CELIA CRISTINA DE AZEVEDO ASK SPARKIANAS TEXTO ADENTRO: narrativa e relações de gênero nos contos de Muriel Spark (1918-2006) Assis 2012 CELIA CRISTINA DE AZEVEDO ASK SPARKIANAS TEXTO ADENTRO: narrativa e relações de gênero nos contos de Muriel Spark (1918-2006) Tese apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista, para obtenção do título de Doutor em Letras (Área de Conhecimento: Literatura e Vida Social) Orientadora: Dra. Cleide Antonia Rapucci Assis 2012 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca da F.C.L. – Assis – UNESP Ask, Célia Cristina de Azevedo A834s Sparkianas texto adentro: narrativa e relações de gênero nos contos de Muriel Spark (1918-2006) / Célia Cristina de Azevedo Ask. Assis, 2012 203 f. : il. Tese de Doutorado - Faculdade de Ciências e Letras de Assis- Universidade Estadual Paulista. Orientador: Dra. Cleide Antonia Rapucci 1. Spark, Muriel, 1918-2006. 2. Crítica feminista. 3. Literatura e sociedade. 4. Literatura inglesa. 5. Contos ingleses. I. Título. CDD 823 801.95 Ao meu marido, meus pais e irmãos, pelo apoio e compreensão, aos queridos amigos, que sempre me incentivaram dedico todo meu carinho. AGRADECIMENTOS Agradeço a tod@s que contribuíram para que minha jornada chegasse a este ponto: À minha família, cujo apoio me foi imprescindível, sempre acreditando em meu potencial, incentivando, aconselhando: foram vocês que mais me motivaram a seguir em frente. Aos amigos, tão compreensivos, dispostos a ajudar com palavras ou simples gestos, mas sempre presentes compartilhando de uma alegria sincera por minhas conquistas. Aos também amigos “Acadêmicos”: a companhia de vocês me ajudou a ter forças, a ser otimista e persistente. Liderados por tão ilustre Lady, como nossas reuniões poderiam não ser alegres e cheias de brilho purple? Também agradeço ao professor Márcio, cujas observações e indicações ajudaram meu trabalho a tomar o rumo certo. À professora Ana Maria que, com questionamentos, causou-me a inquietação que resultou em muitas reflexões, mudanças de posicionamento. Pela ajuda de vocês, meus sinceros agradecimentos. Aos professores, aos funcionários da Seção de Pós-Graduação e da Biblioteca da faculdade, por sua contribuição na disposição para ajudar e prestar esclarecimentos. Sem o apoio de vocês, este trabalho teria sido muito difícil. Também agradeço à Equipe gestora da minha escola, aos professores, colegas de trabalho, que me apoiaram, incentivaram. Obrigada a tod@s. Agradeço à Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, por haver concedido a mim a Bolsa Doutorado, que me permitiu adquirir materiais importantes e participar de eventos, sempre que possível. A Cleide, mais que uma orientadora, uma amiga para todas as horas. Sua paciência, seu incentivo e sua confiança em meu trabalho me capacitaram, dando confiança e ânimo. Sem contar a alegria de conhecer e viver na zona selvagem que esta Deméter me concedeu. Muitíssimo obrigada! I would not have spoken had I not been inspired to it. Indeed it's one of the things I can't do now—to speak out, unless inspired. And most extraordinary, on that morning as I spoke, a degree of visibility set in. The Portobello Road ‘Look, you’re breathing fire. You must have some sort of electricity,’ he said; and he stood up and took the check off the table. He looked shaken. ‘I can see you could be a Dragon in your way.’ The Dragon ASK, Célia Cristina de Azevedo. Sparkianas texto adentro: narrativa e relações de gênero nos contos de Muriel Spark (1918-2006). 203 f. Tese (Doutorado em Letras - Literatura e Vida Social). – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Assis, 2012. RESUMO: Este trabalho tem por objetivo realizar uma leitura dos contos da autora escocesa Muriel Spark, nos quais a importância das práticas narrarativas se manifesta como a característica mais evidente: a estrutura narrativa e as construções significativas agem em favor da expressão de um modo de estar no mundo e, mais regularmente, representam também o grande desafio que a leitura poderá abrigar ao tratar das personagens, em especial as femininas. No entanto, é necessária a identificação das referências que constituem os mundos ficcionais, geralmente atreladas à realidade e à proposição de novas formas de inteligibilidade. Em geral, estas formas estão implícitas no texto e cabe às leitoras e aos leitores acessá-las; para que isto ocorra, devemos reconhecer que estrutura narrativa e caracterização de personagens encontram-se intrinsecamente relacionadas. Por meio dos contos sparkianos, é possível ter uma ampla visão da obra da autora e, ao mesmo tempo, das práticas e experiências das mulheres historicamente situadas. Assim, a tese que defendemos é a de que os contos de Muriel Spark, com base nas construções significativas presentes no texto, permitem um diálogo entre o texto e a realidade sob o enfoque da personagem feminina. Servindo-se das referências adequadas, a leitura dos contos sparkianos pode contribuir para a compreensão das formas de interação das mulheres em seu próprio grupo e com o grupo dos homens. Palavras-chaves: Muriel Spark, contos, personagem feminina, crítica feminista, relações de gênero. ASK, Célia Cristina de Azevedo. Sparkians within the text: narrative and gender relationships in the short stories of Muriel Spark (1918-2006). 203 s. Thesis (Ph.D. in Literature – Literature and Social Life) – Faculty of Sciences and Languages of Assis, São Paulo State University, Assis, 2012. ABSTRACT This study aims to perform a reading of the short stories of Scottish author Muriel Spark, in which the importance of the narrative practices manifests itself as their most evident feature: the narrative structure and the building of significances may favor the expression of a mode of being in the world and, more regularly, they also represent the great challenge that reading can accommodate concerning the characters, especially the female ones. However, it is necessary to identify the references that constitute the fictional worlds, usually tied to reality and proposing new forms of intelligibility. In general, these forms are implicit in the text and it is a readers’ task to access them; for this to occur, we must recognize that narrative structure and characterization are intrinsically linked. Through the sparkian characters it is possible to get a broad overview of the work of the author and, at the same time, the practices and experiences of women historically situated. Thus, the thesis we defend is that the stories written by Muriel Spark, based on significant buildings in the text, enable a dialogue between text and reality from the perspective of female characters. With the appropriate references, the reading of those sparkian short stories can contribute to the understanding of the ways by which women interact within their own group and with the male group. Key-words: Muriel Spark, short stories, female character, feminist criticism, gender relationships. SUMÁRIO INTRODUÇÃO .......................................................................................................................10 1 – A NEEDLEWOMAN WITH A DIFFERENCE: a arte de narrar em Muriel Spark..........15 1.1. – Linhas (des)entrelaçadas do tecido narrativo: Spark e a crítica................................17 1.1.1 – Linhas e entrelinhas sparkianas: religião e experimentalismo.......................18 1.1.2 – Moldes e recortes sparkianos: personagens em debate..................................28 1.2 – Voz incisiva que tece histórias: a escrita de uma exilada...........................................41 1.2.1 – Uma África de mulheres marginais.................................................................42 1.2.2 – Mulheres europeias: uma nova condição que se constrói................................61 2 – TO SCALE THE DISTANT MOUNTAIN PEAKS: o lugar das sparkianas.....................73 2.1 – A atuação social das mulheres...................................................................................75 2.1.1 – Em busca de adequação social........................................................................76 2.1.2 – O projeto feminino de valorização..................................................................88 2.2 – Incursão por lares sparkianos...................................................................................110 2.2.1 – Objetos expostos, sentidos guardados...........................................................111 2.2.2 – Objetos mínimos: o valor dos itens pessoais.................................................125 3. – I KNOW WHAT I’M TALKING ABOUT: a relação entre mulheres e homens.......….139 3.1 – Opressores, traidores, amantes, amigos...................................................................140 3.1.1 – A grande pressão de ser mulher...................................................................141 3.1.2 – Alianças possíveis entre mulheres e homens...............................................151 3.2 – Relacionamentos e interações femininas.................................................................159 3.2.1– Mulher solitária e sozinha …...............................…………….............……160 3.2.2 – Mulheres (des)equilibradas………........................................................…..177 CONSIDERAÇÕES FINAIS……..........................................................................................189 REFERÊNCIAS......................................................................................................................194 ANEXOS................................................................................................................................201 ANEXO 1: O Casal Arnolfini, van Eyck….....................................................................201 ANEXO 2: Poltrona estilo Queen Anne...........................................................................202 ANEXO 3: Poltrona estilo georgiano...............................................................................203 Introdução Na literatura, a exploração da diversidade de identidades e experiências tem sua importância apresentada por meio de textos em que se percebe o desejo de autoras e autores de torná-los verossímeis. É comum observarmos em algumas ficções uma estrutura narrativa e construções simbólicas que procuram despertar o interesse do leitor em buscar novas significações, da mesma forma que pretendem exigir a tomada de uma nova posição frente ao que se lê e à realidade. Assim, da estrutura narrativa depreende-se a primeira relação entre leitor e texto enquanto construtores da inteligibilidade: ambos têm que “falar a mesma língua”, ou seja, os significados e suas referências devem se revelar para o leitor durante a leitura, assim como o leitor deve buscar o estabelecimento das relações cabíveis e pertinentes que lhes foram solicitadas. Quando se trabalha com textos de autoria feminina, nota-se uma frequente presença de personagens em situações conflituosas, as quais envolvem, geralmente, relações de poder, sejam elas entre mulheres e homens, ou apenas entre mulheres. Várias críticas feministas assinalaram que muitas autoras “buscam imprimir voluntariamente em seus textos impressões que elas gostariam indeléveis do Feminino” (OLIVEIRA, 1999, p. 130); ou seja, a escrita das mulheres ampara-se na cultura feminina que Oliveira afirma ser “expressão dos modos de fazer e de dizer que acompanham a experiência feminina tradicionalmente separada da experiência masculina” (OLIVEIRA, 1999, p. 128). Tem-se, assim, uma escritura marcada pela realidade de um grupo específico, cujas experiências e vivências lhes são características e, por isso, aquela torna inegociável aos leitores o conhecimento destas peculiaridades. Encontrar nos textos de autoria feminina os indicadores desta distinção das vivências femininas e masculinas constitui o primeiro passo para as teóricas feministas. Mais precisamente, o enfoque na mulher que escreve e em suas personagens revela uma atitude crítica ligada à chamada esfera feminina, cuja base é o conjunto de “aspectos do estilo de vida feminino [que] diferenciam-se daqueles dos homens” (SHOWALTER, 1985, p. 48). Este posicionamento, que se fez necessário ao longo da trajetória das mulheres, revelou ser o mais adequado para o trabalho que nos propomos realizar; ou seja, elegemos um conjunto de textos de autoria feminina para, nele, observarmos a constituição das personagens femininas em sua relação com o mundo à sua volta. Deste modo, elegemos a obra de Muriel Spark (1918-2006) para servir de esteio para este trabalho, com o intuito de focalizar a constituição das personagens femininas e a forma 11 como estas veem a si mesmas e aos outros, em função de verificarmos alguns pontos de sua prática escrita nos quais se podem entrever elementos distintivos de sua narrativa. Ao focalizar um conjunto de textos originados da prática de uma única autora, podemos verificar neles não apenas seus traços distintivos, mas também a forma como nela se expressa o projeto social das mulheres; por isso, o olhar da autora sobre a realidade deste grupo abalizará nossas leituras. Consideramos oportuno destacar que levamos em consideração os estudos de autores como Sproxton (1992), Bottum (2001) e McQuillan (2002) que, dentre outros, se ocuparam em afirmar que na obra de Spark a linguagem, a estrutura narrativa e a caracterização têm uma relação de proximidade singular. Segundo Sproxton, que analisa as figuras femininas nos romances da autora, “ela, em vários de seus romances, retratou as mulheres em uma busca por dignidade e possessão da mente que, a seu modo, reivindica a integridade espiritual da mulher”1 (1992, p. 18). Para Bottum, linguagem e estrutura são essenciais na obra da autora, pois através da narração é que a personagem se revela para o leitor, dando-lhe a conhecer suas motivações, seus sentimentos e pensamentos. McQuillan, de forma semelhante, considera que “a narração de suas histórias está sempre ligada a questões de poder, autoridade, domínio e do conveniente”2 (2002, p. 4). Conquanto suas narrativas estejam permeadas de conflitos de naturezas diversas, é possível afirmarmos que nos textos de Spark a caracterização das personagens tem a função de mostrar como as mulheres atuaram socialmente para conquistar o destaque que lhes foi negado pela história. Em decorrência deste aspecto e, com base nas leituras dos escritos da autora (em desenvolvimento desde 2002), notamos nos contos escritos por Spark um retrato do mundo das mulheres, os quais foram produzidos ao longo da trajetória profissional da autora, que abrange desde os anos 50, quando seu primeiro conto foi publicado, até o início dos anos 2000. Assim, o corpus deste trabalho tem por base uma coletânea composta de 41 contos publicada em 2001 sob o título de All the stories of Muriel Spark, cujas narrativas, em sua maioria, já haviam sido publicadas anteriormente, em outras coletâneas ou em outros meios, como jornais e revistas. Em razão de tais contos não contarem com publicações no Brasil, 1 she has, in several of her novels, depicted women in a search for a integrity and possession of mind which, in its own way, vindicates a woman’s spiritual integrity. 2 the telling of her stories are always bound up with questions of power, authority, domination, and the proper 12 nem traduções, para o português, convencionamos inserir traduções de nossa autoria quando mencionarmos trechos destas narrativas. Em adição, devido à diversidade de temas abordados nestes contos, convencionamos impor limites a nosso estudo, optando por trabalhar com aqueles em que se destacasse a figura feminina, averiguando como se estabelece a convivência destas personagens com indivíduos do sexo oposto e as de seu sexo; como fonte de conflitos ou como ponto de equilíbrio entre as partes envolvidas. A escolha de tais textos está amparada na ideia de que, ainda que o conto caracterize-se por ser um gênero textual breve, o poder de condensação de ideias e significações possibilitadas por ele permite que a análise seja abrangente, pois oferece paradigmas de leitura entre vários textos que tratam de temas e personagens diversos. Por meio das análises dos contos será possível observar, então, como cada narrativa pode instigar seus leitores a procurar sentidos que dialoguem com a realidade e como estas construções deixam evidente uma posição, um questionamento, quanto ao papel social das mulheres. Este aspecto se apresenta de forma mais patente porque pretendemos, ao longo do trabalho, demonstrar a relação existente entre as práticas textuais observáveis nos contos sparkianos e as experiências das mulheres em seu mundo social. Ampara-se, esta afirmação, na constatação de que em alguns textos podemos entrever uma relação de proximidade entre estas práticas: primeiro, porque a autora declara em sua autobiografia, Curriculum Vitae (1993), que empregou eventos que viveu ou ouviu como fonte para seus romances e contos; e, ainda, em razão de a própria realidade ser reconhecida por leitoras e leitores nos mundos ficcionais de Spark. Por distinguirem nestes mundos vivências compartilhadas por entidades textuais e extratextuais, os recursos empregados nestas narrativas contribuem para que se consiga acessar as referências necessárias para um bom entendimento do texto, como as referências à história das mulheres, mencionada direta ou indiretamente nos contos, responsável por elucidar o contexto a partir do qual os sentidos são compostos. De forma análoga, a leitura dos escritos da escritora escocesa revelou que a estrutura narrativa comporta a variedade de recursos empregados por Spark (como a referência histórica e a ironia) com a finalidade de dar vida às suas personagens. Acreditamos que, por isso, o estudo destes contos torna-se relevante: pelo desejo explícito de observar o grupo feminino em suas diversas possibilidades, procurando identificar formas de atuação social destes indivíduos no espaço público, identificado como masculino, e no espaço privado, relegado ao grupo feminino. Assim sendo, identificamos ser imprescindível observar os 13 mecanismos que agem em favor da construção de sentidos no texto literário, a fim de compreender os recursos linguísticos e estruturais empregados por Muriel Spark. Ante ao exposto, destacamos que na obra da autora – em especial seus contos –, a concisão e a objetividade em muito contribuem para a percepção dos elementos empregados na constituição das personagens e, por conseguinte, para o exame das relações que entre elas se estabelece. É importante, neste contexto, averiguar também como os significados construídos nos textos evidenciam referências diretas ou indiretas ao movimento das mulheres. Consideramos, ainda, que a relevância deste ponto de vista reside no fato de possibilitar, à análise, o exame de como a construção textual pode incitar a leitura por apresentar significados que implicam formas de entendimento dos elementos textuais. Elementos estes fundamentais, como a ambientação que, a partir de itens presentes nos locais de atuação das personagens, fornecem informações valiosas relacionadas à história ou à condição destes indivíduos. Para que seja possível uma leitura que busque evidenciar e pensar a respeito dos interesses das mulheres, temos a intenção de buscar na crítica feminista um apoio que possa ajudar a identificar nos contos de Spark a defesa dos direitos destas personagens ou dos interesses do grupo por elas representado; hipóteses essas a serem confrontadas na análise dos escritos sparkianos. Este procedimento se ampara na ideia de que, uma vez que o objetivo principal é verificar como as personagens femininas são apresentadas pela autora, justifica-se assim, que seja realizada uma “leitura interessada”, na qual as mulheres se pronunciem. Faz- se necessário, então, que toda etapa pressuponha uma posição crítica com relação aos textos analisados neste trabalho, de forma a garantir que a reflexão, o questionamento e o dimensionamento do trabalho sejam constantes. Por este motivo, convencionamos organizar este trabalho em três capítulos. No primeiro capítulo, “A needlewoman with a difference: a arte de narrar em Muriel Spark”, trataremos de alguns aspectos que consideramos relevantes quanto à produção da autora e, por isso, apontaremos, brevemente, questões que os críticos geralmente destacaram em suas análises. Complementarmente, será analisado nos contos da escritora o modo como seus textos podem revelar sua visão peculiar do mundo e dos indivíduos. Para isso, estudaremos as narradoras sparkianas em narrativas que se distinguem pelo contexto histórico: o primeiro grupo tem como ambiente a África dos anos 30 e 40, enquanto o segundo grupo encontra-se 14 no cenário da Europa pós-guerra. Desejamos, com isso, discutir acerca do engajamento político/ideológico da autora que se faz pronunciar em sua ficção. No capítulo seguinte, “To scale the distant mountain peaks: o lugar das sparkianas”, optamos por refletir acerca do modo como as narrativas utilizam-se de símbolos que instauram sentidos a serem depreendidos pelo leitor. Este posicionamento evidencia a necessidade do reconhecimento das práticas narrativas cujo objetivo é descobrir os sentidos presentes nestes contos. Desta forma, ao se levar em consideração a importância dos espaços ocupados pelas mulheres, sejam eles de aspecto público ou privado, notamos sua relação com estas personagens e com seu projeto social. Como complemento, também nos interessam os objetos encontrados nos ambientes frequentados pelas mulheres, evidenciando-se aspectos subjetivos destas personagens que ficam latentes, cabendo às leitoras e aos leitores conseguirem acessar estas informações e torná-las significativas para as personagens a que estão relacionados. Reservamos, então, para o terceiro capítulo, “I know what I’m talking about: a relação entre mulheres e homens”, a abordagem de questões relacionadas à interação social e cultural das personagens, as quais servirão de base para a verificação de conflitos e/ou de pontos de equilíbrio na relação entre indivíduos do gênero feminino e destes com os indivíduos do gênero masculino apresentados nos contos sparkianos. Com especial atenção para as personagens femininas, o objetivo deste capítulo é observarmos a relação das mulheres com outras pessoas de seu grupo, a fim de verificar em que extensão o movimento feminista estabeleceu mudanças no padrão de comportamento delas, sendo estes padrões postos em prática ou não por este grupo. Também nos dispomos a averiguar como as relações entre mulheres e homens podem ser, com frequência, configuradas como conflituosas, embora seja plenamente possível a ocorrência de relações balanceadas em razão do apoio de alguns homens ao projeto das mulheres. Finalmente, a seção denominada Anexos contém reproduções de algumas imagens que consideramos importantes para a compreensão dos contos que constituem o corpus deste trabalho. 15 Capítulo 1: A NEEDLEWOMAN WITH A DIFFERENCE a arte de narrar em Muriel Spark 16 O trabalho de autoras e críticas feministas é sempre árduo, porque ainda precisa enfrentar questionamentos, oposição e críticas depreciativas, justamente por estas feministas desejarem situar as vivências femininas sem os estereótipos sociais e culturais. Imaginemos Virginia Woolf em suas primeiras manifestações contra o silenciamento das mulheres no meio acadêmico: os primeiros passos de uma jornada que (ainda) parece interminável. Como voz distinta, estruturada a partir de uma realidade que parecia nova, porque marginalizada por séculos, a escrita das mulheres se fez ouvir em um meio dominado por homens, regulado por eles e fechado para elas, até então. Mas foi necessário um “ouvido” sensível a esta voz; mais precisamente, no início do movimento feminista, as representantes deste grupo assumiram a responsabilidade de ouvir o que as mulheres tinham a dizer sobre seu mundo, suas experiências, as quais eram responsáveis pela constituição de referências relegadas à margem da cultura dominante, mas centrais na escrita e na crítica das mulheres. A marginalização é uma condição experimentada pelas mulheres em níveis diversos: enquanto indivíduos, escritoras e leitoras. Foi a rejeição da condição de indivíduos marginais, de sujeitos impelidos para a periferia social e cultural, que as mulheres conseguiram dar visibilidade ao seu mundo, realizando um desejo há muito tempo sufocado por uma sociedade que as considerava inferiores e incapazes. Matéria dos escritos das mulheres, esta organização sociocultural foi criticada, questionada, recusada; novamente, usaram-se os antigos rótulos de inferior e ilógica para depreciar tais produções. Esta situação desconfortável para as mulheres, em que ter espaço não significava serem aceitas enquanto agentes sociais e culturais, resultou em as mulheres se darem conta de que elas mesmas deveriam oferecer opções para a leitura das obras que produziam, para confirmar a reformulação e a reconfiguração das referências, dos conceitos e posicionamentos que marcavam a produção e a teoria literária. Faz-se necessário, assim, mencionarmos que esta situação em pouco se difere da realidade das mulheres e da crítica que analisa obras de escritoras, assim como personagens femininas nestas produções. Por isso, ao tratarmos da apreciação crítica relativa à ficção de Muriel Spark, ficará evidente que a maioria dos trabalhos que se prestam a esta tarefa têm como base de estudo seus romances, sendo raros aqueles que se referem aos contos. Por este motivo, dispomo-nos a observar como a crítica literária tem recebido a ficção sparkiana e quais elementos destes escritos têm sido postos em destaque. Como veremos, alguns rótulos impostos à autora resultaram em leituras restritas e, muitas vezes, equivocadas de suas narrativas: por ser amplamente taxada de “escritora católica”, as leituras restringem-se a este único e limitador enfoque. Também veremos que, como forma de 17 reconhecimento de sua contribuição para o campo literário, alguns autores mencionam como elemento distintivo de sua ficção o aspecto experimental de algumas narrativas. Como elemento complementar, daremos destaque a uma condição da autora que consideramos importante e que tem marcado as leituras de sua obra com frequência: o exílio. Por este motivo, consideramos necessário distinguir as narrativas ambientadas na África, lugar onde Spark morou no período entre guerras (final da década de 1930 e início dos anos 1940) e, em seguida, aquelas cujo meio social são países europeus, como Inglaterra ou Escócia. Tal distinção torna-se indispensável pela referência a momentos distintos da vida da autora, posicionando-a em contextos históricos marcantes no exercício de sua profissão. Assim, quando remetemos, ao longo desta seção, à figura da costureira (needlewoman) presente no conto “The Dragon”, cuja satisfação está em costurar roupas com perfeição, no corpo de seus modelos, pensamos em como a realização de um trabalho artístico exige o (re)conhecimento de seus modelos, ou seja, do mundo nele representado e dos indivíduos que o compõem. Interessa-nos, deste modo, pensar na escrita como algo análogo ao ato de costurar, em que a narração é vista à semelhança de uma colcha de retalhos costurada por uma agulha muito fina e aguda: os eventos narrativos são ligados uns aos outros por linhas finas, porém resistentes, sob os cuidados de uma costureira esmerada e persistente. Certamente o costurar pressupõe ferir o tecido para perfurá-lo, como acontece muitas vezes nas narrativas, em que a constituição do tecido narrativo ocorre somente após ferir, de formas variadas, os atores sociais dos universos ficcionais. Mas não podemos esquecer que as feridas ficcionais apenas representam as feridas reais impingidas às mulheres em sua luta por autonomia e que Spark recorrentemente nos faz recordar por meio da leitura de seus contos. 1.1 – Linhas (des)entrelaçadas do tecido narrativo: Spark e a crítica Ao tratarmos da recepção do conjunto de obras pela crítica especializada, devemos lembrar que a relação existente entre estas duas categorias é muito próxima, pois uma crítica positiva gera uma recepção positiva, assim como crítica e recepção negativas estão constantemente associadas. Neste prisma, podemos afirmar que os trabalhos de crítica foram responsáveis por configurar a recepção dos escritos sparkianos, sendo que se destacam, por vezes, as qualidades de sua escrita; outras vezes, mencionam-se as limitações e “incongruências” de seus trabalhos. 18 Sendo assim, indicaremos dois aspectos da obra de Spark que recebem destaque nestas leituras: o teor religioso e o experimentalismo. Levando-os em consideração, traçaremos algumas considerações que entendemos serem necessárias para esclarecer até que ponto tais aspectos orientam as leituras baseadas nos escritos da autora. Prosseguiremos, então, apontando uma das questões que a crítica considera mais importantes ao se trabalhar com os textos sparkianos: a constituição das personagens. Quanto a este elemento, pretendemos abordar aspectos vistos como negativos pela crítica e, como ponderação, temos o intuito de oferecer uma perspectiva distinta. 1.1.1 – Linhas e entrelinhas sparkianas: religião e experimentalismo Trabalhar com as linhas críticas e teóricas que oferecem leituras relativas aos textos sparkianos não é uma tarefa que se realiza tranquilamente, uma vez que é preciso levar em consideração a diversidade de termos que foram usados para classificar as narrativas da autora. Neste âmbito, torna-se interessante pensar que as leitoras e os leitores de Spark compõem um grupo tão heterogêneo quanto o conjunto de sua obra e, por isso, algumas dificuldades são perceptíveis. Até mesmo a autora percebe ser uma atividade árdua identificar e classificar seu público, como se nota pela resposta dada por ela, quando questionada em entrevista, quanto a ter consciência de acadêmicos lendo seus textos ou ensinando-os; a escritora afirmou que é difícil identificá-los: an audience, yes, but people like me, perhaps. I have an academic audience. I do know that what I write is not necessarily appreciated by the majority of fiction readers. They don’t really get the subtleties and the ironies, but I can’t help that. I don’t know who I’m writing for [...] I don’t have a precise idea in my head. It’s got to satisfy me though. I talk to myself: it’s a dialogue with myself largely. (McQUILLAN, 2002, p. 213)3 As palavras da escritora parecem evitar qualquer discussão acerca da recepção de sua obra, afirmando que ao escrever estabelece “um diálogo consigo mesma”; mas, vale mencionar que, tomando-se por base sua visibilidade no mercado editorial mundial, fica evidente que há um público leitor e crítico para seus escritos. Primeiro, porque se não 3 um público, sim, mas pessoas como eu, talvez. Eu tenho um público acadêmico. Eu sei que o que eu escrevo não é necessariamente apreciado pela maioria dos leitores de ficção. Eles realmente não entendem as sutilezas e as ironias, mas eu não posso evitar. Eu não sei para quem escrevo [...] Eu não tenho uma ideia precisa na minha cabeça. Tem que me satisfazer, apenas. Eu falo comigo mesma: é um diálogo comigo mesma, em grande parte. 19 houvesse uma recepção positiva para sua ficção, suas produções não seriam tão numerosas e variadas, com um montante de 22 romances, 41 contos publicados em diversas antologias, volumes de poesia, peças radiofônicas e uma autobiografia, além de biografias e antologias de grandes nomes da Literatura mundial. Em segundo lugar, consideramos indício da recepção da autora o fato de seus romances, em especial, terem sido traduzidos para diversos idiomas, como português, francês, italiano, espanhol, alemão, japonês e russo, além de contarem com inúmeros estudos críticos. Convém mencionar que, entre críticas positivas e negativas, destacam-se nestes estudos certas características da escrita sparkiana, principalmente aquelas relacionadas aos sentidos em funcionamento nos texto, às construções frásicas inteligentes e à organização textual. Sproxton (1992) afirma, por exemplo, que Spark sempre se viu como poetisa e biógrafa, não se aventurando pela escrita de romances até a década de 1950, embora neles se destaquem: “[her] sensitivity to words and to their hidden wit [...] the very power of words and their hold on the mind”4 (p. 9). Jenkins (1997), por sua vez, em artigo escrito para o jornal New York Times sobre uma das coletâneas de contos sparkianos, afirma que em poucas narrativas chega-se a um final “arredondado”, isto é, a uma conclusão satisfatória; e que o uso do sobrenatural, às vezes, leva a perguntar “e daí?”. É interessante pensar que duas características relacionadas estritamente à composição do texto sejam as questões postas como essenciais ao se tratar das narrativas da escritora. Por um lado, notamos uma crítica favorável que reconhece o valor de seu trabalho; por outro, fica evidente que os estudos críticos muitas vezes não conseguem lidar com algumas construções em funcionamento no texto. Com o intuito de apresentar reflexões acerca dos elementos mais evidenciados pela crítica, consideramos interessante mencionar o texto de Galloway que, ao escrever a introdução para a mais recente coletânea de contos de Muriel Spark, em 2011, afirmou que este volume reflete a diversidade da obra da autora. Galloway também questionou se há necessidade de a crítica buscar recorrentemente classificar o trabalho da autora sob um “adjetivo desprezível precisamente por causa de sua diversidade”. Aos detratores da escritora, Galloway interroga: "Is that knowing, deeply womanly tone cheek by jowl with a resistance to conventional surrender what ‘bothers’ them most?”5 (GALLOWAY, 2011). Em adição, a 4 [sua] sensibilidade às palavras e à sua inteligência oculta [...] o próprio poder das palavras e seu poder sobre a mente. 5 não seria aquele tom conhecido e profundamente feminino lado a lado com uma resistência à abnegação convencional o que mais os incomoda? 20 crítica afirma que uma leitura dos escritos sparkianos não pode restringir-se apenas aos significados imediatamente perceptíveis nestas narrativas, uma vez que Reading Muriel Spark’s stories demands a little reading between the lines. Furthermore, though much has been made of her Catholic conversion (most of it useful as a herring in a box of fireworks), no ecclesiastical empathy or insight is required to love her keen eye for human frailty or her near-Calvinist skepticism6 (GALLOWAY, 2011) Ler as entrelinhas, buscar os sentidos latentes do texto, requer que leitoras e leitores acessem referências que possam contribuir para que a leitura seja efetiva. Isto nem sempre ocorre, pois as narrativas de Spark muitas vezes encontram um público resistente às suas práticas e, por conseguinte, os sentidos que constituem estes textos e a partir deles não são acessados. Por vezes, as leituras restringem-se a procurar evidências de sua conversão ao catolicismo (tão útil “quanto um arenque em uma caixa de fogos de artifício”), o que resulta em equívocos, como afirma Galloway, porque as ficções da autora escocesa não apelam exclusivamente para o conhecimento de base religiosa; o que realmente marca suas obras é “seu olhar aguçado para a fragilidade humana”. Entretanto, é quase impossível para qualquer leitor de Spark dissociá-la de sua conversão, principalmente quando a maioria dos estudos que se ocupam de seus escritos emprega este elemento como base referencial. Assim, apesar de ser admirada por suas “inovações na narrativa”, a posição da autora no cenário literário e crítico, de acordo com Lassner (2004), apresenta-se “indefinido”, ou seja, fora dos cânones do modernismo e do pós- modernismo: “In part, this may be due to the identity politics surrounding her conversion to Catholicism in 1954, after which, as she has attested, she also converted from writing poetry to novels”7 (LASSNER, 2004, p. 41). Como resultado, esta interferência da crença religiosa da autora teve reflexos negativos nas leituras de suas obras, pois em várias ocasiões foi o único elemento considerado por críticos. No entanto, Spark com frequência contribuiu para que este rótulo fosse afixado 6 A leitura dos contos de Muriel Spark exige um pouco de leitura por entre as linhas. Além disso, embora muito tenha sido feito de sua conversão católica (a maior parte disso útil como um arenque em uma caixa de fogos de artifício), nenhuma empatia ou insight eclesiástico é solicitado para amar seu olhar aguçado para a fragilidade humana ou seu ceticismo quase calvinista 7 Em parte, isto pode ser devido à política de identidade que cerca sua conversão ao catolicismo em 1954, depois do que, como ela afiançou, ela também converteu da escrita de poesia para a de romances 21 às suas narrativas, pois repetidas vezes afirmou que as mudanças advindas de sua conversão foram positivas: it gives me a feeling of steadiness, of security, and once you don't care too much any more and don't have anxieties about yourself, you are much more free to create as an artist than if you are riddled with doubts and all sorts of feelings of guilt. Freedom is what I experience in the Catholic faith.8 (HIGGINS, 2004) É importante destacar que a autora também deixe claro que “não propaga a fé católica”, mesmo porque uma quantidade significativa de seus personagens católicos são indivíduos maus e cheios de falhas, não deixando margem para uma diferenciação de outros personagens não católicos. Exemplo deste posicionamento encontra-se no conto “The Black Madonna”9, no qual um casal de ingleses, desejosos de ter um filho, faz seu pedido à Madona Negra; porém, estão mais preocupados em ascender socialmente e conseguir uma casa maior do que com questões sentimentais. O pedido atendido, no entanto, deixa transparecer a hipocrisia do casal, que rejeita a filha por ser negra e para evitar situações incômodas. Negando seus princípios “cristãos”, abandonam a criança, como já haviam feito com a irmã de Lou, que deve contentar-se com ajuda financeira, mas não deve incomodá-la. No conto, a voz do padre lembra Lou de suas crenças: “if you’re a Catholic Christian you’ve got to expect to suffer”10 (p. 49); mas a jovem mãe apenas pensa na reação das pessoas: “Imagine it for yourself, waking up to find you’ve had a baby that everyone thinks has a nigger for its father”11 (SPARK, 2001, p. 51). Mas aqui o falso cristianismo está associado a outra questão de suma importância no conto: a presença de indivíduos negros em uma comunidade de brancos. Tina, amiga de Lou, afirma que os jamaicanos são “gente boa”; mas, quando é lembrada pela amiga que a igualdade é regra básica do pensamento cristão e que “há bispos negros”, revida indignada: “I never said we were the equal of a Bishop”12 (p. 38). Nota-se, ante o diálogo das amigas, que a ideia cristã de igualdade torna-se um argumento fraco quando confrontado com questões 8 ela me dá uma sensação de estabilidade, de segurança, e uma vez que você não mais se preocupa demais e não tem ansiedades quanto a si mesma, você está muito mais livre para criar como artista do que se estivesse cheio de dúvidas e todo tipo de sentimento de culpa. Liberdade é o que eu experimento na fé católica. 9 Publicado em 1958 10 “se você é uma cristã católica, tem que prever o sofrimento” 11 “Imagine você, acordar e descobrir que você teve um bebê que todos pensam ter um preto como pai” 12 “Nunca disse que somos iguais a um bispo” 22 sociais e culturais. No conto, a miscigenação dos antigos colonos ingleses é uma realidade que não pode ser negada nem “enterrada no passado”, sendo que o nascimento da menina negra é uma comprovação. As palavras de Elizabeth, ao agradecer “ao todo-poderoso por não acertar [seus] filhos” com a herança familiar, assemelha-se à rejeição socialmente construída de Lou (“nothing can make it white"13) e de Raymond (“if it was anyone else’s child I would think it was all right”14) (SPARK, 2001, p. 50). Em suma, a hipocrisia do grupo de católicos equipara-se à hipocrisia das demais personagens, mostrando que as relações sociais tornam mais agudas as diferenças, reforçando estereótipos e distanciando grupos distintos. Esta perspectiva assemelha-se à de McQuillan, crítico que se dispôs a realizar uma teorização da obra sparkiana e que repudia a classificação simplista que o termo “católica” atribui à autora, afirmando que seria muito restritivo e deixaria de lado contribuições mais importantes da autora à Literatura: “The uncanny ‘experimental’, or postmodern effects of her writing are continually reduced by the power and authority of English canonical criticism to the safe domain of the properly ‘Catholic’.”15 (McQUILLAN, 2001, p. 4). Segundo o teórico, colocar questões relacionadas a religião como centrais para um estudo crítico teria dois efeitos devastadores: primeiro, por escrever não ser “uma atividade teológica”, sentidos essenciais e estáveis de um texto podem ficar comprometidos; segundo, por ser o sentido “sempre plural”, a escrita sempre acaba por desvencilhar-se “de sua fonte e origem”. McQuillan afirma ainda que, se a crítica insiste tanto em categorizar Spark como católica, deve levar em consideração que a história ocidental é marcada quase totalmente pela presença católica, em razão de uma cultura judaico-cristã ser o centro desta história. Assim, o autor identifica a atual fobia islâmica como um evento cujas origens remontam às cruzadas, uma vez que a globalização como um processo de dominação e colonização retoma o imperialismo romano. Trata-se de uma “experiência política messiânica”, assim como a ideia de democracia fundamenta-se em valores católicos/abraâmicos. Portanto, afirmar que Spark “é” católica diz respeito à sua essência, mesmo ignorando-se toda sua história prévia (a herança judia, a criação “presbiteriana”), mas ao mesmo tempo, indica uma situação atual, que é mais conveniente para a autora: 13 Nada pode torná-la branca 14 Se fosse a filha de outra pessoa, eu pensaria que está tudo bem 15 Os misteriosos efeitos ‘experimentais’ ou pós-modernos de sua escrita são continuamente reduzidos pelo poder e autoridade da crítica canônica inglesa para o domínio seguro do propriamente 'católico'. 23 Spark is a writer of the ‘is’, of the present. Her novels are a conductor for all the signs and meanings in circulation in the contemporary scene. Whether is the decolonization of the fifties in her short stories, the feminist concerns of the sixties in Jean Brodie, the Eichmann trial in The Mandlebaum Gate, the early-seventies geo-political crisis of capital in The Takeover, the revaluation of London in the eighties (A Far Cry From Kensington), or the question of redundancy in the nineties (Reality and Dreams).16 (McQUILLAN, 2001, p. 5) Ao fornecer este esboço das questões “teológico-políticas” do ocidente que, ao longo das últimas décadas, configuraram como referência para as narrativas de Spark, o autor reforça, ainda, sua concepção de que os romances sparkianos tratam especificamente de temas que interessam à humanidade. Este pensamento é compartilhado por John Tusa, jornalista britânico para quem a religiosidade que se entrevê na ficção da autora escocesa deve ser pensada no sentido de que “tudo importa”, principalmente “nossa humanidade”: “she and her characters carry with them a strong sense of the fact that everything matters, but, as she puts it, nothing matters more than our humanity.”17 (TUSA, 2001). Devemos salientar, adicionalmente, que esta preocupação com a humanidade pode ser registrada nas narrativas de Spark através da subversão de alguns padrões os quais, segundo Waugh (1984), seria “a aceitação e a subversão de sua fé e do romance”, que passam a configurar como base metafísica de suas narrativas: “They facilitate her satirical treatment of the irrationalities of a world where everyone has forgotten God, through the stylized creation of fictional worlds where absolutely no one, and certainly not the reader, is allowed to.”18 (WAUGH, 1984, p. 121). Ainda que este comentário retome a questão da influência religiosa sobre a composição ficcional, Waugh destaca que o tom satírico das produções sparkianas contribui para desbancar a convenções: o mundo construído é incongruente, assim como as práticas religiosas perdem seu sentido quando o humor desvia a atenção do leitor para construções que não parecem ter relação com o que se considera real; mas, que, ao mesmo tempo revela a realidade de seus indivíduos de forma agressiva e cruel. 16 Spark é uma escritora do “é”, do presente. Seus romances são condutores de todos os signos e sentidos em circulação na cena contemporânea. Mesmo que seja a descolonização dos anos 50 em seus contos, os interesses feministas dos anos 60 em Jean Brodie, o julgamento de Eichmann em The Mandlebaum Gate, a crise geopolítica do capital no início dos anos 70 em The Takeover, a reavaliação de Londres nos anos 80 (A Far Cry From Kensington), ou a questão da redundância nos anos 90 (Reality and Dreams) 17 Ela e seus personagens carregam consigo um forte senso do fato de que tudo importa, mas, como afirma ela, nada importa mais que nossa humanidade. 18 Elas facilitam seu tratamento satírico das irracionalidades de um mundo onde todos esqueceram Deus, através da criação estilizada de mundos ficcionais onde absolutamente a ninguém e, certamente, nem ao leitor, é permitido esquecer. 24 Tendo modificado as estruturas constituintes dos mundos ficcionais, a autora pode apresentar propostas para uma nova compreensão da realidade, na qual os personagens ficam presos ao “script da romancista”. Esta situação restringe a liberdade das personagens, pois quem escreve detém um poder superior que controla tudo: This is achieved through the plot device of prematurely revealing the ends of the characters in ‘flashforwards’ near the beginning of the book. Reading such a novel for the first time, with its exaggerated sense of an ending and technique of advanced significance, is like the second reading of a conventional novel.19 (WAUGH, 1984, p. 120) Esta antecipação (flashforward) dos eventos que organizam a narrativa é empregada nos romances da autora, como em “The driver’s seat”, no qual a morte da personagem Lise é anunciada no início do segundo capítulo. Sabendo desde então o destino da personagem, os leitores acompanham sua trajetória angustiante rumo à morte. Este mecanismo narrativo, de início, gera a impressão que Waugh (1984, p. 43) descreve como se fosse “a segunda leitura de um romance convencional”, mas a crítica também afirma que ele reverte o “código hermenêutico” quando a ficção muda o foco da leitura, em que o interesse não está unicamente amparado no saber a sequência dos eventos (“What happens next?”), mas em saber quais foram as condições que levaram a este evento (“Why did it happen?”). Em entrevista concedida a Stacey D’Erasmo em 1997, Muriel Spark afirmou estar consciente de ser uma “experimentalista” desde que começou a escrever seus romances, destacando seu conceito quanto ao que considerava ser uma narrativa bem construída: “with a beginning, a middle, and an end, but the beginning doesn't necessarily begin at the beginning, the middle might occur at any moment and the end need not be at the end of the book.”20 (D’ERASMO, 1997). A proposta da autora deixa evidente que a narrativa não deve ser uma simples apresentação de causa e efeito, o que levaria a um apelo “realista” do mundo e de seus atores, segundo a qual as ações de um indivíduo devem consecutir em recompensa ou castigo. Por isso, a antecipação dos eventos sugere que a mudança do foco da narrativa também resulte em uma mudança de atitude dos leitores da escritora, sendo necessário um 19 Isto é obtido através do dispositivo de trama que revela prematuramente os finais das personagens em “flashforwards'' perto do início do livro. Lendo um romance assim, pela primeira vez, com seu senso exagerado de um fim e técnica de importância avançada, é como a segunda leitura de um romance convencional. 20 com um começo, um meio e um fim, mas o começo não inicia necessariamente no começo, o meio pode ocorrer a qualquer momento , e o fim não precisa estar no final do livro. 25 olhar capaz de vislumbrar, nestes textos, a complexidade de relações que envolve, a um só tempo, indivíduos que interagem entre si, eventos por eles provocados e a sociedade onde se movimentam. Em função deste aspecto, Lawson (2006) menciona que quando Spark começou a empregar este recurso, os editores advertiram a autora de que ele poderia “reduzir a tensão”, mas ela insistiu em utilizá-lo, alegando que o interesse dos leitores poderia crescer “enquanto uma sombra recai sobre o personagem”21. No romance sparkiano, a tensão narrativa equivale a uma nova questão que torna a leitura mais complexa: em “The driver’s seat” todas as ações de Lise contribuem para seu final trágico, principalmente quando há uma voz narradora afirmando insistentemente que os objetos adquiridos pela personagem serão usados por seu assassino. A exposição dos eventos em nada ajuda para identificar a motivação, uma vez que a narração acompanha a vítima e, quando o assassino fala, apenas afirma que ela o “obrigou”, o que não pode ser considerado um argumento aceitável sabendo-se que ele estava em tratamento por violência contra mulheres e que somente ele pode falar sobre o momento quando Lise foi morta. Fica evidente que a antecipação do “final” da narrativa não pode ser vista como um recurso facilitador da leitura, pois muitas vezes Spark prefere torná-la mais intricada. É oportuno destacar que, com referência aos romances da escritora escocesa, é frequente os estudiosos associarem ao flashforward o recurso da concisão, por serem estes escritos considerados curtos e muitas vezes classificados como “novelas”. No entanto, a preferência de Spark pela economia de palavras resultou em uma recepção crítica que Turner (2006) considera pouco favorável e justa: the economy of her novels - most of them are only around 100 pages long - have caused several "heavyweight" critics to mistake their author as a light and trivial lady authoress. That is, of course, only their loss, and, in any case, a view which, in recent years, went right out of fashion.22 (TURNER, 2006) Esta “economia” característica de sua ficção foi regularmente exaltada pela escritora, afirmando ser ela resultado de sua preferência pela escrita “comercial” (sempre precisa, direta 21 as a shadow falls across the character 22 a economia de seus romances – a maioria deles tem extensão média de 100 páginas – tem motivado vários críticos “de peso” a discriminarem sua autora como uma senhora autora leve e trivial. O que é, certamente, um prejuízo para eles, e, em todo caso, uma visão que recentemente ficou fora de moda. 26 e clara), o que a motivou a fazer um curso de “escrita precisa” e aplicá-la em sua obra: “I love economical prose, and would always try to find the briefest way to express a meaning”23 (SPARK, 1992, p. 102). O emprego deste recurso despertou o interesse de críticos como Mullan (2004a) que, ao estudar as narrativas sparkianas, busca na língua francesa o termo que considera mais adequado a elas: o conte. A expressão, usada até meados do século XIX, parece suscetível de aplicação à maioria da ficção sparkiana, assim como fora empregada para designar obras como Cândido, de Voltaire, e O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde. Segundo o autor: The conte is fantastic, witty, often satirical. It is a tale whose moral or philosophical content might be pronounced, but which has little of the interest in psychological depth and circumstantial detail that we might expect from novels. For this reason, the conte is usually short. It might be profound, but it is not weighty. […] the fiction stems not from a number of realistically conceived characters but from a notion, a premise, an intellectual experiment […] The writer is letting loose an experiment rather than trying to fill a believable fictional world.24 (MULLAN, 2004a) Os leitores da escritora escocesa estão acostumados a alguns dos predicados utilizados por Mullan, uma vez que são recorrentes quando seus romances tornam-se objeto de estudo. Por este motivo, mediante a apresentação do termo francês, o autor não apenas introduz um conceito passível de ser aplicado aos escritos da autora, mas, em adição, deixa evidente alguns de seus aspectos, como o caráter experimental, o tom satírico, a “profundidade” não “pesada”, o não comprometimento com o realismo destas ficções. O aspecto experimental pode ser considerado uma das características atribuídas com maior frequência por críticos mais receptivos às narrativas de Spark. Deste grupo de estudiosos, McQuillan é um representante importante, pois suas leituras o levaram a considerar tais textos “prematuros”; ou seja, segundo o crítico, eles surgem em um tempo anterior ao que seria próprio ou natural. Deste modo, este aspecto também contribui para que a autora seja colocada em condição de marginalidade relativamente à tradição literária de sua época: 23 Eu amo prosa econômica, e sempre poderia tentar encontrar o jeito mais sucinto de expressar um significado. 24 O conte é fantástico, genial, muitas vezes satírico. É uma história cujo conteúdo moral ou filosófico pode ser pronunciado, mas que tem pouco interesse em profundidade psicológica e detalhes circunstanciais que poderíamos esperar nos romances. Por esta razão, o conte geralmente é curto. Pode ser profundo, mas não é pesado. [...] a ficção advém não de uma série de personagens concebidos de forma realista, mas a partir de uma noção, uma premissa, uma experiência intelectual [...] O escritor está deixando à solta um experimento em vez de tentar encher um mundo ficcional crível. 27 Experimentation is a complex term that is often used to imply that writers who predicate the progress of the novel are extraneous rather than central to their tradition. […] Spark’s novels are untimely because they represent the political value of the contretemps. They are unseasonable, inopportune, ill-timed, always unorthodox, constantly misread.25 (McQUILLAN, 2002, p. 11) A experimentação presente em algumas narrativas da escritora, da qual a concisão e a antecipação são exemplares, causa estranhamento na crítica tradicional porque questiona os sentidos construídos na contemporaneidade, com suas influências tecnomidiáticas. Este fato se nota pelo uso da sátira, usada para zombar das personagens e torná-las caricatas e ridículas ao olhar dos leitores. Enquanto registro de uma realidade falsa, estas personagens mostram como a contemporaneidade esmagou as individualidades. Uma possível explicação para a construção desta pseudorrealidade seria possibilitada pela observação do processo de globalização, evento por meio do qual os indivíduos passaram a aceitar um padrão de comportamento e um conceito de realidade “ideal” que a mídia lhes impôs e ainda impõe. Deste modo, de acordo com McQuillan, os romances de Spark produzem sua própria forma de conhecimento, “emergindo da conjunção histórica em que estão enraizados”; ou seja, estão ligados ao que ele define como as “condições da pós-modernidade”, que estes romances registram e definem (McQUILLAN, 2002, p. 6). Como resultado, tornou-se necessário abandonar o realismo porque existe apenas uma pseudorrealidade criada pelo novo espaço midiático, no qual se constroem as identidades e, por isso, é necessário uma “redistribuição das possibilidades narrativas”, o que corresponderia à “possibilidade de um modo diferente de entendimento” (McQUILLAN, 2002, p. 9-10). Em outros termos, a manutenção e o emprego de técnicas narrativas capazes de estabelecerem relações de verossimilhança não seriam adequados para a ficção da autora. Isto porque parece ao autor que as referências destes mundos ficcionais, que poderiam ser consideradas mais comprometidas com o realismo, não passam de ilusão. Somos levados a refletir a respeito da persistência, na sociedade, das diferenças sociais e de indivíduos que ainda enfrentam algum tipo de hierarquização, seja com relação a questões de gênero, de classes sociais, de grupos culturais ou étnicos, que estão presentes nas ficções da escritora. Podemos afirmar, também, a prevalência de uma visão de que estas divisões indicam a 25 Experimentação é um termo complexo que muitas vezes é usado para indicar que os escritores que predizem o progresso do romance são mais estranhos que centrais para sua tradição. [...] Os romances de Spark são prematuros porque representam o valor político do contratempo. Eles são intempestivos, inoportunos, fora de tempo, sempre não ortodoxos, constantemente mal interpretados. 28 necessidade de pôr à mostra e ridicularizar o ideal de igualdade e justiça social que o discurso contemporâneo afirma construir sob o amparo da globalização e dos avanços tecnológicos. Por esta razão, é digno de nota o fato de vários estudiosos apontarem nesta obra inovações textuais que a crítica tradicional habitualmente não considera importantes ou mesmo coerentes, pois as particularidades identificadas nestes romances extrapolam os limites do texto. É necessário, para que elas sejam depreendidas de forma mais abrangente possível, que se estabeleça uma relação entre o texto e a realidade a partir da qual seus sentidos são construídos. McQuillan sugere que somente por meio desta aproximação entre práticas textuais e sociais a ficção de Muriel Spark poderá ser compreendida para além dos estereótipos. Como veremos na seção a seguir, especialmente quando se busca determinar como os fatores extratextuais podem influenciar ou mesmo organizar a construção de sentidos do texto, podemos nos deparar com obstáculos passíveis de embaraçar a leitura e, mais ainda, comprometer a compreensão destas narrativas. Aos elementos que a crítica indica como distintivos da escrita sparkiana, apresentados até o momento, pretendemos agregar outros que possam contribuir para que o diálogo entre a realidade textual e social resulte em uma percepção de questões profundas que interessam à sociedade contemporânea e que a ficção sparkiana pode intermediar. 1.1.2 – Moldes e recortes sparkianos: personagens em debate Para Muriel Spark, a base de sua ficção ampara-se no desejo de “escrever sobre a vida, a qual [ela] primeiro tinha que ver”26 (SPARK, 2001, p. 4), expresso em um de seus contos e regularmente reafirmado pela autora. Em termos práticos, este desejo se tornou possível devido a dois eventos: seu casamento e, posteriormente, seu divórcio; o casamento deu-lhe condições de “ver o mundo”, enquanto o divórcio deu-lhe liberdade para seguir seu caminho e, assim, escrever. O que Spark conseguiu ver do mundo certamente não se traduz em termos geográficos, mas em seus aspectos socioculturais, de forma que este conhecimento marcou também o modo como passou a ver a realidade desde então e como a escritora passou a representá-la em sua obra. 26 to write about life, which first I had to see 29 Ainda que em Curriculum Vitae (1993), sua autobiografia, Spark faça questão de registrar sua produção e consequente reconhecimento quando ainda era criança, o fato de ter conseguido viver de sua escrita somente após divorciar-se possibilita a seus leitores pensarem em como podem classificar esta produção como a marca de uma fase mais madura, regada e amparada pelas vivências e experiências da autora em sua condição de mulher. Esta perspectiva torna-se importante para o entendimento da obra sparkiana porque os mundos ficcionais nela presentes estabelecem uma relação em que a base social e cultural pode ser reconhecida e compartilhada por leitoras e leitores de sua ficção. Para estabelecer esta relação na ficção sparkiana, muitas vezes é preciso que se questione a insistência da crítica literária em classificá-la como católica; o que se torna relevante porque, como já mencionamos, tal classificação resulta em leituras que restringem a observação de aspectos adicionais de sua escrita. Apresentar indícios da influência da crença da autora nos textos não parece ser uma atividade complicada para a crítica; pelo contrário, é até facilitadora, pois elimina a possibilidade de suplantar o enfoque exclusivo na oposição entre bem e mal, vida e morte, sem esquecer a força divina manipuladora, como predomina nos comentários daqueles que se ocupam de analisar as narrativas da autora. Adotando uma visão maniqueísta destas ficções, baseando-se na comparação entre a escritora e Deus para propor a pré-determinação do destino das personagens, as leituras tornam-se unifocais, ou seja, restritas. Fica evidente, ao observarmos esta orientação crítica, que se corre o risco de tal limitação comprometer a identificação das verdadeiras forças em conflito nestas narrativas. Por um lado, é certo que as personagens sparkianas estão continuamente em busca de realização e, por esta razão, enfrentam forças que se opõem a tal empreendimento, exigindo sempre tomadas de decisão e o emprego de recursos não tradicionais de atuação social para chegarem ao seu destino. Por outro lado, podemos considerar que a busca depreendida pelas personagens caracteriza um projeto individual e, ao mesmo tempo coletivo, em que cada indivíduo precisa encontrar forças para atingir seus objetivos e enfrentar os obstáculos que a elas se impõem por serem representantes de um grupo considerado minoritário. Observamos nestas mulheres o desejo de encontrarem seu lugar social, de valorizarem suas experiências e atuarem livremente no meio em que se encontram. O problema, contudo, fica expresso na dificuldade encontrada por elas para realizarem esse projeto, especialmente porque lhes é necessário efetuar mudanças em uma sociedade organizada de forma a não lhes dar espaço, calando sua voz e limitando espaços para sua atuação. Este fator pode explicar o porquê de as leituras da ficção sparkiana nem sempre 30 identificarem estas forças opressoras, pois estão elas em funcionamento há tanto tempo que são vistas como legítimas. A busca destas mulheres, nas narrativas da autora, distingue-se por criar possibilidades que lhes deem o poder de intervir socialmente, de tomar decisões e realizar seus desejos, sem que isto as obrigue a pensar apenas no outro, esquecendo-se de si mesmas. Este é o motivo de alguns estudiosos identificarem a existência de uma força que pré-determina o destino das personagens e desempenha papel importante nestes escritos: ela é vista como um fator determinante para que se cumpra um esquema impossível de ser evitado. Críticos como Bottum afirmam que na ficção sparkiana a trajetória da personagem ganha aspecto positivo apenas quando ela finalmente “se torna uma personalidade única”. Para que isto ocorra, no entanto, é preciso que ela lute contra seus anseios individualistas e atinja uma percepção mais universal, abandonando a percepção de si em favor do outro. Personagens cujo “uso do self como medida da verdade” impõe-se sobre as demais, afirma o crítico, não têm sucesso e são punidas por seu egoísmo; poucas podem ser recompensadas ao final das narrativas: “[it] is usually reserved for the few characters who accept the necessity for self-sacrifice, stumble across a chance for self-denying love, or find a small measure of selfless grace”27 (BOTTUM, 2000). É interessante considerarmos que o crítico fala de um lugar bem definido: ele contribui para revistas como Weekly Standard, classificada como neoconservadora, e First Things, revista da qual é editor e em que são publicadas matérias relacionadas a temas religiosos. Tal informação tem-nos utilidade na medida em que permite identificarmos uma relação próxima entre uma forma de estar no mundo e as leituras feitas por ele das narrativas de Spark. Amparados por esta perspectiva, podemos refletir quanto aos limites impostos às leituras dos textos da autora, principalmente pela associação entre a figura da autora com um Deus cruel que massacra suas “criaturas”. Este ponto de vista, que causaria uma leitura truncada dos textos sparkianos, não deve ser completamente desprezado por suas leitoras e seus leitores, uma vez que, segundo afirma Lassner (2004, p. 42), a autora “nega qualquer relação ideológica com suas personagens ou voz narrativa” e, por isso, seria uma justificativa para que a analogia mencionada seja vista como coerente. É inquestionável a presença de uma força que permeia as narrativas sparkianas; opressora e, até, mortal para suas personagens. Contudo, devemos considerar que esta força não se trata do resultado do embate entre bem e mal, em especial se observarmos que as personagens que protagonizam estes textos, quando “castigadas”, não podem ser classificadas 27 geralmente é reservado às poucas personagens que acolhem a necessidade de autossacrifício, deparam-se com uma chance de amor abnegado, ou encontram uma pequena medida de graça altruísta. 31 como indivíduos merecedores deste destino; de modo análogo, seus oponentes não são considerados altruístas, ingênuos ou justos. Em contos como “The curtain blown by the breeze”, por exemplo, a morte da protagonista não condiz com um desfecho justo porque podemos identificar a força predominante como a lógica de um mundo social dominado por práticas que afastam as mulheres do poder e pune aquelas que tentar resistir aos seus regulamentos. A protagonista, Sonia, em sua busca por realização na condição de mulher branca na sociedade africana, torna-se ativa e influente neste meio mediante a ajuda das enfermeiras europeias. No entanto, se inicialmente podemos vê-la como uma personagem egoísta que se aproveita da prisão do marido para livrar-se dos filhos e obter sucesso e influência social, em um momento posterior é possível percebermos que a personagem estabelece relações mais complexas com as demais personagens que a apoiam. Esta afirmação é possível se pensarmos no fato de a ascensão social de Sonia simbolizar, na realidade, a luta das mulheres por espaço social. Por este motivo, ela deve sofrer as sanções da sociedade sexista quando do retorno de seu marido: com a morte da personagem, põe-se um fim nos planos das mulheres. É interessante pensar em quão elementar seria afirmar que as forças que tanto interferem nas ações e, principalmente, no destino destas personagens, geram vida e morte nestes textos, resultando em ser a morte a força mais potente nestas narrativas e mais presente que a vida. Entretanto, podemos ver a morte não apenas como uma punição para as personagens, pois a presença do sobrenatural, que é constante em Spark, muitas vezes tem a função de tirar da sombra estas personagens, tornando-as visíveis e dando a elas uma voz capaz de denunciar sua situação de opressão e marginalização. No conto “The girl I left behind me”28 (SPARK, 2002, p. 326-329), torna-se exemplar o fato de a rotina estressante e esmagadora em um escritório tornar-se mortal para a mulher que trabalha e sofre as pressões sociais por sua atuação profissional. Com o intuito de elucidar como isto ocorre, somos conduzidos por uma narradora que, por ser vista como mero objeto sexual, não percebe a mensagem implícita das canções que o patrão assovia durante o expediente: The girl I left behind me e Softly, softly. A primeira, uma canção tradicional irlandesa cantada pelos soldados americanos durante a Revolução e a Segunda Guerra, narra as peripécias de homens solitários que se envolvem facilmente com as mulheres nos lugares onde combatem. Por dar nome ao conto, a canção simboliza o jogo de sedução em que a personagem se envolve, complementada pela promessa de amor eterno e “suave” a que 28 Publicado em uma coletânea de 1958 32 remete a segunda canção, composta por Foster & Allen e interpretada por Ruby Murray na década de 1950. Nota-se no conto que o tom positivo sugerido pelas músicas e a possibilidade de uma relação amorosa são anulados ao longo da narrativa pela ânsia declarada pela personagem em afastar-se do ambiente de trabalho enquanto sente a necessidade de descobrir o que ficou para trás. Enquanto volta para casa de ônibus, a narradora menciona que, não somente as músicas, mas também o hábito cultivado pelo patrão de manipular o nó da gravata incomoda-a muito, sem perceber que tal gesto antecipa a forma de agressão que sofrerá. A descoberta do corpo estrangulado no chão indica a nova condição da personagem, que deixa de ser “garota” por meio de um ato violento e tem que lidar com o sentimento de abandono, ao sentir-se “particularmente anônima” na multidão. Socialmente invisível e silenciada, ela precisa reencontrar-se para se livrar do “sentimento de incompletude”, o que ocorre no momento em que “reconhece” seu corpo, ambiguamente identificando-o e conhecendo-o novamente. Vale mencionar que, de forma semelhante, encontramos em outras narrativas a morte como fator que oportuniza a denúncia das desigualdades entre mulheres e homens, como em “The Portobello Road”29, no qual a narradora evidencia problemas da colônia africana que afetam as mulheres brancas e, de forma mais impactante, as mulheres negras, subjugadas pelo poder masculino dominante. A visibilidade adquirida pela narradora após sua morte lhe dá condições para revelar a identidade de seu assassino e, em decorrência, garantir sua punição, mesmo que seja sob a forma de fragilização de seu estado mental. É importante que consideremos, em adição, que os termos invisível e silenciada são bem conhecidos pelas mulheres e, de certa forma, compartilham com o estado de morte a falta de espaço público e, por isso, de representatividade social, cultural e política. O fato de a morte ter, na narrativa sparkiana, a função de tornar as mulheres presentes no espaço que lhes foi negado é importante, por definir uma visão que se dispõe a revelar uma realidade que muitas vezes destoa do que é considerado normal, aceitável e, mais ainda, verossímil. A premissa apresentada por McQuillan (2002), de que a ficção de Spark emprega recursos que contribuem para uma apreensão diferenciada do mundo real seria, então, a perspectiva mais funcional para as leituras que nos dispomos a realizar. Por isso, consideramos oportuno mencionar que vários estudiosos destacam que a dificuldade de encontrar sentido na busca das personagens de Spark baseia-se na alta probabilidade de fracassarem, manifesta pela presença de um “poder superior” que as esmaga. 29 Publicado em 1958. 33 Lodge (1985), ao tentar explicar os problemas que envolvem a leitura das narrativas sparkianas, principalmente em busca de uma justificativa para o insucesso das personagens, identificou uma força à qual denominou “vingança autoral”: there is a streak of that authorial vindictiveness toward her own characters which some readers cite as a reason for not succumbing to Mrs. Spark's literary skill. It is perfectly true that her imagination is fascinated by revenge, humiliation and ironic reversals, and that she looks upon pain and death with a dry, glittering eye. Nevertheless, in the novels, if not always in the short stories, this cruel streak in her work is restrained and tempered by the comic spirit.30 (LODGE, 1985) O tom cômico das narrativas de Spark, segundo o autor, seria responsável por escamotear a violência que assola suas personagens, gerando o estranhamento e, até mesmo, a rejeição por parte de alguns leitores. Mas o fato de, por diversas vezes, as personagens serem expostas ao ridículo, sendo caricatas, faz remissão à proposta semelhante de McQuillan (2002) de que a técnica posta em prática pela escritora ampara-se no emprego da zombaria como elemento construtor de uma forma diferenciada de mostrar a realidade. Em uma palestra proferida em 1971, a própria autora destacou alguns aspectos que podem ser associados à comicidade de seus escritos e, por isso, explica sua opção por uma representação não realista da sociedade humana. Mediante uma apresentação de situações cômicas, as personagens percebem-se destituídas de poder e, por isso, as narrativas evidenciam uma posição crítica que revela “uma arte socialmente consciente” (SPARK, 1971, 23, apud LASSNER, 2004, p. 48). Para Spark, este “olhar cruel e brilhante” de contentamento a que se refere Lodge é resultado do emprego de uma ferramenta muito mais eficiente do que a exploração do “sofrimento descrito”, que é uma forma de tratamento das mazelas humanas muitas vezes consecutindo em “culto da vítima” causado pelo compadecimento dos leitores pelo sofrimento do indivíduo. Em contrapartida, a zombaria contribui para que a tragédia responsável por levar a personagem até aquela situação fique evidente. De forma complementar, a autora afirma ser problemática a tomada de atitudes como simpatia e indignação: The problem is that “sympathies and indignation” could lead audiences to “feel that their moral responsibilities are sufficiently fulfilled by the emotions they have been 30 há um vestígio daquela vingança autoral dirigida às suas próprias personagens que alguns leitores citam como razão para não sucumbirem à habilidade literária da Sra. Spark. É perfeitamente verdadeiro que sua imaginação é fascinada por vingança, humilhação e inversões irônicas, e que ela olha para a dor e a morte com um olhar seco e brilhante. No entanto, nos romances, se não sempre nos contos, este vestígio cruel em seu trabalho é contido e temperado pelo espírito cômico. 34 induced to feel” and so to feel “absolved”. “Crude invective,” on the other hand, is likely to end in violent action31 (SPARK 1971, 23-25, apud LASSNER, 2004, p. 48) Fica claro que Spark descarta qualquer ligação emocional com seus personagens e, dada a visão socialmente abalizada, este recurso tem o intuito de despertar em seus leitores uma percepção das crueldades, das violências e da incongruência de nossas sociedades. Ao servir-se do distanciamento como elemento central para a constituição das personagens, o efeito pretendido é fazer com que as personagens sejam definidas por suas imperfeições e, consequentemente, por sua proximidade com os indivíduos reais. Por causa desta contiguidade, é preciso notar que poucas vezes tais personagens mantêm relações harmoniosas com os demais integrantes de seu grupo social, pois cada indivíduo se encarregará de apontar os defeitos dos outros e, ao fazerem isto, apelam para sua humanidade. Mullan (2004b) afirma que as personagens sparkianas são tratadas desta forma pela autora porque a distância que se estabelece entre as instâncias textuais, personagem e autor, permite que seus leitores reconheçam nas relações mais próximas o comportamento de predadores que disputam alimento ou espaço. Marcadas pela ausência ou pela subversão das emoções, as ficções sparkianas refletem o princípio de controle e distanciamento defendido pela autora como forma de evitar o envolvimento emocional dos leitores. Para melhor elucidar a questão da zombaria sparkiana, remetemos ao trabalho de Little (1983, p. 1), de acordo com o qual as “imagens cômicas” têm uma dupla função que pode ser reconhecida pelos leitores sem grandes dificuldades. Estas imagens oportunizam a apresentação de “retratos dos desiludidos e dos oprimidos enquanto zombam do hipócrita ou do tirano” e, por ser “alguém de fora”, um outsider, tem a chance de subverter a ordem social e ideológica até mesmo por meio de “afirmações cômicas conservadoras”, que adquirem o sentido contrário ao direcionar o riso para este outsider que não se enquadra nas normas de belo ou de “comportamento apropriado”. Segundo a estudiosa, estas funções são importantes porque Both of these comic attitudes or approaches have been variously explained and defined as rooted in celebrations of human vitality, or linked to a satiric purpose, or released as wit from the psychological censor responsible for the civil utterance of sexual and aggressive impulses. (LITTLE, 1983, p. 1) 31 O problema é que “simpatia e indignação” podem levar o público a “sentir que suas responsabilidades morais estão suficientemente resolvidas pelas emoções que foi induzido a sentir” e também a se sentir “absolvido”. A “investida cruel”, por outro lado, é provável que acabe em ação violenta. 35 Little, ao relacionar o emprego das imagens cômicas na ficção e as “celebrações da vitalidade humana”, esclarece que há a possibilidade de os indivíduos se libertarem das formas de censura socialmente construídas, deixando à mostra seus “impulsos sexuais e agressivos”. A autora destaca que a comicidade também compartilha similaridades com as transições da vida (nascimento, iniciação, casamentos e morte) marcadas por três fases: de separação, de liminaridade e reintegração (LITTLE, 1983, p. 2). É na fase de liminaridade que as pessoas encontram-se “desprovidas de identidade, função e mesmo de identidade sexual”, em um momento ao qual a autora nomeia “período de licença”, livre de comportamentos normatizados. Ao estudar o emprego da comicidade nos trabalhos de Woolf e Spark, Little apresenta estes aspectos como elementares nas produções de ambas as escritoras e, posteriormente, esclarecerá que o riso, para elas, exige um “novo enredo” (p. 178). Este “novo enredo” a que se refere Little é semelhante às “novas possibilidades” a que se refere McQuillan e, por isso, permite-nos que consideremos a comicidade nas narrativas em sua função social relativa às pretensões da autora; ou seja, ela denuncia a violência da vida moderna, a falsa realidade construída por aqueles que detêm poder e as dificuldades que os indivíduos enfrentam para se relacionarem e conquistarem sua liberdade e autonomia. Todos os problemas individuais, de caráter social ou psicológico, são expressos por meio da zombaria sparkiana, a qual recorrentemente é mal interpretada por seus leitores. O posicionamento observável no público leitor de Spark encontra explicação na afirmação de Turner (2006), de que os críticos “de peso” reduziram o valor dos trabalhos da autora considerando-a uma “autora leve e trivial”. Ao fazerem isto, estes críticos apenas isentam-se de abordar os temas explorados pela escritora e, de forma mais específica, de esclarecer a origem dos conflitos presentes em sua ficção e expressos através da comicidade. Em sua opinião, questionamentos relacionados à natureza destes conflitos são comuns, mas é frequente destacarem algumas limitações, principalmente relacionadas à constituição das personagens. De modo semelhante, Lassner (2004, p. 42) identifica uma “indeterminação ideológica” causada pela indefinição da ênfase a ser dada nos textos de Spark, pois não se pode identificar uma “moral humana fixa” nem uma “recusa da moral”. Neste âmbito, afirma o autor que a ideologia identificada nas narrativas sparkianas resulta mais em complicações que em explicações, uma vez que seu humor dissimulado tem como alvo “as convenções sociais e políticas representadas por seus narradores e suas personagens”. O ponto de vista do autor estabelece, assim, um diálogo com críticos literários como Clark (2006), que coliga o 36 “sério debate moral, ético e espiritual” presente na ficção da autora escocesa ao emprego aparente contraditório deste debate em suas comédias, situando-o em “contextos aparentemente incongruentes” cujo resultado são seus romances leves. Levando-se em consideração as reflexões acerca da obra de Spark, podemos pensar que a composição do texto literário exige uma capacidade que extrapola o conhecimento simples e superficial. Para Silva (2004), tal conhecimento corresponderia a uma forma de ver o mundo e seus atores suscetível de capacitar escritoras e escritores a “mobilizar[em] os princípios de elaboração e validação e as propostas interpretativas” da realidade. O resultado seria, então, a capacidade de falar “sobre, para e com a sociedade, intervindo na esfera pública, no espaço da cidadania, a partir, também, das posições e dos interesses culturais” (SILVA, 2004, p. 51). Sendo assim, torna-se provável que a proposição de “novas possibilidades” ficcionais avalizadas pela zombaria sparkiana seja responsável pela classificação negativa dada pela crítica tradicional, incapacitada que está de reconhecer o teor contestador e denunciador das pressões, opressões e violências sociais, culturais e políticas. Tais considerações servem de esteio para pensarmos a respeito do tratamento dado pela crítica às narrativas que se dispuseram a desaprovar as práticas sociais e políticas em vigência. Para refletir acerca da forma como o conteúdo ideológico das obras da autora toma forma em seus estudos críticos, consideramos conveniente mencionar o trabalho de Turner (2007), ao comentar a respeito da importância de Spark para o romance. Segundo esta autora, há críticos que consideram seus romances “menores” por concebê-los como “performances de contenção”, ou seja, não obstante destaquem nestes escritos a linguagem simples e concisa, não reconhecem seu mérito porque estão apegados a valores que separam o que é periférico, central e de “plena inclusão” em polos distantes. Em suma, os críticos não sabem onde podem situar a ficção sparkiana, o que se torna um grande problema e, por isso, uma tarefa mais facilmente resignada. Para Turner, a explicação para a “desqualificação” das narrativas sparkianas reside na falta de interesse da escritora pela apresentação de famílias. De acordo com a estudiosa, há uma “deliciosa perversidade” nas personagens, a qual desvia a atenção da necessidade de inserção de grupos familiares, do cuidado com as crianças e do amor romântico: há uma consciência do eu muito pronunciada. Também explica ele que outros estudiosos, no entanto, poderiam identificar nesta ficção que a falta de famílias “certinhas” reflete um alto teor de influência do conteúdo autobiográfico sobre a ficção. 37 Esta interferência, embora possa prestar esclarecimentos quanto à questão ideológica presente nestas obras, com frequência representou em fator adicional para a limitação das leituras feitas pela crítica. Em primeiro lugar, a identificação dos dados biográficos tem suporte na realidade sensível, historicamente construída, que serve de base para toda e qualquer criação literária. Em segundo lugar, tal identificação remete às declarações da autora, continuamente afirmando que toda experiência que viveu, ouviu ou testemunhou tornou-se matéria para sua ficção: “Most of the memorable experiences of my life I have celerated, or used for a background in a short story or novel.” (SPARK, 1993, p. 120). Durante entrevista concedida a Galloway, em 2000, Spark afirmou: "I don't see what else you can draw on for fiction but your life, […] not only your own life but what you've learned or read from other people's lives. It's one's own experience after all, don't you think?"32 (GALLOWAY, 2000). A entrevistadora complementa que, ainda que os ambientes e as personagens façam remissão a “detalhes sólidos” da vida da autora, o reconhecimento de tal relação com recorrência resulta em um “sentimento de surrealidade”. Este sentimento pode ser evidenciado se pensarmos na proximidade existente entre a mais famosa personagem sparkiana, Jean Brodie, e Miss Kay, que foi professora de Spark e marcou sua formação enquanto escritora e mulher. Sobre a professora, a autora afirma que seria ela “uma personagem em busca de um autor” (“[a] character in search of an author”). Ainda que sirva de inspiração para a constituição de Jean Brodie, as diferenças entre elas são marcantes, pois a autora teve a intenção de mostrar o quanto os professores podem ser influentes na formação humana de seus alunos, como foi para ela. Mas não podemos limitar os sentidos e as referências da autora a apenas suas experiências ou ao contato com pessoas mais próximas. É importante destacarmos uma consciência mais abrangente da realidade humana, em que as sociedades são expressas em seus aspectos basicamente negativos, evidenciando as forças que muitas vezes agem contra os indivíduos, sejam em contextos específicos, como a África colonial ou o contexto mundial pós-guerra, ou em quaisquer outros. Por esta razão, Galloway (2011) insiste em afirmar que a ficção de Spark não pode ser vista como “reportagem autobiográfica” ou como “relatório policial”; antes, deve ser levada em consideração a intervenção da autora sobre os fatos, como um fio condutor que “atende às transformações da Arte”. Quanto a este aspecto, ao ser 32 Eu não vejo o que mais você pode aproveitar para a ficção que não seja sua vida, [...] não só a sua própria vida, mas o que você aprendeu ou leu a partir da vida de outras pessoas. É a experiência própria de alguém, afinal, não acha? 38 questionada por Galloway, durante a entrevista, se o rótulo “autobiográfica” seria uma forma muito simplista de classificar sua obra, a escritora rebate que seu objetivo é dar “prazer e experiência”: “All artists should give experience and should show people how to get experience – to open windows and doors. If you don't do that you've failed. I'm sure of that."33 (GALLOWAY, 2000, grifo da autora). Pensando-se na experiência em sua implicação concomitante de prática/vivência e modificação/experimentação, é possível compreender pelas palavras da autora que os artistas têm a função de mostrar a realidade e incentivar uma atitude crítica que deve ser posta em prática. Por isso, torna-se válida a afirmação de Galloway de que o hábito cultivado pela escritora de inserir narradoras e narradores sob a forma de um “eu” em suas narrativas serve como indicador de sua presença “no coração da multidão, enquanto observadora e observada”, como uma forma de autoimplicação na composição ficcional (GALLOWAY, 2011). Este recurso pode ser notado no conto “The Dragon”, no qual a narradora em primeira pessoa afirma dominar dois ofícios cujos princípios de execução são semelhantes: ela escreve e costura à mão, mostrando que a manipulação do texto é semelhante à manipulação do tecido, apesar de através do texto construir-se um mundo ficcional e, com o tecido, construir- se uma vestimenta. Neste sentido, é interessante mencionar que, para Spark, a ficção é uma mentira, é a “arte da desilusão”, da qual emerge uma “verdade relativa” (GALLOWAY, 2000) e, com relação à analogia presente em seus contos, não se pode dizer que sua função imediata seja a de situar a autora no texto, mas de “desiludir” leitoras e leitores, deixando claro que se trata de uma construção. No conto “The Portobello Road”34, a narradora, Needle, é uma professora que se junta a um grupo de historiadores rumo à África “para ver a vida” e escrever sobre ela; o que ocorre é bem diferente quando volta para a Europa: It took me very small effort to make a living; book reviews, odd jobs for Kathleen, a few months with the publicity man again, still getting up speeches about literature, art and life for industrial tycoons. I was waiting to write about life and it seemed to me that the good fortune lay in this, whenever it should be.35 (SPARK, 2001, p. 12) 33 Todos os artistas deveriam oferecer experiência e deveriam mostrar às pessoas como conseguir experiência – abrir janelas e portas. Se você não faz isso, você falou. Estou certa disto. 34 Publicado em 1958. 35 Custou-me muito pouco esforço para me sustentar: resenhas de livros, trabalhos chatos para a Kathleen, uns poucos meses com o publicitário de novo, ainda escrevendo palestras sobre literatura, arte e vida para magnatas da indústria. Eu esperava escrever sobre a vida e me parecia que a boa sorte estava nisso, o que quer que fosse. 39 A vida profissional da narradora assemelha-se à vida de Spark antes de começar a escrever ficção: resenhas de livros, palestras sobre literatura e arte e, principalmente, “a espera por escrever sobre a vida”. Por lançar mão da autorreferência, a autora não apenas aproveita-se de suas vivências como base para a ficção, como transforma tais vivências em uma “mentira”, que é a vida da personagem, para falar de algo real, que é a condição de muitos artistas que precisam realizar trabalhos eventuais até conseguirem manter-se mediante a atividade artística pela qual optaram. Por meio deste movimento de aproximação e distanciamento observado na prática de autorreferenciação, pressupomos residir neste elemento a confusão que muitos críticos fazem ao identificar as personagens sparkianas com a autora, principalmente as narradoras. Neste âmbito, a afirmação de Waugh passa a configurar como um esclarecimento quanto ao emprego do conteúdo autobiográfico pela autora: “a fictional world is created by a real author through a series of choices about the deployment of linguistic units, but nevertheless in some sense constitutes a version of the everyday world. The sign as sign is still, to a large extent, self-effacing in such fiction.”36 (WAUGH, 1984, p. 58). A estudiosa reafirma a necessidade de reconhecer a ficção “como construção”, pois o uso que Spark faz da autorreferência mantém, ainda assim, um forte traço narrativo, posicionando a autora entre escritores metaficcionais. Waugh acrescenta que a constituição das personagens e dos mundos ficcionais, por fazer referência evidente à realidade, torna-se uma questão relevante, pois a proximidade entre realidade e ficção, possibilitada pelas metaficções, desbanca “relações causais e sistemas de ordem perfeitos” (WAUGH, 1984, p. 120-1). Novamente, as práticas textuais da autora delimitam a interferência da realidade, já que, seja pelo emprego do tom de zombaria, pela apresentação de situações que causam estranhamento ou, ainda, pela presença de personagens caricatas, o reconhecimento da condição humana no mundo contemporâneo não ocorre imediatamente. O motivo seria, assim, um distanciamento que é necessário para a não-identificação entre leitores e personagens, restringindo-se o contato entre as duas entidades no nível ficcional. Esta relação pode ser apreendida quando se lê contos como “Miss Pinkerton Apocalypse”37 (SPARK, 36 Um mundo ficcional é criado por um autor real através de uma série de escolhas sobre a utilização de unidades linguísticas; mas, ainda, de alguma forma, constitui uma versão do mundo cotidiano. O signo enquanto signo ainda é, em grande medida, restrito em tal ficção. 37 Publicado em 1958. 40 2001, p. 115-120), no qual a inserção de um objeto insólito (um disco voador) gera uma série de situações estranhas que, afinal, têm muito a revelar sobre as dificuldades de comunicação entre mulheres e homens, em função das vivências peculiares a cada grupo. Dotada de um conhecimento não compartilhado pelos homens, Laura Pinkerton é ridicularizada e sua história “ilógica” não é aceita pelos canais oficiais; somente pessoas próximas aceitam e validam sua versão, pois vivenciam situações parecidas. Ao atentarmos para a técnica da autoimplicação e autorreferenciação, é-nos possível refletir acerca da contribuição que a obra de Spark pode dar à literatura e à sociedade contemporânea. O que identificamos na autora é uma atitude que remete àquela descrita por Graciliano Ramos, em carta à sua irmã, em 1949, em que deixava evidente sua atitude com relação às experiências das personagens: “Só conseguimos deitar no papel os nossos sentimentos, a nossa vida. Arte é sangue, é carne. Além disso não há nada. As nossas personagens são pedaços de nós mesmos, só podemos expor o que somos.” (MORAES, 2004, p. 207). As palavras do escritor brasileiro ajudam-nos a entender, em adição, por que se torna imprescindível, para a compreensão dos sentidos dos textos, a mudança do foco da leitura, voltando nosso olhar para a história das mulheres, centrando-nos em suas atividades para entendermos seu projeto. Este posicionamento nos permite reconhecer os dissabores e as vitórias do percurso deste grupo, marcantes no trabalho de Spark, que se ocupam de ampliar ou reduzir o foco das lentes usadas para identificar as vivências das mulheres em seus contos. Talvez toda a dificuldade de classificar ou mesmo de entender os escritos da autora esteja amparada na insistência da manutenção de parâmetros de leitura que não se deem conta de que o olhar da mulher sobre a realidade pode, com recorrência, deixar à mostra uma “diferença” que torna esta obra interessante e valiosa para o seu grupo. Como veremos, além da realidade das mulheres da colônia, as vivências das europeias ganham relevância nestes contos porque ambas são, ao mesmo tempo, valiosas por marcarem a história pessoal da autora e necessitadas de mudanças por marcarem a história de seu grupo de pertencimento. Ambos os aspectos têm particularidades positivas e negativas; contudo, é possível que cheguemos à apreensão de um processo em que o conjunto de atividades deste grupo resultou em conquistas. 41 1.2 – Voz incisiva que tece histórias: a escrita de uma exilada Muriel Spark abordou em seus contos, com recorrência, a questão do exílio e, a respeito desta condição e de sua presença na escrita sparkiana, Mars-Jones (2004) afirma: “Exile is always a drastic step for a writer, even when voluntary (Spark moved to Italy in the early Sixties, mainly to retain her privacy). Unrootedness seems to spread from author to creation”38. Ainda que a crítica mencione o exílio da autora na Itália, que ocorreu no início da década de 1960, torna-se oportuno esclarecer que tal condição já lhe era bastante familiar, pois em 1937 Spark iniciou sua jornada pela África, a qual Byrne (2002) descreveu como um “chamado da aventura”. O exílio no continente africano contribuiu para situá-la, em relação às demais mulheres brancas da colônia, em patamar privilegiado, uma vez que não lhe era necessário trabalhar para sustentar-se porque, estando casada, esta era uma “obrigação” do marido. Além disso, também não lhe era necessário realizar atividades domésticas, o que lhe agradava muito, por dar-lhe a oportunidade de dedicar-se a observar a sociedade africana. Seus contos, por esta razão, expõem a realidade daquele lugar, naquele momento peculiar: Another common thread running through many of the stories in this collection is an African setting - usually an unnamed British colony just before or just after World War II, where the white man's burden is more often than not shrugged off in favor of booze and adultery, with violent consequences. Mrs. Spark herself spent some years as a young woman in Rhodesia, and it is slightly surprising that she has written so many stories evidently drawing on this experience, but no novel.39 (LODGE, 1985) Podemos notar que a vida na colônia britânica “concedeu [a Spark] experiência valiosa, da qual ela faria uso nas histórias que escreveu sobre a África e a era colonial”40 (ALY, 2001, p. 94, tradução nossa). Brancas ou negras, as personagens femininas destas histórias têm em comum a sujeição à dominação masculina, em graus diversos, certamente, 38 O exílio é sempre um passo drástico para um escritor, mesmo quando voluntário (Spark mudou-se para a Itália no início dos anos 1960, principalmente para manter sua privacidade). Ausência de raízes parece propagar-se da autora para sua criação. 39 Outra linha comum que percorre muitos de seus contos nesta coletânea é o cenário africano – geralmente uma colônia britânica sem nome de antes ou depois da Segunda Guerra Mundial, onde o fardo do homem branco é, frequentemente, minimizado em favor de bebida e adultério, com consequências violentas. A própria Sra. Spark passou alguns anos de sua juventude na Rodésia, e é ligeiramente surpreendente que ela tenha escrito tantos contos contando esta experiência, mas nenhum romance. 40 “[…] provided her with valuable experience that she was to make use of in the stories she wrote about Africa and the colonial era there” 42 mas que as coloca em um mesmo patamar de inferioridade e submissão, pois a classe social marca a diferenciação entre os indivíduos do grupo feminino, cujo poder social não pode ser comparado ao do grupo masculino. Os contos marcados pela ambientação europeia, por sua vez, registram experiências do momento em que as mulheres começam a impor mudanças sociais ao conquistarem direitos que lhes foram negados. Tendo-se por foco tratar das questões sociais que permeiam a realidade das mulheres a partir das mudanças observadas no período pós-guerra, poderemos identificar situações que possibilitaram uma atuação gradativamente mais intensa destes indivíduos na sociedade. Por conseguinte, serão abordadas questões mais evidentes nestes cenários e que assinalam aspectos históricos característicos. 1.2.1 – Uma África de mulheres marginais Ao estudar os contos sparkianos ambientados na África, Aly (2001) afirma que a autora viveu como exilada no território africano entre os anos de 1937 e 1944, embora esta condição tenha sido experimentada por Spark durante toda sua vida: “Her whole life was shaped by her sense of alienation and lack of roots and she chose to travel to Africa to escape feeling a ‘foreigner’ in her own country of birth. This feeling pushed her to live as an ‘exile’ almost all her life”41 (ALY, 2001, p. 94). Em parte, este sentimento de exílio pode ser explicado pela remissão à sua “origem mista”, enquanto filha de um judeu e de uma inglesa, que resultava neste sentimento de “viver entre estranhos” que marcou sua produção como um todo. Rodrigues (2008, p. 24), no entanto, enfatiza que o sentimento de solidão é um “aspecto negativo do exílio [que] tende a se sobrepor ao positivo” (a interação). Devemos admitir que a herança judia em pleno cenário de guerra resultou em dificuldades, mas o fato de Spark sentir-se uma estranha e exilada, mesmo em sua terra natal, soma-se a outro fator importante: sua condição de mulher. Podemos estabelecer esta aproximação entre realidades distintas porque a história do feminismo delineia-se por meio de trabalhos de feministas como Showalter (1994), que têm afirmado que as mulheres ocupam um espaço social e cultural peculiar. Identificado como um território selvagem caracterizado pela presença das experiências e práticas femininas, ele se encontra às margens da