unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP ANA PAULA MARTINS ANÁLISE SOCIOLINGUÍSTICA DA COLEÇÃO TECENDO LINGUAGENS (2018) ARARAQUARA – S.P. 2023 ANA PAULA MARTINS ANÁLISE SOCIOLINGUÍSTICA DA COLEÇÃO TECENDO LINGUAGENS (2018) Dissertação de Mestrado apresentada ao Conselho do Programa de Pós-Graduação em Linguística e Língua Portuguesa da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre em Linguística e Língua Portuguesa. Linha de pesquisa: Análise Fonológica, Morfossintática, Semântica e Pragmática Orientador: Profa. Dra. Rosane de Andrade Berlinck Co-orientadora: Profa. Dra. Juliana Bertucci Barbosa Bolsa: CAPES ARARAQUARA – S.P. 2023 IMPACTO ESPERADO DA DISSERTAÇÃO Esta pesquisa busca cooperar para a construção de um ensino de português de qualidade, baseado em livros didáticos que levem em conta a realidade dos usos e a heterogeneidade linguística para ampliar a competência comunicativa dos estudantes, ensinando-os a escolher, com segurança, as formas linguísticas mais adequadas às diversas práticas de linguagem. THESIS’ EXPECTED IMPACT This research aims to contribute to the improvement of Portuguese teaching, based on textbooks that consider the language’s real uses and the linguistic heterogeneity to expand the communicative competence of students, teaching them to choose, with confidence, the most appropriate linguistic forms for the different language practices. ANA PAULA MARTINS ANÁLISE SOCIOLINGUÍSTICA DA COLEÇÃO TECENDO LINGUAGENS (2018) Dissertação de Mestrado, apresentada ao Conselho do Programa de Pós em Linguística e Língua Portuguesa da Faculdade de Ciências e Letras – UNESP/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre em Linguística e Língua Portuguesa. Linha de pesquisa: Análise Fonológica, Morfossintática, Semântica e Pragmática Orientador: Profa. Dra. Rosane de Andrade Berlinck Co-orientadora: Profa. Dra. Juliana Bertucci Barbosa Bolsa: CAPES Data da defesa: 25/05/2023 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientador: Profa. Dra. Rosane de Andrade Berlinck Universidade Estadual Paulista – UNESP/FCLAR. Membro Titular: Profa. Dra. Isabel de Oliveira e Silva Monguilhott Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Membro Titular: Profa. Dra. Talita de Cássia Marine Universidade Federal de Uberlândia – UFU. Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara Com todo amor, dedico este trabalho aos meus pais, Sérgio e Marilene, as pessoas mais importantes da minha vida, a quem devo tudo, inclusive o acesso a oportunidades que eles próprios não tiveram. Espero honrá-los em tudo aquilo que eu fizer. AGRADECIMENTOS A Deus, pela oportunidade de estar aqui e agora, pelo amparo espiritual e por todas as pessoas e acontecimentos que colocou em minha vida para que fosse possível chegar a esta grande conquista. Aos meus pais, Sérgio e Marilene, por terem me trazido a este mundo, pela família tão amorosa que construíram e com a qual me presentearam, pela cumplicidade, pela doação incondicional, pelo exemplo de vida, por moldarem o meu caráter, por sempre acreditarem em mim, por serem meu maior porto seguro, por todo esforço, luta e trabalho para que eu e meus irmãos pudéssemos ser felizes em nossas jornadas. Tudo o que eu fizer e conquistar, fizemos e conquistamos juntos. As minhas vitórias são e sempre serão de vocês e para vocês! Aos meus irmãos, Elaine e Sérgio, pelo companheirismo, por serem presença e presentes em minha vida, pela relação de afeto que sempre nos uniu, por serem inspirações para mim, por todas as nossas excelentes conversas, risadas e momentos tão especiais, pelos laços de sangue, de amor e de amizade que nos conectam para todo o sempre! À minha doce sobrinha Luna, que traz tanta alegria à minha vida e me proporciona momentos de puro contato com minha criança interior. Amo você para sempre! Ao meu marido, Rinaldo, meu amor, por ser meu parceiro de vida, minha calma, por me ajudar a organizar os pensamentos, por me ouvir com todo carinho, por encher meus dias de felicidade e afeto, por ter sido tão presente ao longo dessa jornada, acolhendo minhas angústias e me mostrando sempre o lado positivo de todas as situações. É um privilégio dividir minha vida com você! A todos os meus familiares, em especial, meus sogros, Margarete e Rinaldo, meu cunhado, João Paulo, minha querida tia Marry e minha prima Flávia, que acompanharam mais de perto essa caminhada, sempre com uma palavra de incentivo e otimismo! À minha querida tia Isaura (in memoriam), a primeira pessoa que despertou minha visão para o fato de haver algo de muito errado acerca da maneira como aprendemos a desvalorizar nossos saberes linguísticos: ela, quando soube da minha aprovação no curso de Letras, entre encabulada e feliz, disse que teria vergonha de falar perto de mim. Suas palavras ficaram marcadas em minha memória: não era justo que ela se sentisse assim; de algum modo, sei que esse episódio me levou a ter interesse pela Sociolinguística, a partir da qual pude compreender a profundidade do problema que estava por trás das palavras de minha tia. Nunca tive a oportunidade de dizer isso a ela, mas muito do que me incentivou a fazer este trabalho foi pensar que eu poderia contribuir, ao menos um pouco, para que pessoas como ela tenham acesso a uma educação linguística que lhes mostre a riqueza e o valor da sua cultura, da sua forma de ser, da sua maneira de falar, de modo que não se envergonhem diante de ninguém. À minha querida avó materna, ao meu avô materno (in memoriam), aos meus avós paternos (in memoriam), e a todos os que vieram antes deles, cujas trajetórias e escolhas nos trouxeram ao momento presente. Às minhas amadas amigas Ana Cecília, Juliana e Melissa (da UNICAMP para a vida!), por terem me encorajado a fazer o mestrado, por todo auxílio na leitura do projeto que antecedeu esta pesquisa, por acolherem meus desabafos (desde sempre), pelas conversas e risadas que tornam tudo mais leve e especial! Obrigada por estarem comigo e por me fazerem ter confiança em mim e na vida. Às minhas queridíssimas amigas Ana Paula, Lívia e Roberta, por estarem ao meu lado em todos os momentos, por todas as trocas, por todo o amor, por toda a parceria, por tudo o que me permitiram aprender com vocês, pelo incentivo, pela cumplicidade, por serem família! À querida Letícia Araújo, por ter me estendido a mão em um momento de incertezas, me incentivando tanto a entrar no mestrado! Sou muito grata a você. À querida Bárbara Araújo, por também ter me incentivado na fase de elaboração do projeto de pesquisa. Você me abriu muitas portas e me encorajou em diferentes momentos de minha vida; tenho imensa gratidão por você! Aos incríveis e solícitos colegas do SoLAr – Núcleo de Pesquisas em Sociolinguística de Araraquara –, por todas as trocas e pelas preciosíssimas contribuições à minha pesquisa; aprendi e aprendo muito com todos vocês! Às minhas queridas orientadoras, Rosane e Juliana, por dividirem comigo, de forma tão generosa, seus ricos conhecimentos, acolhendo respeitosamente as minhas ideias e guiando o meu trabalho com tanta atenção e carinho. Vocês são mulheres admiráveis; sou e serei sempre grata a vocês por tudo o que aprendi ao longo do caminho pelo qual me conduziram tão docemente. À Professora Dra. Caroline Carnielli Biazolli, por todas as valiosas contribuições trazidas ao trabalho nas minhas duas participações no SELin. Agradeço a forma atenciosa, gentil e respeitosa com que propôs reflexões tão importantes a esta pesquisa. Sou muito grata! À Professora Dra. Isabel de Oliveira e Silva Monguilhott, pela participação nas bancas de qualificação e de defesa, pelas ricas discussões e pelas sugestões essenciais à finalização deste trabalho. À Professora Dra. Talita de Cássia Marine, pela participação nas bancas de qualificação e de defesa, pelo novo olhar que lançou ao trabalho e desencadeou mudanças tão importantes à pesquisa. A todos os professores do Programa de Pós-Graduação em Linguística e Língua Portuguesa (PPGLLP) da UNESP, pelos valorosos ensinamentos. A todos os funcionários da UNESP, especialmente os do PPGLLP, por serem sempre tão atenciosos e prestativos. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. “Todo caminho da gente é resvaloso. Mas; também, cair não prejudica demais – a gente levanta, a gente sobe, a gente volta! [...]” João Guimarães Rosa (1994, p. 440) RESUMO Neste trabalho, apresentam-se os resultados de uma análise sociolinguística da coleção Tecendo Linguagens (2018), com o objetivo principal de que este estudo contribua para um quadro de pesquisas relacionadas à análise de materiais didáticos na perspectiva da sociolinguística. O material que compõe o corpus de análise desta pesquisa foi escolhido com base nos critérios de aprovação no PNLD 2020 e na alta adesão por parte das escolas. Para a investigação proposta, baseamo-nos em seis perguntas norteadoras, criadas para este estudo: (i) quais são os gêneros textuais, domínios discursivos e campos de atuação utilizados no trabalho com a variação?; (ii) norma-padrão é confundida com norma culta?; (iii) as variedades prestigiadas são apontadas como espaço de variação linguística?; (iv) a variação linguística é levada em conta durante as discussões dos tópicos gramaticais?; (v) as situações comunicativas são associadas a usos formais/informais, de maneira dicotômica, ou são vistas como espaços de multiplicidade estilística?; (vi) ao tratar sobre preconceito linguístico, busca- se discutir sua relação com o preconceito social? A ideia de respeito linguístico é evidenciada nesse contexto? Nossas reflexões estão ancoradas, principalmente, nas discussões acerca da Sociolinguística Educacional, com Bortoni-Ricardo (2004, 2005) e Vieira (2018, 2020); nos conceitos de normas linguísticas, a partir de Bagno (2007, 2017, 2019), Faraco (2008), Lucchesi (2012) e Pagotto (1998); na teoria da variação e da mudança linguística, seguindo as discussões de Weinreich, Labov e Herzog (2006 [1968]), Labov (2008 [1972]) e Camacho (2013); na pedagogia da variação linguística, discutida, sobretudo, por Faraco (2008, 2011b), Bagno (2007), Faraco e Zilles (2015) e Vieira (2018, 2020); e nas reflexões sobre preconceito e respeito linguísticos, trazidas por Bagno (1999, 2014), Scherre (2020, 2021) e Vieira (2020). Nossas análises consideraram também as normativas da BNCC acerca dos estudos (socio)linguísticos, tendo em vista a influência que exercem sobre os materiais didáticos aprovados no PNLD. Identificamos que, de fato, há avanços observados em relação ao tratamento da variação nos materiais, como a progressiva presença de reflexões sobre variação linguística ao longo dos volumes, além de discursos que reconhecem e valorizam a heterogeneidade do português; apesar disso, as abordagens mostram-se ainda superficiais, até com problemas conceituais em certos momentos, prejudicando o tratamento assertivo dos fenômenos variáveis e levando a inconsistências em relação ao estudo da variação nos volumes da coleção, algo também observado na BNCC. Por essas razões, entendemos que estamos apenas no início de um caminho que pode nos levar a um ensino de português com base na pedagogia da variação linguística, havendo muito trabalho a ser feito para que avancemos, sobretudo no que se refere à superação de um ideal de língua que ainda se observa no ensino. Palavras – chave: livros didáticos; sociolinguística educacional; pedagogia da variação linguística. ABSTRACT This research presents the results related to an analysis of the Brazilian textbook’s collection Tecendo Linguagens (2018), in a sociolinguistic approach. Our main goal is to contribute to a framework of research related to the analysis of textbooks on the perspective of sociolinguistics. The selection of this material as the corpus of the present investigation was based on its approval in PNLD and on its high adherence by schools. For the proposed investigation, we are based on six guiding questions, created for this research: (i) what are the textual genres, discursive domains and ‘fields of action’ used in working with linguistic variation?; (ii) are the concepts of standard norm and cultured norm taken as if they were the same?; (iii) are prestigious varieties identified as a space of linguistic variation?; (iv) is linguistic variation taken into account during discussions of grammatical topics?; (v) are communicative situations associated with formal/informal uses, in a dichotomous way, or are they seen as spaces of stylistic multiplicity?; (vi) when dealing with linguistic prejudice, do the textbooks seek to discuss its relation with social prejudice? Is the idea of linguistic respect highlighted in this context? Our reflections are mainly based on discussions about Educational Sociolinguistics, with Bortoni-Ricardo (2004, 2005) and Vieira (2018, 2020); on the concepts of linguistic norms, from Bagno (2007, 2017, 2019), Faraco (2008), Lucchesi (2012) and Pagotto (1998); on the theory of linguistic variation and change, following the discussions of Weinreich, Labov and Herzog (2006 [1968]), Labov (2008 [1972]) and Camacho (2013); on the pedagogy of linguistic variation, discussed mainly by Faraco (2008, 2011b), Bagno (2007), Faraco and Zilles (2015) and Vieira (2018, 2020); and on reflections on linguistic prejudice and respect, brought by Bagno (1999, 2014), Scherre (2020, 2021) and Vieira (2020). Our analyzes also considered the BNCC’s regulations regarding (socio)linguistic studies, due to the influence they exert on the textbooks approved by PNLD. We identified that, in fact, there are advances observed in relation to the treatment of variation in the materials, such as the progressive presence of reflections on linguistic variation throughout the volumes, in addition to discourses that recognize and value the heterogeneity of Portuguese; despite this, the approaches are still superficial, even with conceptual problems sometimes, spoiling the assertive treatment of variable phenomena and even leading to inconsistencies in relation to the study of variation in the volumes of the collection, just as we also observed on BNCC. For these reasons, we understand that we are just at the beginning of a path that can lead us towards a pedagogy of linguistic variation, with much work to be done in order to move forward, especially with regarding to overcome an ideal of language that is still observed in contexts of Portuguese teaching. Keywords: textbooks; educational sociolinguistics; pedagogy of linguistic variation. LISTA DE FIGURAS Figura 1 Contínuo de urbanização 47 Figura 2 Contínuo de oralidade-letramento 49 Figura 3 Contínuo de monitoração estilística 49 Figura 4 Arquitetura da BNCC 91 Figura 5 6º ano: causo 120 Figura 6 6º ano: causo (2) 121 Figura 7 6º ano: poema de cordel 122 Figura 8 7º ano: linguagem formal e informal em crônica 125 Figura 9 7º ano: mensagem instantânea elaborada para fins didáticos 127 Figura 10 8º ano: discussões de variação a partir de poema de cordel 131 Figura 11 9º ano: discussões de variação a partir de propaganda 134 Figura 12 9º ano: discussões de variação a partir de crônica 135 Figura 13 6º ano: uso da norma-padrão em exposição oral e debate em roda de conversa 142 Figura 14 6º ano: uso da norma-padrão na escrita de verbete 142 Figura 15 6º ano: variedade prestigiada, de acordo com a norma-padrão 143 Figura 16 7º ano: uso da norma-padrão em júri simulado (a) e contação de mito grego (b) 143 Figura 17 7º ano: uso da norma-padrão na escrita de carta de solicitação/reclamação 144 Figura 18 8º ano: uso da norma-padrão em roda de conversa 145 Figura 19 8º ano: uso da norma-padrão na escrita de abaixo-assinado 146 Figura 20 9º ano: uso da norma-padrão (exercício) 146 Figura 21 9º ano: norma culta associada à linguagem clara 147 Figura 22 9º ano: “língua padrão” 147 Figura 23 9º ano: uso da norma-padrão em apresentação oral (a) e júri simulado (b) 148 Figura 24 9º ano: uso da norma-padrão na escrita de enquete e pesquisa de opinião 148 Figura 25 6º ano: “falar caipira” 153 Figura 26 6º ano: “variedade do povo gaúcho” 153 Figura 27 6º ano: futuro perifrástico e “informalidade” 155 Figura 28 7º ano: exercício sobre gerundismo 157 Figura 29 7º ano: boxe gerundismo 158 Figura 30 7º ano: carta de reclamação informal 160 Figura 31 8º ano: poema de cordel (Patativa do Assaré) 161 Figura 32 6º ano: concordância verbal variável 169 Figura 33 6º ano: texto de apoio à atividade 1b 169 Figura 34 6º ano: quadro dos pronomes pessoais 171 Figura 35 6º ano: futuro do presente 172 Figura 36 6º ano: futuro do pretérito 173 Figura 37 7º ano: advérbios e locuções adverbiais 175 Figura 38 8º ano: exercícios sobre perífrase verbal em lugar do pretérito mais- que-perfeito (1) 177 Figura 39 8º ano: exercícios sobre perífrase verbal em lugar do pretérito mais- que-perfeito (2) 178 Figura 40 9º ano: uso variável de pronomes de 2ª pessoa do singular 181 Figura 41 9º ano: regência verbal variável: nota ao professor e exercício 182 Figura 42 9º ano: colocação pronominal (1) 184 Figura 43 9º ano: colocação pronominal (2) 184 Figura 44 9º ano: colocação pronominal (3) 185 Figura 45 9º ano: colocação pronominal (4) 187 Figura 46 9º ano: estrangeirismos 189 Figura 47 6º ano: exercício sobre linguagem formal e informal 192 Figura 48 7º ano: exercício sobre linguagem formal e informal 193 Figura 49 8º ano: exercício sobre linguagem formal e informal 194 Figura 50 9º ano: exercício sobre linguagem empregada em crônica 195 Figura 51 9º ano: questão sobre o estilo de uma entrevista 196 Figura 52 6º ano: preconceito e respeito linguísticos 199 Figura 53 6º ano: exercício sobre preconceito linguístico 199 Figura 54 8º ano: respeito linguístico em atividade de pesquisa sobre gírias 200 Figura 55 8º ano: legitimidade das variedades e respeito linguístico 201 Figura 56 9º ano: capítulo dedicado a discutir os diversos tipos de preconceito 202 Figura 57 9º ano: pesquisa sobre preconceito linguístico 202 LISTA DE QUADROS Quadro 1 Organização da coleção Tecendo linguagens (2018) 106 Quadro 2 Textos e gêneros no trabalho com a variação – 6º ano 118 Quadro 3 Textos e gêneros no trabalho com a variação – 7º ano 125 Quadro 4 Textos e gêneros no trabalho com a variação – 8º ano 129 Quadro 5 Textos e gêneros no trabalho com a variação – 9º ano 132 Quadro 6 Fenômenos tratados com base em diversidades de gêneros, domínios e campos de atuação 138 Quadro 7 Fenômenos abordados na perspectiva da variação – 6º ano 168 Quadro 8 Fenômenos abordados na perspectiva da variação – 7º ano 175 Quadro 9 Fenômenos abordados na perspectiva da variação – 8º ano 176 Quadro 10 Fenômenos abordados na perspectiva da variação – 9º ano 179 Quadro 11 Síntese das discussões e resultados da pesquisa 204 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS BNCC Base Nacional Comum Curricular CNE Conselho Nacional de Educação CNLD Comissão Nacional do Livro Didático FENAME Fundação Nacional do Material Escolar FNDE Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação INL Instituto Nacional do Livro LDB Lei de Diretrizes e Bases MEC Ministério da Educação PCN Parâmetros Curriculares Nacionais PLID Programa do Livro Didático PLIDEF Programa do Livro Didático para o Ensino Fundamental PNE Plano Nacional de Educação PNLD Programa Nacional do Livro e do Material Didático SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO 2 LÍNGUA COMO OBJETO DE INTERESSE CIENTÍFICO 2.1 Homogeneidade linguística versus heterogeneidade linguística 2.2 Discussões sobre sistema e norma 3 NORMAS E VARIEDADES LINGUÍSTICAS EM FOCO 3.1 As variedades no sistema heterogêneo: postulado da plenitude formal 3.2 Diferentes normas linguísticas ou variedades do português brasileiro 3.3 A diversidade do português brasileiro a partir dos três contínuos 4 A LÍNGUA QUE FALAMOS E A LÍNGUA QUE APRENDEMOS 4.1 O ensino de (qual?) Língua Portuguesa 4.2 Preconceito e respeito linguísticos 4.3 Pedagogia da variação linguística 4.4 Como se dá o ensino na perspectiva da pedagogia da variação linguística? 5 POLÍTICAS VOLTADAS À EDUCAÇÃO BÁSICA: BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR E PROGRAMA NACIONAL DO LIVRO E DO MATERIAL DIDÁTICO 5.1 Breve contextualização da Base Nacional Comum Curricular 5.1.1 Base Nacional Comum Curricular: Língua Portuguesa no ensino fundamental – anos finais 5.2 Uma breve história das políticas para o livro didático até o Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) 5.2.1 Avaliação pedagógica das obras inscritas no PNLD 6 CORPUS DE ANÁLISE E PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS 6.1 Escolha do objeto de análise 6.2 Corpus de análise: Tecendo Linguagens (2018) 6.3 Perguntas de pesquisa 6.4 Encaminhamento das análises 7 ANÁLISES 7.1 Quais são os gêneros textuais, domínios discursivos e campos de atuação utilizados no trabalho com a variação? 7.1.1 6º ano 17 22 22 26 32 32 34 46 51 51 54 59 65 74 74 82 95 98 102 102 104 108 109 112 112 118 7.1.2 7º ano 7.1.3 8º ano 7.1.4 9º ano 7.1.5 Fechando a discussão 7.2 Norma-padrão é confundida com norma culta? 7.2.1 6º ano 7.2.2 7º ano 7.2.3 8º ano 7.2.4 9º ano 7.2.5 Fechando a discussão 7.3 As variedades prestigiadas são apontadas como espaço de variação linguística? 7.3.1 6º ano 7.3.2 7º ano 7.3.3 8º ano 7.3.4 9º ano 7.3.5 Fechando a discussão 7.4 A variação linguística é levada em conta durante as discussões dos tópicos gramaticais? 7.4.1 6º ano 7.4.1.1 Concordância verbal 7.4.1.2 Pronome pessoal 7.4.1.3 Futuro do presente 7.4.1.4 Futuro do pretérito 7.4.2 7º ano 7.4.2.1 Advérbios e locuções adverbiais 7.4.3 8º ano 7.4.3.1 Perífrases verbais em lugar do pretérito mais-que-perfeito simples 7.4.4 9º ano 7.4.4.1 Uso variável de pronomes de 2ª pessoa do singular 7.4.4.2 Regência verbal variável 7.4.4.3 Colocação pronominal 7.4.4.4 Estrangeirismos 7.4.5 Fechando a discussão 7.5 As situações comunicativas são associadas a usos formais/informais, de maneira 124 129 132 137 140 141 143 145 146 149 150 152 156 160 163 164 166 167 168 170 172 173 174 175 176 176 179 180 181 183 187 190 190 dicotômica, ou são vistas como espaços de multiplicidade estilística? 7.5.1 6º ano 7.5.2 7º ano 7.5.3 8º ano 7.5.4 9º ano 7.5.5 Fechando a discussão 7.6 Ao tratar sobre preconceito linguístico, busca-se discutir sua relação com o preconceito social? A ideia de respeito linguístico é evidenciada nesse contexto? 7.6.1 6º ano 7.6.2 7º ano 7.6.3 8º ano 7.6.4 9º ano 7.6.5 Fechando a discussão 7.7 Síntese das discussões e resultados 8 CONSIDERAÇÕES FINAIS REFERÊNCIAS 192 193 194 195 196 197 198 200 200 201 203 204 207 212 17 1 INTRODUÇÃO Para um professor de língua portuguesa, pode ser comum ouvir dos alunos frases como “não sei português” ou “não sou bom em português”. Essas declarações corriqueiras são reveladoras de uma perigosa característica do nosso ensino de língua materna: a presença, nas salas de aula, de um “ideal de língua”, ou seja, de uma visão que considera a língua como uma entidade apartada do corpo social, com tendências homogeneizadoras e prescritivas; como consequência disso, os alunos julgam que “não sabem português”, porque aquilo que sabem como falantes nativos da língua está muito distante desse ideal e é, portanto, pouco valorizado no ambiente escolar. A desvalorização dos saberes linguísticos dos alunos prejudica sua autoestima linguística e auxilia na criação de barreiras cada vez maiores em relação ao acesso aos bens da cultura letrada. A concepção de “língua ideal” passou a ter relação, no século XV, com uma identificação entre língua e norma-padrão (FARACO, 2008), o que foi corroborado por certas teorias linguísticas que entendiam a língua como homogênea e estática, destituída de seu aspecto social. Questionar a manutenção de um ideal de língua no ensino de português é questionar, portanto, a forma de se pensar o próprio sistema linguístico, o qual está distante da homogeneidade pretendida, já que é constituído por uma heterogeneidade ordenada, o que se constata na análise empírica dos usos da língua (WEINREICH; LABOV; HERZOG, 2006 [1968]). Nesse sentido, entendemos que urge superar visões ultrapassadas a respeito de nossa língua, as quais veiculam ideias perigosas, dividindo nossa sociedade entre os que falam “certo” e os que falam “errado”, os que “sabem português” e os que “não sabem português”; ideias como essas gestam o preconceito linguístico, altamente vinculado ao preconceito social, o que significa que há um perfil socioeconômico específico para quem fala “certo” e outro para quem fala “errado”. A superação dessas visões passa pelo reconhecimento e, mais do que isso, pela valorização da nossa heterogeneidade linguística, de modo a compreender a multiplicidade de normas que constituem nossa língua, todas elas legítimas, mas algumas vistas de maneira mais prestigiosa socialmente, o que se deve a construções sociais, históricas e políticas que devem ser debatidas. O ensino baseado na heterogeneidade linguística, sensível aos fenômenos de variação, interessado em entendê-los a partir de uma perspectiva científica, 18 leva-nos ao respeito linguístico, uma postura de acolhimento à diversidade e de valorização dos saberes linguísticos de todos os falantes. Essa perspectiva (socio)linguística, que toma nossa realidade linguística como objeto do ensino de língua portuguesa, está baseada na pedagogia da variação linguística, a qual muito tem a contribuir para (1) criar um ambiente de acolhimento e respeito ao repertório linguístico-cultural dos estudantes (BORTONI-RICARDO, 2005), colaborando para a construção de sua autoestima linguística, e (2) promover o ensino crítico e reflexivo das variedades da cultura letrada. Assim sendo, a pedagogia da variação linguística possibilita ao aluno uma formação mais consciente sobre a língua, atendendo ao que, pelo menos em certa medida, as diretrizes para a educação básica brasileira demandam há muitos anos, inclusive no documento normativo atual mais importante: a Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Esse documento apresenta três competências específicas do componente de Língua Portuguesa para o ensino fundamental relacionadas à formação (socio)linguística dos estudantes, o que atesta a importância dessa perspectiva para a Base. No entanto, apesar das abordagens que favorecem uma visão sociolinguística no ensino de português, encontramos também posicionamentos prescritivos, o que confere um caráter contraditório ao documento. Os posicionamentos contrastantes presentes na BNCC influenciam de forma direta o ensino, tendo em vista a natureza obrigatória do documento, o que impacta, também, os conteúdos dos livros didáticos de língua portuguesa, em especial aqueles aprovados no Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD). As coleções didáticas, apesar de não serem os únicos materiais de apoio à prática pedagógica, ainda desempenham um papel muito importante no ensino brasileiro, sobretudo em um cenário educacional como o nosso, ainda falho na formação de professores e na valorização desses profissionais. Assim, não é incomum que os livros didáticos sejam tomados como o principal ponto de partida para o trabalho pedagógico em sala de aula, por isso mesmo recebem tanta atenção da comunidade científica. Devido, então, à relevância desses materiais para o ensino, podemos dizer que a construção da autoestima linguística dos estudantes, a partir de uma pedagogia da variação linguística, também passa pelo contato com livros didáticos que favoreçam reflexões e discussões sensíveis à diversidade linguística do português brasileiro, servindo de espaço para a compreensão dos fenômenos variáveis que constituem o nosso idioma, mostrando a riqueza 19 dessa diversidade e refletindo sobre a construção social relativa à avaliação dos diferentes usos linguísticos. O presente estudo está alinhado a todas essas discussões, tendo como objetivo principal contribuir para um quadro de pesquisas relacionadas à análise de materiais didáticos na perspectiva da sociolinguística, a fim de analisar o trabalho desenvolvido em relação à pedagogia da variação linguística em uma coleção de livros didáticos aprovada para o segmento dos anos finais do ensino fundamental no PNLD 2020: a coleção Tecendo Linguagens (2018), das autoras Tânia Amaral de Oliveira e Lucy Aparecida Melo Araújo, publicada pelo Instituto Brasileiro de Edições Pedagógicas (IBEP) e escolhida para esta pesquisa, principalmente, por ser a coleção de Língua Portuguesa com mais alta adesão no Brasil, considerando o seu segmento. Tendo em vista o fato de essa ser uma coleção aprovada no PNLD, uma dimensão de análise importante a ser considerada é a influência da BNCC na forma como a coleção desenvolve as discussões sobre variação linguística, o que também procuramos levar em consideração. Para organizar as discussões desenvolvidas nesta pesquisa, estruturamos este trabalho segundo descrevemos a seguir: as discussões acerca da fundamentação teórica começam com a seção Língua como objeto de interesse científico, que traz subseções voltadas a refletir sobre diferentes tratamentos dados ao objeto “língua”. Na primeira subseção, Homogeneidade linguística versus heterogeneidade linguística, trazemos alguns pontos que nos ajudam a entender como se deu a construção de diferentes ideias sobre a língua enquanto objeto de interesse científico, compreendendo as implicações das visões de homogeneidade e de heterogeneidade do sistema linguístico. Na segunda subseção, tecemos Discussões sobre sistema e norma, ainda dentro das reflexões sobre as diferentes maneiras de lidar com a língua cientificamente, observando as implicações dessas escolhas teórico-metodológicas. A seção seguinte, Normas e variedades linguísticas em foco, parte da visão assumida neste trabalho de que a língua, enquanto sistema heterogêneo, é composta de diferentes normas ou variedades de uso. Na subseção As variedades no sistema heterogêneo: postulado da plenitude formal, discutimos o fato de que todas as variedades são igualmente legítimas do ponto de vista linguístico, pois todas são igualmente estruturadas e organizadas, com suas regras e princípios de funcionamento, apesar de socialmente receberem avaliações distintas. Já na subseção Diferentes normas linguísticas ou variedades do português brasileiro, discutimos algumas denominações relacionadas às normas – tanto objetivas quanto subjetivas – presentes em nossa sociedade, partindo da visão de diversos autores. Por fim, na subseção A 20 diversidade do português brasileiro a partir dos três contínuos, falamos sobre a proposta de Bortoni-Ricardo (2004) de compreender nossa realidade linguística a partir dos contínuos de urbanização, de oralidade-letramento e de monitoração. Na seção A língua que falamos e a língua que aprendemos, trazemos algumas reflexões sobre o ensino de língua portuguesa, discutindo a presença histórica da perspectiva de língua como sistema homogêneo no ensino brasileiro – subseção O ensino de (qual?) Língua Portuguesa. Essa ideia de homogeneidade linguística, como dissemos, leva a uma série de equívocos, dentre os quais podemos citar a crença de que há apenas uma língua correta, ou verdadeira, o que pode levar ao preconceito linguístico, o qual discutimos com mais profundidade na subseção Preconceito e respeito linguísticos. Porém, como o próprio nome da subseção indica, não quisemos tratar apenas do problema – o preconceito linguístico –; falamos também sobre sua contraparte positiva, o respeito linguístico, no intuito de reforçar o que podemos fazer para que todos os falantes sejam respeitados em suas variedades de uso. Nas subseções Pedagogia da variação linguística e Como se dá o ensino na perspectiva da pedagogia da variação linguística?, explicamos o que é a pedagogia defendida por nós nesta pesquisa e apontamos caminhos possíveis para sua aplicação no ensino de língua portuguesa. A seção sobre Políticas voltadas à educação básica: Base Nacional Comum Curricular e Programa Nacional do Livro e do Material Didático pretende descrever o contexto mais geral de elaboração da BNCC, o que fazemos na subseção Breve contextualização da Base Nacional Comum Curricular, além de discutir, na subseção Base Nacional Comum Curricular: Língua Portuguesa no ensino fundamental – anos finais, como são propostas, no componente de Língua Portuguesa, as reflexões sobre variação linguística, com especial atenção aos anos finais, segmento-alvo de nosso trabalho. É também nessa seção que tratamos sobre o PNLD, entendendo a história desse Programa – subseção Uma breve história das políticas para o livro didático até o Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) – e analisando alguns aspectos do processo de Avaliação pedagógica das obras inscritas no PNLD, com foco nos critérios mais importantes do edital que avaliou as obras aprovadas no PNLD 2020. Finalizadas as discussões acerca de nossa fundamentação teórica, tratamos do Corpus de análise e procedimentos metodológicos, descrevendo os critérios que adotamos para a escolha da coleção – subseção Escolha do objeto de análise – e detalhando nosso corpus – subseção Corpus de análise: Tecendo Linguagens (2018). Além disso, nessa seção também apresentamos o roteiro de perguntas que criamos para orientar nossas investigações – 21 subseção Perguntas de pesquisa – e fornecemos alguns detalhes relacionados ao modo como essas análises foram desenvolvidas – subseção Encaminhamento das análises. A seção seguinte apresenta as Análises da coleção Tecendo Linguagens (2018). Nessa seção, as subseções são compostas por cada uma de nossas perguntas de pesquisa e, dentro de cada uma, há outras subseções, referentes aos volumes da coleção, um a um (6º, 7º, 8º e 9º ano). A seção é encerrada com uma Síntese das discussões e resultados, em que procuramos retomar as análises desenvolvidas, apresentando-as de forma mais resumida. Ao encerrarmos a apresentação das análises, trazemos as Considerações finais, em que fazemos um apanhado geral do que identificamos em nossas investigações, apontando reflexões sobre os aspectos observados. 22 2 LÍNGUA COMO OBJETO DE INTERESSE CIENTÍFICO Na presente seção, procuramos refletir sobre diferentes tratamentos direcionados à língua enquanto objeto de investigação científica. Nesse contexto, discutimos alguns pontos acerca do estruturalismo, do gerativismo e da sociolinguística, importantes teorias linguísticas surgidas no século XX, a fim de compreender como foram atribuídas as características de homogeneidade e heterogeneidade ao sistema linguístico e procurando compreender as implicações desses posicionamentos teórico-metodológicos. Além disso, tratamos sobre os conceitos de sistema e norma, a partir de Coseriu (1980), com especial atenção aos diferentes sentidos que podem estar envolvidos na ideia de “norma”. 2.1 Homogeneidade linguística versus heterogeneidade linguística Na introdução deste trabalho, mencionamos o fato de o ensino de língua portuguesa estar ainda baseado em um “ideal de língua”, ligado a uma perspectiva que compreende o sistema linguístico como homogêneo. Nesse contexto, discutimos também a importância de abandonarmos essa ideia, tendo em vista a característica comprovadamente heterogênea do sistema que constitui a língua. Para entendermos um pouco essas duas visões antagônicas acerca do sistema linguístico, precisamos olhar para alguns pontos da história da Linguística, o que aqui faremos, é claro, sem a pretensão de pormenorizar o tema, atendo-nos aos principais aspectos que podem nos auxiliar a compreender em que consistem e como surgiram as perspectivas de homogeneidade e heterogeneidade linguísticas. No início do século XX, o linguista suíço Ferdinand de Saussure foi o responsável por inaugurar um novo modo para o fazer linguístico. A obra mais importante de Saussure foi o Curso de Linguística Geral (doravante, o Curso), publicada, postumamente, no ano de 1916, por dois alunos do linguista (Charles Bally e Albert Schehaye). Parreira (2017, p. 1025) reflete que, antes do Curso, [...] os estudos dos fenômenos linguísticos, embora tenham sido importantes, tiveram motivações externas à própria língua, pois acreditava-se, naquele momento, que a língua pertencia ao passado, isto é, a descrição era histórica, diacrônica e os registros escritos eram considerados o ponto alto para o estudo do idioma. 23 Assim sendo, antes de as ideias de Saussure tornarem-se conhecidas, o fazer linguístico estava mais voltado a uma linguística histórica (MARCUSCHI, 2008), o que mudou de forma bastante destacada após a teoria proposta pelo suíço, já que a língua passou a ser estudada por si mesma, sem quaisquer relações externas. No Curso, Saussure apresenta dicotomias essenciais para que se estabeleça o objeto de estudo da Linguística. Dentre tais dicotomias, destacaremos duas: sincronia e diacronia; língua (langue) e fala (parole). A respeito da primeira dicotomia que mencionamos (sincronia e diacronia), o linguista coloca a seguinte diferenciação: “é sincrônico tudo quanto se relacione com o aspecto estático da nossa ciência, diacrônico tudo quanto diz respeito às evoluções” (SAUSSURE, 2006 [1916], p. 96). Após apresentar essa distinção, Saussure elege a sincronia como mais relevante para os estudos linguísticos, pois, de acordo com ele, o falante ignora os aspectos de evolução da língua, “ele se acha diante de um estado” (SAUSSURE, 2006 [1916], p. 97), então, o linguista, do mesmo modo, a fim de compreender esse estado da língua, deve ignorar o aspecto diacrônico. Observamos, à vista disso, que entender os processos envolvidos na mudança linguística e lidar com essa realidade não é do interesse da ciência linguística, na visão de Saussure. Esse autor entende que é mais pertinente observar a língua a partir do exato momento em que ela é estudada, como se fosse inerte, tal qual em uma fotografia. Outro importante recorte feito por Saussure está representado na dicotomia língua e fala, conforme dissemos. Para o linguista, a língua é um sistema abstrato, uma instituição social com propriedades universais, um “sistema que conhece apenas a sua ordem própria” (SAUSSURE, 2006 [1916], p. 31), diferentemente da fala, que seria “individual e dela o indivíduo é sempre senhor” (SAUSSURE, 2006 [1916], p. 21). Ao separar língua e fala, Saussure propõe uma separação entre social e individual, assim como entre essencial e acessório, ou menos acidental e mais acidental (SAUSSURE, 2006 [1916]). De acordo com o autor, a individualidade do falante não atinge ou influencia a língua, que, apesar de ser entendida como a parte social da linguagem, é, para ele, exterior ao indivíduo, imune, portanto, a criações ou modificações impulsionadas por ações individuais. Ele defende, assim, que a língua é o espaço privilegiado dos estudos linguísticos, e não a fala. Para Saussure, a língua é delimitada e tem natureza homogênea, constituindo-se um objeto tangível, o que tornaria possível, inclusive, sua representação fiel em dicionários e gramáticas (SAUSSURE, 2006 [1916]). 24 Assim, vemos surgir o modelo do estruturalismo, sobre o qual reflete Camacho (2013, p. 34, grifos nossos): O estruturalismo, criatura que tomou vida independente até da vontade de seu próprio criador, surgiu do corte operado por Saussure nos fenômenos heteróclitos da linguagem, ao projetar um modelo abstrato para seu estudo, abstraído dos atos de fala individuais [...]. Esse modelo, muito embora traga a ideia de língua como instituição social, conforme já mencionamos, estabelece uma forma de pensar o objeto linguístico a partir da recusa de todos os aspectos sociais da língua (CAMACHO, 2013). De acordo com Marcuschi (2008, p. 30), é uma abordagem que “sufoca sensivelmente o sujeito, a sociedade, a história, a cognição e o funcionamento discursivo da língua”. Longe de esgotar as discussões em torno das bases do estruturalismo saussuriano, acreditamos que, por ora, tenha sido possível ao menos trazer uma noção de como a visão de língua enquanto sistema homogêneo se estabeleceu. Devido à importância das propostas de Saussure e ao impacto de suas ideias no modo de pensar a linguística, dando origem ao que hoje se conhece como Linguística Moderna, muitos depois dele continuaram a validar a separação entre sistema e discurso (CAMACHO, 2013). No ano de 1957, o linguista norte-americano Noam Chomsky publicou a obra Syntatic structures, representando mais uma revolução para a ciência da linguagem. Nessa obra, a língua não era mais entendida enquanto objeto social – como era para Saussure –, mas como objeto mental (PARREIRA, 2017). A proposta teórica de Chomsky estabelece uma distinção entre competência e desempenho, na mesma linha da dicotomia langue e parole de Saussure, como o próprio linguista norte-americano chega a marcar (CHOMSKY, 1965). A competência linguística, em Chomsky, traria a mesma ideia de universalidade e abstração que tinha o conceito de língua em Saussure; essa competência seria o conhecimento do falante-ouvinte a respeito de sua língua, conhecimento esse entendido como próprio da natureza humana. Já o desempenho, analogamente à ideia de fala saussuriana, daria conta do uso efetivo da língua em situações concretas, sendo, então, o plano da expressão individual, particular. Também de forma semelhante a Saussure, Chomsky entende que é a competência, não o desempenho, o objeto da ciência linguística. Assim sendo, o gerativismo, como ficou conhecida a teoria proposta por Chomsky, também negligencia o aspecto social da língua. Nas 25 palavras de Marcuschi (2008, p. 32), são centrais, tanto no estruturalismo quanto no gerativismo, [...] a forma, o sistema, a abstração e o universal como objeto da ciência controlada. Aqui, a língua enquanto atividade social e histórica, bem como a produção e compreensão textual e as atividades discursivas ficam em segundo plano, mas não são negadas. Esse aspecto deve ser sempre enfatizado: nem Saussure, nem Chomsky negam que as línguas tenham seu lado social e histórico, mas estes não são, para eles, o objeto específico do estudo científico. Assim, embora Saussure e Chomsky não tenham negado o lado social das línguas, acabaram negando a importância desse aspecto em termos teórico-metodológicos. Eleger para a ciência linguística um objeto supostamente homogêneo e universal, estático, possível de se analisar em separação dos aspectos sociais que estão envolvidos em seu uso e dissociado de sua historicidade aponta para uma visão de que as línguas têm uma existência apesar dos falantes e da história, o que contribui para um entendimento de que a língua é, na verdade, um elemento à parte do corpo social, ajudando a construir a ideia de uma “língua ideal”, pura e imutável, o que corrobora o imaginário relativo à identificação entre língua e norma-padrão, como discutiremos oportunamente. No entanto, a Linguística do século XX não pode ser resumida às vertentes propostas por Saussure e Chomsky. Foi também nesse século, em diálogo com essas importantes teorias, que surgiram muitas reflexões acerca das lacunas deixadas pelos modelos teóricos expostos, buscando-se resolver problemas que tais modelos não podiam solucionar, ou pelos quais não tinham interesse (MARCUSCHI, 2008). É nesse contexto que, entre as décadas de 1950-1960, surgem diferentes perspectivas teórico-metodológicas que apresentam novas propostas aos modelos anteriormente estabelecidos, dentre elas, a sociolinguística. A sociolinguística trouxe uma série de questionamentos à ideia de homogeneidade do sistema linguístico. A principal preocupação da sociolinguística variacionista, a partir de 1960, foi a de “fornecer evidência da heterogeneidade inerente à linguagem e demonstrar que a ocorrência da variação é sistemática, regular e ordenada” (CAMACHO, 2013, p. 43), o que funcionou como um grande “divisor de águas” na tradição linguística. Ao falarmos em sociolinguística variacionista, não podemos deixar de mencionar o seu principal nome, William Labov, responsável por concentrar a pesquisa linguística na língua em uso dentro da comunidade de fala (LABOV, 2008 [1972]); ou seja, Labov colocou a fala como objeto do estudo linguístico. 26 Os estudos de Labov e dos sociolinguistas que seguiram e desenvolveram suas propostas conseguiram demonstrar empiricamente que a variação é inerente ao sistema da língua e que está presente em todos os níveis (fonético-fonológico, morfológico, sintático...), ocorrendo de forma regular, organizada; além disso, apontaram o papel dos fatores sociais na mudança linguística, em interação com aspectos da estrutura linguística (LABOV, 2008 [1972]). A partir das discussões e dos dados empíricos apontados pela sociolinguística, entendemos que não é possível dissociar a língua dos usos de seus falantes e das diferentes características que definem esses usos, assim como não é possível entender a língua à parte de sua história, de suas mudanças e evoluções. Com isso, a ideia de língua homogênea, estática e retirada do corpo social, foi mostrando-se profundamente equivocada diante das evidências de que estamos lidando com um sistema naturalmente complexo e variável, que está o tempo todo em transformação; dá-se lugar, então, a uma visão de língua como sistema heterogêneo. 2.2 Discussões sobre sistema e norma Teorias tão importantes como a de Saussure e a de Chomsky acabam por determinar o desdobramento de muitas outras perspectivas teóricas que com elas se parecem ou que delas se distanciam, conforme tratamos na subseção anterior. Neste momento, traremos para a discussão, de forma um pouco mais detalhada, uma proposição teórica surgida como consequência – ou por influência – da teoria estruturalista de Saussure. A proposição de que falamos toma a fala como realidade concreta da linguagem, tratando de conceituar, ainda, outras duas ideias: a de sistema e a de norma. Trata-se da teoria proposta pelo linguista romeno, de filiação estruturalista, Eugenio Coseriu, a qual tem servido de base para muitas elaborações teóricas a respeito do conceito de norma, que será especialmente importante para nossas reflexões neste trabalho1. Coseriu (1980, p. 119, grifo do autor) define o falar concreto como mais ou menos correspondente ao conceito de parole, de Saussure, sendo que a fala está sendo entendida “no sentido de processo, de dinâmica, que contém o vocábulo discurso”. Já a norma e o sistema, seriam, juntos, parecidos com a ideia de langue de Saussure, representando ambos “o grau de estruturação” da língua. 1 Falaremos mais detidamente sobre as diferentes normas na seção subsequente: Normas e variedades linguísticas em foco. 27 Para o autor, a norma da língua “contém tudo o que, no falar correspondente a uma língua funcional, é fato tradicional, comum e constante [...]” (COSERIU, 1980, p. 122). Entendemos, então, que Coseriu vê norma como aquilo que, nos usos dos falantes, é convencional. Como parte da norma estão o que Coseriu chamou de variantes normais; na leitura de Lucchesi (2012, p. 64), as variantes normais são certas variantes que, “não tendo valor funcional, são relativamente constantes e frequentes dentro da comunidade de fala”. A ideia de Coseriu sobre norma relaciona a esse substantivo o adjetivo normal. Essa informação é importante porque, acerca do termo “norma”, tanto é possível a associação àquilo que é normal, conforme falamos, quanto àquilo que é normativo, sendo um termo, portanto, polissêmico. Aléong (2001, p. 148) trata desses adjetivos da seguinte maneira: Se se entende por normativo um ideal definido por juízos de valor e pela presença de um elemento de reflexão consciente da parte das pessoas concernidas, o normal pode ser definido no sentido matemático de frequência real dos comportamentos observados. Também Rey (2001) reflete a esse respeito quando coloca que, ao termo norma, podem ser associados dois conceitos distintos, um ligado ao que pode ser observado de forma mais objetiva e outro associado a um sistema de valores, mais subjetivo. Celso Cunha, como nos lembra Lucchesi (2012), propõe uma distinção entre norma objetiva e norma subjetiva, em que a primeira encontra ligação com o que se observa enquanto padrões de atividade linguística de uma comunidade e a segunda é associada a valores nos quais se baseia o julgamento do desempenho linguístico de um falante dentro dessa comunidade. Faraco e Zilles (2017, p. 12, grifos dos autores) também discutem os dois sentidos do termo norma: um geral e um específico. É o sentido geral que traz a ideia de norma normal, sendo “o como se diz numa determinada comunidade de fala (ou seja, o conjunto dos seus traços linguísticos característicos, sejam eles fonético-fonológicos, morfossintáticos, léxico- semânticos ou discursivos)”. A realidade dessa norma, de acordo com os autores, está situada na própria dinâmica linguística em funcionamento nas diferentes interações sociais. Tanto o conceito de norma, em Coseriu, quanto o de norma normal ou norma objetiva, trazidos pelos autores que citamos, têm um paralelo com a ideia de variedade, muito importante para os estudos sociolinguísticos. A variedade pode ser entendida como a fala compartilhada por uma comunidade de falantes ou por um grupo social. Bagno (2017) entende que essa é uma palavra neutra, usada com frequência em estudos sociolinguísticos 28 para fazer referência a qualquer tipo específico de linguagem (como dialeto, sotaque...) que o linguista esteja tomando como objeto para análise empírica ou teorização. De acordo com esse mesmo autor, é uma palavra bastante utilizada também para evitar a dificuldade de se especificar os termos dialeto ou língua, em uma perspectiva linguística. Bagno (2017) também lembra a centralidade do conceito de variedade para a sociolinguística variacionista, que entende a língua como um “feixe de variedades”, sendo que essas variedades podem ser regionais, sociais ou estilísticas. É importante, porém, que se destaque que a sociolinguística só entende que um modo de falar é uma variedade quando há uma comunidade de falantes que o utilize genuinamente, por isso o autor defende que a terminologia variedade padrão é questionável, assim como são, em sua perspectiva, as nomenclaturas língua padrão ou dialeto padrão, justamente porque, quando pensamos na ideia de um padrão, distanciamo-nos do uso efetivo, normal, comum, passando a lidar com uma ideia mais ligada à norma subjetiva, de juízos de valor, de prescrição daquilo que seria considerado o padrão, que não está baseado nos usos. Desse modo, identificamos que o conceito de variedade está intimamente atrelado aos usos de uma comunidade de fala, usos que seriam normais, comuns e convencionais para essa comunidade, em um momento específico, o que deixa bastante explícita, pelo menos em certa medida, a relação desse conceito com o de norma, conforme propôs Coseriu. Já a ideia de sistema apresentada pelo autor pode ser entendida, de forma simplificada, como um conjunto de realizações possíveis dentro de uma língua; assim sendo, o sistema da língua é o responsável por definir aquilo que pode e aquilo que não pode ter uma realização linguística. Para Coseriu, o sistema contém as oposições funcionais, contemplando [...] tudo aquilo que na técnica linguística é distintivo e que, se fosse diferente, teria (ou seria) uma outra função da língua, ou não teria (nem seria) nenhuma função na língua respectiva, podendo, eventualmente, tornar- se irreconhecível (ou incompreensível). Portanto, todos os traços que assinalamos como distintivos pertencem ao sistema. (COSERIU, 1980, p. 122-123) Isto posto, podemos refletir que, enquanto a norma diz respeito ao modo como a língua realmente funciona em uma dada comunidade socio-historicamente situada, o sistema conteria as possibilidades de funcionamento dessa língua. Essa proposta de Coseriu, a exemplo de Saussure e de Chomsky, também promove uma separação entre a língua e seus usos, colocando, novamente, a língua em um campo abstrato. 29 Ainda pensando sobre as diferenças entre sistema e norma, Coseriu coloca-nos que, em certo sentido, a norma é mais ampla do que o sistema, isso porque ela dá conta também de traços não funcionais, que não são distintivos, enquanto o sistema conteria apenas os traços distintivos. Um exemplo do próprio autor: Assim, por exemplo, a distinção entre s sonoro e s surdo intervocálico é funcional em toscano, onde serve para diferenciar certos significantes [...]. Em toscano, portanto, a sonoridade do s intervocálico é traço distintivo, pertence ao sistema. Ao contrário, no italiano comum do tipo setentrional, a distinção entre os dois s não existe, porquanto o s intervocálico é pronunciado sempre sonoro; a sonoridade, neste caso, não pertence ao sistema: é apenas um traço suplementar (embora praticamente obrigatório) da norma deste tipo de italiano. (COSERIU, 1980, p. 123) Nessa perspectiva, Coseriu entende o sistema como sendo menos amplo do que a norma, estando nela contido. Todavia, pondera que, em outro sentido, é o sistema que apresenta mais amplitude, por ser menos determinado, contendo não somente aquilo que já é realizado na língua (contemplado pela norma), mas também aquilo que pode ser realizado, embora nem sempre o seja. Nas palavras do autor: “a norma abrange fatos linguísticos efetivamente realizados, e existentes na tradição, ao passo que o sistema é uma técnica aberta que abrange virtualmente também os fatos ainda não realizados, mas possíveis [...]” (COSERIU, 1980, p. 123, grifos do autor). À vista disso, o autor defende que a língua não teria apenas uma dimensão de passado e de presente, com aquilo que nela se fez e se faz, mas, graças ao sistema, teria também uma perspectiva de futuro, com aquilo que, dentro das regras desse sistema, se pode fazer ou não. Contudo, aquilo que é possível (sistema) nem sempre está de acordo com aquilo que é normal, tradicional (norma). Matthews (2001) traz um exemplo2 do próprio Coseriu para demonstrar como isso acontece: as palavras atriz e diretora ocorrem com diferentes terminações indicativas de feminino. Na palavra atriz, o feminino é indicado por -iz, enquanto em diretora, por -a. Assim, ambas são terminações indicativas de feminino que fazem parte do sistema da nossa língua; por que, então, não dizemos atora ou diretriz? Mathews (2001) reflete, a partir de Coseriu, que isso ocorre porque nós, falantes, aprendemos com os demais membros de nossa comunidade de fala que o feminino de ator é 2 Apesar de o exemplo original de Coseriu ter sido com palavras de língua espanhola – actor, actriz, director, directora –, optamos pela tradução em português, tendo em vista que o aspecto sobre o qual se reflete acerca dessas palavras é idêntico nos dois idiomas. 30 atriz (não atora) e que o feminino de diretor é diretora (e não diretriz). Há, portanto, uma ação da norma na determinação daquilo que é a realização normal do sistema pela comunidade de falantes. Apesar de sua inquestionável importância para os estudos linguísticos, a teoria coseriana não é isenta de problemas. Por exemplo, Coseriu entende a norma apenas no sentido dos usos, como vimos, mas essa distinção entre norma objetiva e norma subjetiva, ou norma normal e norma normativa, não é tão simples quanto parece. De acordo com Lucchesi (2012, p. 59), há “uma complexa interação do sistema de valores adotados por um grupo e os padrões linguísticos observados no seu comportamento, ou seja, existe uma inter-relação entre o que é habitual e o que é imposto de forma clara ou subliminar”. Assim sendo, o mecanismo que discutimos há pouco, sobre a norma determinar quais serão as formas realizadas, independentemente daquilo que o sistema possibilita, tem relação tanto com a norma objetiva/normal quanto com a norma subjetiva/normativa: o uso corrente ou habitual não é o único critério usado nessa “regulação” da realização normal, há também uma ação dos sistemas de valores validados no interior da comunidade de fala. A despeito de Coseriu não dar espaço para a norma subjetiva em sua teoria, Lucchesi lembra que o próprio autor afirma que “a norma é, com efeito, um sistema de realizações obrigadas, de imposições sociais e culturais” (COSERIU, 1979, p. 74 apud LUCCHESI, 2012, p. 60); o que seriam essas “imposições sociais e culturais” senão sistemas de valores associados às comunidades? De acordo com Lucchesi, [...] a motivação mais profunda da formulação coseriana é retirar da língua ou sistema – o objeto precípuo da análise linguística – qualquer determinação social, de modo que o sistema linguístico pudesse ser estudado apenas por suas relações internas, somente a partir da sua lógica funcional. Coseriu expressa, assim, a pretensão de todos os estruturalismos: estudar apenas o sistema que se situaria por sobre todas as normas sociais da língua. (LUCCHESI, 2012, p. 65) Desse modo, Lucchesi mostra-nos que continua havendo uma proposta de desconsiderar os aspectos sociais no estudo da língua, tomada enquanto sistema fechado em si mesmo. Lucchesi (2012) também defende que a teoria de Coseriu só poderia se sustentar se fosse possível demonstrar que os fatos da norma e os fatos do sistema apresentam uma distinção objetiva, o que não ocorre, conforme expõe em sua argumentação. Coseriu 31 desconsidera que a variação presente no nível da norma – as variantes normais, como mencionamos anteriormente – pode levar a uma mudança no sistema, o que a sociolinguística tem demonstrado em suas investigações (BAGNO, 2017). Assim, a concepção de sistema, de um lado, e norma, de outro, não se sustenta, por isso há, nos estudos sociolinguísticos, a proposta de uma fusão entre esses conceitos, então separados pela teoria coseriana. Há, portanto, para a sociolinguística, um sistema heterogêneo, do qual faz parte a norma, com suas variantes normais, que participam do funcionamento do sistema-língua. De posse desses conceitos, discutiremos, a partir de agora, questões relacionadas às normas linguísticas ou variedades do português. Partiremos da perspectiva de que o sistema é heterogêneo, constituído não apenas de uma norma, mas de várias, isso porque os usos normais dos falantes são bastante variados, dadas as características de cada comunidade de fala, conceito sobre o qual falaremos também. Procuraremos demonstrar que essa multiplicidade de normas não é entendida de um ponto de vista hierárquico, classificatório, já que, linguisticamente, todas se equivalem e são vistas como legítimas, indiscriminadamente; entretanto, como a língua não pode ser separada dos seus aspectos sociais, mostraremos que se atribuem às variedades diferentes valores. 32 3 NORMAS E VARIEDADES LINGUÍSTICAS EM FOCO Nesta seção, propusemos discussões relacionadas às diferentes normas e/ou variedades que constituem nosso sistema linguístico. Iniciamos as reflexões tratando do postulado da plenitude formal, que aponta para o fato de todas as variedades possuírem organização gramatical própria, com um sistema bem estruturado; na sequência, dedicamos uma subseção a tratar de diferentes denominações relacionadas às normas (objetivas e subjetivas), detalhando conceitos como norma(s) culta(s), norma-padrão, norma(s) popular(es), norma gramatical, norma curta, entre outros; e, por fim, apresentamos a proposta de Bortoni- Ricardo (2004) para entendermos a variação no português brasileiro a partir dos contínuos de urbanização, de oralidade-letramento e de monitoração. 3.1 As variedades no sistema heterogêneo: postulado da plenitude formal Como são diversas as comunidades de fala e/ou os grupos sociais, e partindo da perspectiva de que o sistema linguístico é, naturalmente, heterogêneo, entendemos que há, na língua, variação, ou seja, formas que “podem ocorrer no mesmo contexto linguístico com o mesmo valor referencial, ou com o mesmo valor de verdade, i.e., com o mesmo significado” (COELHO et al., 2010, p. 23); essa variação, constituinte do sistema heterogêneo de que falamos, não prescinde de ordenação, conforme demonstraram Weinreich, Labov e Herzog (2006 [1968]). Sendo a variação inerente ao sistema da língua, está presente, evidentemente, nas normas ou variedades que constituem tal sistema e que serão diferentes entre si, pois estão condicionadas a fatores sociais relacionados às comunidades de fala em que são encontradas. O fato de haver uma pluralidade de normas ou variedades não deve nos levar ao julgamento de que uma é superior à outra. O postulado da plenitude formal (CAMACHO, 2013; FARACO, 2008; FARACO; ZILLES, 2017), incorporado pela sociolinguística a partir do estruturalismo, demonstra que todas as normas ou variedades têm gramática, ou seja, todas apresentam regras e princípios que operam na produção dos seus enunciados. A esse respeito, Camacho (2013, p. 26) alude a Sapir (1969), explicitando que ele defende [...] o princípio de que, em qualquer momento de estabilidade sincrônica de um sistema linguístico, ele próprio, ou qualquer uma de suas variedades, sempre se encontra em um estágio de plenitude formal, o que significa, 33 portanto, estar sempre apto para todas as tarefas a que se destina como instrumento de interação e comunicação. Esse reconhecimento da organização presente no interior de todas as normas ou variedades é muito importante para questionar ideias que acabam por se construir (e se perpetuar) socialmente. Faraco (2008) discute aos menos três crenças ou ideias que o postulado da plenitude formal ajuda a derrubar. A primeira delas seria a de que pessoas com baixa escolaridade têm uma fala “sem gramática”: se todas as normas ou variedades apresentam organização estrutural, é impossível que qualquer pessoa fale sem gramática. Outra ideia que esse postulado ajuda a desconstruir, de acordo com as reflexões de Faraco (2008, p. 36, grifos nossos), é a noção de erro: “se um enunciado é previsto por uma norma, não se pode condená-lo como erro com base na organização estrutural de uma outra norma”. Assim sendo, entendemos que qualquer enunciado elaborado em uma língua, por um falante nativo, está de acordo com regras pertencentes a uma norma ou variedade daquela língua. Tendo em vista a organização estrutural dessa norma ou variedade, é um enunciado previsto, então não pode ser tomado como erro. O erro é, na maior parte das vezes, estabelecido a partir do ponto de vista de uma outra norma ou variedade, com organização que difere daquela em que ele se produz. É seguindo essa lógica que Bortoni-Ricardo (2004) defende que o que se entende como erro é, na verdade, diferença. A terceira ideia contestada por Faraco é a concepção de que falamos mal o português, sem o emprego de lógica ou de regras. A esse respeito, o autor discute que, naturalmente, haverá grupos de falantes que não dominarão ou terão um baixo domínio de algumas normas, no entanto, “não há falantes que falem sem o domínio de alguma norma” (FARACO, 2008, p. 37), o que significa que sempre há lógica e regras nas produções linguísticas dos falantes: a lógica e as regras que funcionam no interior das normas utilizadas. Antes de seguirmos adiante, discutindo um pouco a respeito de algumas normas ou variedades do português brasileiro a partir da perspectiva de diferentes autores, achamos importante trazer, neste momento, o conceito de comunidade de fala, de acordo com Labov (1974, p. 63, grifos nossos), que a define como: “um grupo de pessoas que compartilham um conjunto de normas comuns com respeito à linguagem, e não como um grupo de pessoas que falam do mesmo modo”. Apesar de já termos nos referido a esse termo algumas vezes anteriormente, entendemos que, nesse momento de nosso trabalho, é especialmente importante apresentar tal definição, dando destaque a um ponto em especial: a ideia de que, em uma comunidade de 34 fala, é compartilhado um conjunto de normas. Isso quer dizer que uma mesma comunidade não será caracterizada apenas por uma norma ou uma variedade, há, sim, uma pluralidade que complexifica a realidade linguística desses grupos de falantes. De acordo com Faraco (2008), essa pluralidade deve-se à própria heterogeneidade da rede de relações sociais que são estabelecidas em cada comunidade de fala, havendo, inclusive, uma preferência por parte de alguns pesquisadores de entender uma comunidade linguística (comunidade de fala) como sendo composta por várias comunidades de prática.3 Tendo-se em mente essas discussões, procuraremos refletir, então, sobre a realidade linguística de nosso país, buscando trazer para o debate algumas normas ou variedades que estão postas entre nós e como são percebidas socialmente. 3.2 Diferentes normas linguísticas ou variedades do português brasileiro Tomando tanto a norma objetiva, que reflete os usos dos falantes, quanto a norma subjetiva, ligada a um sistema de valores da comunidade de fala, diferentes autores propõem diferentes denominações e reflexões. Em seu Dicionário Crítico de Sociolinguística, Bagno (2017), na entrada norma, lista algumas dessas denominações, as quais destacaremos a seguir e discutiremos mais detalhadamente nos próximos parágrafos. Para a norma objetiva, os termos são: padrão real; norma objetiva, explícita ou padrão real; norma culta; norma popular; normas normais ou sociais; variedades prestigiadas; variedades estigmatizadas. Já para a norma subjetiva, os termos são: padrão ideal; norma subjetiva, implícita ou padrão ideal; norma prescritiva; norma-padrão; norma normativo-prescritiva. Além desses conceitos, discutiremos também as ideias de norma gramatical e norma curta (as duas, normas subjetivas), na perspectiva de Faraco (2008). Os termos padrão real e padrão ideal foram apresentados por Rodrigues (2012) no contexto em que discutia as generalizações de comportamento em uma sociedade, as quais fazem parte do que ele chamou de padrões culturais. Dentro desses padrões culturais estão os padrões ideais, definidos pelo conjunto de expectativas que se tem em relação ao 3 Ao falarmos em comunidade de prática, fazemos referência a um conceito que Eckert trouxe para a sociolinguística. De acordo com uma definição da própria autora, “uma comunidade de prática é um conjunto de pessoas que se engajam continuamente em algum exercício comum”. Essas pessoas, por conta das atividades de que partilham, “desenvolvem maneiras de fazer coisas, pontos de vista, valores, relações de poder, modos de falar”, por isso a comunidade de prática é “um locus rico para o estudo do uso situado da linguagem” (ECKERT, 2006, p. 1, grifo da autora, traduções nossas). 35 comportamento linguístico das pessoas em dada situação, e os padrões reais, que são, então, como de fato as pessoas comportam-se nas diferentes situações de comunicação. Para Rodrigues, no momento em que se descreve a fala de uma comunidade, investigando seus usos espontâneos, é o padrão real que está sendo tomado como base para essa descrição, revelando, então, padrões de comportamento reais dessa comunidade. É possível também buscar entender o sistema de valores operando por trás da comunidade, no sentido de perceber o que seus membros consideram como a fala ideal ou mais adequada a uma determinada situação, nesse caso, é o padrão ideal que se observa. Assim, entende-se que uma comunidade de fala compartilhará não apenas usos habituais, mas crenças sobre quais são os usos ideais, ou seja, crenças sobre o que representaria um “melhor uso” da língua, ainda que esse uso não seja parecido com os seus próprios. De acordo com Costa (2008), nossa sociedade entende que o padrão ideal da língua é aquele veiculado pelas gramáticas normativas, o que se fundamenta no tradicionalismo gramatical e dialoga com a perspectiva de língua como sistema homogêneo de que tratamos, distanciada dos usos. Castilho (2012), por sua vez, apresenta a ideia de que haveria um conceito amplo e um conceito estrito para norma. Apesar de os termos serem parecidos com aqueles usados por Faraco e Zilles (2017) – sentido geral e sentido específico de norma –, tal qual mencionamos na subseção 2.2, as ideias são diferentes: Castilho entende que, no conceito amplo de norma, ela funcionaria como “fator de coesão social”, enquanto no conceito estrito corresponderia aos “usos e aspirações da classe social de prestígio” (CASTILHO, 2012, p. 27). Nesse sentido mais amplo de norma estão os mecanismos de correção aplicados pela própria comunidade na regulação dos usos normais ou comuns; é o que ocorre, por exemplo, quando adultos interferem/censuram certos usos linguísticos feitos por crianças pequenas (o autor exemplifica com a frase “eu sabo”): com isso, o que se busca é “integrar a criança na comunidade amplamente considerada, e não apenas em determinado estrato dessa comunidade” (CASTILHO, 2012, p. 27). Há, aqui, uma pressão social que impacta os usos linguísticos compartilhados pelo grupo, com vistas a manter uma coesão, unificando traços culturais, o que preserva a identidade da comunidade. No sentido mais estrito, apontado pelo autor como aquele que deve ser de maior interesse para o ensino, há, além dos usos, valores associados ao prestígio social; Castilho propõe, então, a existência de três normas na realidade brasileira: a norma objetiva, a norma subjetiva e a norma prescritiva, todas associadas ao sentido estrito de norma. 36 A norma objetiva, explícita ou padrão real é entendida pelo autor como a linguagem em uso por uma classe que ele define como “culta, escolarizada” (CASTILHO, 2012, p. 27). De acordo com Castilho, essa norma é detentora de um prestígio social ligado tão somente à classe a que pertencem os seus falantes, não havendo nela, evidentemente, nada que seja “melhor” ou “superior” às demais, afinal, tal qual discutimos, não há uma hierarquia entre as normas considerando-se fatores estritamente linguísticos. Convém apontar, no entanto, que, nessa norma objetiva, o autor não inclui os usos de falantes pertencentes a classes que não sejam “cultas e escolarizadas”. A norma subjetiva, implícita ou padrão ideal é definida, por sua vez, como a “atitude que o falante assume perante a norma objetiva [...]” (CASTILHO, 2012, p. 28). Esse conceito tem relação com o padrão ideal de Rodrigues (2012), sendo, então, a forma como os falantes avaliam os usos da norma objetiva, aquilo que consideram como os usos mais corretos, mais acertados em uma determinada situação. Já a norma prescritiva seria, de acordo com o autor, uma associação entre a norma objetiva e a norma subjetiva, apresentando um caráter unificador; sendo assim, é a norma que estabelece os usos mais bem avaliados diante de cada situação comunicativa. Essa norma, na visão do autor, deve ser objeto de ensino na escola; para ele, “merecem ser ensinados os usos linguísticos de uma classe prestigiosa considerados mais adequados a cada situação e melhor identificados com o ideal de perfeição linguística” (CASTILHO, 2012, p. 28). De acordo com o autor, apesar de seu caráter unificador, a norma prescritiva não tem, de fato, uma unidade, e não está isenta dos fenômenos de variação, até porque os usos cultos são variáveis (lembremos que as comunidades de fala partilham de um conjunto de normas) e aquilo que se toma como norma subjetiva (as avaliações que são feitas sobre os usos) também o são. Portanto, Castilho parte de uma perspectiva que entende a norma prescritiva como uma norma baseada nos usos cultos e na avaliação social desses usos, por isso, à primeira vista, não parece estar tão apartada da realidade linguística. No entanto, conforme falamos a respeito do padrão ideal de Rodrigues (2012), o que os falantes tomam como uso ideal (ou seja, como norma subjetiva) não necessariamente é um uso que faz parte da sua própria variedade, havendo uma grande influência da gramática normativa na construção desse padrão, tal qual dissemos também. Perseguir o ensino de usos linguísticos mais identificados com o “ideal de perfeição linguística”, como menciona o autor, pode não ser o melhor 37 caminho, havendo grandes chances de cairmos em um ensino de língua que, de tão imerso em “ideais de perfeição”, desconsidera a realidade e a heterogeneidade de nossa língua. Faraco é um autor que muito se dedica a discutir sobre normas e a refletir acerca das relações entre essas normas e o ensino de língua portuguesa. Aproveitando as vastas discussões e importantes reflexões desse autor sobre o assunto de que estamos tratando nesta subseção, traremos, de forma mais detalhada, as análises de Faraco sobre os conceitos de normas e incluiremos algumas ideias de outros autores que dialogam com suas propostas. Ao tratar sobre norma, Faraco (2008, 2012) estabelece uma relação entre ela e fatores identitários, mais ou menos na mesma direção da reflexão de Castilho (2012) sobre o sentido mais amplo da norma, como um fator de identificação do grupo, mas entende que o senso de pertencimento inclui tanto o uso de formas que são características do grupo, fazendo parte de seu uso normal, quanto um alinhamento em relação às expectativas do comportamento linguístico. Assim, indica que “uma norma, qualquer que seja, não pode ser compreendida apenas como um conjunto de formas linguísticas; ela é também (e principalmente) um agregado de valores socioculturais articulados com aquelas formas” (FARACO, 2008, p. 41). A ideia de Faraco está muito relacionada à reflexão de Lucchesi (2012) que apresentamos na subseção 2.2: os padrões linguísticos de um grupo interagem de forma complexa com o sistema de valores adotado por ele. Desse modo, Faraco deixa claro que sua visão sobre norma dá conta tanto dos aspectos objetivos ou observáveis no uso, constituintes da coesão coletiva, quanto dos aspectos subjetivos, relacionados a um sistema de valores construído com base no que se espera de um comportamento linguístico. Ao refletir sobre a força identitária das normas, Faraco identifica que há dois movimentos agindo sobre os falantes no interior de uma comunidade de fala: o primeiro teria natureza endocêntrica e diz respeito a uma acomodação às práticas linguísticas comuns, habituais, normais do grupo; já o segundo teria natureza exocêntrica e diz respeito (1) ao desejo de identificação com outros grupos e (2) a pressões feitas pela rede de relações externa ao grupo em que o falante se encontra. Esses dois fatores de natureza exocêntrica levariam o falante a buscar dominar outras normas. Entende-se, então, que as relações entre diferentes grupos – o que ocorre naturalmente em uma sociedade como a nossa – faz com que haja um contato bastante ativo entre normas distintas e, mais do que um contato, um verdadeiro intercâmbio entre elas, daí resultando o fato de não ser possível pensarmos em uma norma “pura”: 38 [...] as normas absorvem características umas das outras – elas são, portanto, sempre hibridizadas. Por isso, não é possível estabelecer com absoluta nitidez e precisão os limites de cada uma das normas – haverá sempre sobreposições, desdobramentos, entrecruzamentos. (FARACO, 2008, p. 42) Depois de entendermos o que o autor conceitua como norma, de forma geral, vejamos o seu entendimento acerca da ideia de norma culta. Faraco (2008, p. 47) chega a colocar que a norma culta seria, em nosso país, “a variedade de uso corrente entre falantes urbanos com escolaridade superior completa, em situações monitoradas”, tomando como base para essa definição o perfil selecionado pelo projeto NURC (Norma Linguística Urbana Culta), que buscou documentar e estudar a norma falada culta brasileira. No entanto, o próprio autor faz uma reflexão para mostrar que, a depender da realidade de cada país, no que diz respeito à distribuição dos bens educacionais e culturais, é que se poderá definir quem seriam os falantes cultos. Em Faraco e Zilles (2017, p. 19), a definição de norma culta não especifica seus falantes como aqueles com escolaridade superior completa, entendendo-se tal norma como “o conjunto das características linguísticas do grupo de falantes que se consideram cultos [...]. Na sociedade brasileira, esse grupo é tipicamente urbano, tem elevado nível de escolaridade e faz amplo uso dos bens culturais da escrita”. Faraco (2008) discute que o termo “norma culta”, no singular, não é indicativo de uma norma “pura”, mesmo porque, como vimos, isso não é possível. Há, sim, variabilidade no interior dessa norma, o que ocorre devido a diferentes fatores, como as diferenças etárias entre os falantes, para exemplificar. Faraco e Zilles (2017) também defendem que os falantes cultos não são monovarietais, portanto, a depender das circunstâncias de interação, haverá variação dentro da chamada norma culta. Essa variabilidade é o que nos possibilita dizer “normas cultas”, no plural, sendo esse possivelmente o modo mais adequado de referenciar a diversidade de variedades identificadas sob a etiqueta “culta”. Apesar da variabilidade, há traços característicos dos usos cultos que permitem a sua identificação, daí a ideia de haver uma unidade linguística, o que não significa dizer que há uniformidade (FARACO, 2008). Ainda sobre a norma culta, mais especificamente acerca da sua nomenclatura, Faraco (2008) propõe a expressão norma culta/comum/standard, como uma tentativa de: (1) evitar o uso exclusivo do adjetivo “culta”, que pode ser entendido a partir de uma perspectiva elitista, conforme comentaremos mais adiante; (2) indicar, com mais precisão, a realidade brasileira, 39 em que a norma culta falada não apresenta diferenças expressivas em relação à linguagem urbana comum4; (3) utilizar terminologias menos valorativas (no caso, comum ou standard). Faraco (2008) apontou importantes discussões acerca de como, historicamente, em diferentes sociedades, a norma culta ganhou prestígio por ser associada a usos monitorados e a práticas da cultura escrita, tornando-se, por isso, um objeto privilegiado de estudo. Todo esse processo contribuiu para criar a ideia de que essa norma constituiria uma variedade superior da língua, ou seria a própria língua, o que levou alguns setores da sociedade a entenderem as demais variedades como deteriorações ou deturpações da língua “legítima”. Reiteramos, porém, que não há, do ponto de vista linguístico, uma hierarquia de normas ou variedades, mas temos conhecimento de que, socialmente, “há uma diferenciação valorativa que hierarquiza as variedades. Por razões históricas, os grupos sociais vão atribuindo diferentes valores às diferentes variedades” (FARACO, 2008, p. 72), o que traz algumas consequências, como o preconceito linguístico, conforme discutiremos mais adiante (subseção 4.2). Após entendermos o conceito de norma culta, na perspectiva de Faraco, veremos como esse mesmo autor conceituou norma-padrão. Há, antes da definição propriamente dita, uma contextualização que tem por objetivo demonstrar de que maneira, historicamente, a produção de instrumentos linguísticos, como gramáticas e dicionários, atendeu à necessidade de construir certa unidade linguística em territórios marcados por grande diversificação. Houve, assim, desde o final do século XV, um movimento, iniciado na Europa, na direção de criar um padrão de língua, visando a atenuar a diversidade linguística regional e social; esse padrão é aquilo que se convencionou chamar de norma-padrão (FARACO, 2008). Em uma comparação entre norma culta e norma-padrão, teríamos que: Enquanto a norma culta/comum/standard é expressão viva de certos segmentos sociais em determinadas situações, a norma-padrão é uma codificação relativamente abstrata, uma baliza extraída do uso real para servir de referência, em sociedades marcadas por acentuada dialetação, a projetos políticos de uniformização linguística. (FARACO, 2008, p. 73, grifo do autor) Desse modo, podemos entender que a norma-padrão, diferentemente da norma culta, não é uma norma de uso, não fazendo parte, então, das normas objetivas, produzidas pelos 4 De acordo com Preti (1999), é a linguagem que mistura características da fala espontânea a regras prescritas pela gramática tradicional. O autor aponta, ainda, que essa é a linguagem presente, de forma mais comum, na mídia. 40 falantes. A ideia de norma-padrão, como codificação abstrata, objeto de referência, acaba por colocá-la entre as normas subjetivas, ou, como Faraco propõe, normas normativas. A conceituação que ora apresentamos traz um dado importante para nossa discussão: o fato de a norma-padrão, apesar de não representar um uso real, ter sido extraída desse tipo de uso. O autor explica-nos que, na Europa, a variedade da língua tida como referência para a constituição do padrão, apesar de diferir, a depender da localidade, não se distanciou da norma culta, em sua modalidade escrita. No entanto, no caso brasileiro, a constituição da norma-padrão, na segunda metade do século XIX, é um processo que adiciona ainda mais artificialidade a essa norma, pois aqui ela não teve como base as variedades utilizadas pelos falantes cultos da língua, mas um modelo de escrita do português de Portugal, especificamente o que era praticado por certos escritores do Romantismo. Tal postura negava deliberadamente a realidade diversa do nosso país, tanto em questões linguísticas quanto em questões étnicas e culturais. É importante que se destaque, porém, que não houve, ao menos de forma direta, uma imposição lusitana para que sua norma culta escrita fosse tomada como referência para a norma-padrão brasileira: essa foi uma atitude da própria elite letrada de nosso país, conforme discutem Faraco (2008) e Pagotto (1998). Faraco entende que, no Brasil, esse esforço padronizador não buscava resolver um processo intenso de dialetação, nem tentava construir um Estado unificado – fatores que, no caso europeu, constituíram os objetivos primordiais no estabelecimento da norma-padrão –; aqui, o que se almejava era combater as variedades populares do português. Para Pagotto (1998, p. 55), a constituição da norma culta no século XIX pode ser localizada no “processo histórico e político da constituição da nação”, com um movimento, por parte das elites, de se associar à cultura europeia, construindo essa norma culta com base no português de Portugal. Assim, ao indagar “por que a língua culta assumiu a face do português europeu moderno”, Pagotto (1998, p. 56-57) responde: Porque teria sido um dos mecanismos pelos quais as nossas elites poderiam se afirmar em oposição a uma maioria da população. Afirmar o português do Brasil como gramática possível na língua escrita equivalia a nivelar por baixo, mesmo que uma série de traços da gramática já fizessem parte da fala daqueles que os queriam negar. Como o acesso a esta norma culta se daria somente a partir de rigorosa educação, estava garantido o processo de exclusão. 41 Vemos, então, que, em decorrência da construção dessa norma culta escrita à imagem do português europeu, na qual a norma-padrão brasileira está baseada, há uma imensa distância entre o padrão e a realidade linguística de nosso país, mesmo no que diz respeito aos usos dos falantes mais letrados. A norma-padrão, como destacam Faraco e Zilles (2017), ao distanciar-se da língua efetivamente falada pelas pessoas, desponta como um ideal de língua, usado como referência para o “bem falar”. Sendo essa uma norma idealizada, não é considerada (convém ressaltar) uma variedade da língua, mas um conjunto de preceitos padronizadores. A semelhança do conceito de norma-padrão com a ideia de língua como sistema homogêneo, tal qual discutimos anteriormente, não é coincidência. De acordo com Faraco (2008), citando Milroy e Romaine, esse modelo teórico-metodológico, que considerava a língua como um todo homogêneo, desvinculado dos usos efetivamente observados, reproduziu uma concepção de língua que a identificava como a própria norma-padrão, fruto desse processo padronizador iniciado no século XV, na Europa, conforme mencionamos. Nas palavras de Faraco (2008, p. 33): “dessa identificação da língua com a norma-padrão decorre a dificuldade da linguística e dos linguistas em acomodar em seus modelos teóricos a heterogeneidade empírica que caracteriza qualquer realidade linguística”. Assim sendo, a visão de língua homogênea proposta nos modelos que discutimos na subseção 2.1 alimenta-se dessa perspectiva que identifica norma-padrão com a própria língua e, ao mesmo tempo, cria um respaldo científico para a ideia de que a língua não está na realidade dos seus usos, mas além dela, colaborando, por exemplo, para reafirmar a artificial norma-padrão brasileira, como coloca Lucchesi (2012, p. 79): Essa norma-padrão decalcada dos padrões de uso do português europeu moderno ganha corpo na segunda metade do século XIX com base no caráter elitista da formação do estado brasileiro e atravessa todo o século XX, não sem contar com o aval do discurso aparentemente neutro de uma ciência da linguagem, que, ao propugnar a existência de um sistema linguístico abstrato superposto às diversas normas linguísticas, forneceu respaldo para a manutenção de uma norma-padrão alheia às tendências reais de uso da língua nos diversos segmentos da sociedade brasileira. Ainda sobre a norma-padrão, é importante pontuar também que, quando temos um ensino que a coloca como principal objeto de estudo das aulas de Língua Portuguesa, estamos adotando a perspectiva do sistema homogêneo; com isso, deixamos de olhar para a língua em uso e passamos a “cultuar” um conjunto de prescrições descoladas da realidade objetiva da 42 língua. Um ensino baseado na norma-padrão é um ensino baseado na régua do certo e do errado (FARACO; ZILLES, 2017), que admite apenas o que a norma-padrão preceitua como certo, estando tudo o que difere dela no ponto do “errado”. Essa régua de apenas dois pontos dialoga com aquilo que Baratz (1968 apud CAMACHO, 2013) chama de “modelo da deficiência”. Nesse modelo, a norma-padrão é tomada como parâmetro para julgar todas as situações de uso da língua, de modo que “o desempenho verbal que não se enquadra na norma-padrão seria, assim, dotado de deficiências orgânicas, de meros desvios patológicos” (CAMACHO, 2013, p. 49). Porém, conforme tratamos anteriormente, todas as expressões verbais de um falante nativo são produzidas dentro de alguma norma de sua língua, seguindo, portanto, as regras referentes a essa norma, por isso não se pode julgar produções em uma norma a partir das determinações de outra norma, sobretudo se os critérios de avaliação estiverem ancorados em uma norma que sequer constitui uma variedade de uso, como é o caso da norma-padrão brasileira. Essa compreensão tira-nos do modelo da deficiência, de que tratamos, e coloca-nos no modelo da diferença (BARATZ, 1968 apud CAMACHO, 2013): passamos a entender que as distinções relacionadas ao padrão não são devidas a uma deficiência na língua dos falantes, mas a uma diferença, fruto da variação que constitui todas as línguas, sendo precisamente essa visão que deve estar presente nas salas de aula. A já referida distância entre a norma culta brasileira e a norma-padrão não foi vista sem críticas no decorrer da história. Faraco procura lembrar-nos de que a primeira geração do Modernismo, por exemplo, esteve bastante envolvida em questões da língua, fazendo forte crítica à norma-padrão lusitanizada. Os movimentos de crítica à artificialidade do padrão contribuíram para que houvesse, na literatura contemporânea, uma abertura para a manifestação da norma culta escrita real, o que colaborou para que, na segunda metade do século XX, houvesse uma flexibilização em alguns instrumentos normativos, ao menos entre os “nossos melhores gramáticos” e os “nossos melhores dicionários”, como assinala Faraco (2008, p. 81). Tal movimento auxiliou a atenuar a rigidez de certas prescrições e inaugurou a norma gramatical, ou seja, “o conjunto de fenômenos apresentados como cultos/comuns/standard por esses gramáticos” (FARACO, 2008, p. 81, grifo do autor). A norma gramatical, sendo assim, é marcada nos instrumentos normativos pela presença daquilo que se observa na norma culta real brasileira, rompendo, senão completamente, ao menos em certa medida com a norma-padrão. 43 Entretanto, ao mesmo tempo em que há um esforço por parte dos autores de instrumentos normativos mais sérios de eliminar as condenações a usos cultos bastante difundidos na escrita, inclusive em textos mais monitorados, ainda é comum encontrarmos replicadores de [...] um conjunto de preceitos dogmáticos que não encontram respaldo nem nos fatos, nem nos bons instrumentos normativos, mas que sustentam uma nociva cultura do erro e têm impedido um estudo adequado da nossa norma culta/comum/standard. (FARACO, 2008, p. 92, grifo do autor) São esses preceitos infundados que constituem o que Faraco chama de norma curta. Esse é um tipo de norma que, a exemplo da norma-padrão, não tem compromisso com os usos reais observados na norma culta de nosso país, falada ou escrita. A norma curta é veiculada em discursos bastante puristas, que pretendem defender a língua, protegê-la dos “usos bárbaros” e da “ignorância” dos falantes. Vejamos, agora, as discussões sobre normas propostas por Lucchesi (2012), para quem a norma culta é constituída pelos [...] padrões de comportamento linguístico dos cidadãos brasileiros que têm formação escolar, atendimento médico-hospitalar e acesso a todos os espaços da cidadania, e é tributária, enquanto norma linguística, dos modelos transmitidos ao longo dos séculos nos meios da elite colonial e do Império e inspirados na língua da Metrópole portuguesa. (LUCCHESI, 2012, p. 78) Notamos que a definição de Lucchesi em relação à de Faraco é um tanto mais pormenorizada, além de mais abrangente, não estando muito pautada na escolarização, mas levando-se em conta também importantes fatores sociais que caracterizam as práticas cotidianas do falante, como o acesso a atendimento médico-hospitalar e a espaços de cidadania. Além disso, a definição do autor também faz referência às relações dessa norma, historicamente, com as camadas mais privilegiadas da sociedade do Brasil Colônia e do Brasil Império. Esse mesmo autor fala também em norma popular, que define como [...] padrões de comportamento linguístico da grande maioria da população alijada de seus direitos elementares e mantida na exclusão e na bastardia social. Na medida em que grande parte de seus antepassados eram “peças” (seres humanos reduzidos à condição de coisa, para usufruto dos seus senhores), deve-se pensar que esses falantes se formam no grande cadinho que fundiu, na fornalha da escravidão em massa, as etnias autóctones e as etnias africanas na fôrma do colonizador europeu. Portanto, se é uma 44 variedade da língua do colonizador a que se impõe na fala dos segmentos sociais aí formados, não se pode deixar de perceber as marcas de sua aquisição precária e de sua nativização mestiça. (LUCCHESI, 2012, p. 78- 79) Observamos que a definição de norma popular, assim como a definição do autor para norma culta, não coloca critérios explícitos de escolarização; em lugar disso, determina uma conjuntura social da qual fazem parte os seus falantes, herdeiros de um processo histórico de despojamento de direitos e de liberdades. Embora não faça parte da discussão proposta por Lucchesi, queremos destacar que, do mesmo modo que a norma culta é entendida como plural, todas as normas o são, o que inclui a norma popular, ou normas populares, para fazer jus à pluralidade referida. Isso ocorre porque, como já explicamos, não há norma que seja “pura”, havendo sempre variabilidade no interior de cada uma, o que não impede, porém, de haver certos traços que as identifiquem. Lucchesi (2012) também trata da norma-padrão, colocando-a como uma norma subjetiva, definida a partir do português europeu moderno, tomada como base do padrão normativo pedagógico e descolada dos usos reais observados na norma culta ou na norma popular. Mattos e Silva (1995 apud BAGNO, 2017) também reflete sobre essas normas, propondo, primeiramente, o conceito de norma normativo-prescritiva, norma-prescritiva ou norma-padrão para fazer referência a um modelo idealizado de referência para a escrita. A autora ressalta que, na perspectiva dessa norma, o que se diferencia dela é erro (aqui, novamente, o “modelo de deficiência” do qual tratamos). Além disso, entende que a norma normativo-prescritiva/norma-prescritiva/norma-padrão é a que está presente nas gramáticas pedagógicas, adotada, portanto, nas escolas. Em suas palavras, essa norma Distancia-se da realidade dos usos, embora com alguns deles se interseccione, e é parcialmente reciclada ou atualizada ao longo do tempo pelas imposições evidentes, decorrentes da razão universal de as línguas mudarem e suas normas também, entre elas a que serve de modelo à norma- padrão. (MATTOS E SILVA, 1995, p. 14, grifos da autora apud BAGNO, 2017, p. 310) Do mesmo modo como vimos em Faraco (2008) e Lucchesi (2012), a norma-padrão é entendida pela autora como distanciada dos usos, embora, em alguns casos, haja coincidências. Uma ideia interessante trazida por Mattos e Silva é a de que essa norma não pode fugir de atualizações, em decorrência do fato de as línguas mudarem. 45 A autora propõe, ainda, outro conceito, o de normas normais ou sociais, que seriam definidoras de “grupos sociais que constituem a rede social de uma determinada sociedade” (MATTOS E SILVA, 1995, p. 14, apud BAGNO, 2017, p. 310). Dentro desse grupo, a autora diferenciou dois subtipos de normas: as normas sem prestígio social ou estigmatizadas, que entendemos guardar relação com as normas populares, já definidas aqui, e as normas de prestígio social, o mesmo que as normas cultas, cujos falantes pertencem à classe dominante e, em sociedades letradas, têm alto nível de escolaridade. Bagno (2007, 2017) também sugere terminologias para discutir questões relacionadas às normas. O autor, porém, apontando a ambiguidade do termo norma e problematizando os adjetivos “culta” (em norma culta) e “popular” (em norma popular), propõe que tenhamos a norma-padrão, as variedades prestigiadas e as variedades estigmatizadas. Ao substituir norma por variedade, o autor pretende posicionar de forma mais clara que se está fazendo referência a um conjunto de usos observados genuinamente em uma comunidade de fala, o que, devido aos diferentes sentidos da palavra norma, pode nem sempre ser facilmente compreendido. Já a proposta pelo uso de prestigiada no lugar de culta vem de um longo debate acerca desse último adjetivo. Faraco (2008), apesar de falar em norma culta, entende que a palavra culta está muito distante de apresentar uma neutralidade. Ele reflete que, se tomado em sentido absoluto, tal adjetivo poderia sugerir que há uma oposição entre essas normas cultas e outras que seriam “incultas”. No entanto, o autor assinala que não há grupo humano sem cultura, por isso é muito importante entender o limite desse qualificativo, que está fazendo referência, de forma específica, à cultura escrita. Bagno (2002 apud BAGNO, 2017) observa o mesmo problema no adjetivo popular, propondo, por isso, sua substituição pelo termo estigmatizada. Ele discute que esse adjetivo exclui os falantes cultos, como se não fizessem parte do “povo”. No entanto, Faraco (2008, p. 62, grifos do autor) reflete sobre a proposta de Bagno, colocando um contraponto: Bagno (2003: 63ss.) propõe que se use variedades prestigiadas (em vez de norma cu