PEDRO RAGUSA ARQUEOLOGIA DO SABER DE MICHEL FOUCAULT COMO UM HÍBRIDO TEÓRICO-METODOLÓGICO: Entre o Estruturalismo e a Epistemologia. ASSIS 2018 PEDRO RAGUSA ARQUEOLOGIA DO SABER DE MICHEL FOUCAULT COMO UM HÍBRIDO TEÓRICO-METODOLÓGICO: Entre o Estruturalismo e a Epistemologia Tese apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista para a obtenção do título de Doutor em História (Área de Conhecimento: História e Sociedade) Orientador: Hélio Rebello Cardoso Junior ASSIS 2018 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca da F.C.L. – Assis – Unesp R146a Ragusa, Pedro Arqueologia do saber de Michel Foucault como um híbrido teórico-metodológico: Entre o Estruturalismo e a Epistemologia / Pedro Ragusa. Assis, 2018. 140 f. Tese de Doutorado – Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis Orientador: Dr. Hélio Rebello Cardoso Junior 1. Foucault, Michel, 1926-1984. 2. Arqueologia. 3. Estruturalismo. 4. Epistemologia. I. Título. CDD 194 Para Márcia, José e Helaine Agradecimentos Rara é a oportunidade de agradecer publicamente àqueles que fazem parte de nossa trajetória, de nossa experiência e formação intelectual. Eu não poderia perder essa oportunidade, talvez única de gravar o reconhecimento de certa dívida. Nessa trajetória algumas pessoas ocuparam lugar importante, motivo pelo qual quero registrar alguns nomes. Ao professor Hélio Rebello Cardoso Junior, por sempre acreditar nesse estudo, por orientar esse trabalho de maneira paciente e generosa. Pela sensibilidade única de leitura, sempre atenta, rigorosa e provocadora. Pela capacidade de criar e mostrar caminhos, enfim, pelo amor à ciência. Ao professor André Luiz Joanilho, com quem tudo começou. Agradeço pelas orientações e palavras generosas que sempre acompanharam nossa relação. Pelas aulas na graduação, pela orientação no mestrado e por ter me apresentado a leitura de Michel Foucault. Também agradeço a todos os professores que participaram de minha formação em sala de aula, bancas de qualificação e conversas informais que sempre me motivaram a seguir nesse caminho. Nomeadamente foram fundamentais em minha formação: Alfredo dos Santos, Marco António Neves Soares, Paulo Alves, Sônia Adum, José Miguel Arias Neto, Lucia Helena Oliveira da Silva, Rogério Ivano, Igor Guedes Ramos, Josimar Paes de Almeida, Cristiano Biazzo Simon, Gabriel Giannttasio, Angelita Marques Visalli, Renata Cerqueira Barbosa, Milton Carlos Costa. A todos os funcionários das bibliotecas consultadas na execução desse estudo, nomeadamente a biblioteca da Unesp/Assis e a biblioteca setorial de ciências humanas da Universidade Estadual de Londrina. Aos funcionários da secretária de Pós-Graduação, nomeadamente José Lino. Aos amigos, que foram muitos durante essa trajetória e sempre me motivaram e me fizeram acreditar nesse estudo. Destaco aqueles que puderam participar de maneira mais próxima. Bruno Nielsen Venâncio, Carlos Henrique Lopes Pimentel, Eduardo Leonel, Paulo Rosa, Jorge Rosa, Túlio Sanches, Thiago Correa Mattos, Ronie Péterson, Fernando Violin, Leandro Cesar Leocádio, Vinícius Montelima, Bruno Oliveira, Rodolfo Funfas e Thiago Gonzaga Forlevize. A minha família. Minha mãe, Márcia e a meu pai José, que tanto os admiro e sempre me apoiaram e me possibilitaram trilhar esse caminho sem nunca deixar de serem pais e professores. A minha sogra Olinda, que em muitas oportunidades me disse palavras de sabedoria e ternura. Todos vocês, mesmo distantes nunca deixaram de estar presentes. A Helaine, que eu tanto amo e admiro, o meu muito obrigado. Companheira com quem redescubro diariamente o gosto pela vida, pelo trabalho e pelos outros. Sem você esse trabalho não existiria. Esta pesquisa contou com o apoio financeiro da CAPES. RAGUSA, Pedro. ARQUEOLOGIA DO SABER DE MICHEL FOUCAULT COMO UM HÍBRIDO TEÓRICO-METODOLÓGICO: Entre o Estruturalismo e a Epistemologia. Assis, 2018. 140 f. Tese de Doutorado – Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, 2018. RESUMO O objetivo dessa tese será mostrar como na prática do método arqueológico, Michel Foucault pôde estabelecer com o Estruturalismo uma importante interface teórica para a realização de suas pesquisas durante a década de sessenta. Vamos mostrar como o filósofo se apropriou do programa Estruturalista para lhe conferir uma nova roupagem, uma nova problemática e uma nova perspectiva teórica ao introduzir análises descrições estruturais no campo da história, convertendo-o ao método arqueológico identificado na primeira fase da obra de Michel Foucault. A partir dessa problemática, nossa hipótese, é que a participação de Michel Foucault no programa teórico-metodológico estruturalista se dá partir da composição estratégica por parte do filósofo de um método de pesquisa “híbrido”, posto entre o Estruturalismo e a Epistemologia Francesa. Dessa maneira, para compreendermos os limites da pesquisa e do método arqueológico de Michel Foucault é necessário situar o Estruturalismo como uma importante interface teórica auxiliar em seus estudos sobre o homem, sobre os saberes e as instituições. Palavras-Chaves: Michel Foucault - Arqueologia - Estruturalismo - Epistemologia RAGUSA, Pedro. MICHAEL FOUCAULT'S ARCHAEOLOGY OF KNOWLEDGE AS A THEORETICAL-METHODOLOGICAL HYBRID: Between Structuralism and Epistemology. 2018. 140 f. Thesis (Doctorate in History). – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Assis, 2018. ABSTRACT The aim of this thesis is to show how, in the practice of the archaeological method, Michel Foucault was able to establish with Structuralism an important theoretical interface for carrying out his researches during the sixties. Let us show how the philosopher appropriated the Structuralist program to give it a new outlook, a new problematic and a new theoretical perspective when introducing structural descriptions descriptions in the field of history, converting it to the archaeological method identified the first phase of the work of Michel Foucault. From this problematic, our hypothesis is that the participation of Michel Foucault in the structuralist theoretical-methodological program starts from the strategic composition by the philosopher of a "hybrid" research method, placed between Structuralism and French Epistemology. Thus, in order to understand the limits of Michel Foucault's research and archaeological method it is necessary to situate Structuralism as an important auxiliary theoretical interface in his studies on man, on knowledge and institutions. Keywords: Michel Foucault - Archeology - Structuralism - Epistemology. Sumário Introdução .....................................................................................................................12 Capítulo I. Estruturalismo e Estrutura.......................................................................31 1. Os Estruturalismos, diferenças de um pensamento multilinear ...........................31 1.1Sobre o Problema Estrutural: Estruturalismo, Estrutura e Linguagem...33 2.O Estruturalismo como pensamento sobre o Simbólico. A Estrutura Triádica...........................................................................................................................37 3.Do Sentido de Posição e suas Relações. ....................................................................46 4.As relações diferencias e a temporalidade da Estrutura......................49 4.1. O Acontecimento Estrutural: Atualização e Singularidade. .....................51 5. Conclusão: Estrutura e Estruturalismo como Diferença. .....................................53 Capitulo II. A filosofia francesa na primeira metade do século XX ....................... 55 1. Entre a Fenomenologia existencial e a Epistemologia conceitual ..........................55 2.A Fenomenologia e o cenário filosófico francês na primeira metade do século XX...................................................................................................................................57 2.1. A fenomenologia e a contribuição husserliana. ...............................59 2.2. A recepção da Fenomenologia de Husserl na França. .....................61 2.3. A Fenomenologia Existencial Francesa: Jean-Paul Sartre e Maurice Merleau-Ponty. .............................................................................................................63 2.3.1. Jean Paul-Sartre e a Fenomenologia Existencialista. ....................64 2.3.2. A fenomenologia existencial de Merleau-Ponty ............................66 2.3.3. Michel Foucault e a Fenomenologia: A Proto-Arqueologia. .........69 2.3.4 A Proto-Arqueologia: O Pensamento fenomenológico de Michel Foucault (1952-1957). ...................................................................................................70 3.A Epistemologia Francesa: A História das Ciências de George Canguilhem........72 3.1 Epistemologia Francesa e a História das Ciências: A Análise Histórica dos Regimes de Racionalidade a partir das práticas científicas..................................74 3.1.1. Prática Científica. ..............................................................................75 3.2. Epistemologia e Descontinuidade Histórica: Ruptura e Corte Epistemológico...............................................................................................................76 3.2.1. O Corte Epistemológico......................................................................80 3.3. Da Epistemologia do Conceito de Canguilhem para a Arqueologia do saber de Michel Foucault. .............................................................................................81 3.4. A Arqueologia do Saber: Um Hibrido Epistemológico-Estrutural. ..84 4.Conclusão ....................................................................................................................89 Capítulo III. O Híbrido Arqueológico: Entre o Estruturalismo e a Epistemologia...91 1. A Arqueologia dos Saberes e Estruturalismo: Tema, Método Objeto................91 2. Michel Foucault entre o comentário e a prática do Estruturalismo. ..................95 3. Episteme: Estrutura-Histórica para um Estruturalismo sem Estruturas.......100 3.1. Episteme: Estrutura histórica e descrição arqueológica. ..................101 3.2. Estruturalismo-Histórico: A Episteme como “A Priori Histórico- Epistemológico”...........................................................................................................107 4. O Estruturalismo em As Palavras e as Coisas: A História Estrutural do Saber......................................................................................................................110 4.1 O objeto Estruturalismo: Uma Arqueologia do aparecimento do Estruturalismo............................................................................................................111 4.2. O Estruturalismo como método Histórico-Epistemológico: A arqueologia dos saberes....................................................................................................................114 4.3. A Arqueologia dos Saberes como método histórico-estrutural: Mudança e Ruptura....................................................................................................118 5. Michel Foucault não foi estruturalista, mas esteve no Estruturalismo. ............123 Considerações finais. ................................................................................................. 127 Referências Bibliogáficas............................................................................................135 12 Introdução O objetivo central dessa tese será mostrar como na prática do método arqueológico, Michel Foucault pôde estabelecer com o Estruturalismo uma importante interface teórica para a realização de suas pesquisas entre os anos de 1961 e 1969. A partir desse tema, nossa hipótese, é que a participação de Michel Foucault no programa teórico- metodológico estruturalista se dá partir da composição estratégica por parte do filósofo de um método de pesquisa “híbrido”, posto entre o Estruturalismo e a Epistemologia Francesa. Nesse sentido, vamos mostrar como o filósofo se apropriou do programa Estruturalista para lhe conferir uma nova roupagem, uma nova problemática e uma nova perspectiva teórica ao introduzir análises e descrições estruturais no campo da história, convertendo-o ao método arqueológico identificando a primeira fase da obra de Michel Foucault. Seguramente, um dos maiores desafios que os escritos arqueológicos oferecem tanto aos leitores como aos comentadores dos trabalhos de Michel Foucault se deve à delimitação do universo teórico-metodológico em que esses escritos estiveram inseridos, pois, o Estruturalismo não foi a única referência teórica-metodológica presente durante os escritos arqueológicos de Michel Foucault. Tanto a Fenomenologia, como a Epistemologia também foram personagens teóricos importantes desse momento da produção acadêmica do filósofo. Dessa maneira, para compreendermos os limites da pesquisa e do método arqueológico de Michel Foucault é necessário situar o Estruturalismo como uma importante interface teórica em seus estudos sobre o homem, sobre os saberes e as instituições.1 Contudo a convivência dessas três interfaces do primeiro Foucault não foi homogênea do ponto de vista temporal. Dessa maneira, também será parte de nossos objetivos apresentar como a Arqueologia dos saberes antes de possuir sua interface 1MACHADO, Roberto. Foucault, a Ciência e o Saber. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 2006. DREYFUS, Hubert L.; RABINOW, Paul. Michel Foucault: uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. 13 teórica delimitada pelos procedimentos metodológicos estruturalistas, esteve situada num plano metodológico e conceitual posto pelas problemáticas e questões circunscritas tanto pela Fenomenologia originária com Edmund Husserl, como também pela Epistemologia Francesa de George Canguilhem. Cumpre assinalar que estas últimas, embora sejam temporalmente precedentes à influência do Estruturalismo, entram com este em várias associações que viriam a abrir caminho para a Arqueologia que Foucault assina em nome próprio. No cômputo geral, a Arqueologia de Foucault faz uma combinação original entre balizadores teórico-metodológicos da Epistemologia Francesa e do Estruturalismo, embora também não se identifique plenamente com eles, em detrimento da Fenomenologia. Essa imbricação epistemológica anima a presente tese. * * * As décadas de cinquenta e sessenta do século passado foram marcadas pelo desenvolvimento de um esforço de renovação teórico-metodológico no campo científico originário dos estudos linguísticos do leste europeu; essa renovação epistemológica resultou na formação do paradigma filosófico e científico conhecido principalmente nas disciplinas delimitadas pelas ciências humanas como Estruturalismo, ou melhor, Estruturalismos2. Quando falamos sobre o Estruturalismo a impressão é que estamos nos referindo a algum conceito fechado e bem delimitado, fato que só faz gerar mal- entendidos por se tratar não de uma, mas de um conjunto de práticas metodológicas com inúmeras e diferentes formas de aplicação. A origem histórica do pensamento e do estilo de análise estruturalista pode ser atribuída à disciplina da linguística. De fato, dois momentos devem ser destacados no interior dos estudos linguísticos como “marcadores inaugurais” para a linguística 2FOUCAULT, Michel. Estruturalismo e Pós-Estruturalismo. In: Ditos e Escritos, volume II. Arqueologia das Ciências e História dos Sistemas de Pensamento. Organizado por Manoel Barros da Motta. Rio de Janeiro. Forense Universitária. 3° Edição. 2013. FOUCAULT, Michel. Entrevista com Michel Foucault. In: Ditos e Escritos, volume VII. Arte, Epistemologia, Filosofia e História da Medicina. Organizado por Manoel Barros da Motta. Rio de Janeiro. Forense Universitária. 1ª Edição, 2011. 14 estrutural: as aulas de Ferdinand Saussure compiladas por seus alunos no Curso de Linguística Geral (1916) e os estudos e análises linguísticas desenvolvidas nas escolas de Moscou3 e Praga entre as décadas de 1910 e 1940. De acordo com esses estudos foi possível reconhecer a atividade estruturalista de maneira geral, como um conjunto de práticas metodológicas interessadas em encontrar objetos estruturais4 a partir de “modelos”, “sistemas” e “relações lógicas” que possam apresentar uma organização estruturada do objeto em análise.5 Expliquemos melhor. O Curso de Linguística Geral de Saussure foi reconhecido como o momento de ruptura entre uma linguística pré-científica e uma linguística fundada em hipóteses sustentadas por uma metodologia rigorosa através de uma perspectiva sistêmica (estrutural) sobre a linguagem, isto é, cada signo linguístico possui seu valor não por conter algum valor significativo próprio, para a perspectiva da linguística estrutural o valor do signo linguístico é definido de maneira arbitrária dependendo da relação fonética constituída. Assim, a linguística estrutural representou momento de instauração de uma verdadeira e autônoma ciência do signo.6 Ao tornar-se uma disciplina autônoma a partir de sua perspectiva estruturalista, a linguística colocou seu rigor e sua capacidade de formalização a prova ao servir como programa e método científico “piloto”, isto é, como referência teórico- metodológica para outras ciências humanas, oferecendo às ciências humanas um programa que possa reorganizá-las de maneira comum. Dessa maneira, a linguística estruturalista a partir de sua metodologia e através de sua linguagem forneceu o 3O linguista russo Jakobson por sua vez foi o fundador do círculo linguístico de Moscou em 1915, sua tarefa foi promover e desenvolver estudos científicos sobre a linguística e a poética na Rússia. Foi somente em 1920, em Praga, que Jakobson teve contato com o curso de Saussure, mas a grande e decisiva influência para o desenvolvimento da análise estrutural dos fonemas por Jakobson foi dada pelo príncipe Russo Nicolai Trubetzkoy, estudioso dos fonemas que participou de maneira decisiva da renovação dos estudos da linguística através de uma disciplina científica. CF: DOSSE, François. O Homem-Orquestra. Roman Jakobson. In: História do Estruturalismo: O Campo do Signo. Bauru/SP. EDUSC, 2007. Pag. 53-54,93-100. 4BARTHES, Roland. A Atividade Estruturalista. In: COELHO PRADO, Eduardo. In: “Estruturalismo, Antologia de textos teóricos”. São Paulo. Martins Fontes. 1967. 5DELEUZE, Gilles. Em que se pode Reconhecer o Estruturalismo? CHATELET, François. História da Filosofia: Idéias e Doutrinas, volume 8, O Século XX. São Paulo. Zahar Editora. 1973. COELHO PRADO, Eduardo. “Introdução a um Pensamento Cruel: Estruturas, Estruturalidades e Estruturalismos.” In: “Estruturalismo, Antologia de textos teóricos”. São Paulo. Martins Fontes. 1967. 6GREGOLIM, Maria do Rosário. Foucault e Pêcheux na análise do discurso. Diálogos e Duelos. São Carlos. Claraluz, 2006. 15 fundamento epistemológico para renovação das ciências humanas.7 O Estruturalismo correspondeu justamente a essa generalização no campo das ciências humanas da metodologia desenvolvida na linguística a partir das análises sobre a linguagem postas por Saussure. Por detrás do rótulo Estruturalismo existem diferenças entre procedimentos metodológicos, isto é, diferentes posições teóricas nas disciplinas onde as análises estruturalistas encontraram objetos a serem formalizados. Contudo, também podemos reconhecer características e compromissos essenciais entre os diferentes estruturalismos, por exemplo, na crítica ao projeto filosófico fenomenológico através da ideia de um sujeito soberano como fonte de sentido e a procura por relações entre elementos no interior de um conjunto ou de uma Estrutura lógica.8 Muitos foram os autores identificados e reconhecidos como participantes do programa científico Estruturalista, na sua maioria foram os intelectuais franceses aqueles que ofereceram o maior alcance teórico ao conceito de Estrutura, e consequentemente desenvolveram e introduziram os principais e mais sofisticados métodos de análises estruturalistas nas mais diversas disciplinas científicas.9 As disciplinas que possibilitaram o maior alcance e o maior desenvolvimento teórico metodológico para os métodos estruturalistas nas ciências humanas foram a etnologia, a sociologia a psicanálise e a crítica literária. Por isso, autores como Lévi-Strauss, Louis Althusser, Jaques Lacan e Roland Barthes, tornaram-se durante os anos sessenta de maneira específica aos domínios científicos em que produziam seus trabalhos, ícones e verdadeiras personificações do pensamento e do programa estruturalista. Dessa maneira, a primeira etapa de nossa pesquisa será caracterizar o Estruturalismo através de uma perspectiva teórico-conceitual, para mostrarmos como o programa estruturalista representou entre as décadas de cinquenta e oitenta um grande conjunto de diferentes procedimentos teóricos-metodológicos, cada qual com sua própria linguagem, estratégias metodológicas, perspectivas teóricas e objetos, que, no entanto, 7STRAUSS, Claude Lévi. A Análise Estrutural em Linguística e Linguística e Antropologia. In: Antropologia Estrutural. São Paulo. Cosac Naify, 2008. p. 57-86. E p. 103-123. 8FOUCAULT, Michel. Entrevista com Michel Foucault. In: Ditos e Escritos, volume VII. Arte, Epistemologia, Filosofia e História da Medicina. Organizado por Manoel Barros da Motta. Rio de Janeiro. Forense Universitária. 1ª Edição, 2011. p. 159. 9DELEUZE, Gilles. Em que se pode Reconhecer o Estruturalismo? CHATELET, François. História da Filosofia: Ideias e Doutrinas, volume 8, O Século XX. São Paulo. Zahar Editora. 1973. E também com: COELHO PRADO, Eduardo. “Introdução a um Pensamento Cruel: Estruturas, Estruturalidades e Estruturalismos.” In: “Estruturalismo, Antologia de textos teóricos”. São Paulo. Martins Fontes, 1967. 16 não deixou de apresentar pontos em comum. Assim, não foi com exagero quando em 1967 no auge do desenvolvimento das análises estruturais, e logo após a publicação de As Palavras e as Coisas, lida como mais uma dentre as muitas pesquisas estruturalistas do período, Foucault reconheceu que “não pode haver uma teoria geral para o Estruturalismo. Apenas se podem indicar obras que em comum provocaram modificações teóricas importantes em alguns domínios. ”10 Essa posição de Foucault é de importância central para esta tese, pois para Foucault “não pode haver uma teoria geral para o Estruturalismo”, então, com que variedade ou variedades de Estruturalismo Foucault adota a sua posição? E, afinal, que tipo de Estruturalismo ele converte para tornar-se aliado da Arqueologia? Essa tese situa-se em uma delimitação cronológica que diz respeito a periodização que une obra de Foucault e o movimento intelectual do Estruturalismo. Entre as décadas de 1950 e 1980, paralelo ao surgimento, desenvolvimento e descenso do Estruturalismo Michel Foucault escreveu sua obra. Seu pensamento e seus escritos podem ser conhecidos no interior de um período histórico de trinta anos, e costuma ser dividido por seus comentadores e leitores em três fases ou eixos de problematizações: eixo do saber, composto pela protoarqueologia e pela arqueologia dos saberes durante os anos sessenta, o eixo do poder, composto pelos estudos genealógicos ou “estudos sobre as relações de poder” durante os anos setenta, e o eixo da ética, composto pelos estudos sobre a subjetividade e relativos a uma ética de si, chamado por estética da existência no início dos anos oitenta11. Essa divisão não implica na existência de uma completa diferença ou ruptura entre as fases do trabalho de Foucault, de fato, houve por um lado uma extensão de seus objetos, temas, questões, argumentos e referências teóricas e, por outro lado, o filósofo desenvolveu durante o transcorrer de seus estudos a reorganização e a adequação dos procedimentos metodológicos utilizados para realizar novas pesquisas. Mas para o desenvolvimento de nosso estudo estabelecer essa divisão será vantajoso, pois nossa hipótese de pesquisa, isto é, o reconhecimento de um momento estruturalista nos escritos 10FOUCAULT, Michel. A Filosofia Estruturalista Permite Diagnosticar o que É “a Atualidade”. In: Ditos e Escritos, volume II. Arqueologia das Ciências e História dos Sistemas de Pensamento. Organizado por Manoel Barros da Motta. Rio de Janeiro. Forense Universitária. 3ª Edição, 2013. p.62. 11Cf. FOUCAULT, Michel. O que são as Luzes? In: Ditos e Escritos, volume II. Arqueologia das Ciências e História dos Sistemas de Pensamento. Organizado por Manoel Barros da Motta. Rio de Janeiro. Forense Universitária. 3ª Edição, 2013. p.350. 17 de Michel Foucault só pode ser delimitado como um objeto de pesquisa em razão do contexto histórico de aparecimento e desenvolvimentos dessas pesquisas nos anos sessenta e pelo teor de alguns procedimentos metodológicos reconhecidos e identificados como estruturalistas presente somente nos escritos arqueológicos. Comentadores como Roberto Machado, Marcos Nalli, Dreyfus e Rabinow apontaram que durante a prática do método arqueológico as interfaces teóricas de sua pesquisa foram muito vastas, sendo delimitada entre campos teóricos-metodológicos como: a Fenomenologia, a Epistemologia e o Estruturalismo.12 Dessa maneira, para compreendermos os limites de sua pesquisa desenvolvida com o método arqueológico é necessário situar essas três correntes do pensamento filosófico e científico como os fundamentos metodológicos e interfaces teóricas pelas quais o filósofo pôde sustentar seus estudos arqueológicos sobre os discursos que constituíram o homem, os saberes e as instituições. Assim, a hipótese sobre um momento estruturalista nos escritos de Michel Foucault para o qual concorrem a Epistemologia Francesa e a Fenomenologia com pesos e sentidos diversos, deve ser reconhecida de maneira específica no conjunto geral de sua obra. Além disso, a emergência da pesquisa arqueológica a partir dos diversos estruturalismos requer a delimitação de critérios formais que revelam “marcadores” que aparecem momentaneamente em seus escritos como: linguagem13, referência 12MACHADO, Roberto. Foucault, a Ciência e o Saber. Rio de Janeiro. Zahar Editora, 2006. DREYFUS, Hubert L.; RABINOW, Paul. Michel Foucault: uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. NALLI, Marcos. Foucault e a Fenomenologia. São Paulo: Loyola, 2006. 13DELEUZE, Gilles. Em que se pode Reconhecer o Estruturalismo? CHATELET, François. História da Filosofia: Ideias e Doutrinas, volume 8, O Século XX. São Paulo. Zahar Editora, 1973. 18 metodológica14 e a introdução de conceitos teóricos15, e que depois irão desaparecer conforme os rumos de sua trajetória de pesquisa. * * * No início dos anos cinquenta após receber sua licenciatura como filósofo e psicólogo, Michel Foucault trabalhou como estagiário no hospital psiquiátrico, seus primeiros escritos datam desse momento e foram reconhecidos como escritos protoarqueológicos16. Durante os primeiros anos de sua carreira Foucault esteve influenciado pela fenomenologia existencial, a partir dos ensinamentos de seus professores a respeito dos problemas filosóficos postos pela Fenomenologia, sobretudo aquela ligada ao psiquiatra suíço Ludwig Binswanger, nesse período entre os anos cinquenta Michel Foucault realizou suas primeiras reflexões e escreveu seus primeiros 14Em 1978 numa conferência no Japão, Foucault afirmou ter utilizado em História da Loucura e em As Palavras e as Coisas de um “método estruturalista” para mostrar os discursos que são rejeitados e excluídos numa sociedade. De acordo com o filósofo, seu método assemelhou-se em termos de análise e procedimentos descritivos aos discursos do método estruturalista utilizado por Lévi-Strauss em seus estudos etnológicos. Dessa maneira, o interesse de Foucault foi mostrar a estrutura negativa presente em toda sociedade e em toda cultura, “Ora, nestes últimos anos, em etnologia, Lévi-Strauss explorou um método que permite esclarecer a cultura negativa em toda sociedade e em toda cultura. (...). Para mim tratava-se, então não mais de saber o que é afirmado e valorizado em uma sociedade ou em um sistema de pensamento, mas de estudar o que é rejeitado e excluído. Eu me contentei em utilizar um método de trabalho que já era conhecido em etnologia.” Cf: FOUCAULT, Michel. A Loucura e a Sociedade. In: Ditos e Escritos, volume I. 3ª Edição. Problematização do Sujeito: Psicologia, Psiquiatria e Psicanálise. Organizado por Manoel Barros da Motta. Rio de Janeiro. Forense Universitária. 3ª Edição, 2014. 15Numa entrevista de 1961, Foucault respondeu questões sobre sua trajetória intelectual até então, sobre a metodologia empregada em História da Loucura e sobre suas influencias teóricas. De maneira surpreendente, Foucault atribui a noção de Estruturas de Experiência desenvolvidas nos trabalhos de Dumézil sobre mitologia como sua referência teórica. O filósofo afirmou ter utilizado essa mesma noção em seu livro sobre a loucura. “Como um historiador das religiões pôde inspirar um trabalho sobre a história da loucura? – Por sua ideia de estrutura. Tal como Dumézil o faz para os mitos, tentei descobrir formas estruturadas de experiência cujo esquema pudesse ser encontrado, com modificações, em níveis diversos. ” Cf: FOUCAULT, Michel. A Loucura Só Existe em uma Sociedade. In: Ditos e Escritos, volume I. 3ª Edição. Problematização do Sujeito: Psicologia, Psiquiatria e Psicanálise. Organizado por Manoel Barros da Motta. Rio de Janeiro. Forense Universitária. 3ª Edição, 2014. 16FOUCAULT, Michel. O que é o Senhor, Professor Foucault? In: Ditos e Escritos, volume X. Filosofia, Diagnóstico do Presente e Verdade. Organizado por Manoel Barros da Motta. Rio de Janeiro. Forense Universitária. 1ª Edição, 2014. p. 30-31. NALLI, Marcos. Foucault e a Fenomenologia. São Paulo: Loyola, 2006. 19 textos17. O teor fenomenológico desta linha de força do pensamento foucaultiano nesse momento inicial de seus escritos foi delimitado por conceitos como sentido, significação e sujeito. Michel Foucault, durante a fase de seus escritos protoarqueológicos publicou seu primeiro livro “Doença Mental e Personalidade”, (livro republicado em 1962 com o título Doença Mental e Psicologia), além de outros importantes textos como a extensa “Introdução” (1954) à tradução francesa de “O sonho e a Existência” de Ludwig Binswanger, e “A psicologia científica de 1850 a 1950”. O tema central desses primeiros escritos remonta ao mal-estar com relação ao status e prática científica da psicologia e da psiquiatria no século XX, essas reflexões “protoarqueológicas” sobre temas relativos ao campo científico da psicologia forneceram a Foucault certos problemas a serem pensados posteriormente durante seus estudos arqueológicos. Durante a pesquisa arqueológica entre os anos sessenta (1961-1969) Michel Foucault publicou seis livros, sendo um dentre esses seis uma republicação de um texto pretérito18: História da Loucura em 1961, Doença Mental e Psicologia (1962), O Nascimento da Clínica (1963), Raymond Roussel (1963), As Palavras e as Coisas (1966) e A Arqueologia do Saber (1969). Todos esses livros formam o conjunto de pesquisas cuja referência teórico-metodológica ficou conhecida como arqueologia dos saberes. Devem ser somados a esses livros uma grande quantidade de textos19 complementares e explicativos sobre seu pensamento e seus escritos nesse período, merecendo ser destacado os textos “Resposta a uma Questão” (1968), “Resposta ao Círculo de Epistemologia” (1968) e “O que é um autor? (1969) ”. Todos publicados durante a década de sessenta relativos aos temas sobre sua metodologia e sobre seu interesse de pesquisa pelo saber. O eixo do saber (protoarqueologia e arqueologia) constituiu o primeiro núcleo de problematizações e reflexões realizadas por Foucault. De fato, o termo saber corresponde a uma noção conceitual de apropriação foucaultiana, pois o saber não delimita um campo científico disciplinar como a psiquiatria, a medicina, a economia e a botânica. De acordo com Foucault a noção de saber é fundamentada por um conjunto de 17FOUCAULT, Michel. Cronologia. In: Ditos e Escritos, volume I. 3ª Edição. Problematização do Sujeito: Psicologia, Psiquiatria e Psicanálise. Organizado por Manoel Barros da Motta. Rio de Janeiro. Forense Universitária. 3ª Edição, 2014. 18Doença Mental e Psicologia de 1962 na verdade é uma republicação de um livro de 1954 intitulado, Doença Mental e Personalidade. Cf: CASTRO. Edgardo. Introdução a Foucault. Belo Horizonte: Autêntica, 2014. 19Esses textos podem ser encontrados na coleção Ditos e Escritos. 20 discursos localizados em domínios como a filosofia, as artes, a literatura, a política e a ciência, ou seja, o saber corresponde a uma região mais ampla que aquela delimitada pelas ciências. Assim, a noção de saber representa um fenômeno prático-discursivo anterior e mais fundamental que a ciência, sendo o saber na perspectiva de Foucault, o “tecido de relações discursivas”, dentre as quais, a ciência representa uma forma de “arranjo prático- discursivo” sobre algum saber em determinado período histórico20. Essas condições históricas de possibilidade, ou melhor, de realidade para o aparecimento dos discursos sobre os saberes foram tematizadas pela abordagem arqueológica como externas ao sujeito, como também, com relação a algum tipo de discurso com pretensão a uma natureza epistemológica dita verdadeira como no caso das ciências. Essa distinção é importante de ser delimitada, visto que os procedimentos teóricos-metodológicos utilizados durante a pesquisa arqueológica “ganharam certa distância” em relação à Epistemologia Francesa, justamente pela diferença de tratamento relativo à racionalidade do discurso científico e não científico. Dessa maneira, a partir de seu método arqueológico diferente do que faz um epistemólogo, Michel Foucault ocupou- se em conhecer e descrever as condições históricas em que se encontram as regras que organizam as práticas-discursivas sobre os saberes modernos, deixando de lado, dessa forma, o interesse pela “causalidade lógica” sobre o aparecimento dos saberes, isto é, o seu valor epistemológico no que se refere ao dizer verdadeiro-científico, temática comum aos estudos da Epistemologia Francesa.21 20FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro. Forense Universitária, 2007. 21Roberto Machado dedicou-se em: Foucault, a Ciência e o Saber, a mostrar as diferenças formais entre a carga teórico-metodológica dos estudos epistemológicos e dos estudos arqueológicos. Cf: MACHADO, Roberto. Foucault, a Ciência e o Saber. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006. De acordo com Rabinow e Dreyfus, “a arqueologia correspondeu a tentativa de estudar a “estrutura” dos discursos das várias disciplinas que enunciaram teorias sobre a sociedade, o indivíduo e a linguagem, para desenvolver esse empreendimento científico, Foucault procurou isolar e descrever os sistemas de saber subjacentes a diferentes períodos históricos”. Cf: DREYFUS, Hubert L.; RABINOW, Paul. Michel Foucault: uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. 21 Ainda nos anos sessenta junto aos temas relativos ao saber, Foucault também escreveu sobre temas literários como linguagem22 e literatura23, através de um interesse pelas problemáticas postas por esses temas, como a figura e a função do autor, a noção de obra, distinção entre razão e loucura a partir da escrita literária, e principalmente, a dissolução do sujeito e da noção de identidade literária ofertada pelo conceito de “obra”. Esses textos revelam um interesse de pesquisa complementar aos estudos arqueológicos ao menos e um ponto; a contestação pela via literária da teoria do sujeito fenomenológico e marxista.24 Em sua aula inaugural no Collège de France (A ordem do discurso, 1970), Foucault realiza os primeiros movimentos para estabelecer a genealogia como seu método de pesquisa ao lado da arqueologia, mas muitos comentadores do trabalho de Foucault também consideram o texto intitulado “Nietzsche, a genealogia e a história” datado de 1971, como o “marco literário inaugural” deste deslocamento no pensamento e nos escritos foucaultianos. Se durante a fase arqueológica Foucault estudou os regimes e as práticas discursivas que constituem os saberes, durante sua pesquisa genealógica entre os anos setenta, em complemento à sua fase arqueológica o filósofo dedicou-se a conhecer as práticas não-discursivas ou “práticas de poder” que constituem as práticas- discursivas. 22Ao consultarmos o livro, Vocabulário Foucault (2004) de Edgardo Castro, podemos encontrar no verbete linguagem, o significado de uma intensa problemática desenvolvida durante a obra de Michel Foucault. De acordo com Castro, a linguagem foi sem dúvida um dos tópicos fundamentais da reflexão filosófica em, As Palavras e as Coisas, mas indo além da relevância do tema para o livro de 1966, a própria arqueologia enquanto método, constitui-se como método histórico para a descrição das diferentes organizações da linguagem, ao nível do que foi denominado por Michel Foucault por enunciados, em uma microescala, e episteme, numa macroescala. Cf: CASTRO, Edgardo. Vocabulário de Foucault. Belo Horizonte: Autentica, 2004. p. 251. 23Podemos citar o livro publicado em 1963, dedicado ao escritor, Raymond Roussel, cujo título é homônimo, e também por outros diversos textos escritos durante os anos sessenta, dentre esses textos vale destacar: O que é um autor? O pensamento Exterior, Prefácio à Transgressão, Linguagem ao Infinito, Isto não é um cachimbo, Debate sobre o Romance. Todos esses textos podem ser consultados na coleção Ditos e Escritos, e estão reunidos no terceiro volume da edição brasileira. Cf: FOUCAULT, Michel. In: Ditos e Escritos, volume III. Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema. Organizado por Manoel Barros da Motta. Rio de Janeiro. Forense Universitária, 3ª Edição, 2013. Também merece ser colocado nessa seção de textos sobre literatura e linguagem, o livro: As Palavras e as Coisas, que tem como um de seus principais personagens as possibilidades epistêmicas que resultam em transformações da linguagem, como também o papel da literatura na formação do espaço de organização dos saberes. 24FOUCAULT, Michel. O que é o Senhor, Professor Foucault? In: Ditos e Escritos, volume X. Filosofia, Diagnóstico do Presente e Verdade. Organizado por Manoel Barros da Motta. Rio de Janeiro. Forense Universitária. 1ª Edição, 2014. 22 As práticas não-discursivas são justamente as práticas geradoras de discursos sobre a verdade, por isso pode-se dizer genericamente que a pesquisa genealógica procurou conhecer as estratégias e relações de poder para o surgimento e o funcionamento dos discursos com pretensão à verdade. O poder deve produzir o saber e vice-versa, para o filósofo existe uma relação íntima entre saber e poder: “não há relação de poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder”25. Durante a fase genealógica podemos encontrar nos textos de Michel Foucault um filósofo preocupado com problemas da individualização, normalização, disciplinarização e a constituição simultânea de saberes e poderes controladores da subjetividade do indivíduo moderno, este foi o tema de sua obra mais influente durante essa fase de suas pesquisas, Vigiar e Punir: O Nascimento da Prisão (1975). De maneira geral, os resultados de suas descrições nesse livro mostraram o desenvolvimento de técnicas de dominação social institucionais postas por estratégias punitivas, mecanismos e dispositivos reguladores e controladores como hospitais, escolas, prisões, fábricas e quartéis, todas estas instituições marcadas pela capacidade de “disciplinarização dócil” da sociedade. Foucault descreveu em Vigiar e Punir e em História da sexualidade I: A Vontade de Saber, respectivamente, os dispositivos disciplinares e o dispositivo da sexualidade que surgiram no final do século XVIII. Isto é, através de suas descrições discursivas o filósofo mostrou uma série de práticas (discursivas e não-discursivas) que surgem, se relacionam e constituem um quadro ou um determinado conjunto de relações de poder-saber. A partir da genealogia, apesar de ocorrerem deslocamentos teóricos- metodológicos que permitem problematizar mais adequadamente as relações de poder, não existe novidade no período histórico investigado (modernidade) e na escrita, isto é, com relação a forma de exposição das pesquisas arqueológicas. História da Sexualidade I: A Vontade de Saber (1976) é outro importante livro realizado pelos estudos genealógicos, Foucault ampliou e desenvolveu sua compreensão sobre o que é, e quais são práticas para o exercício de funcionamento do poder, temática que já havia sido posta em Vigiar e Punir e em outros cursos ministrados no Collège de France durante os anos setenta. 25FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir, o Nascimento da Prisão. Petrópolis: Vozes. 2003. p. 27. 23 Ainda que possa parecer a princípio enganosamente fácil de ler, História da Sexualidade é uma obra densa e que requer certa bagam conceitual para ser compreendida, pois foi com esse trabalho que Foucault apresentou noções conceituais até então nunca ditas e desenvolveu temáticas que renovaram o debate sobre temas tradicionais para as ciências humanas. Dessa maneira, noções como poder (Biopoder), e exercício do poder pelo Estado (Governamentalidade), além das mais diversas abordagens sobre relações sociais-institucionais modernas receberam com os estudos genealógicos perspectivas que modificaram profundamente o sentido tradicional dessas noções. Razão pela qual conceitos como: A microfísica do poder e a Biopolítica, consagraram sua obra entre os estudos políticos, econômicos, sociológicos, jurídicos e históricos.26 O último eixo do pensamento foucaultiano pode ser delimitado a partir da segunda metade da década de 1970 e se encerra sem completar seu programa com o falecimento de Foucault em 1984. O conjunto de seus escritos nesse período foi constituído pelos cursos ministrados no Collège de France, e pelo segundo e terceiro volumes de História da sexualidade denominados respectivamente O uso dos prazeres e O cuidado de si, ambos publicados pela primeira vez em 1984. A última fase do pensamento e dos escritos de Michel Foucault foi caracterizada por seus estudos éticos e de subjetivação de si conhecida como Estética da Existência. Nessa etapa de seu pensamento e de seus escritos nota-se uma mudança de trajetória para seus estudos, a problemática arque-genealógica posta pela relação saber- poder passa a ser acompanhada nesse momento de sua pesquisa por um interesse sobre as práticas que constituem historicamente a subjetividade dos sujeitos. O que esteve em questão no eixo da ética foram as práticas que os indivíduos encontram em sua cultura e que lhes permitem constituírem a si mesmos como sujeitos morais. O estilo linguístico e narrativo desses últimos livros de Michel Foucault é muito diferente daquele do início de sua obra, o período histórico descrito e analisado na última fase de seus escritos também muda, todos os seus escritos arqueológicos e genealógicos foram feitos sobre o período moderno, mas seus últimos livros foram dedicados a estudos da antiguidade grega e romana. O interesse geral dessas investigações 26RAMOS, Igor Guedes. GENEALOGIA DE UMA OPERAÇÃO HISTORIOGRÁFICA: as apropriações dos pensamentos de Edward Palmer Thompson e de Michel Foucault pelos historiadores brasileiros na década de 1980. Tese apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista para a obtenção do título de Doutor em História (Área de Conhecimento: História e Sociedade), 2014. p. 126-129. 24 recai sobre a maneira como a sexualidade constituiu um domínio moral e pôde ser problematizada como uma questão moral na construção e na condução de si.27 * * * Como mostramos o pensamento e o interesse teórico-metodológico de Michel Foucault ao escrever seus textos esteve em constante movimento e transformação, ao conhecermos a trajetória e o percurso de seu pensamento, e principalmente, ao lermos seus escritos, a impressão que temos é que não nos foi revelado um autor, mas vários, isto é, os escritos do filósofo mostram um pensador que contrariou a necessidade de seguir uma tradição ou corrente filosófica. Contudo, nos parece certo que em meio a esse deslocamento de sua trajetória de pesquisa podemos localizar um momento estruturalista em meio a seus escritos arqueológicos. Dessa forma, nosso estudo justifica-se em desenvolver e mostrar a hipótese sobre a existência de uma interface teórica entre a pesquisa arqueológica de Michel Foucault e o Estruturalismo marcando um momento estruturalista em seus escritos Michel Foucault em diversas oportunidade posicionando-se com relação a esse debate, não negou os pontos em comum entre seu método e o Estruturalismo. Mais do que isso, reforçou a inserção de seu método e de seus escritos se não em alguma específica corrente estruturalista, ao menos no quadro de transformação e renovação teórico-metodológico experimentado pelas ciências humanas e motivado pelo estruturalismo.28 De maneira geral as possíveis relações apontadas29 entre suas descrições arqueológicas e as análises estruturalistas foram feitas a partir de dois pontos em comuns: a recusa ao discurso antropológico e fenomenológico posto por noções como a de sujeito, 27OKSALA, Johanna. Como ler Foucault. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2011. p. 118-119. 28FOUCAULT, Michel. Entrevista com Michel Foucault. In: Ditos e Escritos, volume VII. Arte, Epistemologia, Filosofia e História da Medicina. Organizado por Manoel Barros da Motta. Rio de Janeiro. Forense Universitária. 1ª Edição, 2011. FOUCAULT, Michel. A Filosofia Estruturalista Permite Diagnosticar o que É “a Atualidade”. In: Ditos e Escritos, volume II. Arqueologia das Ciências e História dos Sistemas de Pensamento. Organizado por Manoel Barros da Motta. Rio de Janeiro. Forense Universitária. 3ª Edição, 2013. 29DREYFUS, Hubert L.; RABINOW, Paul. Michel Foucault: uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. 25 sentido e significação, e pela presença de uma análise descritiva sobre as regras e condições de realidade para os discursos.30 Todavia, talvez a principal característica para alinhar a pesquisa arqueológica ao Estruturalismo tenha sido reconhecida nas análises de Rabinow e Dreyfus. De acordo com estes, antes de se iniciar qualquer análise dos escritos de Foucault deve-se estar atento que para o arqueólogo, “diante de todo tipo de discurso e de saber, especialmente diante do seu próprio, ele se posiciona com o mesmo distanciamento da verdade e do sentido”31, atitude teórica-metodológica típica entre os pesquisadores reconhecidos como estruturalistas. Durante os anos sessenta Michel Foucault desenvolveu sua pesquisa arqueológica através da apropriação de uma “linguagem estruturalista”, conceitos como Episteme, Estruturas de Experiência, Formação Discursiva foram recebidos por parte da inteligência francesa como sendo a demonstração clara da adesão do filósofo para com os procedimentos teóricos-metodológico estruturalistas. Fato é, que seu pensamento e seus escritos estiveram inseridos num conjunto de pesquisas e debates que transformaram e modificaram os rumos do pensamento científico e filosófico francês. A relação de Michel Foucault com Estruturalismo foi polêmica e conflituosa, marcada pela identificação com diferentes posições sobre sua participação nesse programa durante a criação de sua obra. Ao mesmo tempo em que foi possível encontrarmos um filósofo interessado em “introduzir análises estruturais sobre regimes históricos de racionalidade”, também encontramos em textos pós anos setenta um Michel Foucault reativo, e totalmente contrário a qualquer identificação entre seus escritos e os métodos estruturalistas, chegando mesmo a negar qualquer relação de seu trabalho com o Estruturalismo.32 Inclusive deve ser mencionado que em diversas entrevistas Foucault afirmou nunca ter sido um pensador Estruturalista, e nem ter se utilizado de nenhum conceito relativo a noção de Estrutura em seus escritos. Contudo, negar ou negligenciar a influência e apropriação nos escritos arqueológicos de Michel Foucault referentes a utilização de procedimentos teóricos- 30Michel Foucault chamou de “a priori histórico” essas regras que determinam as condições de possibilidade para o discurso. Cf: FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. 31DREYFUS, Hubert L.; RABINOW, Paul. Michel Foucault: uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. p. XVIII. 32FOUCAULT, Michel. Conversa com Michel Foucault. In: Ditos e Escritos, volume VI. Repensar à Política. Organizado por Manoel Barros da Motta. Rio de Janeiro. Forense Universitária. 1ª Edição, 2013. 26 metodológicos estruturalistas, tendo por referência algumas declarações informais onde o filósofo se mostrou contrário à sua utilização desses procedimentos, no mínimo corresponde a uma compreensão lacunar e deficitária sobre um momento específico de seu pensamento e seu trabalho. O reconhecimento, a descrição, e a caracterização do estruturalismo como interface teórica-metodológica durante a pesquisa arqueológica de Michel Foucault foi tema de alguns estudos realizados por comentadores de seu pensamento e de seus escritos, dentre as principais referências podemos considerar os trabalhos de Gilles Deleuze, François Dosse, Paul Rabinow e Hubert Dreyfus, Manfred Frank e Allain Meggeil. Esses autores são exemplos de comentadores que contribuíram para a realização de nossa pesquisa ao nos fornecerem uma rica fonte de informações, a qual, somada à leitura e análise dos textos arqueológicos de Foucault possibilitam a continuidade e o prolongamento de estudos que buscam demarcar um recorte entre seus escritos arqueológicos e o Estruturalismo. No desenvolvimento da presente tese nos interessou compreender e mostrar tanto um Michel Foucault participante do Estruturalismo ao introduzir um estilo específico de análise estrutural, como também um Michel Foucault comentador do estruturalismo ao discutir a origem, os fundamentos epistemológicos e políticos e o alcance teórico metodológico do programa estrutural. Para atendermos às necessidades de exposição dessa temática houve necessidade de alguns cuidados e esclarecimentos conceituais com relação aos conteúdos que se desdobram e oferecem conjunto ao nosso tema. Dessa forma, essa tese foi estruturada em três capítulos e subcapítulos que estabelecem ressonâncias teóricas compondo um conjunto que parte de uma perspectiva abrangente em direção a especificidade de nosso objeto. Essa divisão foi estabelecida com a intenção de partir de um plano teórico geral sobre o Estruturalismo chegando até o limite da prática de um estilo de análise estruturalista desenvolvida durante a pesquisa arqueológica de Michel Foucault. * * * 27 No primeiro capítulo tendo como referência bibliográfica central uma releitura do texto de Gilles Deleuze, Em que se pode reconhecer o Estruturalismo?33 É nosso objetivo mostrar através da delimitação de Deleuze os critérios formais de reconhecimento da prática do método estrutural em diferentes autores, e como os conceitos de Estrutura e Estruturalismo representaram um momento da história intelectual francesa. Dessa forma vamos delimitar o surgimento e o desenvolvimento do Estruturalismo como uma forma de linguagem e pensamento possíveis pela diferença e variedade de perspectivas teóricas-metodológicas, e não pela identidade e unidade quanto à prática das pesquisas estruturais. Os critérios de reconhecimento do estruturalismo foram apontados com a intenção de afirmar as diferenças internas que constituem o pensamento estruturalista a partir da seleção de um grupo de autores34 com destaque e prestígio acadêmico entre os anos cinquenta e sessenta do século passado. Vamos apresentar o Estruturalismo como a consciência crítica de uma época e como a expressão de uma vontade emancipadora das ciências humanas, isto é, a busca pela autonomia do campo científico perseguida pelas ciências humanas e obtida através do alcance de sua maturidade epistemológica com o resultado do sucesso e da grande ramificação das análises estruturais nas mais diversas disciplinas. Dos sete critérios reconhecidos por Deleuze para classificar as variedades de Estruturalismo escolhemos três: o simbólico, o sentido de posição, e as relações entre elementos.35 Nos anos em que o Estruturalismo alcançou seu maior prestígio, toda a epistemologia científica qualificada como legítima procurou lançar um olhar de procura por Estruturas simbólicas, inconscientes e relacionais nos mais diversos aspectos da realidade social humana. As razões desse êxito dependeram essencialmente do fato do Estruturalismo se apresentar como método rigoroso que poderia tornar as ciências humanas tão sofisticadas e precisa como as ciências exatas e naturais, assim esperava-se 33DELEUZE, Gilles. Em que se pode Reconhecer o Estruturalismo? In: CHATELET, François. História da Filosofia: Ideias e Doutrinas, volume 8, O Século XX. São Paulo. Jorge Zahar Editora, 1973. 34Dentre esses autores que irão figurar em seu texto, temos Lévi-Strauss, que inclusive é o mais citado, Roland Barthes, Louis Althusser e seu grupo, Jaques Lacan e Michel Foucault. 35DELEUZE, Gilles. Em que se pode Reconhecer o Estruturalismo? In: CHATELET, François. História da Filosofia: Ideias e Doutrinas, volume 8, O Século XX. São Paulo. Jorge Zahar Editora, 1973. 28 com o Estruturalismo o alcance de progressos decisivos para os rumos das ciências humanas. O segundo capítulo dedica-se ao estudo sobre a trajetória intelectual de Michel Foucault desde sua formação acadêmica no início dos anos cinquenta marcada pela presença da Fenomenologia, até sua abrupta ruptura com essa corrente filosófica já no final da década de cinquenta e início dos anos sessenta e que resultou em sua aproximação junto aos estudos estruturalistas e epistemológicos. No segundo capítulo faz-se um breve estudo sobre a presença da Fenomenologia no pensamento e nos primeiros escritos de Foucault, momento conhecido no interior de sua obra como “protoarqueológico”. Mostramos como o pensamento fenomenológico, cuja origem remonta à obra de Edmund Husserl, foi posto através de um interesse na renovação do pensamento filosófico e científico a partir da busca pelo rigor sobre a validade e legitimidade do conhecimento científico e filosófico. O legado fenomenológico de Husserl chegou à França sendo absorvido e disseminado com os escritos de Jean-Paul Sartre e Maurice Merleau-Ponty. Ambos os filósofos desenvolveram apropriações específicas sobre as formulações fenomenológicas de Husserl. Foi diante desse ambiente intelectual e desse cenário acadêmico que Michel Foucault obteve sua formação intelectual na passagem dos anos quarenta para os anos cinquenta licenciando-se em filosofia e psicologia. Foi através da articulação teórica entre essas duas disciplinas que Foucault deu início as problemáticas que iriam nortear seus primeiros estudos fenomenológicos em tornos de questões sobre o sentido e a significação. Após mostrarmos o breve momento fenomenológico de Michel Foucault, centramos nosso estudo na migração teórica de sua posição no campo intelectual em direção aos estudos estruturalistas e epistemológicos. Partimos do princípio que o mote estruturalista de Michel Foucault num primeiro momento correspondeu a uma maneira de afastar qualquer associação de seus escritos com a tradição fenomenológica. Assim, foi com a composição de um novo híbrido teórico-metodológico que o filósofo desenvolveu suas histórias arqueológicas nos anos sessenta e passou principalmente a partir de 1966 com o lançamento de As Palavras e as Coisas, a ser reconhecido como um intelectual estruturalista. Contudo, seria simplificar demais essa migração afirmar que Foucault simplesmente saiu de um ambiente filosófico em direção a outro. Para darmos 29 consistência argumentativa ao nosso estudo foi preciso mostrarmos como a influência da História das ciências, mais especificamente como a contribuição de George Canguilhem desempenhou papel fundamental nessa conversão teórico-metodológica, resultando num método para descrições discursivas históricas-estruturais sobre o aparecimento dos saberes. É a contribuição da História das Ciências de Canguilhem que constitui o contrapeso do Estruturalismo na “trajetória” teórica-metodológica em direção à Arqueologia. Essa linha de força insere-se dentro de um campo mais amplo que descreveremos com o nome de Epistemologia Francesa. No terceiro capítulo é nosso objetivo mostrar a partir de um estudo sobre As Palavras e as Coisas, o estilo e o alcance teórico-metodológico das análises histórico- estruturais desenvolvidas por Michel Foucault durante a prática de sua arqueologia dos saberes. O fio condutor para o reconhecimento da prática de um estilo de estruturalismo por Michel Foucault em As Palavras e as Coisas, centra-se no estudo do conceito de Episteme. Com esse conceito Foucault pôde desenvolver um estilo de Estruturalismo que não se furtou a introdução de uma análise do tipo estruturalista como aquela originária na linguística estrutural, mais precisamente pela herança conceitual legada pelo curso de Saussure. Assim, a partir de uma descrição histórica sobre os limites epistemológicos das relações discursivas internas a três diferentes Epistemes, Foucault desenvolveu um estilo próprio de Estruturalismo que não propôs a revelação de Estruturas universais que determinam as formas de saber, mas a existência de um A Priori Histórico. Ou seja, de condições históricas de possibilidade que permitem o aparecimento das regras que organizam e oferecem uma ordem para as relações discursivas e a consequente acomodação dos saberes dentro de limites conceituais. Além da apresentação de um Foucault estruturalista a partir de um horizonte teórico-metodológico que disponibilizou ao filósofo uma linguagem conceitual e procedimentos metodológicos para sua prática de pesquisa, também vamos mostrar como o Estruturalismo constitui um dos objetos da pesquisa do filósofo desenvolvida em As Palavras e as Coisas. Dessa forma o debate sobre a participação de Michel Foucault na aventura estruturalista ganha uma dimensão dupla, pois ao mesmo tempo que a linguagem obtida com o objeto Episteme serviu ao filósofo como campo teórico para suas pesquisas, encontramos nas descrições arqueológicas do filósofo uma problemática que converte o Estruturalismo em objeto histórico da análise estruturalista, correspondendo à última 30 etapa e ponto de chegada, na segunda metade do século XX, da Episteme moderna que se configura a partir do final do século XVIII. * * * Para levarmos a cabo nossa pesquisa delimitamos como fonte bibliográfica primária tanto os livros escritos durante o período da chamada Arqueologia dos Saberes como: A História da Loucura (1961), O Nascimento da Clínica (1963), As Palavras e as Coisas (1966) e claro, A Arqueologia do Saber (1969). Também foram trabalhados como fontes primárias para nossa pesquisa os textos escritos durante os anos sessenta no intervalo das obras arqueológicas do filósofo, assim, optamos por explorar na coleção Ditos e Escritos todos os textos do período que correspondem às publicações na década de sessenta e início dos anos setenta em que o tema ou o verbete Estruturalismo foi abordado e desenvolvido por Michel Foucault. É importante deixar claro que os escritos foucaultianos durante o período arqueológico além de compor parte essencial de nossa grade de leitura como fonte documental para a pesquisa, também foram nossos objetos nessa tese, visto que nossa hipótese procura mostrar específica presença de um estilo de estruturalismo nos escritos arqueológicos do filósofo. As referências bibliográficas fornecidas por comentadores como Deleuze, Roberto Machado, Edgardo Castro, Paul Veyne, Judith Revel, Paul Rabinow e Hubert Dreyfus sobre o pensamento e os escritos de Michel Foucault também foram analisadas e utilizadas como complemento para nossa pesquisa, além de possibilitarem uma amplitude conceitual para nossa leitura e para o desenvolvimento dos objetivos dessa tese. 31 Capítulo I. Estrutura e Estruturalismo. 1. Os Estruturalismos, diferenças de um pensamento multilinear A apresentação das noções teóricas relativas aos conceitos de Estruturalismo e de Estrutura aparecem como nosso primeiro tema e campo de problemas a serem desenvolvidos nesse capítulo. Para levarmos a cabo nosso objetivo optamos por explorar com maior atenção e profundidade o texto de Gilles Deleuze: “Em que se pode Reconhecer o Estruturalismo?”36 O texto foi escrito em meio ao franco desenvolvimento das pesquisas estruturalistas em 1967, mas somente foi publicado no ano de 1973 em uma coleção de História da Filosofia37 dividida em vários volumes e dirigida por François Chatelet. Deleuze escreveu seu texto sobre o Estruturalismo em um momento histórico marcado pela grande variedade de definições conceituais e pelo grande alcance teórico e prático obtido pelos estudos estruturalistas. Durante os anos sessenta os estudos delimitados pelo que se chamou Estruturalismo tornaram-se a principal referência teórica- metodológica no campo científico, sobretudo para os trabalhos desenvolvidos no interior das ciências humanas. Esses trabalhos mesmo que partindo de disciplinas muitos diferentes e de autores que empregaram métodos distintos como: Lévi-Strauss, Louis Althusser, Jaques Lacan e Michel Foucault, forneceram em suas pesquisas e textos critérios formais para o reconhecimento do conceito de estrutura e do pensamento estruturalista. Nosso principal interesse em mostrar e nos apropriarmos da perspectiva estruturalista delimitada por Deleuze, se justifica pelo conjunto de argumentos que auxiliam a pensar e a mostrar o Estruturalismo como interface teórica-metodológica durante o desenvolvimento da pesquisa arqueológica de Michel Foucault. Não foram poucas as referências em que Gilles Deleuze apresentou passagens do trabalho de Michel Foucault sobretudo em As Palavras e as Coisas, como demonstrações de um estilo 36DELEUZE, Gilles. Em que se pode Reconhecer o Estruturalismo? CHATELET, François. História da Filosofia: Ideias e Doutrinas, volume 8, O Século XX. São Paulo. Zahar Editora, 1973. 37Ibid. 32 específico de pesquisa estruturalista desenvolvida nos anos sessenta a partir de uma linha de análise híbrida histórico-epistemológica. Dentre os sete critérios apresentados por Gilles Deleuze escolhemos três38, tendo em vista a possibilidade de delimitarmos um diálogo mais fértil entre as diferentes abordagens do estruturalismo selecionadas pelo filósofo. Os critérios analisados como marcadores de características reconhecíveis na atividade estruturalista foram: o simbólico, o sentido de posição, e as relações entre elementos. Percebe-se que esses critérios delimitados conforme a leitura deleuzeana são um pouco distintos dos mais habituais, a saber: modelo, conjunto, sistema; postos em debate quando o assunto é uma abordagem teórica sobre a noção de estrutura e do método estrutural. Não obstante, a razão pela qual optamos por nos apropriar desta posição foi justamente a presença dessa torsão conceitual realizada por Deleuze ao recolher e delimitar critérios diversos e distintos daqueles que definem comumente a prática estruturalista. Dessa maneira, os critérios sobre o reconhecimento do estruturalismo decorrem dos próprios textos que Deleuze selecionou e analisou, como sua seleção ocorreu em domínios diferentes e com linguagens diferentes, os critérios apresentados por Deleuze sobre o estruturalismo apresentam-se como critérios formados por uma espécie de híbrido sobre posições teóricas estruturalistas, e que lhe serviram de fonte para responder à questão que dá título ao seu texto. 38A seleção dos critérios de reconhecimento do Estruturalismo não foi arbitrária. A razão dos três critérios escolhidos se deve ao fato de serem critérios que possibilitam a conexão teórica entre as diferentes posições do Estruturalismo. 33 1.1. Sobre o Problema Estrutural: Estruturalismo, Estrutura e Linguagem. O artigo de Deleuze aponta logo em suas primeiras linhas para uma reflexão comparativa entre uma pergunta de outrora, em contraste com outra pergunta posta na atualidade em que ele escreve seu texto. Assim, o questionamento anterior que ressoou pela inteligência francesa entre os anos quarenta e cinquenta foi: Que é o existencialismo?39 Mas em 1967 a pergunta passou a ser outra, nesse momento se perguntou; Que é o estruturalismo? Para o filósofo essa questão possuiu sua legitimidade ao ser colocada em fins da década de sessenta. Seu escopo? Ter apresentado um real interesse em obras que estavam naquele momento exercendo um efeito de influência no pensamento francês com a proposta de uma renovação paradigmática,40 a qual marcou toda uma geração41 de pensadores na academia francesa. Dessa forma, estabelecer uma definição epistemológica sobre o que estava se passando sobre o nome de Estruturalismo correspondeu a um grande interesse de autores em precisar e conhecer como e quem estava naquele momento (1967) realizando de maneira bem-sucedida pesquisas rotuladas como Estruturalistas.42 39O existencialismo também foi tema da coleção de História da Filosofia organizada por François Chatelet, “Os existencialismos”, escrito por Christian Descamps, dá título ao quinto (V) capítulo do mesmo livro em que se encontra o texto de Deleuze sobre o Estruturalismo. O próximo capítulo será dedicado ao estudo da formação filosófica de Foucault, dessa forma retornaremos ao pensamento fenomenológico associado ao sujeito e que na França deu início ao movimento filosófico chamado de existencialismo. DESCAMPS, Christian. Os Existencialismo. In: CHATELET, François. História da Filosofia: Ideias e Doutrinas, volume 8, O Século XX. São Paulo. Zahar Editora, 1973. 40Na introdução de Michael Peter em, Pós-Estruturalismo e Filosofia da Diferença, o autor destaca que entre os anos de 1950 e 1960 efetivou-se na universidade francesa um programa teórico-metodológico que reintroduziu um novo “megaparadigma” transdisciplinar, o qual integrou as ciências humanas e sociais em uma perspectiva otimista quanto a legitimidade epistemológica dessas ciências. Cf: PETER, Michael. Pós-Estruturalismo e Filosofia da Diferença. Autentica. Belo Horizonte, 2011. p. 9. 41De acordo com Foucault foram muitos os cientistas sociais que aderiram a posição metodológica estruturalista quase que ao mesmo tempo na França. Em uma entrevista com Madeleine Chapsal em 1966, o filósofo se refere aos jovens com menos de 20 anos no período da segunda guerra mundial que tinham em Sartre e Merleau-Ponty a representação de figuras heroicas, mas que na década de cinquenta passaram a ter seus escritos contestados perdendo parte do prestígio e legitimidade diante da geração do Pós-Guerra. Cf: FOUCAULT, Michel. “Entrevista com Madeleine Chapsal”. In: Ditos e Escritos volume VII. Arte, Epistemologia, Filosofia e História da Medicina. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011. p. 145-146. 42Eduardo Prado Coelho nos adverte em uma introdução para uma coletânea de textos teóricos sobre o estruturalismo organizada por ele mesmo em 1967. Para o autor “os Estruturalismos” corresponderam a um conjunto de diversas atividades e manifestações realizadas através de pesquisas e análises praticadas principalmente na França na metade do século XX. Essas 34 Procurando reconhecer quem praticou esse tipo de pesquisa, a resposta deleuzeana começa conservadora, isto é, pelo “lugar comum”. Assim, foi apresentado com a designação inicial de estruturalista um linguista como Roman Jakobson, um sociólogo como Lévi-Strauss, um psicanalista como Jaques Lacan43, um filósofo que renovou a epistemologia como Michel Foucault, um filósofo marxista como Louis Althusser e seus colaboradores e Roland Barthes na condição de estruturalista e crítico literário junto aos escritores associados a revista Tel Quel. Nesse sentido, tão importante quanto a variedade de domínios que foram explorados nessas pesquisas, foi justamente o fato de que cada pesquisador, ao seu modo e de acordo com o domínio do qual discursava e explorava em suas investigações, reconhecer uma linguagem estrutural. O reconhecimento dessas diferentes linguagens estruturais possibilitou a abertura de um novo campo teórico com seus problemas, métodos (procedimentos de pesquisa) e soluções. Foi o conjunto desses diferentes “caminhos” por onde foram introduzidas linguagens estruturalistas que veio a ser chamado de Estruturalismo, segundo Deleuze, o estabelecimento de certas relações de atividades circunscreveram domínios díspares, de forma que não deve ser reunida e compreendida num programa comum. Classificar todas as pesquisas que foram reconhecidas como estruturalistas num mesmo bloco homogêneo, ou numa mesma corrente teórica-metodológica significa apagar as diferenças contidas nesse programa a favor de uma falsa unidade representativa. COELHO PRADO, Eduardo. Introdução a um Pensamento Cruel: Estruturas, Estruturalidades e Estruturalismos. In: Estruturalismo: Antologia de textos teóricos. São Paulo: Martins Fontes. 1967. 43O marco inicial para associar o pensamento e o trabalho de Jaques Lacan ao estruturalismo seja a partir da frase proferida no décimo primeiro seminário realizado por Lacan em 1964 “O Inconsciente é Estruturado como Linguagem” In: Seminário – livro 11. Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. p. 27. O estruturalismo que Lacan apresentou como referência teórica-metodológica para seus trabalhos de fato aparece com os seminários dos Écrits (estudadas por Deleuze no texto Em que se pode reconhecer o estruturalismo). A partir de 1953 através da influência do trabalho de Lévi-Strauss, Lacan toma conhecimento do CLG, a leitura de Lacan sobre Saussure lhe renderá em 1957 o importante texto: L´instance de la lettre dan´s l´inconscient (A instância da letra no inconsciente), texto marcado por um vocabulário próprio do curso de Saussure. Nesse texto Lacan declara toda sua adesão ao estruturalismo via linguística estrutural, citando tanto Saussure como Jakobson como podemos confirmar com a seguinte passagem “É toda a estrutura da linguagem que a experiência psicanalítica descobre no inconsciente”. Cf: LACAN, Jaques. A Instância da letra no Inconsciente. In: Estruturalismo: Antologia de textos teóricos. Organizado por Eduardo Prado Coelho. São Paulo. Martins Fontes, 1967. p. 257-288. Cf: DOSSE, François. Um Rebelde chamado Jaques Lacan e O chamado de Roma (1953): O Retorno a Freud. In: História do Estruturalismo. O campo do Signo. Bauru: EDUSC, 2007. p. 139-163. 35 analogia teóricas-metodológicas tornou possível a formação de um “espírito do tempo estrutural”.44 Assim, Deleuze atribuiu à disciplina da linguística o campo teórico fundador do estruturalismo, no entanto, a “origem” científica do estruturalismo posto pela disciplina da linguística não se deu por um único caminho nem por uma única tradição, isto é, o curso de Saussure e o consequente “corte saussuriano,”45 comumente considerado a principal referência e “pedra angular” para o surgimento de uma linguística científica e estruturalista, foi acompanhado pelos estudos originários no leste Europeu chamados de estudos formalistas46. Dessa maneira, para Deleuze, tão importante quanto a influência teórica do curso póstumo do linguista suíço, as contribuições das escolas de Moscou e de Praga devem ser consideradas igualmente importantes para o surgimento do discurso- gênese do Estruturalismo. O pensamento e o método estruturalista após sua emergência no campo científico a partir de sua origem com os estudos linguísticos, estendeu-se para outros domínios científicos, contudo essa extensão não ocorreu simplesmente pela superioridade e pelo desenvolvimento epistemológico mais avançado do modelo teórico desenvolvido 44DELEUZE, Gilles. Em que se pode Reconhecer o Estruturalismo? CHATELET, François. História da Filosofia: Ideias e Doutrinas, volume 8, O Século XX. São Paulo. Zahar Editora. 1973. p. 294. 45O termo é quase que senso comum para o estudo do estruturalismo tendo em vista que maioria daqueles que se declararam estruturalistas optaram por essa via. O “corte saussuriano” resumidamente significa que as análises estruturais nas ciências humanas em solo francês, têm seu fundamento no método de análise formal e sincrônico da língua ensinado pelo linguista suíço Ferdinand Saussure em seu Curso de Linguística Geral. Maria do Rosário Gregolin comentou sobre a contribuição de Saussure: “No contexto francês é interessante notar que a incorporação dos conceitos saussurianos acontecerá primeiro em disciplinas como a antropologia e a sociologia e só depois alcançará a linguística propriamente dita. (...). Por isso, o movimento estruturalista empreende um constante retorno a Saussure. O Curso de Linguística Geral foi interpretado como o momento de um corte entre uma linguística pré-científica e uma linguística fundada em hipóteses e métodos rigorosos, como momento de instauração da “ciência do signo”: a abordagem descritiva, a prevalência dos sistemas, a preocupação em definir as unidades elementares a partir de procedimentos construídos e explícitos; a ideia fundamental da arbitrariedade do signo; a visão da língua como sistemas de signos a partir do princípio semiológico (teoria do valor); a noção de sistema, que propõe uma postura abstrata conceitual, pois cada elemento é relacional, tira seu valor da relação; a oposição sincronia/diacronia. (...)”. In. GREGOLIM, Maria do Rosário. Foucault e Pêcheux na análise do discurso. Diálogos e Duelos. São Carlos: Claraluz, 2006. p. 20-23. Dosse também demarca essa influência da linguística para as ciências humanas no quadro geral do estruturalismo, e dedica o capítulo sete a esse tema. Cf: DOSSE, François. “O Corte Saussuriano” In: História do Estruturalismo. O campo do Signo. Bauru: EDUSC, 2007. 46FOUCAULT, Michel. FOUCAULT. Estruturalismo e Pós-Estruturalismo. In: Ditos e Escritos volume II. Arqueologia das Ciências e História dos Sistemas de Pensamento. Organizado por Manoel Barros da Motta. Rio de Janeiro. Forense Universitária 3ª Edição, 2013. 36 pela linguística com relação as suas vizinhas ciências humanas47. Deleuze contesta a perspectiva sobre o desenvolvimento histórico-epistemológico do estruturalismo como simples apropriação metodológica, isto é, a transposição de um método eficaz em determinado domínio científico para outro. Para o filósofo o estruturalismo possui sua eficácia como “método revolucionário”, não é uma repetição do mesmo, mas a criação e a invenção de diferentes perspectivas, nesse sentido como escreveu Deleuze, o estruturalismo não se trata: [...] De analogia: não é simplesmente para instaurar métodos “equivalentes” aos que antes tiveram êxito na análise da linguagem. Na verdade, só há estrutura daquilo que é linguagem, nem que seja uma linguagem esotérica ou mesmo não-verbal.48 Desse modo, só pode existir algum tipo de estrutura como por exemplo, uma estrutura do inconsciente, na medida em que o próprio inconsciente fala sua própria linguagem, trata-se então de decifrar como essa linguagem pode ser estruturada em séries diferentes, (séries como sonho ou o desejo). Assim como só pode existir estrutura dos corpos na medida em que se estabelece um juízo pelo qual os corpos falem por seus sintomas, ou com relação a própria linguagem dos signos que faz com que as coisas possuam uma forma estrutural, na medida em que a linguagem das coisas se coloca como discurso silencioso só pode adquirir som com a análise de sua estrutura dada alguma linguagem. Portanto, a partir dessa perspectiva sobre a origem e o desenvolvimento do método estruturalista através de uma análise sobre a linguagem, iremos caracterizar o 47Podemos tomar essa posição de Deleuze como uma crítica, ou pelo menos uma contraposição a Lévi-Strauss em seu texto “A Análise Estrutural em Linguística e Antropologia”, publicado no livro Antropologia Estrutural de 1958. Lévi-Strauss sustenta a tese de que a análise da linguagem realizada por Saussure e seus sucessores das escolas de Moscou e Praga foram análises do tipo linguístico-estrutural, e que serviu de modelo a ser transposto para as ciências humanas. Os linguistas teriam fornecido aos etnólogos um modelo de explicação teórica para as relações de parentesco e matrimonio entre “povos primitivos” análogo metodologicamente as análises sobre os fonemas. A linguística assumiria assim a condição de “ciência-piloto” nesse programa de análise estrutural, sendo a disciplina com maior desenvolvimento científico, inclusive aproximando-se das ciências exatas na interpretação de Lévi-Strauss, assim a linguística ocupou um lugar excepcional no rol das ciências no início do século XX, justificado pela realização de seus progressos no campo científico serem de longe maiores do que os de suas vizinhas ciências humanas. Cf: STRAUSS, Claude Lévi. A Análise Estrutural em Linguística, e, Linguística e Antropologia. In: Antropologia Estrutural. São Paulo: Cosac Naify. 2008, p. 57-86. 48DELEUZE, Gilles. Em que se pode Reconhecer o Estruturalismo? CHATELET, François. História da Filosofia: Ideias e Doutrinas, volume 8, O Século XX. São Paulo. Zahar Editora, 1973. p. 272. 37 conceito de estrutura e estruturalismo a partir de três critérios fundamentais para a compreensão do programa estruturalista. 2. O Estruturalismo como pensamento sobre o Simbólico. A Estrutura Triádica. O primeiro critério apontado por Deleuze para o reconhecimento prático do método estruturalista e de um objeto estrutural, foi a descrição de uma terceira ordem, de um terceiro reino: o simbólico. Mas para tratarmos desse critério objetivamente é necessário que antes sejam feitas algumas caracterizações sobre como funciona nosso pensamento a partir da relação entre real e imaginário. É prática comum entre os pensadores (filósofos) a distinção e a correlação entre real e imaginário, independente da escola e tradição filosófica pela qual o filósofo exerça sua reflexão, afinal “todo nosso pensamento mantem um jogo dialético entre essas duas noções”.49 Dessa forma para o discurso filosófico clássico (cânones da filosofia como Platão Descartes, Kant e Hegel), o tema da “razão pura” e do entendimento puro, corresponde a uma faculdade definida pela capacidade e aptidão da consciência para a apreensão do “real” em sua profundidade, em sua “real verdade”. Isto é, o “real” como ele é de fato, essa perspectiva sobre a realidade verdadeira deve manter certa oposição como também uma relação com as ideias produzidas na consciência. Essa relação de oposição entre real (matéria) e imaginário (ideias) não foi posta somente no âmbito do discurso filosófico clássico, movimentos artísticos e até científicos também corroboram essa clivagem. Segundo Deleuze, os movimentos artísticos como surrealismo e simbolismo, e o movimento literário chamado de romantismo, possuem “o ponto transcendente em que real e imaginário se penetram e se unem, ora sua fronteira aguda, como o gume de sua diferença.”50 Mas em todas essas 49DELEUZE, Gilles. Em que se pode Reconhecer o Estruturalismo? CHATELET, François. História da Filosofia: Idéias e Doutrinas, volume 8, O Século XX. São Paulo. Zahar Editora, 1973. p. 272. 50Ibid. p. 273. 38 maneiras de compreender o homem, o real e o pensamento, a oposição entre real e imaginário ainda permanece. Deleuze atribui até para as análises psicanalíticas de Freud a perspectiva teórica de apresentarem uma dialética entre real e imaginário, isto é, a posição científica do método psicanalítico de Freud para a decodificação dos dois princípios que alimentam nossa consciência: o de realidade com sua força de decepção e desencantamento sobre o mundo, em oposição ao princípio de prazer, com poder de satisfação alucinatório e experimentado pelo imaginário.51 Reconhecer a prática do método estruturalista pelo critério simbólico corresponde a encontrar uma linguagem, visto que só pode se constituir como símbolo um determinado objeto que represente e signifique um outro objeto, como por exemplo, o signo linguístico-comunicativo, a coisa representada por ele. Assim, o simbólico constitui-se já em sua origem conceitual como um objeto relacional e estrutural, mas isso não significa que seja possível falar em uma linguagem simbólica como puro reflexo, ou como espelho entre mundo e signo. Mas ao contrário, isto é, a linguagem simbólica na perspectiva estrutural delimitada por Deleuze estabelece justamente como o ponto de partida uma relação de diferença entre signo, significante e coisa significada.52 Não se trata de um símbolo que estabeleça a unidade e a identidade entre realidade-sensível e imagem-consciência, essa diferença se dá na interação linguística de produção de sentido e significados a partir da complexa relação entre: coisa-mundo-real e imagem-significado-conceito. Dessa forma, para que seja possível separar da tradicional relação dual (consciência e objeto) uma terceira ordem chamada de uma estrutura53simbólica, cuja existência está atrelada a um espaço ordenado por posições linguísticas, foi necessário antes o desenvolvimento de um estilo de reflexão sobre a linguagem e mais especificamente sobre a produção e o sentido das palavras dentro de uma determinada língua. 51Ainda sobre métodos científicos postos pela oposição real-imaginário o autor cita Jung e Bachelard, e suas complexas relações quanto ao imaginário e o real por comportarem-se como uma unidade transcendente pautada num tenso limiar entre a fusão e o corte. Cf: DELEUZE, Gilles. Em que se pode Reconhecer o Estruturalismo? CHATELET, François. História da Filosofia: Idéias e Doutrinas, volume 8, O Século XX. São Paulo. Zahar Editora. 1973. p. 272. 52Ibid. 53Cf:WILLIAMS, James. Pós-Estruturalismo: Petrópolis. Vozes, 2013. p. 87. Williams ao comentar a noção de estrutura no texto de Deleuze nos indica que o filósofo francês postula como lugar de existência da estrutura o campo da linguagem, assim só pode existir estrutura “(...) onde há linguagem, e não onde haja coisas ou mentes”. 39 Assim, foi diante dessa problemática linguística que se pôde evidenciar o caráter triádico da estrutura, 1,2,3, real-imagem-posição da linguagem. Williams ao comentar esse primeiro critério apresentado no texto de Deleuze, apontou para o papel da linguagem no processo de independência e constituição da estrutura para além do real e do imaginário. O ponto de Deleuze é que a estrutura é importante porque é algo mais do que compreendemos ser a coisa objetiva ou o que imaginamos serem as coisas. Ao invés disso, a estrutura deve ser independente daquelas coisas, ainda que parte do que as torna completas para o pensamento. A linguagem é o que permite esta independência, mas também esse papel constitutivo.54 Então para além do real e do imaginário, Deleuze nos apresenta o primeiro critério de reconhecimento do estruturalismo como a descoberta de uma terceira ordem através das análises dos “linguistas estruturalistas”. As análises originárias com linguistas estruturalistas do leste europeu pôs fim a confusão entre o conteúdo da linguagem simbólica com os conteúdos dos elementos constituídos no real e do imaginário. O simbólico passou a ser compreendido como expressão que dá forma para uma estrutura linguística, isto é, não é coisa nem imagem, mas sim uma posição55. Trata-se de uma posição para a linguagem em uma ordem simbólica, identificada na língua (langue) como um sistema possível de produção de significados a partir da mudança de elementos quando produz-se a fala (parole), isto é, pela articulação e permuta dos fonemas na produção de palavras56. Assim, coube ao linguista estruturalista 54Ibid. p. 87. 55Deleuze afirma que o critério definido por ele como simbólico constitui a “posição de uma ordem”, mais profunda que o real e o imaginário, e que portanto trata-se de um local e ou de uma posição, esse será o segundo critério para o reconhecimento do estruturalismo, e será discutido mais a frente, contudo é de difícil definição conceitual esse lugar ou espaço, assim ele não define formalmente em que consiste o elemento simbólico, mas afirma aquilo que este elemento não pode ser, como uma estrutura, que corresponda a algum elemento simbólico com forma sensível, nem com alguma figura da imaginação, nem como alguma essência passível de inteligibilidade. Cf. DELEUZE, Gilles. Em que se pode Reconhecer o Estruturalismo? CHATELET, François. História da Filosofia: Ideias e Doutrinas, volume 8, O Século XX. São Paulo. Zahar Editora, 1973. 56Aqui a referência de Deleuze ao linguista estruturalista que estudou o fonema pode ser interpretada no seguinte sentido: O método estruturalista em linguística tem sua origem atrelada ao Curso de Linguística Geral (CLG) de Ferdinand Saussure, a difusão das ideias contidas nesse curso chegaram a França por intermédio de Lévi-Strauss, via antropologia, (é curioso notar que as ideias de Saussure chegaram na França primeiro nas ciências humanas e só depois nas ciências linguísticas), contudo Lévi-Strauss só teve contato com essas ideias após seu encontro com o linguista russo Roman Jakobson em Nova York em 1942. Jakobson por sua vez, foi o fundador 40 descobrir um objeto novo, com natureza completamente diferente daquilo que a ciência e a filosofia já puderam objetivar, o linguista estruturalista descobre o objeto estrutural. (...) Para além das palavras em sua realidade e em suas partes sonoras, para além das imagens e dos conceitos associados às palavras, o linguista estruturalista descobre um elemento de natureza completamente diferente, o objeto estrutural.57 Então o que ganha epistemologicamente com as análises estruturais sobre o elemento simbólico? Segundo Deleuze, com a “revelação” da ordem simbólica surge um terceiro elemento para a construção do entendimento da realidade, assim, evita-se o jogo dialético de articulação entre real e imaginário, pois, o simbólico constitui uma espécie de terceira ordem, com uma função relacional muito específica58 e precisa. A análise da linguagem simbólica não se refere a associação ou fusão entre realidade + imagem (1+2) como resultado ou correlação, para a análise estrutural o elemento simbólico existe como uma posição que “costura”, como uma “transa”, isto é, um conjunto de elementos dispostos que compõe um quadro estruturado entre o real e a imagem em um espaço estrutural composto por posições simbólicas. do círculo linguístico de Moscou em 1915, com a tarefa de promover a linguística e poética na Rússia, no caso de Jakobson o grande impulso para os estudos linguísticos foram dados pelo formalismo e pelo futurismo. Foi então somente em 1920, em Praga que Jakobson teve contato com o curso de Saussure, mas a grande e decisiva influência para o desenvolvimento da análise estrutural dos fonemas de Jakobson foi dada pelo príncipe Russo Nicolai Trubetzkoy. Estudioso dos fonemas pôde participar de maneira decisiva da renovação dos estudos da linguística como disciplina científica em grande medida graças a seus estudos sobre fonologia. CF: DOSSE, François. O Homem-Orquestra. Roman Jakobson. In: História do Estruturalismo: O Campo do Signo. Bauru: EDUSC, 2007. p. 53-54,93-100. 57DELEUZE, Gilles. Em que se pode Reconhecer o Estruturalismo? CHATELET, François. História da Filosofia: Ideias e Doutrinas, volume 8, O Século XX. São Paulo. Zahar Editora. 1973, p.273. 58Segundo Williams, Deleuze não procura afirmar que o estruturalismo seja um método que se ocupe com a questão das relações entre o imaginário e o real. Não se trata de relacionar aquilo que passa em nossa imaginação com coisas reais que percebemos. Também não se ocupa o estruturalismo, na versão expressa por Deleuze, em explicar como nossas mentes e objetos vem a divergir e ou como podem se coincidir, e por que as vezes se separaram e as vezes trabalham juntas. Mas ao invés disso, Deleuze está preocupado em apresentar uma região simbólica em que de fato nada tem a ver com símbolos enquanto algo que está conectando o que imaginamos com o que percebemos, mas sim de espaço que possibilita a circulação de séries e seus elementos diferencias que as constituem. CF: WILLIAMS, James. Pós-Estruturalismo: Petrópolis. Vozes, 2013. p. 87-88. 41 Em Lógica do Sentido, Deleuze refere-se a uma noção triádica para caracterizar a estrutura simbólica, isto é, a estrutura deve ser similar a uma ordem espacial dita simbólica, uma vez que a estrutura existe com a função de elo ao tecer as séries real e imaginário. Dessa forma, o real tende a ser um e fazer-se um em sua totalidade que está sempre aberta, já o imaginário deve ser duplo, pois está sempre se desdobrando desse real e seguindo caminhos com múltiplas variações. Assim, a ordem simbólica é terceira, isto é, triádica, pois essa ordem corresponde a um “entre” com a função própria de fazer o “movimento desse jogo”59, dessa maneira, o elemento simbólico faz as séries circularem pelo espaço estrutural, tornando possível a atualização da estrutura justamente partir do movimento interno das séries de elementos60. Segundo Deleuze, foi Jaques Lacan quem formulou um conceito-imagem sobre um terceiro pai que ganha materialidade na linguagem sob a forma de Nome do pai, mas que vai muito além do pai real, (o pai na carne e na experiência vivida) esse terceiro pai se manifesta por símbolos “fantasmagóricos” sobre diversos pais ideais. O que Lacan fez, foi revelar um terceiro pai mais fundamental que o pai-realidade e que os pais-imagens já conhecidos pela psicanálise, a descoberta desse terceiro pai, ou Nome do Pai como elemento linguístico-simbólico representa que o signo-pai, ao menos para nossa consciência não seja composto somente pelo pai real e pelas imagens de pai, mas, pelas tensas perturbações dessa relação ao ser pensada co mo limite de um processo no qual seja possível a constituição a partir do simbólico. 59Podemos perceber que Deleuze propõe uma interpretação do estruturalismo que remete ao jogo, no sentido das ordens de posições que definem os lances dos jogos como num jogo de cartas. Deleuze estudou o texto: A carta Roubada, de Lacan, como referência a jogos de tabuleiro e suas posições fazendo referência a Lévi-Strauss. 60Mas o que torna as estruturas atuais? Ou melhor, o que existe de atual numa estrutura? Deleuze aponta para um tempo recortado, repartido e de modificação por diferentes durações na relação entre passado-presente, o que é atual é aquilo que a estrutura se encarna ou antes aquilo que ela constitui encarnando-se. Elas são atuais porque é a partir da estrutura que se destacam os acontecimentos singulares que as modificam naquilo que já foram, assim “a estrutura é um espaço para a existência de singularidades temporais que à atualizam no tempo”. Dessa maneira, a estrutura modifica-se no tempo e pelo tempo, são as modificações das relações diferenciais de uma estrutura que constituem as próprias modificações entre a ordem dos espaços e das posições que vem a ser preenchidas por seres reais, são essas alternâncias de preenchimentos dessas posições no espaço relacional que modificam e diferenciam a estrutura, tornando-a sempre atual e móvel, com um tipo de mobilidade em várias dimensões e direções para com as relações estruturáveis, tanto vertical quanto horizontalmente, diagonal ou transversalmente. Através dessa caracterização temporal da estrutura, obtém-se o caráter “acontecimental” e temporal para a estrutura no estruturalismo reconhecido por Deleuze. Da estrutura, pode-se dizer, ser: real sem ser atual, ideal sem ser abstrata. DELEUZE, Gilles. Em que se pode Reconhecer o Estruturalismo? CHATELET, François. História da Filosofia: Ideias e Doutrinas, volume 8, O Século XX. São Paulo. Zahar Editora, 1973. p.276. 42 Já possuímos muitos pais, em psicanálise: em primeiro lugar, um pai real, mas também imagens de pai. Em todos nossos dramas passavam- se nas tensas relações do real e do imaginário. Jaques Lacan descobre um terceiro pai, mais fundamental, pai simbólico ou Nome-do-pai.61 Assim, o simbólico é profundo, está para além da palavra e do som, além do conceito e da imagem, isto é, tanto os conceitos como as imagens e os sons e as palavras, constituem uma “superfície de contato” para que a consciência do sujeito crie seus significados. Dessa maneira, a posição colocada pelo estruturalismo para o conhecimento foi além do alcance teórico da clássica dualidade entre a sujeito e objeto. Para Deleuze, o que se convencionou reconhecer sob a égide do estruturalismo foi de maneira esquemática a possibilidade de pensar e investigar diversos campos de vida social, política e cultural, dada as várias perspectivas que reconheçam em suas análises o elemento simbólico. Nesse sentido, a primeira conclusão sobre o pensamento e o método estruturalista como atividade de conhecimento na interpretação deleuzeana, apontou para a oposição sobre qualquer análise que ofereça privilégio para algum sujeito do saber, isto é, com relação a existência de alguma consciência que conheça de fato a realidade sensível e experimentável. A perspectiva de Deleuze sobre o estruturalismo também é contrária ao privilégio da imaginação e da ideia como uma espécie de “poder” superior da razão, o qual mantém com relação ao real a finitude de seus limites. Logo, o estruturalismo ao contrário da fenomenologia não deve tratar do que pode ser mostrado e d