, embora muitos autores/autoras e pesquisadores/pesquisadoras indígenas estejam ocupando espaços acadêmicos e semeando suas oralituras e escre(vivências) em terrenos férteis da literatura, o 20 espaço de circulação e a discussão sobre esses textos ainda é reduzido. O que se espera com esse trabalho é, também, ampliar, no campo dos Estudos Literários, possibilidades de leituras e reflexões sobre os fazeres literários daqueles que, por muito tempo, tiveram e ainda têm suas vozes silenciadas por um processo de interdição de suas línguas e, consequentemente, de suas culturas. 21 2 “O REAL RESISTE”: A RELAÇÃO DE SENTIDOS ENTRE MEMÓRIA E SILÊNCIO O presente capítulo irá promover uma discussão sobre a tomada da palavra pelos povos originários na produção de uma literatura escrita, mobilizando os conceitos de “silêncio” e “memória” da teoria da Análise de Discurso pecheutiana. Os gestos de leitura das obras Eu sou macuxi e outras histórias, de Trudruá Dorrico (2019), e Saberes da Floresta, de Márcia Wayna Kambeba (2020), serão organizados a partir de Sequências Discursivas selecionadas de acordo com as discussões que serão promovidas ao longo dos capítulos. É relevante pontuar que a palavra ‘gesto’ utilizada aqui está relacionada ao sentido de interpretar/compreender um processo discursivo. De acordo com Michel Pêcheux (1969) apud Orlandi (2020a, p. 18), “a interpretação é um ‘gesto’, ou seja, é um ato no nível simbólico”. Essa perspectiva desloca a noção de que a interpretação seria a decodificação de algo, como uma mensagem, por exemplo. O nível simbólico a que o filósofo francês se refere está ligado aos efeitos do social, ou em outras palavras, ao conjunto de posições que os sujeitos se identificam para falar. Nesse sentido, a interpretação “[...] sempre se dá de algum lugar da história e da sociedade e tem uma direção, que é o que chamamos de política.” (Orlandi, 2020a, p. 18). Isto posto, Orlandi (2020a) afirma que o dizer não é neutro, nem transparente, ele é opaco e sujeito a falhas e equívocos, o que implica pensar que o processo de significação de um discurso ou de um texto é sempre aberto. Contudo, isso não significa que os sentidos possam ser qualquer um ou que possam fluir em qualquer direção, pelo contrário, eles são regidos e determinados por aspectos ligados à sua exterioridade. Segundo a autora: Nas diferentes direções significativas que um texto pode tomar há, no entanto, um regime de necessidade que ele obedece. Não é verdade que um texto possa se desenvolver em qualquer direção: há uma necessidade que rege um texto e que vem da relação com a exterioridade (Orlandi, 2020a, p. 14). Ainda segundo Orlandi, (2020a), essa exterioridade pode ser entendida como historicidade, entretanto, não se trata de uma historicidade externa ao discurso ou ao texto, mas algo que se encontra dentro dele e se relaciona com a materialidade histórica dos sujeitos e dos sentidos. Assim, seu significado é diferente 22 para um historiador e para um analista de discurso, uma vez que para o segundo, a historicidade não é entendida como algo cronológico: o que lhe interessa é a temporalidade internalizada no discurso que se inscreve no próprio texto/discurso que se analisa. Dessa maneira, a historicidade não é exterior ao discurso ou ao texto, mas existe dentro deles como materialidade histórica. […] A história está ligada a práticas e não ao tempo em si. Ela se organiza tendo como parâmetro as relações de poder e de sentidos, e não a cronologia: não é o tempo cronológico que organiza a história, mas a relação com o poder (a política). Assim, a relação da análise de discurso com o texto não é extrair o sentido, mas apreender sua historicidade, o que significa se colocar no interior de uma relação de confronto de sentidos. A relação com a história é dupla: o discurso é histórico porque se produz em condições determinadas e projeta-se no ‘futuro’, mas também é histórico porque cria tradição, passado e influencia novos acontecimentos. Atua sobre a linguagem e opera no plano da ideologia, que não é assim mera percepção do mundo ou representação do real (Orlandi, 2008, p. 42. Grifos da autora). Em virtude disso, os sentidos não são produzidos como se fossem essências das palavras, eles não são dados a priori (Orlandi, 2020a, p. 27). Pelo contrário, os processos de significação acontecem por meio do trabalho simbólico de inscrição na língua. Por estas razões, os procedimentos de análise de um/a analista do discurso irão distanciar-se dos mecanismos de análise de conteúdo, pois a compreensão da historicidade dos discursos e dos textos dá-se pelo modo como os sentidos trabalham, ou seja, como são apreendidos por meio de efeitos e não de significados já dados. Assim, nosso olhar para os textos de Dorrico (2019) e Kambeba (2020) focaliza seus funcionamentos discursivos com o sentido de compreender como foi possível dizer aquilo que está no texto. Esse movimento nos convoca a pensar nas condições de produção em que esses dizeres emergiram e quais relações eles estabelecem com outros dizeres. Por condição de produção considera-se o momento em que discurso acontece, o meio em que é veiculado, os sujeitos envolvidos em seu contexto imediato e a situação, e isso inclui o contexto sócio- histórico e ideológico (Orlandi, 2020b, p. 28). Por tratarmos a irrupção de dizeres como algo não-transparente e ocuparmos uma posição institucional de pesquisadores em um programa no campo dos Estudos Literários, no qual a Análise de Discurso pecheutiana ainda dá seus primeiros passos como instrumento teórico-metodológico na realização de gestos de 23 análise literária, optamos, em um primeiro momento, por apresentar, de maneira sucinta, as bases filosóficas e a elucidação de algumas noções e conceitos que darão sustentação ao nosso movimento de leitura. Esse preâmbulo tem como propósito situar o/a leitor/a não familiarizado/a com a teoria sobre as nomenclaturas que irão circular no texto. 2.1 A Análise de Discurso materialista como possibilidade de entremeio com os estudos literários A Análise de Discurso de filiação pecheutiana é uma disciplina que se coloca em um lugar de entremeio entre as Ciências da Linguagem, mais especificamente, a Linguística e as Ciências Sociais, tendo como filiação teórica a Psicanálise e o materialismo histórico, via Althusser (1996, 1999, 2019) em sua leitura de Karl Marx sobre Estado, sociedade, classes, formação social, relações de produção, superestrutura e infraestrutura. É definida como uma disciplina de entremeio uma vez que questiona as Ciências Sociais, na medida em que estas supõem a transparência da linguagem, e também contesta o caráter excludente da Linguística, quando esta considera apenas aquilo que está dito no texto, desprezando a exterioridade, ou melhor, a historicidade da linguagem. Ao se colocar nessa posição de entremeio, a teoria da Análise de Discurso não separa a linguagem de sua exterioridade constitutiva (Orlandi, 2008, p. 31), como já mencionado, mas preocupa-se com o funcionamento discursivo enquanto acontecimento, ou seja, enquanto fato e não enquanto dado. Nas palavras de Eni Orlandi, [...] a Linguística para se constituir, exclui o sujeito e a situação (o que chamamos de exterioridade), e as Ciências Sociais não tratam da linguagem em sua ordem própria, de autonomia, como sistema significante, mas a atravessam em busca de sentidos de que ela seria mera portadora, seja enquanto instrumento de comunicação ou de informação. Em suma, a Linguística exclui a exterioridade, e as Ciências Sociais tratam a linguagem como se ela fosse transparente. A Análise de Discurso, por seu lado, ao levar em conta tanto a ordem própria da linguagem como o sujeito e a situação, não vai simplesmente juntar o que está necessariamente separado nessas diferentes ordens de conhecimento. Ao contrário, ela vai trabalhar essa separação necessária, isto é, ela vai estabelecer sua prática na relação de contradição entre esses diferentes saberes. Desse modo, ela não é apenas aplicação da Linguística sobre as Ciências Sociais ou vice- versa. A Análise de Discurso produz realmente outra forma de conhecimento, com seu objeto próprio, que é o discurso. Este, por sua vez, 24 se apresenta como o lugar específico em que podemos observar a relação entre linguagem e ideologia (Orlandi, 1994, p. 53. Parênteses da autora). É por meio da análise de uma construção discursiva que se busca compreender como foi possível dizer algo. Foucault, acerca dessa questão, ressalta que: [...] uma língua constitui sempre um sistema para enunciados possíveis – um conjunto finito de regras que autoriza um número infinito de desempenhos. O campo dos acontecimentos discursivos, em compensação, é o conjunto sempre finito e efetivamente limitado das únicas sequências linguísticas que tenham sido formuladas: elas bem podem ser inumeráveis e podem, por sua massa, ultrapassar toda capacidade de registro, de memória, ou de leitura: elas constituem, entretanto, um conjunto finito. Eis a questão que a análise da língua coloca a propósito de qualquer fato de discurso: segundo que regras um enunciado foi construído e, consequentemente, segundo que regras outros enunciados semelhantes poderiam ser construídos? A descrição de acontecimentos do discurso coloca uma outra questão bem diferente: como apareceu um determinado enunciado, e não outro em seu lugar? (Foucault, 2008, p. 30). Cabe ao analista do discurso explorar as relações que possibilitaram determinado discurso irromper da forma como foi produzido. Orlandi (2012) afirma que, diferentemente da linguística tradicional, que trata do fenômeno linguístico como produto, a Análise de Discurso pecheutiana possui um objeto-linguagem que almeja compreender os processos de constituição e significação dos fenômenos linguísticos. Esse objeto-linguagem é o discurso, um objeto histórico-social cuja especificidade se encontra em sua materialidade linguística. Em vista disso, o discurso é definido como “efeitos de sentidos entre locutores”, sendo a palavra “efeitos” imbuída do imaginário e da ideologia que estão sempre presentes na constituição dos sujeitos e, também, dos sentidos (Orlandi, 2020b, p. 20). A ideologia, nesse contexto, é um conceito oriundo da teoria althusseriana (a partir do retorno a Marx proposto por esta) e caracteriza-se como o imaginário que “relaciona os sujeitos com as suas condições de existência”. Os efeitos da ideologia na formação dos sentidos estão relacionados com a própria interpretação que os indivíduos fazem do mundo, por isso se diz que “não há discurso sem sujeito e nem sujeito sem ideologia” (Orlandi 2020a, p. 31). É a ideologia que produz o efeito de evidência, e da unidade, sustentando sobre o já-dito os sentidos institucionalizados, admitidos como “naturais”. Há uma parte do dizer, inacessível ao sujeito, e que fala em sua fala. Mais 25 ainda: o sujeito toma como sua as palavras da voz anônima produzida pelo interdiscurso (a memória discursiva) (Orlandi, 2020a, p. 30. Aspas da autora). A noção de interdiscurso, por sua vez, está relacionada a um complexo de já- ditos que subsidiam todo o dizer. Nesse sentido, o interdiscurso “disponibiliza dizeres que afetam o modo como o sujeito significa em uma situação discursiva dada” (Orlandi, 2020b, p. 29). Ele também é definido como o “Outro” que se estrutura nos sujeitos por meio do esquecimento, referindo-se a um “conjunto de enunciações já ditas e esquecidas e que são irrepresentáveis”. (Orlandi, 2006, p. 22). Ou seja, é algo que não se representa, pois não é possível representar tudo o que faz sentido para cada sujeito. Da mesma maneira, há também sentidos que afetam uns e não afetam outros, o que se dá em virtude da relação imaginária que cada indivíduo possui com sua própria condição de existência. É algo que não é acessível aos sujeitos por ser inconsciente, mas os constitui. Sendo assim, todo dizer tem relação com outros dizeres que já foram ditos, imaginados ou possíveis. Ou, dito de outra maneira, não existe discurso que não tenha relação com outros. […] todo discurso manifesto repousaria secretamente sobre um já-dito; e que este já-dito não seria simplesmente uma frase já pronunciada, um texto já escrito, mas um "jamais-dito", um discurso sem corpo, uma voz tão silenciosa quanto um sopro, uma escrita que não é senão o vazio de seu próprio rastro. Supõe-se, assim, que tudo que o discurso formula já se encontra articulado nesse meio-silêncio que lhe é prévio, que continua a correr obstinadamente sob ele, mas que ele recobre e faz calar (Foucault, 2008, p. 28. Aspas do autor). Isso posto, retomamos a noção de ideologia por Eni Orlandi: A ideologia é interpretação de sentidos em certa direção, determinada pela relação da linguagem com a história, em seus mecanismos imaginários. Ela não é, pois, ocultação mas função necessária entre linguagem e mundo […]. Há uma contradição entre mundo e linguagem, e a ideologia é trabalho desta contradição. Daí a necessidade de distinguirmos entre a forma abstrata (com sua transparência e seu efeito de literalidade) e a forma material, que é histórica (com sua opacidade e seu equívoco) quando trabalhamos com discurso (Orlandi, 1994, p. 57. Parênteses da autora). É nessa perspectiva que se pode afirmar que há várias possibilidades de leitura acerca de um mesmo texto. Não que seu sentido seja qualquer um. Pelo contrário, há sempre forças que regem o estabelecimento dos sentidos e que se relacionam com uma memória do dizer. Cabe ao/a analista de discurso compreender como acontecem os processos de significação nos discursos, ou ainda, como os 26 sentidos são produzidos em determinadas condições de produção, interpelados pela ideologia e pela exterioridade que os influenciam. Pode-se dizer que os sentidos são determinados pelas posições ideológicas que os sujeitos se inscrevem num dado contexto histórico e, por esta razão, não se fala em sentido literal das palavras em Análise de Discurso. [...] o sentido de uma palavra, de uma expressão, de uma proposição, etc., não existe “em si mesmo” (isto é, em sua relação transparente com a literariedade do significante), mas, ao contrário, é determinado pelas posições ideológicas que estão em jogo no processo sócio-histórico no qual as palavras, expressões e proposições são produzidas, (isto é, reproduzidas)… as palavras, expressões, proposições, etc., mudam de sentido segundo as posições sustentadas por aqueles que as empregam , o que quer dizer que elas adquirem seu sentido em referência a essas posições, isto é, em referência às formações ideológicas [...] nas quais essas posições se inscrevem (Pêcheux, 1995, p. 160. Grifos do autor). Tomemos, como exemplo, uma primeira Sequência Discursiva (SD1) extraída de um poema narrativo de Márcia Kambeba (2020), intitulado Povo Originário, para ilustrar como as formações imaginárias sobre uma mesma palavra podem produzir efeitos de sentidos múltiplos: SD1 Não sou “índio” Tenho povo, sou nação Em tempos passados Me apelidaram, saquearam Sem permissão. (Kambeba, 2020, p. 67) A palavra “índio” já foi enunciada por inúmeros sujeitos em muitas posições e situações diferentes. Essas formulações foram constituindo enunciações que produziram e ainda produzem vários sentidos para essa palavra, de maneira que, quando é enunciada, possibilita um trabalho de rememoração, ou seja, está atrelada a uma gama de possibilidades de significações. Essa forma generalizante para se referir a povos de muitas nações já foi e ainda é utilizada nos mais variados discursos nos campos religioso, jurídico, político, literário etc. Na literatura, mesmo que a palavra “índio” não apareça explicitamente em alguns textos, como na carta de Pero Vaz de Caminha (Cunha, Megale e Cambraia, 1999), em que o locutor se refere aos povos originários como “homens da terra”, ou mesmo no romance 27 indianista Iracema (2015), de José de Alencar, em que o narrador geralmente utiliza outros termos para se referir à protagonista, como “virgem dos lábios de mel”, “filha de Araquém”, “filha do Pajé”; ou ainda, “os potiguara”, “povo selvagem”, “gente tupi”, para designar os povos indígenas que participam da história. Todo esse campo discursivo produz sentidos que se ligam a uma memória da palavra “índio”, tanto que essa designação é utilizada nos espaços escolares desde o Ensino Básico até o Ensino Superior por muitos educadores das mais variadas disciplinas quando se referem a esses textos. Pela perspectiva da Análise de Discurso pecheutiana, os efeitos de sentidos que envolvem a palavra “índio” não são considerados como algo “natural”, mas foram se constituindo em um processo histórico ao longo de mais de quinhentos anos de enunciação, adquirindo diversos sentidos entre os mais variados discursos. Infelizmente, muitos deles ligados à selvageria, à preguiça, à indolência ou à falta de civilidade. As primeiras relações imaginárias em torno da utilização da palavra “índio” para se referir às populações indígenas da América remontam a um equívoco histórico do colonizador que imaginou estar aportando em outras terras quando atracou no “Novo Mundo”. De acordo com Martins Machado (2017, p. 167), as suposições e os discursos primeiros que foram formulados são fruto da maneira como a cultura desses primeiros colonizadores apreendiam o mundo e dos princípios com que valoravam as suas vidas. Dessa maneira, o “Outro” é tido como exótico, selvagem, não gente. Depois dessas primeiras enunciações, ocorreram e ocorrem inúmeras outras enunciações com a palavra “índio” em diferentes condições de produção e por diferentes sujeitos que ocupam diversas posições sociais. Nesse sentido, para um sujeito indígena a palavra “índio” pode produzir determinados significados que são diferentes, por exemplo, para um latifundiário detentor de terras na fronteira de territórios indígenas. Sendo assim, as relações imaginárias desses sujeitos com as condições imaginárias sobre a palavra “índio” são diferentes, podendo estar relacionadas a um diferente recorte de memória. Ou, dito de outra maneira, essa relação com um memorável pode circular em diferentes formações discursivas, pois o sujeito que enuncia a palavra “índio” o faz de uma determinada posição dentro da história. A noção de formação discursiva, na teoria da Análise de Discurso pecheutiana, é definida por Pêcheux (1995, p. 160) como “aquilo que, numa 28 formação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada numa conjuntura dada, determinada pelo estado da luta de classes, determina o que pode e o que deve ser dito”. Dessa maneira, “os indivíduos são ‘interpelados’ em sujeitos-falantes (em sujeitos de seu discurso) pelas formações discursivas que representam ‘na linguagem’ as formações ideológicas que lhes são correspondentes (Pêcheux, 1995, p. 161). Quando o eu/nós lírico do poema de Kambeba (2020) afirma “Não sou “índio”, pode-se pensar que essa proposição se inscreve numa formação discursiva indígena que rejeita o uso de um termo generalizante que não representa a pluridiversidade das etnias. O conceito de eu/nós lírico é pensado por Danner, Dorrico e Danner (2020) como uma especificidade dos textos que se inscrevem na vertente da Literatura Indígena Brasileira Contemporânea. “[...] a literatura de minorias de um modo geral e, em nosso caso, a literatura indígena em particular constituem-se como uma voz-práxis concomitantemente estética e política, marcada e dinamizada por um eu- nós lírico-político ativista e militante que, desde uma perspectiva memorial, testemunhal e autobiográfica, e sempre na correlação de primeira pessoa do singular e de terceira pessoa do plural (como sujeito marginalizado e como grupo excluído e violentado, indissociavelmente), explicita sua condição de minoria e sua situação de violência, de exclusão e de marginalização para, a partir daqui, desde essa atitude, realizar uma práxis de reconstrução da memória, de anamnese e de catarse da própria dor, da própria exclusão sofrida e vivida, de forma a autoafirmar-se, resistir e lutar desde essa situação de minoria contra a descaracterização, a negação e a destruição que sofrem, que vivem (Danner; Dorrico; Danner, 2020, p. 208. Grifos dos autores). Os autores consideram que essas produções escritas são ditas por um sujeito que fala por si e por um coletivo. Esse conjunto de dizeres testemunhais, autobiográficos e mnemônicos constituem uma voz-práxis estético-literária que ressoa no campo do político em razão da criação de um outro lócus de enunciação. Isso, por sua vez, possibilita ao sujeito indígena deixar de ser falado pelo “outro” e passar a falar sobre si mesmo e a reconstituir e retomar a sua memória ancestral. A conceituação de voz-práxis caberá em uma outra discussão que será feita mais adiante. Por ora, retomemos as reflexões acerca das formações discursivas em que se inscreve a palavra “índio”, mas, antes de fazê-lo, é fundamental esclarecer algumas nomenclaturas que passarão a circular no texto quando nos referirmos ao “eu/nós lírico” dos textos analisados. O termo “eu/nós lírico” será compreendido 29 neste trabalho como a voz que se coloca como “eu” no discurso. A perspectiva adotada para esta reflexão é embasada no conceito de enunciação, de Eduardo Guimarães, semanticista que propõe a Semântica do Acontecimento, uma teoria que resulta de várias filiações teóricas, dentre elas, a Análise de Discurso pecheutiana. Guimarães (2017), a partir de uma posição materialista, entende a linguagem como um fenômeno histórico em que o sujeito e a língua constituem-se mutuamente por meio da enunciação. Desse modo, os sentidos de um enunciado possuem significado a partir da relação que estabelecem com o acontecimento de linguagem em que funcionam. A enunciação, nesse sentido, é tida como “um acontecimento no qual se dá a relação do sujeito com a língua” (Guimarães, 2017, p. 10). A noção de sujeito adotada como posicionamento teórico na Semântica do Acontecimento é oriunda da Análise de Discurso pecheutiana, “o sujeito que enuncia é sujeito porque fala de uma região do interdiscurso, entendendo este como uma memória de sentidos. Memória que se estrutura pelo esquecimento de que já significa” (Orlandi,1999 apud Guimarães, 2017, p. 19), ou seja, o sujeito que enuncia o faz a partir de uma posição enquanto ser afetado pelos já-ditos. Além da língua e do sujeito, Guimarães (2017) pontua outros elementos importantes na constituição de um acontecimento de linguagem, um deles é a temporalidade. E o que é esta temporalidade? De um lado ela se configura por um presente que abre em si uma latência de futuro (uma futuridade), sem a qual não há acontecimento de linguagem, sem a qual nada é significado, pois sem ela (a latência de futuro) nada há aí de projeção, de interpretável. […] Todo acontecimento de linguagem significa porque projeta em si mesmo um futuro. Por outro lado, este presente e futuro próprios do acontecimento funcionam por um passado que os faz significar. Ou seja, esta latência de futuro, que, no acontecimento, projeta sentido, significa porque o acontecimento recorta um passado como memorável. (Guimarães, 2017, p.2. Parênteses do autor) Diferente da noção de interdiscurso da Análise de Discurso, o conceito de memorável está relacionado ao que Guimarães (2017) conceitua como a temporalidade no acontecimento da linguagem, ou seja, uma rememoração, pelo sujeito, de enunciações formuladas em outros discursos cujos recortes reverberam em seu dizer. Assim, para Guimarães (2018), a enunciação funciona em três instâncias. A primeira seria a instância do Locutor, que corresponde a quem se atribui a posse do 30 dizer. No caso do exemplo acima, seria o que estamos nomeando como “eu/nós lírico”. A segunda seria o locutor x ou alocutor, que simboliza o lugar social de onde o Locutor está funcionando a partir do texto. Em nosso exemplo, um sujeito identificado a uma posição indígena. Por fim, a terceira seria o enunciador que representa o lugar do dizer, ou seja, a maneira como a forma linguística afeta o dizer, podendo ser expressa em primeira, segunda ou terceira pessoa. Essa instância corresponde a um lugar individual, coletivo, genérico ou universal. No caso da primeira Sequência Discursiva, um lugar individual representado pela primeira pessoa do singular “Não sou ‘índio’”. […] o agenciamento da enunciação é o agenciamento do falante a falar. Este, enquanto agenciado a enunciar, se divide em lugar que diz (Locutor), lugar social de dizer (alocutor), e lugar de dizer (enunciador). De um lado o falante, constituído pela relação com as línguas do espaço de enunciação, é agenciado pela língua, que constitui o falante, colocando-o em litígio com outros falantes. Por outro lado a cena, pelo agenciamento, produz a divisão L/al-x também politicamente. Assim o agenciamento da enunciação, ao agenciar o falante a falar, o divide em Locutor, que se apresenta como tendo como seu correlato do dizer um Locutário, e em alocutor (xi, j, l), que se apresenta como tendo seu correlato um alocutário (xi, j, l), constitui-se assim a relação de alocução. De outra parte, vimos como o enunciador, o lugar de dizer, se apresenta, segundo a relação com o que diz, como individual, genérico, coletivo, universal (Guimarães, 2018, p. 63. Parênteses do autor). Este preâmbulo é importante, pois, em alguns momentos do texto, os termos “enunciador”, “Locutor” e “locutor-x” irão circular referindo-se a essas diferentes instâncias da enunciação. Retomando a discussão sobre a palavra “índio”, este termo também pode produzir outros efeitos de sentidos quando inscrito em outras formações discursivas, como ocorre em um texto de comentário explicativo de uma das edições da obra Iracema (2015), produzido para o público adolescente. Nele a palavra “índio” encontra-se situada ao lado do texto principal para explicar a origem do objeto rede, “essa coisa deliciosa que é a rede é uma invenção dos índios da América do Sul, que a usavam como cama” (Alencar, 2015, p. 34). Possivelmente, a autora do comentário utilizou a palavra “índio” sem imaginar que poderia estar contribuindo para perpetuar um preconceito histórico. Ela se inscreve em uma formação discursiva acadêmica, cujo texto passou por um crivo editorial que reproduz um lócus de enunciação do discurso colonial, do não indígena que fala sobre o indígena. Neste último caso, emprega-se a palavra “índio” como se seu sentido fosse 31 transparente, sem se dar conta da opacidade e dos efeitos de sentidos negativos que o termo pode produzir. Isso faz com que essa enunciação assuma um sentido de verdade e transparência para aqueles que se inscrevem nessa mesma formação discursiva. [...] o próprio de toda formação discursiva é dissimular, na transparência do sentido que nela se forma, a objetividade material contraditória do interdiscurso, que determina essa formação discursiva como tal, objetividade material essa que reside no fato de que “algo fala” (ça parle) sempre “antes, em outro lugar e independentemente”, isto é, sob a dominação das formações ideológicas (Pêcheux 1995, p. 162. Grifos do autor). Os jovens leitores que tiverem acesso a essa edição do livro, caso não tenham tido acesso a outras literaturas, em especial àquelas produzidas pelos povos originários, não sentirão estranhamento quando lerem a palavra “índio”, pois estarão inscrevendo-se em uma formação discursiva em que o indígena é falado pelo não indígena. Isso justifica a importância de um espaço de circulação na academia para literaturas outras, principalmente a de povos que por um longo período foram e ainda são considerados como minorias históricas. A Literatura Indígena Brasileira Contemporânea tem a potência de transformar as relações imaginárias dos sujeitos leitores e oferecer a eles a possibilidade de se inscreverem em outras formações discursivas, diferentes daquelas que perpetuam o preconceito histórico contra essas nações. Munduruku (2012), um dos pioneiros da Literatura Indígena Contemporânea no Brasil, diz que apesar do termo “índio” ter sido utilizado como forma de empobrecimento da experiência cultural de várias etnias indígenas, em um determinado período histórico sua utilização foi importante para a articulação do movimento indígena brasileiro: [...] foi muito importante o resgate do termo índio pelos líderes, conforme já salientei anteriormente. Este termo, que era utilizado como forma de empobrecer a experiência cultural indígena, acabou virando uma espécie de ícone que sustentava a luta indígena. Ele passou a ser usado como uma nova categoria de relações políticas. Era a primeira vez que os povos indígenas podiam propor uma verdadeira política que tinha uma identidade própria, fazendo, inclusive, frente ao pensamento indigenista que predominava à época e que era baseado na incorporação do índio à sociedade nacional através das frentes de trabalho, da qual é exemplo o trabalho até então desenvolvido pela Funai, como o projeto da renda indígena, que tinha como finalidade gerar postos de trabalho e renda a partir do desenvolvimento da cultura agropastoril em terras indígenas. Dentro 32 dessa visão, os índios eram considerados um estorvo para o desenvolvimento do país […] (Munduruku, 2012, p. 51). Essa articulação promoveu a união de líderes indígenas em um dos movimentos mais importantes de luta histórica dos povos indígenas, o Movimento Indígena brasileiro. Por outro lado, em outra obra de sua autoria, Munduruku (2019, p. 8-9) explica, de forma bem pedagógica para o público infantil que, atualmente, chamar alguém de “índio” pode soar como uma ofensa grave, pois esta palavra carrega sentidos depreciativos e preconceituosos. Segundo o autor, os não indígenas deveriam acostumar-se a chamar pessoas descendentes dos povos originários pelo nome de sua etnia. A escritora Márcia Kambeba, por exemplo, deveria ser reconhecida pelo nome de seu povo, Kambeba. É esse apelo que o eu/nós lírico do poema de Kambeba (2020) pleiteia nos versos em que declara não se identificar com a generalização do termo “índio”, “Tenho povo/Sou nação". Utilizar o nome das etnias dos povos originários é valorizar a cultura desses povos em vez de utilizar um termo genérico visto por eles como pejorativo. No caso em que não for possível referir-se à etnia, o termo “indígena”, segundo os próprios escritores e escritoras da Literatura Indígena Brasileira Contemporânea, é mais apropriado, pois a etimologia do termo está relacionada ao “que é originário ou próprio de um país, região ou localidade” (Indígena, 2024). Nos versos seguintes do poema “Me apelidaram, saquearam/Sem permissão”, tem-se uma alteração da pessoa do discurso. O eu lírico dos primeiros versos passa a ser um nós lírico, o que produz um efeito de um dizer coletivo que rejeita o processo histórico de colonização. Os discursos coloniais estabeleceram, ao longo do tempo, regularidades que se unem a outras regularidades de enunciados de formações discursivas não indígenas que funcionam juntos e se inscrevem em um mesmo sistema de verdade. Esse princípio de unidade e de agrupamento de certos dizeres que apontam para uma mesma direção, na Análise de Discurso pecheutiana, são conceituados como formações discursivas. Michel Foucault ressalta que é possível reconhecer uma formação discursiva quando: […] se puder descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações), diremos, por convenção, que se trata de uma formação discursiva […] (Foucault, 2008, p. 43). 33 Dessa maneira, certos elementos dos discursos coloniais estão concatenados a laços que são, aparentemente, tão potentes entre as palavras e as coisas que seus dizeres soam como evidentes. Porém, como já mencionado, isso não se dá por um processo natural e sim a partir de uma construção histórico-social que permitiu que esses discursos se entrelaçassem como a uma trama discursiva que funciona como se essas relações tivessem um status de verdade. Desfazer essas unidades é compreender a irrupção enunciativa, ou melhor, compreender como foi possível a produção de uma enunciação por um sujeito afetado por determinados processos sócio-históricos, situado em determinadas posições e em um determinado tempo. Na análise de discurso, o dizível é definido, para o sujeito, pela relação entre formações discursivas distintas. Cada formação discursiva define o que pode e o que deve ser dito a partir de uma posição do sujeito, em determinada conjuntura. O complexo das formações discursivas, em seu conjunto, define o universo do “dizível” e especifica, em suas diferenças, o limite do dizer para os sujeitos em duas distintas posições (remissíveis a diferentes formações discursivas). Esse jogo de formações discursivas remete o texto à sua exterioridade, isto é, à relação com o interdiscurso, com o Outro (Orlandi, 2008, p. 46. Grifos da autora). Quando o “eu/nós lírico” dos versos de Kambeba (2020) inscreve/m-se em formações discursivas relacionadas a outros domínios do saber, cria-se um lócus de enunciação que desnaturaliza e se contrapõe aos discursos coloniais, como o dizer a seguir: Precisamos entender que não somos “índias”, pois temos uma identidade, um povo que nos representa, nos abraça e nos fortalece. A palavra “índia” rememora as brutais violências das quais já falamos anteriormente, vividas no passado e no presente. Chame pelo nome do povo ao qual pertencemos, isso trará para nós a certeza e a fortaleza de que somos continuidade de um legado que faz pesar sobre nossos ombros e cabeça a força das penas herdadas de nossos ancestrais, que seguem simbolizadas por nossa geração neste século 21 (Kambeba, 2023, p. 33. Aspas da autora). Em suma, o que se intencionou propor com este preâmbulo foi refletir sobre a opacidade da linguagem na produção de sentidos, bem como enfatizar que a “AD se pretende uma teoria crítica que trata da determinação histórica dos processos de significação” (Orlandi, 2023, p. 12). Por esta razão, aproxima-se tanto das teorias das formações sociais quanto das teorias da enunciação. Esse arcabouço teórico metodológico é o que será utilizado para as discussões a seguir sobre o trabalho de 34 leituras dos textos de Kambeba (2020) e Dorrico (2019), que compõem o movimento político, estético e cultural da Literatura Indígena Brasileira Contemporânea. 2.2 O trabalho de leituras em literaturas indígenas contemporâneas A literatura é uma prática social que sofre transformações ao longo dos períodos históricos e se manifesta de formas diversas em sociedades distintas constituídas por diferentes relações de poder. Ela é percebida pelos efeitos produzidos pelo seu suporte material, ou seja, por sua materialidade e pelas condições de produção em que é concebida. Nas comunidades indígenas, muitas literaturas são produzidas por meio de inúmeras materialidades, tais como a oralidade, a música, os grafismos, as cestarias etc. Elas fazem parte do cotidiano das aldeias e também se manifestam entre os sujeitos indígenas que sofreram interpelação do Estado e que tiveram suas manifestações culturais interditadas/silenciadas em maior ou menor grau. O fazer artístico e a forma de se subjetivar dos povos originários foram sendo ressignificados a partir do momento em que estes passaram a ocupar espaços urbanizados e a se inscrever na língua oficial do Estado, o português, e na cultura do colonizador. Um dos efeitos dessa interpelação, muitas vezes realizada a fórceps e de forma violenta, foi a produção de uma literatura escrita que, para circular nessa nova configuração das nações, utilizou o suporte material do livro, enquadrando-se, devido a certas exigências editoriais, aos moldes da literatura canônica ocidental. Krenak (2021), ao refletir sobre o espaço para processos de subjetivação dos povos indígenas que ainda não foram integrados ao sistema de propriedade privada e suas relações com o Estado, enfatiza que, após a década de 1980, o conceito de patrimônio imaterial passou a significar a possibilidade de proteção de seus territórios: Independente de a gente demarcar a especificidade do que é produzido por povos originários, por uma etnia ou por uma dessas comunidades que foram relacionadas como povos tradicionais; independente do lugar de produção, todas têm em comum o fato de estarem sempre num fluxo constante de criação, de invenção. E o lugar dessa criação e invenção é a nossa subjetividade. A nossa subjetividade não é um lugar de produção que o sistema capitalista demarca e a partir do qual opera. O Estado tem muita facilidade de controle sobre os acervos materiais da cultura. É capaz de fazer a identificação e a classificação desse patrimônio, exatamente por seu caráter material, pela 35 possibilidade de apropriar-se dele e de transformá-lo em mercadoria (Krenak, 2021, p. 47). Foi nesse período que começaram a surgir movimentos em defesa dos direitos dos povos indígenas. A partir das décadas de 1970/1980, líderes de diversas etnias começaram a dialogar e a exigir políticas públicas que assegurassem o direito às suas territorialidades, identidades e subjetividades. Isso culminou no Movimento Indígena brasileiro, um marco de luta bastante importante contra a campanha indigenista do governo militar que, à época, de acordo com Munduruku (2012), tinha o propósito de integrar a população indígena à sociedade nacional. Esses movimentos tiveram apoio de parte da sociedade civil e contribuíram para a inclusão dos Direitos Indígenas na Constituição brasileira de 1988. Acerca desse momento, Munduruku (2012) salienta que: Talvez a maior contribuição que o Movimento Indígena ofereceu à sociedade brasileira foi o de revelar – e, portanto, denunciar – a existência da diversidade cultural e linguística. O que era antes visto apenas como uma presença genérica passou a ser encarado como um fato real, obrigando a política oficial a reconhecer os diferentes povos como experiências coletivas e como frontalmente diferentes da concepção da unidade nacional (Munduruku, 2012, p. 222). Por volta dos anos 1990, textos literários escritos por autores indígenas aldeados ou radicados nos espaços urbanos passaram a integrar um novo fazer artístico, uma literatura denominada por intelectuais indígenas como Literatura Indígena Brasileira Contemporânea, termo que a difere das literaturas indianista e indigenista que vinham sendo produzidas por escritores não indígenas até então, como José de Alencar e Mário de Andrade. Quem primeiro utilizou essa expressão foi a escritora e poeta potiguara, Graça Graúna: A literatura indígena contemporânea é um lugar utópico (de sobrevivência), uma variante do épico tecido pela oralidade; um lugar de confluência de vozes silenciadas e exiladas (escritas) ao longo dos mais de 500 anos de colonização. Enraizada nas origens, a literatura indígena contemporânea vem se preservando na auto-história de seus autores e autoras e na recepção de um público-leitor diferenciado, isto é, uma minoria que semeia outras leituras possíveis no universo de poemas e prosas autóctones (Graúna, 2013, p. 15. Parênteses da autora). De acordo com Graúna (2013), quem possivelmente inaugurou o movimento literário indígena contemporâneo no Brasil foi a escritora Eliane Potiguara com a 36 poesia Identidade Indígena, publicada pela primeira vez em 1975. No entanto, só mais tarde, nos anos 1990, é que autores indígenas, como Marcos Terena, Kaká Werá Jekupé, Daniel Munduruku e Olívio Jecupé, começaram a publicar no mercado editorial por conta própria. Essa vertente de literatura indígena brasileira contemporânea nasce enraizada no conhecimento ancestral, na contação de histórias dos anciões e traz para a materialidade do livro a oralidade e a história que foi interditada/silenciada pela escrita ocidental. Na visão de Munduruku (2018), o fato de utilizar tecnologias do não indígena para se manifestar artisticamente não significa a perda da identidade indígena: O papel da literatura indígena é, portanto, ser portadora da boa notícia do (re)encontro. Ela não destrói a memória na medida em que a reforça e acrescenta ao repertório tradicional outros acontecimentos e fatos que atualizam o pensar ancestral. Há um fio tênue entre oralidade e escrita, disso não se duvida. Alguns querem transformar esse fio numa ruptura. Prefiro pensar numa complementação. Não se pode achar que a memória não é atualizada. É preciso notar que a memória procura dominar novas tecnologias para se manter viva. A escrita é uma delas [...]. E é também uma forma contemporânea de a cultura ancestral se mostrar viva e fundamental nos dias atuais. Pensar a literatura indígena é pensar no movimento da memória para apreender as possibilidades de mover-se num tempo que a nega e que nega os povos que a afirmam. A escrita indígena é a afirmação da oralidade (Munduruku, 2018, p. 83). Outra escritora indígena, Aline Pachamama, ressalta que os povos originários sempre foram ditos pelo outro, pelo não indígena, como antropólogos, historiadores, linguistas, escritores de literatura etc. Isso fez com que inúmeras vezes as diversas nações dos povos originários fossem colocadas numa posição de “objeto de estudo” e não como interlocutores de um possível diálogo entre indígenas e não indígenas: Há uma vasta bibliografia indigenista que não foi escrita pelo indígena. Tais escritos se apropriam de nossos conhecimentos e saberes, muitas vezes traduzidos em vários idiomas, menos no idioma daquele que inspirou o registro. E o autor é sempre o outro. Um Povo, que é Originário, não será mais silenciado em seu próprio território e em seu conhecimento. Então, também por isso, decidimos escrever. (Pachamama, 2020, p. 27). Exercer autoria, na perspectiva da Análise de Discurso, exige posicionamentos, pois, de acordo com Orlandi (2020b), o autor é representado como o lugar em que sujeito passa a constituir-se como unidade a partir do texto, filiando- se a determinadas formações discursivas e não outras. Portanto, refletir sobre 37 autoria demanda a compreensão de que os sujeitos se relacionam imaginariamente com a realidade de formas diversas, afetados por uma materialidade histórica marcada por contradições e determinações. Essas noções serão o ponto central deste trabalho e receberão mais atenção nos próximos capítulos. Retomando o que já foi discutido, a razão pela escolha do arcabouço teórico da Análise de Discurso deu-se em virtude desta teoria possuir um engajamento, tanto com os estudos da linguagem, quanto com a sociedade que a produz. Outro aspecto relevante da teoria para a pesquisa é que além de permitir uma ancoragem em seus pressupostos teóricos, a Análise de Discurso possibilita também sua utilização como princípio metodológico, uma vez que viabiliza a construção de um dispositivo analítico que será utilizado para produzir os gestos de leitura sobre as Sequências Discursivas selecionadas. Quando um sujeito interpreta de uma maneira em vez de outra, essa escolha caracteriza a ideologia. Por isso se diz, em Análise de Discurso, que a ideologia é constitutiva do sujeito e dos sentidos, diferentemente de outras linhas conceituais das Ciências Humanas que a tratam como ocultação, ou como falsa consciência, ou ainda como algo que filtra os sentidos, causando um impedimento da compreensão da realidade. Para a Análise de Discurso, a ideologia é parte fundante da relação necessária entre linguagem e mundo e se manifesta materialmente no discurso. Do ponto de vista da significação, não há uma relação direta do homem com o mundo, ou melhor, a relação do homem com o pensamento, com a linguagem e com o mundo não é direta assim como a relação entre linguagem e pensamento, e linguagem e mundo tem também suas mediações. Daí a necessidade da noção de discurso para pensar essas relações mediadas. Mais ainda, é pelo discurso que melhor se compreende a relação entre linguagem/pensamento/mundo, porque o discurso é uma das instâncias materiais (concretas) dessa relação (Orlandi 2020a, p. 12). As mediações a que a autora se refere seriam a ideologia e o imaginário. A relação do sujeito com a exterioridade é sempre imaginária, ou seja, a relação do sujeito com as condições exteriores é sempre ideológica. Desse modo, a concepção de discurso diferencia-se do fluxo comunicativo disposto nos elementos de comunicação em que a interação se caracteriza pela transmissão de uma mensagem de um emissor para um receptor. A informação, nesse sentido, seria algo transmitido e decodificado de forma linear. Já no discurso não há essa separação, pois os sujeitos produzem sentidos a todo momento, tanto na posição em que se 38 está significando quanto na posição em que se está sendo significado. Isso também acontece quando o sujeito organiza o dizer, constituindo efeitos de autoria, ou mesmo quando está significando na posição de leitor. É por meio de processos como identificação, argumentação e subjetivação que a linguagem acontece e, por esta razão, ela não é considerada transparente e sim tida como trabalho simbólico. Nas palavras de Orlandi (2012, p. 22), “tomar a palavra é um ato social com todas as suas implicações: conflitos, reconhecimentos, relações de poder, constituição de identidades”. Para os povos originários, tomar a palavra é um ato ligado à memória ancestral alicerçada em práticas sociais de tradição oral. Xakriabá (2018), em sua dissertação de mestrado, faz uma reflexão acerca disso: Até hoje eu mantenho um exercício muito grande de escuta, mas quando eu profiro a palavra é como se eu fizesse uma amarração de tudo que foi escutado, sei que essa palavra deve ser entoada com força, de forma que faça as pessoas reverberarem sua presença em mim, no sentido de serem tocadas pelo que eu disse. Eu sempre respondo que pra mim cada fala, cada palavra que é dita, é um alimento, porque tem a potência de alimentar as pessoas. Há coisas que a gente tem vontade de comer sempre no nosso dia a dia, repetir por exemplo o arroz e o feijão, mas o alimento só é rico se a gente trouxer diversidade. Assim é também com a palavra. Quando sabemos da origem do alimento que comemos, sabendo onde foi plantado, sabemos que aquele alimento é forte, pois conhecemos a origem de suas raízes. Assim também é com a palavra, que eu falo a partir desse enraizamento que a orienta. Quando eu falo, eu não me preocupo se eu vou fazer uma fala de estrutura conceitual, formal, acadêmica. Embora transite no espaço acadêmico, a minha fala está ligada a esse enraizamento, e importa se esse vai alimentar as pessoas, se vai inspirá-las. Então, sempre, antes de falar, eu peço que fale não apenas a minha boca, mas também meu corpo, como lugar que guarda a memória daquilo que aprendo. Sinto que minha fala não é solitária, ela só tem força porque invoco e sinto a presença dos mais velhos e de minha ancestralidade (Xakriabá, 2018, p. 33-34, os grifos em negrito são nossos). O dizer, para Xakriabá (2018), é dar voz a outras vozes que vieram antes da sua, produzindo acontecimentos discursivos por meio da constituição de novas formas de rememoração e elaboração simbólica dos sentidos. É organizar um já-dito da memória ancestral para que ele ecoe de forma potente e diversa, independentemente da posição sujeito que ela ocupar, quer seja em territórios ancestrais ou acadêmicos. O que importa não é o grau de formalidade em que ela se inscreve na língua e sim os efeitos de sentidos que a força de suas palavras consegue produzir trazendo à tona a ancestralidade e a memória de seu povo. 39 A enunciação agenciada por Xakriabá (2018) constrói efeitos de sua identidade por meio de formações discursivas que circulam em seus espaços de vivência com os mais velhos, cada uma delas ligada a uma memória que se sustenta a partir de práticas sociais, principalmente aquelas pautadas na oralidade. Quando a enunciadora faz a comparação das palavras com os alimentos, que nutrem e dão força ao corpo, inscreve-se em uma formação discursiva indígena, pois se sabe o quanto é essencial à sobrevivência das comunidades indígenas a sustentabilidade do cultivo dos alimentos, assim como o cultivo da tradição oral para que a cultura continue sempre viva. Os dois processos se dão pela oralidade e estão relacionados a atividades coletivas. Por meio de um processo de enunciação, Xakriabá (2018) relaciona a importância da ingestão de bons alimentos à escuta das palavras que são proferidas pelos seus ancestrais. Ambos irão nutrir, o corpo e o espírito, se estiverem bem enraizados, bem cultivados e passado por um processo de amadurecimento. As repetições entre o “falar” e o “alimentar-se” permite-nos pensar em uma regularidade enunciativa que remete à tradição da oralidade, ou seja, apontam para um regime de saber das comunidades originárias, possibilitando-nos pensar em uma formação discursiva indígena. Krenak (2021) também reflete sobre o poder da oralidade para as sociedades indígenas: [...] eu sou produto da tradição. Eu sou produto da oralidade. Tudo o que eu consigo capturar da essência de estar vivo e de experimentar as coisas, eu traduzo nas minhas elaborações [...] Uma característica da tradição oral parece ser esse falar de repente, aquela coisa que sai do espírito; uma conjunção de espírito, mente e arte da fala. É um traço da cultura tão difícil de se capturar, e, ao mesmo tempo, talvez seja o último grande acervo de riqueza que ainda temos por reconhecer e por apreciar no mundo hoje, não só no Brasil e na América do Sul, mas no mundo. Talvez ele esteja exatamente escondido nas franjas das tradições que ainda não se escrevem, que ainda não têm outros relatos a não ser a oralidade (Campos; Krenak, 2021, p. 37). A valorização da escuta dos mais velhos pelos povos de tradição oral é fundamental para promover o enraizamento de saberes e a preservação de discursos que viabilizam a manutenção de suas culturas. Sob a perspectiva da Análise de Discurso, as palavras ou expressões só ganham sentido a partir de determinadas formações discursivas a que se filiam, indo além de seu sentido literal. Seus sentidos são produzidos pelas posições ideológicas em que os sujeitos se inscrevem num dado contexto histórico, numa dada condição de produção. Para 40 Pêcheux (1995, p. 160), a formação discursiva representa “aquilo que, numa formação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada numa conjuntura dada, determinada pelo estado da luta de classes, determina o que pode e o que deve ser dito”. É por meio das formações discursivas a que se filia o sujeito que suas posições são determinadas. Quando se pensa nas formações discursivas que constituem as identificações dos sujeitos indígenas, como a que mencionamos acima, é importante pontuar a pluralidade das cosmovisões das diferentes etnias que vivem no Brasil. Os saberes dos povos originários são muitos e diversos, suas literaturas são rizomáticas, elas não foram edificadas a partir de um saber pivotante eurocentrado. Em vista disso, antes de prosseguir com as reflexões que irão conduzir as discussões deste capítulo, é importante destacar a plurietnicidade dos povos originários e pensar como a representação dessa pluralidade é organizada em uma autoria indígena. A seguir analisaremos uma segunda Sequência Discursiva (SD2), retirada do mesmo poema narrativo de Kambeba (2020), intitulado “Povos Originários”, com o intuito de refletir sobre esse universo pluriétnico: SD2 Sou Kambeba, Kokama, Tapuia, Waiãpi, Sou Mura, Bororo, Sou Tembé, Wai Wai, Munduruku, Suruí. Sou Zoé, Macuxi, Tupinambá, sou Matis, Pataxó, Kaiapó, Miranha, Assurini, Sou karajá, Tikuna, Arapium, Apinajé, Borari, Tukano, Aimoré, Amanayé. Potiguara, Tabajara, Canela, Guajajara, Truká, Pankararú, Kariri, Fulniô, Xucuru, Xavante, Karipuna, Caeté, Tupiniquim. Pacajá, Turiauara, Guajá, Kaapor Jacundá, Tapirapé, 41 Nambiquara, Anambé. Kamayurá, Aiaká, Parintintin, Carijó, Kiriri, Tacanas, katukina, Tapirapé, Chaupana, àreci, Canoeiro, Apurinã, Wapixana. Arapaso, Arara, Aranã, Arara do Pará, Arikapu, Aruás, Marajoara, Bakairi, Ashaninka, Hini Kuim, Aweti, Aticum, Gavião, Hixkaryana, Jarawara, Kadwéu, Kaimbé, Kaixana, Kaingang. Kalapalo, Kalankó, Suruí Paiter, Kanamari, Kanataruré, Kanoê, Kapinawá, Karapotó, Kariri-Xocó Katukina, Krenak, Kulina, Kaxixó Cinta Larga, Kuripako, Kuruaya. Makurap, Makuxi, Palikur, Pankaru, Parakanã, Mura, Suyá, Sateré-Maué, Shanenawa, Xeréu, Witoto, Xakriabá, Xipaya, Xokleng, Xokó, Yawalapiti, Yawanawá, Juruna/Yudjá, Zuruahã, Kambixuru, Terena, Yanomami, Guarani, Sou daqui e estou aí. (Kambeba, 2020, p. 67) Como já visto, os primeiros versos do poema “Não sou índio/Tenho povo/ Sou nação”, que foram analisados na primeira Sequência Discursiva (SD1), têm um caráter pedagógico tanto para o leitor indígena quanto para o leitor não indígena. O “eu/nós lírico” do poema utiliza a primeira pessoa gramatical para negar um termo ao qual foi nomeado/a, mas não determina o sujeito que praticou a ação “Me apelidaram, me saquearam/ Sem permissão”. Esse “Outro” que o/a destituiu de seu nome, de seus territórios e, consequentemente, de sua cultura, produziu um processo de apagamento de suas subjetividades e uma profunda transformação em seu modo de estar no mundo. O termo “índio”, ao longo dos processos históricos e pelos seus usos sociais, foi constituindo uma gama de significações que produziram o efeito de uma categoria generalizante de sujeito em que foram sendo sedimentadas, tanto no imaginário dos sujeitos não indígenas, quanto dos sujeitos indígenas interpelados em maior ou menor grau pela sociedade envolvente. A sedimentação de processos de significação se faz historicamente, produzindo a institucionalização do sentido dominante. Dessa 42 institucionalização decorre a legitimidade, o sentido legitimado fixa-se então como centro: o sentido oficial, literal 3. O produto dessa sedimentação, dessa institucionalização, é observado na história da língua: a história dos sentidos cristalizados é a história do jogo de poder da/na linguagem (Orlandi, 2012, p. 27). Quando surge um lócus na literatura escrita em que se enuncia a partir da posição de minoria histórica, é criada a possibilidade de se produzirem sentidos que não puderam ser significados anteriormente (da maneira como ocorre agora) em virtude de um processo de silenciamento que se configurou ao longo dos movimentos históricos. Retomamos, então, o conceito de voz-práxis, pensada por Danner, Dorrico e Danner (2017) da seguinte maneira: Aliás, relativamente à correlação e à associação entre Movimento Indígena e literatura indígena brasileiros, o paralelismo salta aos olhos: assim como o Movimento Indígena partia da percepção de que era necessário publicizar- se e politizar-se, de que era necessário publicizar e politizar a situação e a causa indígenas como condição para seu efetivo enfrentamento, como base para a conquista de hegemonia cultural, política, epistemológica, tornando os povos indígenas em sujeitos público-políticos, a literatura indígena emerge e dinamiza-se com a intenção de conceder protagonismo social, cultural, epistemológico e político a esses mesmos povos indígenas, via voz-práxis estético-literária, seja no sentido de promover a singularidade antropológico-cultural deles, seja no que diz respeito assunção da condição e da causa indígenas como núcleo dessa voz-práxis estético-literária desenvolvida pelos escritores e pelos intelectuais indígenas, que levaria ao ativismo, ao engajamento e à militância como forma de enfrentamento e de posicionamento público-políticos dos indígenas acerca de sua situação. Na literatura indígena, por conseguinte, temos uma voz-práxis política e politizante, carnal e vinculada, em que o eu-nós lírico-político assume a condição, a causa e o caminho de seu povo como núcleo de uma perspectiva crítico-criativa que tem por cerne a politização, a hegemonia cultural, via enfrentamento público-político da situação de marginalização, de exclusão e de violência vividas e sofridas como minoria. A literatura indígena é, em consequência, instrumento político aliado ao Movimento Indígena como causa, arena e sujeito público-políticos. (Danner; Dorrico; Danner, 2017, p. 19-20) O “eu/nós lírico” do poema, quando fala sobre si mesmo, representa também uma coletividade. Esse efeito é produzido nos versos acima por meio da nomeação de várias nações indígenas representadas no discurso poético por uma sequência de cento e dezoito etnias. Com isso, abre-se, ao leitor, um universo de nações cujas nomenclaturas pouco ou nunca circularam nos textos de literatura escrita brasileira. Dessa forma, o termo “índio” amplia-se, particularizando nomes de outras nações que até então não eram/são conhecidas pela maioria do público não indígena. Essas nomenclaturas ocupam espaço na página e passam a existir no imaginário dos sujeitos leitores. 43 No entanto, é importante mencionar que as cento e dezoito etnias citadas nos versos de Kambeba (2020) não representam a totalidade de etnias indígenas que vivem no Brasil. As populações indígenas começaram a ser investigadas pelo Censo a partir de 1991, quando foi introduzida a opção “indígena” na pergunta referente a raça e cor. Esse procedimento foi repetido em 2000 em um formulário, mas era respondido apenas por um pequeno percentual da população (aproximadamente 10%). Somado a isso, não eram investigadas outras questões como o pertencimento étnico e línguas faladas, o que restringia informações acerca da realidade indígena. Isso começou a ser alterado no censo de 2010, quando foram incorporadas algumas mudanças metodológicas na pesquisa e outras informações puderam ser apuradas, como, por exemplo, a quantidade de línguas indígenas que eram faladas no Brasil. De acordo com o Censo Demográfico de 2010 (IBGE, 2012), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), existem no Brasil cerca de 305 diferentes etnias falantes de 274 línguas indígenas. Essa diversidade abarca um contingente de aproximadamente 897 mil pessoas, sendo que desse total, por volta de 517 mil habitam terras indígenas. Além disso, um percentual de 77% dos indígenas brasileiros são falantes da língua portuguesa. A maior parte deste percentual vive em centros urbanos, como é o caso das duas escritoras analisadas no corpus deste trabalho. Em contrapartida, aproximadamente 57% dos indígenas que vivem em terras indígenas falam alguma língua indígena. Em 2022, o IBGE, com o apoio da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI), realizou um novo censo com algumas alterações metodológicas em relação ao anterior. De acordo com esta nova pesquisa (Brasil, 2023), houve um aumento demográfico significativo de 89% em relação ao censo anterior. Isso traduzido em números equivaleria a uma população indígena de aproximadamente 1,7 milhão de pessoas, o que representa 0,83% do total de habitantes do país. De acordo com Marta Antunes, coordenadora do Censo de Povos e Comunidades Tradicionais: [...] o aumento do número de indígenas no período intercensitário é explicado majoritariamente pelas mudanças metodológicas feitas para melhorar a captação dessa população. “Só com os dados por sexo, idade e etnia e os quesitos de mortalidade, fecundidade e migração será possível compreender melhor a dimensão demográfica do aumento do total de pessoas indígenas entre 2010 e 2022, nos diferentes recortes. Além disso, 44 existe o fato de termos ampliado a pergunta ‘você se considera indígena?’ para fora das terras indígenas. Em 2010, vimos que 15,3% da população que respondeu dentro das Terras Indígenas que era indígena vieram por esse quesito de declaração”, explica. (Brasil, 2023) A tomada da palavra por Márcia Wayna Kambeba, Trudruá Dorrico e outros escritores de diferentes etnias para escrever uma vertente de literatura indígena, majoritariamente escrita em língua portuguesa, instiga reflexões a partir de questões linguísticas e também sociais em uma relação com o Estado, instituição que controla e determina as relações de produção. Um dos questionamentos que surgiu, logo no início da pesquisa, foi o de pensar como foi possível esse dizer em uma língua e não em outra. Em vista disso, primeiramente, buscou-se ponderar sobre o que significa falar a língua portuguesa no Brasil. [...] o que é falar Português no Brasil? Sem dúvida que o primeiro aspecto que devemos considerar é que o Português é a língua oficial do Estado Brasileiro, e é, nessa medida, a língua nacional do Brasil. Ou seja, é elemento de identificação de sujeitos enquanto cidadãos do Estado. Mas falar Português no Brasil é falar uma língua que são várias. Assim, a relação dos falantes com a língua está regulada por uma relação com a língua do Estado: gramatizada, normatizada (Guimarães, 2017, p. 28). Sylvain Auroux (1992) reflete acerca do impacto dos processos de gramatização para o desenvolvimento cultural humano que culminou, pensando mais especificamente no Ocidente, em um meio de conhecimento e também de dominação sobre outras culturas do planeta: Com a gramatização – logo a escrita, depois a imprensa – e em grande parte graças a ela, constituíram-se espaços/tempos de comunicação cujas dimensões e homogeneidade são sem medida comum com o que pode existir em uma sociedade oral, isto é, numa sociedade sem gramática. Isso não vale somente para as grandes línguas européias, mas também para todas as línguas do mundo em que os instrumentos gramaticais europeus serão impostos aos locutores indígenas: por exemplo, o quéchua, que se torna a “língua geral” do Peru, bem para além do que se supunha a dominação inca, ou ainda o guarani na época da República Jesuítica do Paraguai (1610 – 1767). Assim como as estradas, os canais, as estradas- de-ferro e os campos de pouso modificaram nossas paisagens e nossos modos de transporte, a gramatização modificou profundamente a ecologia da comunicação e o estado do patrimônio linguístico da humanidade. É claro, entre outras coisas, que as línguas, pouco ou menos “não- instrumentalizadas”, foram por isso mesmo mais expostas ao que se convém chamar linguicídio, que seja ele voluntário ou não. (Auroux, 1992, p. 70. Grifos do autor) 45 Assentimos com a reflexão do autor acerca dos impactos profundos que a gramatização, como um processo de “acumulação” e “conservação de saber”, provocou nos fenômenos culturais, sociais e linguísticos. Contudo pontuamos uma ressalva para a utilização, pelo autor, dos temos “pouco ou menos ‘não instrumentalizadas’” quando se refere às línguas que saíram de circulação após a instauração dos processos de gramatização. Nosso intuito com essa observação é não reproduzir um preconceito histórico oriundo de uma trama discursiva colonial que produziu o efeito de que as línguas excluídas eram, possivelmente, menos instrumentalizadas. De acordo com Guimarães (2018), os falantes são indivíduos determinados pelas línguas que falam, portanto são sujeitos da língua que se constituem em um espaço conceituado como espaço de enunciação. Por espaço de enunciação, o autor entende que: Os espaços de enunciação são espaços de funcionamento de línguas, que se dividem, redividem, se misturam, desfazem, transformam por uma disputa incessante. São espaços “habitados” por falantes, ou seja, por sujeitos divididos por seus direitos ao dizer e aos modos de dizer. São espaços constituídos pela equivocidade própria do acontecimento: da deontologia que organiza e distribui papéis, e do conflito, indissociado desta deontologia, que redivide o sensível, os papéis sociais. O espaço de enunciação é um espaço político [...] (Guimarães, 2017, p. 25. Aspas do autor) A noção do político nos espaços de enunciação foi uma das primeiras noções demandadas pelo corpus deste trabalho. Desse modo, propomos iniciar um novo gesto de leitura para refletir sobre essas relações de poder a partir de uma terceira Sequência Discursiva (SD3) que se encontra nas páginas iniciais do livro Eu sou macuxi e outras histórias (2019). SD3 Eu sou filha de Makunaima, que criou minha avó: primeiro de cera (mas ela derreteu!) e depois de barro: resistindo ao sol e passando a existir para sempre. Um dia ela bebeu caxiri e resolveu brincar porque só assim podia criar minha mãe e ela criou! Mas decidiu que a língua de minha mãe seria o inglês, 46 assim, minha mãe não se aborreceria e sua vida seria mais fácil. A língua de minha mãe é diferente da de minha avó, minha avó fala a língua de Makunaima. Um dia minha mãe decidiu me criar mulher: E criou, lá na década de 1990, bem certinho. Decidiu, porém, que minha língua não seria nem o macuxi, como de minha ancestral, nem o inglês dos britânicos, mas o português. Eu não quis não. Então resolvi criar minha própria. Como não posso fugir do verbo que me formou, juntei mais duas línguas para contar uma história: O inglexi e o macuxês porque é certo que meu mundo - o mundo - precisa ser criado todos os dias. (Dorrico, 2019, p. 20-21, os grifos em negrito são nossos). A enunciadora dessa sequência discursiva, ao narrar sobre a aquisição de sua língua, menciona mais duas outras línguas: a macuxi e a inglesa. Logo no início da passagem são apresentadas três figuras identificadas como femininas: avó, mãe e filha. Das três personagens, apenas a avó fala a língua de Makunaima, as outras duas inscrevem-se em línguas coloniais, mas não por sua própria vontade. A mãe se inscreve na língua inglesa por decisão da avó a fim de que tivesse uma vida “mais fácil” e “sem aborrecimentos”. Já a enunciadora tem a língua portuguesa como primeira língua, mas não a aceita de forma passiva, resiste, juntando a língua macuxi de seus ancestrais à outras duas línguas, a inglesa e a portuguesa, para encontrar uma possibilidade de contar suas histórias e (re)criar seu mundo. A presença do colonizador na América em espaços de enunciação onde circulavam várias línguas indígenas alterou significativamente as relações de poder entre os falantes. Guimarães (2018, p. 24) enfatiza que “as línguas do espaço de enunciação se relacionam umas com as outras na medida em que constituem seus falante