ASPECTOS DA HISTÓRIA DA ANÁLISE MATEMÁTICA DE CAUCHY A LEBESGUE ROSA LÚCIA SVERZUT BARONI SÍLVIO CÉSAR OTERO-GARCIA Aspectos dA HistóriA dA Análise MAteMáticA de cAucHy A lebesgue CONSELHO EDITORIAL ACADÊMICO Responsável pela publicação desta obra Marcos Vieira Teixeira Miriam Godoy Penteado Roger Miarka Rosana Giaretta Sguerra Miskulin ROSA LÚCIA SVERZUT BARONI SÍLVIO CÉSAR OTERO-GARCIA Aspectos dA HistóriA dA Análise MAteMáticA de cAucHy A lebesgue © 2014 Editora Unesp Cultura Acadêmica Praça da Sé, 108 01001-900 – São Paulo – SP Tel.: (0xx11) 3242-7171 Fax: (0xx11) 3242-7172 www.culturaacademica.com.br feu@editora.unesp.br CIP – BRASIL. Catalogação na Fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ B245a Baroni, Rosa Lúcia Sverzut Aspectos da história da análise matemática de Cauchy a Lebesgue [recurso eletrônico] / Rosa Lúcia Sverzut Baroni, Sílvio César Otero-Garcia. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2014. recurso digital Formato: ePDF Requisitos do sistema: Adobe Acrobat Reader Modo de acesso: World Wide Web Inclui bibliografia ISBN 978-85-7983-601-5 (recurso eletrônico) 1. Matemática – Estudo e ensino. 2. Matemática – História. 3. Livros eletrônicos. I. Otero-Garcia, Sílvio César. II. Título. 14-18667 CDD: 510.9 CDU: 51(09) Este livro é publicado pelo Programa de Publicações Digitais da Pró-Reitoria de Pós-Graduação da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp) Editora afiliada: Sumário Introdução 7 1 O conceito de função 15 2 As contribuições de Cauchy 25 3 Gauss, Bolzano e Abel 51 4 Séries de Fourier e o teorema de Cauchy 65 5 Weierstrass e o movimento do rigor 77 6 A moderna teoria da integração 91 Sílvio César Otero-Garcia 7 Construções dos números reais 129 Referências 151 introdução A disciplina de análise, oferecida em cursos de graduação em matemática, é, em geral, tida como geradora de grande ansiedade nos alunos (Bortoloti, 2003). Concebemos a análise matemática "não apenas como uma tentativa de fornecer rigor e fundamento ao Cálculo, mas como um conjunto de objetos histórico-matemáticos que criaram necessidades que não existiam, e para elas dispensaram esforços que culminaram em uma crise de fundamentos e no esta- belecimento de novas concepções’’ (Baroni; Teixeira; Nobre, 2009, p.181). Seu conteúdo trata primordialmente dos processos infinitos em cujo centro encontra-se o conjunto dos números reais, sendo que o formalismo e abstração presentes em sua estrutura causa forte impacto, e o índice de reprovação costuma ser alto. Vários outros aspectos referentes à disciplina de análise foram, também, alvo de investigações por pesquisadores brasileiros, tais como Reis (2001), Pinto (2001, 2009), Ávila (2002), Bolognezi (2003), Souza (2003), Moreira, Cury e Vianna (2005), Batarce (2006), Lima (2006), Ciani, Ribeiro e Junior (2006). A maioria desses trabalhos apresenta resul- tados que diagnosticam e apontam as dificuldades dos alunos com a disciplina, mas não se percebem propostas explícitas para enfrentar os problemas detectados. 8 ROSA LÚCIA SVERZUT BARONI • SÍLVIO CÉSAR OTERO-GARCIA Dentro de um estudo abrangente a esse respeito, temos pesqui- sado alguns aspectos, por exemplo, como a análise se constituiu como disciplina no Brasil; como a aritmetização da análise tem sido trabalhada, à luz da história, em cursos de licenciatura; que con- teúdos podem ser caracterizados como componentes da estrutura da disciplina; a contribuição de matemáticos para o desenvolvi- mento da análise, tanto no Brasil como em nível mundial; como as licenciaturas têm trabalhado com essa disciplina; qual o movi- mento existente na busca da separação dessa disciplina nos cursos de licenciatura e de bacharelado; as condições de funcionamento da aprendizagem no ensino de análise; a formação matemática do professor enquanto um problema vinculado às políticas cognitivas; algumas propostas para o trabalho em sala de aula, dentre outros (Otero-Garcia, 2011; Martinês, 2012; Otero-Garcia; Cammarota, 2013; Gomes, 2013). Este texto, mais um elemento dessa pesquisa, apresenta alguns aspectos históricos da análise, de forma a construir subsídios que pos- sam colaborar com o aluno e o professor para uma compreensão mais profunda dos conceitos que fazem parte da disciplina de análise. Isso porque, conforme nos apontam Baroni, Teixeira e Nobre (2009), uti- lizando argumentos presentes em Fauvel e Maanen (2000), reconhe- cidos estudiosos das relações entre história e educação matemática, o desenvolvimento histórico da matemática: [...] mostra que as ideias, dúvidas e críticas que foram surgindo não devem ser ignoradas diante de uma organização linear da mate- mática. Ele revela que esse tipo de organização axiomática surge apenas após as disciplinas adquirirem maturidade, de forma que a matemática está em constante reorganização [...] a História pode evidenciar que a matemática não se limita a um sistema de regras e verdades rígidas, mas é algo humano e envolvente. (Baroni; Nobre; Teixeira, 2009, p.166-7) Nesse contexto, com relação ao ensino de funções, por exemplo, a respeito de todo esforço para dar uma fundamentação poderosa a ASPECTOS DA HISTÓRIA DA ANÁLISE MATEMÁTICA... 9 esse conceito fundamental da matemática (Capítulo 1), Eisenberg (1991) mostra que até hoje ele é considerado como um dos mais difíceis de ser ensinado/aprendido: É um dos conceitos mais difíceis para o professor na sequên- cia de ensino da matemática escolar. Em parte isso é devido aos diversos graus de complexidade e às numerosas noções subjacentes associadas com o conceito, mesmo funções do nível mais elementar podem ser abordadas em vários contextos, e dependendo da abor- dagem feita, várias dificuldades emergem desde o início. (p.140) Já Grugnetti (2000) defende que a rica história das funções pode fornecer valiosas ideias sobre como introduzir, sob diferentes abor- dagens, esse conceito na escola básica, levando-se em conta, por exemplo, os diferentes níveis de representação, as diferentes no- tações, os diferentes nomes (operação, correspondência, relação, transformação etc.). Esses aspectos refletem as circunstâncias his- tóricas nas quais esses objetos apareceram nos campos da matemá- tica, da física, da lógica. Enquanto dois séculos atrás funções eram pensadas como fór- mulas que descreviam relações entre duas variáveis envolvendo expressões algébricas (na visão de Euler), a definição moderna de função não é tão limitada... Na educação matemática é frequente esquecer que o conceito de função foi o resultado de um longo encadeamento do pensamento matemático desenvolvido vagaro- samente. Ao contrário, na escola básica esse conceito é em geral introduzido muito cedo como uma base para a introdução de outros conceitos. Mas essa base realmente foi bem compreendida? O que aconteceu durante sua longa história? (Grugnetti, 2000, p.34) *** Um segundo exemplo está relacionado com o infinito, impor- tante conceito tanto em filosofia, ciências e matemática. Entretan- to, dependendo do contexto, o termo infinito assume significados 10 ROSA LÚCIA SVERZUT BARONI • SÍLVIO CÉSAR OTERO-GARCIA diferentes, muitas vezes conflitantes. No caso da matemática, são inegáveis as dificuldades em seu uso, conforme veremos neste texto (Capítulo 7). Isso também se reflete na educação matemática, como aponta Tirosh (1991): É claro que com essa grande variedade de significados técnicos [infinito potencial, infinito atual, infinito ordinal, infinitésimo], que frequentemente possuem propriedades diferentes, e mesmo conflitantes, os possíveis significados intuitivos que emergem em vários contextos também são variados e conflitantes. De fato, é bastante frequente encontrarmos ao longo de pesquisas de natureza cognitiva imagens conceituais associadas com infinito. Elas são geralmente transitórias, instáveis e conflitantes. (p.199) Uma das conclusões do trabalho de Tirosh foi "que no caso da comparação de conjuntos infinitos, muitas das intuições primárias dos estudantes eram semelhantes àquelas experimentadas pelos matemáticos na história do desenvolvimento do conceito" (p.214). *** Por fim, um último exemplo que gostaríamos de trazer, den- tre os mais diversos possíveis em que a compreensão histórica de conceitos pode auxiliar em seu aprendizado, diz respeito à ideia de limite. Quando olhamos os aspectos relativos às questões de ensino e aprendizagem desse conceito (Capítulo 2), deparamo-nos com diversas pesquisas indicando a dificuldade que ele traz em si. Ci- tamos, por exemplo, Cornu (1991), que realizou estudos a respeito dos vários obstáculos que aparecem no caminho dos alunos que vão aprender o conceito de limite: O conceito matemático de limite é uma noção particularmente difícil, típica da natureza de pensamento matemático avançado. Ele ocupa uma posição central que permeia a análise matemática toda. [...] Uma das maiores dificuldades no [seu] ensino e aprendizagem está não somente em sua riqueza e complexidade, mas também na ASPECTOS DA HISTÓRIA DA ANÁLISE MATEMÁTICA... 11 extensão para a qual os aspectos cognitivos não podem ser produzi- dos puramente a partir da definição matemática. A diferença entre a definição e o próprio conceito [...] é didaticamente muito impor- tante (Cornu, 1991, p. 153). *** Ainda, se pensarmos que o ensino não se resume ao acúmulo de conteúdos e regras, mas a um conjunto de atitudes críticas em relação ao conhecimento, a história se manifesta como um dos mais importantes desafios para professores e alunos de matemática. Uma análise histórica e epistemológica permite que profes- sores compreendam porque determinado conceito é difícil para o estudante (como, por exemplo, o conceito de função, o conceito de limite, mas também frações, operações com zero etc.) e pode ajudar na abordagem e desenvolvimento didático. (Grugnetti, 2000, p.30) Embora a área de pesquisa que trata das relações entre a história e a educação matemática seja relativamente nova, vários matemáti- cos importantes, como Henri Poincaré e Felix Klein, já aclamavam essa importância. Com as seguintes palavras, Poincaré (1908) começou sua pales- tra no quarto Congresso Internacional de Matemática em Roma: "Para prever o futuro da matemática, o verdadeiro método é estudar a sua história e o seu estado presente" (Poincaré, 1908, p.930).1 Em- bora ele próprio nunca tenha se dedicado à história da matemática, a partir de sua observação, tanto historiadores quanto pesquisado- res puderam obter uma orientação metodológica valiosa; nem tanto para satisfazer uma profecia improvável sobre o estado futuro da matemática, mas, sobretudo, para encontrar na história as origens e motivações das teorias contemporâneas, e para achar no presente a exposição mais proveitosa possível dessas teorias (Bottazini, 1986). 1 Pour prévoir l’avenir des Mathématiques, la vraie méthode est d’en étudier l’histoire et l’état présent. 12 ROSA LÚCIA SVERZUT BARONI • SÍLVIO CÉSAR OTERO-GARCIA Já Félix Klein fez, em sua própria casa, seminários sobre a história da matemática para um seleto grupo de participantes. Esses seminá- rios foram publicados posteriormente por Courant e Neugebauer (Klein, 1979) e são considerados até hoje como uma das mais valiosas e compreensíveis a respeito da história da matemática no último sé- culo (Bottazini, 1986). A concepção de história que Poincaré e Klein tinham não é, evi- dentemente, a mesma contida neste texto, que, ao tentar valorizar um aspecto histórico/epistemológico, poderia se aproximar de uma abordagem típica da história conceitual. No entanto, é importante destacar que, dentro dessa abordagem, temos consciência das fragi- lidades inerentes a ela, muitas delas decorrentes da impossibilidade de se recuperar tanto a totalidade dos acontecimentos quanto o próprio passado, impossibilitando o despojamento e fazendo com que o nosso relato seja apenas um construto pessoal que contém reconstituições de coisas que talvez nunca tenham sido construídas como tal. Ademais, as fontes que aqui foram usadas podem indicar, àqueles que se sentirem impelidos e motivados a fazê-lo, caminhos de estudos mais profundos e essenciais. Nessa direção, apresentamos alguns fatos que marcaram a con- solidação de certos conceitos, no contexto do movimento chama- do de aritmetização da análise, e que se constituíram no que hoje chamamos de análise matemática ou análise real, ou simplesmente análise. Focamo-nos, para isso, nos eventos ocorridos no decurso do século XIX – que representamos simbolicamente como o perío- do compreendido entre a publicação do Cours d’Analyse de Cauchy, em 1821 e a tese de doutorado de Lebesgue, em 1902; obras essas escolhidas por conta da importância que tiveram nessa época e têm neste texto. Tomamos essa decisão por considerar que já há suficiente material histórico sobre o período anterior acessível em língua portuguesa. Isso não quer dizer que não faremos incursões a certos aspectos do desenvolvimento da análise referentes a séculos anteriores, até porque foi essa matemática que influenciou, estimu- lou e serviu de base aos matemáticos que estudaremos. ASPECTOS DA HISTÓRIA DA ANÁLISE MATEMÁTICA... 13 *** O que precedeu o que hoje denominamos de análise foi o desen- volvimento do cálculo, que no período de Isaac Newton e Gottfried Leibniz "consistia de um conjunto de regras especiais e técnicas para diferenciação e integração, juntamente com a geometria de coor- denadas desenvolvida desde Descartes" (Baron; Bos, 1974, p.43). Alguns autores consideram que a análise, pensada como um objeto independente, começou a se estabelecer em meados do século XVII durante a revolução científica, tendo vários nomes de destaque, como Johannes Kepler, Galileu Galilei, René Descartes, Pierre de Fermat, Christiaan Huygens; além dos já citados Newton e Lei- bniz, contribuído para sua origem (Jahnke, 2003). Além desses, também outros matemáticos do mesmo período deram importantes contribuições com trabalhos que aplicavam métodos da análise em disciplinas das ciências naturais. Por exemplo, em mecânica e di- nâmica temos os trabalhos de Leonhard Euler (1736), Jean le Rond d’Alembert (1743) e Joseph-Louis Lagrange (1788); em mecânica dos fluidos temos Daniel Bernoulli (1738); e em mecânica dos mo- vimentos dos corpos celestes temos Pierre Simon Laplace (1799a, 1799b, 1803, 1805, 1825). Outra teoria que recebeu contribuições com o desenvolvimento da análise foi a da probabilidade e estatísti- ca, sobretudo com os trabalhos de Jacques Bernoulli (1713). Esse processo iniciado no século XVII se consolidou no século XIX, e o nome de Augustin-Louis Cauchy (Capítulo 2) é peça fundamental nele, por ter sido o primeiro a defender e divulgar a nova forma rigorosa de se fazer matemática que invadiu quase toda a análise, tendo sido figura primordial no estabelecimento de certos conceitos como os de variável, limite, continuidade, convergência, derivada e integral. Apesar disso, com o passar do tempo e o apri- moramento das ideias, perceberam-se algumas falhas nos trabalhos de Cauchy e imprecisões decorrentes da sua linguagem. Dentro do movimento em direção a dar mais precisão e/ou generalidade aos seus resultados, podemos destacar os nomes de Carl Friedrich Gauss, Bernard Bolzano e Niels Henrik Abel (Capítulo 3); Jean- -Baptiste Joseph Fourier (Capítulo 4); Bernhard Riemann, Camille Jordan e Henri Lebesgue (Capítulo 6); e, claro, Karl Weierstrass 14 ROSA LÚCIA SVERZUT BARONI • SÍLVIO CÉSAR OTERO-GARCIA (Capítulos 5 e 7). O último deles tem seu nome muitas vezes toma- do como sinônimo de rigor; ele e seus seguidores deram continuida- de ao trabalho iniciado por Cauchy com notável sucesso. É costume dizer que Weierstrass "aritmetizou a análise", ou seja, que ele liber- tou a análise de seus argumentos geométricos e de sua compreensão intuitiva que prevaleciam na época, mas isso só foi possível com a ajuda de Richard Dedekind, Georg Cantor e David Hilbert que, juntamente com ele próprio, no fim do século XIX, apresentaram suas construções do conjunto dos números reais (Capítulo 7). Assim, num movimento com idas e vindas que se estendeu por pelo menos duzentos anos, a análise foi se estabelecendo como área da matemática, ganhando cada vez mais rigor e generalidade. Há quem considere que muitas das restrições geradas por esse movi- mento são desnecessárias, uma vez que ele teria resolvido proble- mas que ele mesmo criou. Seja como for, conforme veremos ao longo deste texto, não se pode negar que a maioria das ideias desen- volvidas no século XX tiveram como base esse rigor e generalidade que foram aos poucos tomando conta da análise a partir dos séculos XVII e, principalmente, XIX. *** Antes de finalizarmos esta introdução, gostaríamos de ressaltar que na maior parte do tempo seguimos grandes autores de obras de história da matemática, como Burton (2011), Cajori (2007), Eves (2004), Katz (1998), Lintz (2007), Struik (1948), e Wussing (1998); e de história da análise, como Dugac (2003) e Jahnke (2003), além de outros livros, artigos, dissertações e teses. Dessa forma, nosso relato, em certo sentido, divulga algo já escrito. Apesar disso, sem- pre que possível, também recorremos aos trabalhos originais, o que nos demandou muito tempo, mas acreditamos ter valido a pena: resultaram em numerosas citações, tanto em português como em suas línguas originais. E por falar nisso, observamos que todas as ci- tações de obras em língua estrangeira foram traduzidas livremente por nós, de forma que quaisquer eventuais erros ou impropriedades são de nossa inteira responsabilidade. 1 o conceito de função Segundo alguns historiadores, a ideia de dependência funcio- nal já podia ser identificada em textos antigos, como em algumas funções tabuladas empiricamente usadas na astronomia, em tábuas para achar raízes quadradas, cúbicas etc., mas, a essa época, ainda não tinham sido criadas noções gerais de quantidade variável ou de função. Também podemos encontrar, já no século XIV, uma suges- tão do que hoje chamaríamos de representação gráfica de funções a partir das ideias de Nicole d’Oresme (1323-1382), Thomas Bra- dwardine (1290-1349), ou das “escolas” de Oxford e Paris, com os estudos sobre “latitude de formas” que tornaram familiar a noção de dependência entre grandezas e quantidades, introduzindo os primeiros rudimentos de representação gráfica. No entanto, a noção de função, como conhecemos hoje, começa a se manifestar quando se faz necessária uma ferramenta matemá- tica para investigar fenômenos naturais – estudos iniciados por Galileu Galilei (1564-1642) e Johannes Kepler (1571-1630). Seu desenvolvimento se deu, sobretudo, graças às várias possibilidades permitidas pela notação algébrica criada por François Viète (1540- 1603) e pela geometria analítica introduzida por René Descartes (1596-1650) e Pierre de Fermat (1601-1665). 16 ROSA LÚCIA SVERZUT BARONI • SÍLVIO CÉSAR OTERO-GARCIA Descartes já havia estabelecido que uma equação em duas va- riáveis, geometricamente representada por uma curva, indicava uma dependência. Todavia, essa ideia ficava restrita ao contexto das curvas, ou seja, essas variáveis geométricas estavam associadas à própria curva e não entre si. Entretanto, esse foi um momento importante. O estudo das quantidades variáveis veio a ser o divisor de águas entre a matemática clássica e a matemática moderna. De acordo com o matemático alemão Hermann Hankel (1839-1873), [...] a matemática moderna data do momento quando Descartes foi além do tratamento puramente algébrico das equações para estudar a variação das grandezas que uma expressão algébrica sofre quando uma de suas grandezas, dada de forma geral, passa através de uma série contínua de valores. (Hankel, 1870, p.1)1 Neste texto, vamos tratar do conceito de função a partir do sécu- lo XVII, enfatizando, porém, seu desenvolvimento no século XIX, e as várias tentativas de esclarecimento desse conceito que levaram à aritmetização da análise, ou, segundo termo cunhado por Felix Klein (1849-1925),2 aritmetização da matemática (Arithmetisie- rung der Mathematik) (Klein, 1895). O conceito de função no século XVIII Há inúmeras diferenças entre o cálculo da época de Isaac Newton (1642-1727) e Gottfried Leibniz (1646-1716) e o cálculo que veio depois da época de Augustin-Louis Cauchy (1789-1857), e uma dessas diferenças recai sobre o conceito de função. Por volta 1 [...] neuere Mathematik von dem Augenblicke, als Descartes von der rein algebraischen Behandlung der Gleichungen, dazu fortschritt, die Grössen Veränderungen zu untersuchen, welche ein algebraischer Ausdruck er leidet, indem eine in ihm allgemein bezeichnete Grösse eine stetige Folge von Werten durchläuft. 2 Para mais detalhes, ver Bottazzini (2003). ASPECTOS DA HISTÓRIA DA ANÁLISE MATEMÁTICA... 17 de 1700, o cálculo lidava com a noção de variáveis e pelos anos 1800 já se usava a ideia de função. Veremos mais adiante que o conceito de função foi usado por Cauchy para esclarecer o conceito de limite e tornar possível uma definição rigorosa de derivada. Figura 1 – Gottfried Leibniz e Isaac Newton3 Baseado em motivações físicas (movimento de corpos), Newton estabeleceu uma relação íntima entre os conceitos de função, va- riação e cálculo fluxional. O método de fluxões descreve as varia- ções em termos de grandezas fluentes (funções) e só tem sentido se pensado em contextos naturais. Já Leibniz teve seu interesse despertado pelo estudo de curvas e o problema de tangentes; e foi nesse contexto que elaborou os conceitos fundamentais do cálculo. Tanto a ideia de função como a distinção entre curvas algébricas e transcendentes ocorreram a Leibniz quando ele se deparou com problemas de natureza geométrica ligados ao cálculo. A palavra função apareceu, pela primeira vez, num artigo escrito por Leibniz em 1692 (Leibniz, 1692). Ele chamava de funções as quantidades geométricas variáveis relacionadas a uma curva, tais como coordenadas, tangentes, subtangentes, normais, raios de cur- 3 Todas as figuras presentes neste livro estão em domínio público. 18 ROSA LÚCIA SVERZUT BARONI • SÍLVIO CÉSAR OTERO-GARCIA vatura etc. Mas foi juntamente com Johann Bernoulli (1667-1748) que o conceito e a simbologia usados para representar funções fica- ram estabelecidos. Isso porque Bernoulli, em um artigo sobre um problema isoperimétrico (1698) – originalmente em latim, republi- cado em francês alguns anos depois (Bernoulli, 1706; 1707) –, usava o termo fonctions quelconques de appliquées4 para quaisquer expres- sões que contivessem as ordenadas como variáveis. Leibniz não se opôs ao uso do termo por Bernoulli e os dois discutiram, por cartas, como designar simbolicamente as “funções”. Finalmente, em 1718, Bernoulli (1718; 1741) definiu o conceito formalmente pela primei- ra vez, e essa definição foi usada e padronizada por Leonhard Euler (1707-1783) em sua obra Introductio in analysin infinitorum (1748) da seguinte maneira: “Uma função de uma quantidade variável é uma expressão analítica formada de qualquer modo por tal quan- tidade variável e por números ou quantidades constantes” (Euler, 1748, p.4).5 Euler não explicita o que seja expressão analítica, mas subentende-se que incluíam expressões algébricas (compostas por somas, subtrações, produtos, quocientes e raízes), expressões que envolviam funções elementares transcendentes (exponencial, lo- garítmica, trigonométricas), e também séries de potências e outras expressões que envolviam limites (Bottazzini, 1986; Jahnke, 2003). Essa obra de Euler representou um importante momento na história da análise porque o conceito de função foi colocado em seu centro, ou seja, foram as funções (ao invés das curvas) os princi- pais objetos de estudo que permitiram a algebrização da geometria e a consequente separação da análise infinitesimal da geometria propriamente dita. Em sua outra obra, Institutiones Calculi Diffe- rentialis, Euler (1755) retoma o conceito de função com mais ge- nialidade: “Aquelas quantidades que dependem de outras, isto é, aquelas quantidades que experimentam uma variação quando 4 Literalmente, funções quaisquer de ordenadas. O termo “appliquée”, nesse contexto, pode ser traduzido como “ordenadas” – ainda que literalmente não tenha esse sentido. 5 Functio quantitatis variabilis, est expressio analytica quomodocunque com- posita ex illa quantitate variabili et numeris seu quantitatibus constantibus. ASPECTOS DA HISTÓRIA DA ANÁLISE MATEMÁTICA... 19 outras variam, chamam-se funções dessas quantidades” (Euler, 1755, p.vi),6 mais próximo, portanto, não só do conceito atual de função, como também do conceito que seria adotado por Cauchy no século seguinte. Figura 2 – Johann Bernoulli e Leonhard Euler O conceito de função a partir do século XIX Cauchy (1821), em seu Cours d’analyse, obra percursora da nova era de rigor que caracterizou o século XIX,7 escreveu: Quando quantidades variáveis estão de tal forma ligadas entre si que, os valores de algumas sendo dados, podemos determinar os valores de todas aquelas outras, imaginamos essas diversas quanti- dades expressas por meio de algumas dentre elas, as quais recebem então o nome de variáveis independentes; e as quantidades res- 6 Quae autem quantitates hoc modo ab aliis pendent, ut his mutatis etiam ipsae mutationes subeant, eae harum functiones appellari solent. 7 Para mais detalhes sobre o conceito de função na obra de Euler, recomenda- mos a leitura de Martínez (2008). Miolo_Aspectos_matematica_GRAFICA.indd 19 20 ROSA LÚCIA SVERZUT BARONI • SÍLVIO CÉSAR OTERO-GARCIA tantes, expressas por meio das variáveis independentes, são o que chamamos de funções dessas variáveis. (Cauchy, 1821, p.19-20)8 Além disso, introduziu a ideia de função explícita (por exemplo senlog , , , x x x y xyz+ etc.) e de função implícita (quando somente as relações entre as funções e as variáveis são dadas, ou seja, as funções não podem ser expressas diretamente em termos das va- riáveis), mas sempre indicando que funções são dadas por meio de alguma equação ou expressão. Isso também ocorre quando ele defi- ne funções simples e compostas. Dessa forma, mesmo que Cauchy tenha suprimido o termo expressões analíticas de sua definição, essa noção ainda estava presente em sua mente – por outro lado, confor- me veremos em As contribuições de Cauchy, nem todas as suas de- monstrações e conceitos relacionados a funções estavam baseados na ideia de expressão analítica. Também Jean-Baptiste Joseph Fourier (1768-1830), um ano depois de Cauchy, apresentou seu conceito de função: Em geral, a função fx representa uma sequência de valores ou de ordenadas das quais cada uma é arbitrária. A abscissa x podendo receber uma infinidade de valores, haverá um mesmo número de ordenadas fx. Todas têm valores numéricos reais, ou positivos, ou negativos, ou zero. Não supomos que essas ordenadas estejam sujeitas a uma lei comum; elas se sucedem de uma maneira qual- quer, e cada uma delas é dada como se fosse uma única quantidade. (Fourier, 1822, p.552)9 8 Lorsque des quantités variables sont tellement liées entre elles que, les valeurs de quelques-unes étant données, on puisse en conclure celles de toutes des autres, on conçoit ces diverses quantités exprimées au moyen de plusieurs d’entre elles, que prennent alors le nom de variables indépendantes; et les quantités restantes, exprimées au moyen des variables indépendantes, sont ce qu’on appelle des fonctions de ces mêmes variables. 9 En général, la fonction fx représente une suite de valeurs ou d’ordonnées dont chacune est arbitraire. L’abscisse x pouvant recevoir une infinité de valeurs, il y a un pareil nombre d’ordonnées fx . Toutes ont des valeurs numériques actuelles, ou positives, ou négatives, ou nulles. On ne suppose point que ces ASPECTOS DA HISTÓRIA DA ANÁLISE MATEMÁTICA... 21 Diferentemente de Cauchy, Fourier, ao se referir a função como uma sucessão de valores quaisquer, evitou conscientemente a ideia de que as ordenadas devessem seguir uma lei matemática única. Como resultado, a identificação, até então em voga de função como expressão analítica, também passou a ser discutida (Wussing, 1998). Entretanto, Fourier, em sua demonstração da convergência da série (de Fourier) de uma função arbitrária, explicitamente usou o fato de que se dois valores a e x diferem muito pouco (um valor infinitamente pequeno), então os valores ( )f a e ( )f x coincidem, ou seja, Fourier ainda atrelava ao conceito de função o de continuidade (Fourier, 1822; Lützen, 2003). Figura 3 – Nicolas Lobachevskiy Os primeiros passos mais claros dados na direção de, num pri- meiro momento, retirar a exigência de uma expressão analítica para a definição de função, foram dados pelos matemáticos Nicolas Iva- novich Lobachevskiy (1793-1856) e Johann Peter Gustav Lejeune ordonnées soient assujetties à une loi commune; elles se succèdent d’une manière quelconque, et chacune d’elles est donnée comme le serait une seule quantité. 22 ROSA LÚCIA SVERZUT BARONI • SÍLVIO CÉSAR OTERO-GARCIA Dirichlet (1805-1859). Em 1834, Lobachevskiy, em seu trabalho sobre séries trigonométricas, escreveu: O conceito geral sugere que como função de se denomine um número dado para todo x e que varia progressivamente com ele. O valor da função pode tanto ser obtido por meio de uma expres- são analítica, quanto por meio de uma condição que ofereça uma maneira de se examinar todos os números e de eleger um dentre eles; bem, por último, pode existir uma dependência que perma- neça desconhecida. (apud Youschkevitch, 1976, p.77, em inglês e russo)10 Três anos mais tarde, Dirichlet (1837) conceituou função, basean- do-se na definição de Fourier: Vamos supor que a e b são dois valores dados e seja uma quan- tidade variável que assume, gradualmente, todos os valores entre a e b. Agora, se a cada x corresponde um único, finito y de modo que, conforme x varia continuamente através do intervalo de a até ,b ( )y f x= varia do mesmo modo gradualmente, então y é chamado uma função contínua de x para esse intervalo. (p.152)11 Como se nota, tanto Lobachevskiy (para todo x e que varia pro- gressivamente com ele), quanto Dirichlet (x seja uma quantidade 10 Общее понятие требует, чтобы функцией от x называть число, которое дается для каждого x и вместе с x постепенно изменяется. Значение функции может быть дано и аналитическим выражением, или условием, которое подает средство испытывать все числа и выбирать одно из них; или, наконец, зависимость может существовать, и оставаться неизвестной. 11 Man denke sich unter a und b zwei feste Werthe und unter xeine veränderli- che Grösse, welche nach und nach alle zwischen a und b liegenden Werthe annehmen soll. Entspriecht unn jedem x ein einziges endliches y und zwar so, dass, während x das Intervall von a bis b stetig durchläuft, ( )y f x= sieh eben- falls ällmählich verändert, so heisst y eine stetige oder continuirliche Function von x für dieses Intervall. ASPECTOS DA HISTÓRIA DA ANÁLISE MATEMÁTICA... 23 que assume, gradualmente, todos os valores entre a e b ), tinham em mente exclusivamente funções contínuas. Assim, uma vez que a questão das expressões analíticas fora resolvida, restava a da conti- nuidade para que uma definição mais geral de função fosse obtida; e esse segundo e decisivo passo foi dado por Hankel (1870, 1871) em seus dois trabalhos Grenze e Untersuchungen über die unendlich oft oszillierenden und unstetigen Funktionen (Hawkins, 1970; Wussing, 1998). Nesses trabalhos, Hankel analisa a noção de função dada por Dirichlet (e a compara com a dada por Euler), que, para ele, não permitia que as funções possuíssem propriedades mais gerais, uma vez que as relações existentes entre seus diferentes valores simples- mente desapareciam. A partir disso, apresenta uma nova definição, muito próxima da noção moderna de correspondência entre dois conjuntos de números: Uma função se diz y de x se a cada valor da magnitude variável x que se move dentro de um certo intervalo, corresponde-lhe um determinado valor de ;y não importa se y depende de x em todo o intervalo segundo a mesma lei ou não; se a dependência pode ser expressa por meio de operações matemáticas ou não. (Hankel, 1870, p.5)12 Vale ressaltar, no entanto, que nem o conceito de “conjunto” nem o de “número” estavam estabelecidos na época. Na verdade, a definição em termos de conjuntos arbitrários apareceu apenas no início do século XX, quando Georg Cantor (1845-1918), com a teoria dos conjuntos, definiu função como um subconjunto do 12 Eine Function heisst y von x , wenn jedem Werthe der veränderlichen Grösse, x innerhalb eines gewissen Intervalles ein bestimmter Werth von y entspricht; gleichviel, ob y in dem ganzen Intervalle nach demselben Gesetze von x abhängt oder nicht; ob die Abhängigkeit durch mathematische Oper- stionen ausgedrückt werden kann oder nicht. 24 ROSA LÚCIA SVERZUT BARONI • SÍLVIO CÉSAR OTERO-GARCIA produto cartesiano de dois ou mais conjuntos com determinadas propriedades (Wussing, 1998). Figura 4 – Johann Peter Gustav Lejeune Dirichlet e Hermann Hankel 2 As contribuições de cAuchy Figura 5 – Augustin-Louis Cauchy Cauchy apresentou um novo estilo de rigor que formou o prin- cípio guia para grande parte do desenvolvimento da análise no século XIX. (Baron; Bos, 1985, p.45) Para terminar nossos breves comentários sobre a influência de Cauchy na Matemática ocidental, iremos colocá-lo dentro da pers- pectiva histórica apropriada. Assim, ele pertence ao período prévio ao “estágio de arte” de nossa Matemática, sendo um de seus pre- cursores. Ocupa, portanto, a posição que Eudoxo ocupou na Mate- mática grega. Com mais precisão, Eudoxo resolveu o “impasse dos incomensuráveis” na Geometria grega com sua “teoria das mag- nitudes”, como exposta no Livro V dos Elementos de Euclides, e Cauchy resolveu o “impasse dos infinitésimos” com sua “teoria dos 26 ROSA LÚCIA SVERZUT BARONI • SÍLVIO CÉSAR OTERO-GARCIA limites”. Esses fatos fundamentais são em geral obscurecidos por- que não são colocados dentro de uma perspectiva histórica correta, isto é, como períodos correspondentes na evolução de duas Cultu- ras Históricas distintas: a Grega e a Ocidental. (Lintz, 2007, p.357) Como já foi observado, o século XIX é chamado de “era do rigor”. Esse rigor podemos compreender como sendo algo que in- vadiu quase toda a análise, transformando-a na disciplina que hoje em dia é ensinada nas universidades; não foi apenas uma questão de tornar mais claros determinados conceitos básicos e mudar as demonstrações de uns poucos teoremas. Foi um processo de criação que produziu novas áreas e conceitos na matemática como, por exemplo, continuidade uniforme e pontual, convergência uniforme e pontual, compacidade, completude etc. Mas o rigor em si não era o objetivo dos matemáticos da época; eles estavam voltados a resolver questões técnicas e desenvolver novos teoremas. Um exemplo disso é o interesse despertado pelas séries de Fourier, que acabou mudando velhas ideias a respeito de funções, integral, convergência, continuidade etc. Também pode- mos citar o desenvolvimento das equações diferenciais, teoria do potencial e funções elípticas como outras áreas que contribuíram com o processo de rigorização (Lützen, 2003). Também podemos olhar o aspecto educacional como um grande motivador no que dizia respeito ao rigor, uma vez que vários pro- fessores buscavam mudanças ao ensinar os fundamentos da análise. Esse foi o pano de fundo para as reformas promovidas por Cau- chy e Karl Weierstrass (1815-1897) e da construção dos números reais por Richard Dedekind (1831-1916) (Lützen, 2003, Grabiner, 1981, Bottazzini, 1986). * * * No século XVIII e começo do século XIX, na França, a análi- se estava bastante ligada à física teórica; por outro lado, sobretu- do na Alemanha, na primeira metade do século XIX, as escolas e universidades tomaram o lugar das escolas técnicas com relação a formação e pesquisa em matemática (Schubring, 1983). Esse ce- ASPECTOS DA HISTÓRIA DA ANÁLISE MATEMÁTICA... 27 nário, combinado com o movimento neo-humanista, culminou no desenvolvimento da matemática como campo independente. Ao mesmo tempo, a análise estava se separando da geometria: Newton e Leibniz são considerados os pais do cálculo, mas inconsistências em suas teorias fundamentadas nos infinitésimos,1 cuja base maior era a geometria, fizeram com que se procurasse uma alternativa para constituir a análise: os números. Os reais foram construídos a partir dos racionais, que, por sua vez, foram construídos a partir dos naturais, e a análise passou a se basear diretamente nessas novas ideias, desligando-se, assim, completamente da geometria (veja o Capítulo 7) (Lützen, 2003; Reis, 2001). O movimento de rigorização da análise pode ser dividido, se- gundo Lützen (2003), em dois períodos: o francês –– dominado por Cauchy, tratado neste capítulo; e o alemão – dominado por Weierstrass, que será tratado no Capítulo 5. É evidente que ou- tros matemáticos tiveram importante papel nesse processo; muitos deles serão lembrados no decorrer de nossas colocações. * * * Augustin-Louis Cauchy nasceu em Paris, em 21 de agosto de 1789, logo depois da queda da Bastilha, e faleceu em Sceaux, próxi- mo a Paris, em 22 de maio de 1857. Seu pai ocupou várias posições de destaque na administração pública, e Cauchy sempre viveu em ambientes de alto nível cultural. Em 1805, foi estudar na École Polytechnique e, a partir de 1810, atuou como engenheiro numa base naval em Cherbourg até 1813, quando voltou a Paris para dedicar-se a seus estudos nas ciências matemáticas. Após a restau- ração da monarquia na França, Cauchy foi contratado, em 1816, para ensinar análise na mesma École Polytechnique onde estudara e, nesse mesmo ano se tornou membro da Académie Royale des Sciences. Durante o período de quinze anos em que foi professor na École, Cauchy produziu grande parte de seus trabalhos ligados à 1 Euler (1755) definiu infinitésimos como quantidades menores que qualquer outra quantidade dada. Modernamente, *,x∈ em que *  é uma extensão do conjunto dos números reais, é um infinitesimal se | |x r< , para todo real posi- tivo r (Keisler, 1976). Voltaremos a tratar desse ponto mais adiante. 28 ROSA LÚCIA SVERZUT BARONI • SÍLVIO CÉSAR OTERO-GARCIA fundamentação da análise. Isso se deve, em parte, ao compromisso estabelecido pelos professores dessa escola de escreverem textos em todos os níveis (didático, científico). Cauchy seguiu essa tradição e, nesse período, escreveu três livros: Cours d’analyse de l’École Polytechnique (1821); Résume des leçons sur le calcul infinitésimal (1823), e Leçons sur le calcul différentiel (1829).2 Apesar de gostar muito de lecionar, Cauchy nem sempre era bem aceito, tanto pelos seus alunos, que não apreciavam seu estilo teórico, quanto pelos seus próprios colegas e superiores, que consideravam que ele gastava muito tempo com detalhes na parte introdutória, em detrimento das aplicações. Mas foram exatamente essas características que o tornaram famoso e iniciaram o movimento em torno do rigor (Cau- chy, 1929; Diedonné, 2012; Gilain, 1989). Cauchy tem trabalhos em diversas áreas, tais como na teoria de funções complexas, álgebra (permutações), teoria dos erros, mecânica celeste, física matemática, mas seu nome está associado definitivamente à análise, pela contribuição que deu em seus fun- damentos. Na verdade, foi a obra de Cauchy sobre o cálculo, como um todo, e não seus elementos separadamente, que a fizeram tão diferente da de seus predecessores. Talvez, por isso, alguns autores indicam que Cauchy “tomou” várias ideias de Bernard Bolzano (1781-1848) – é fato que ideias semelhantes às de Cauchy a respeito do cálculo foram desenvolvidas ao mesmo tempo por Bolzano, um padre tcheco que sempre viveu em Praga. Tudo indica, no entan- to, que durante o período em que Bolzano viveu lá, Cauchy não o encontrou, e que a semelhança entre as ideias de ambos foi uma simples coincidência; retomaremos esse assunto no item 3.2. Além disso, são encontradas várias semelhanças entre certos pontos de seus trabalhos com os de Euler, Joseph-Louis Lagrange (1736- 1813), Sylvestre François Lacroix (1765-1843) e Siméon Denis 2 De início, os professores deveriam, antes de ensinar cálculo diferencial e inte- gral, apresentar por escrito o que chamavam de “análise algébrica”, correspon- dendo mais ou menos ao volume um do Introductio de Euler (1828). O famoso Cours d’analyse de Cauchy teve, a princípio, esse papel. ASPECTOS DA HISTÓRIA DA ANÁLISE MATEMÁTICA... 29 Poisson (1781-1840); indicando, de certa forma, raízes naturais para seus conceitos, teoremas e demonstrações (Jourdain, 1913). Euler assumia que toda expressão algébrica tinha um significado também para as variáveis complexas – era função dos matemáticos achar esses valores, ou seja, Euler, assim como Lagrange, aceitava a generalidade dessas expressões. Já Cauchy defendia que uma ex- pressão analítica somente assumia valores onde havia sido definida. Se se quisesse estender além do domínio inicialmente dado, seria necessário dar uma nova definição. Na própria introdução do Cours d’analyse, ele menciona isso como algo que seus leitores poderiam ter dificuldade de aceitar. Assim, mesmo que Cauchy confundisse o conceito de função com o de expressão analítica, ele não aceitava a generalidade dessas expressões. Vamos, agora, semelhantemente a Lützen (2003), detalhar um pouco mais alguns conceitos da análise de Cauchy, listando uma série de definições que aparecem em seu Cours d’analyse (variável, limite, quantidade infinitamente pequena, continuidade) (Cauchy, 1821) e em seu Résumé (derivada, integral) (Cauchy, 1823). Variáveis e limites Nomeamos quantidade variável aquela que se considera como passível de receber sucessivamente muitos valores diferentes uns dos outros. [...] Chamamos, ao contrário, quantidade constante [...] toda quantidade que recebe um valor fixo e determinado. Quando os valores sucessivamente atribuídos a uma mesma variável se aproximam indefinidamente de um valor fixo, de maneira a ter- minar por dele diferir tão pouco quanto queiramos, esse último é chamado o limite de todos os outros. (Cauchy, 1821, p.4)3 3 On nome quantité variable celle que l’on considère comme devant recevoir successivement plusieurs valeurs différentes les unes des autres. [...] On appelle au contraire quantité constante [...] toute quantité qui reçoit une valeur fixe et déterminée. Lorsque les valeurs successivement attribuées à une même 30 ROSA LÚCIA SVERZUT BARONI • SÍLVIO CÉSAR OTERO-GARCIA A definição de Cauchy de variável diferencia-se da de Euler em alguns aspectos. Por exemplo, Euler (1748, p.4) definiu variável como “uma quantidade numérica indeterminada, ou geral, que abrange todos os valores determinados”,4 enquanto para Cauchy as variáveis assumem diferentes valores, mas não necessariamente todos, ou seja, podem estar limitadas a um certo intervalo. Além disso, o conceito de Cauchy é dinâmico já que, em particular, as va- riáveis podem ter limites, enquanto o conceito de Euler se aproxima mais do sentido moderno de elemento arbitrário ou genérico de um conjunto. Porém, deve ser observado que, diferentemente do que temos hoje, Cauchy permitia, em alguns casos, que uma variável (ou sequência) pudesse ter mais do que um limite. Isso pode ser visto em sua formulação do teste da raiz para convergência de séries de termos positivos, mais propriamente na demonstração desse resultado em que o limite, no caso, é o que hoje consideramos um ponto de acumulação,5 e o maior valor desses limites é exatamente o que chamamos de lim sup (Lützen, 2003). Primeiro Teorema: procura o limite, ou os limites, para os quais converge, ao mesmo tempo em que n cresce indefinidamente, a expressão 1/( ) n nu ; e designa por k o maior desses limites, ou, em outros termos, o limite dos maiores valores da expressão da qual se trata. A série 0 1 2[ , , , , , ]nu u u u… … será convergente, se se tem 1k < , e divergente se se tem 1k > . (Cauchy, 1821, p.132)6 variable s’approchent indéfiniment d’une valeur fixe, de manière à finir par en différer aussi peu que l’on voudra, cette dernière est appelée la limite de toutes les autres. 4 Cum ergo omnes valores determinati numeris exprimi queant, quantitas variabilis omnes numeros cujusvis generis involvit. 5 Dizemos que a∈ é ponto de acumulação do conjunto X ⊂  se todo aberto Acontendo a contém pelo menos um ponto de X distinto de a . 6 Premier Théorème. Cherchez la limite ou les limites vers lesquelles converge, tandis que n croit indéfiniment, l’expression 1/( ) n nu ; et désignez par k la plus grande de ces limites, ou, en d’autres termes, la limite des plus grandes valeurs de l’expression dont il s’agit. La série série 0 1 2[ , , , , , ]nu u u u… … sera convergente, si l’on 1k < , et divergente, si l’on a 1k > . ASPECTOS DA HISTÓRIA DA ANÁLISE MATEMÁTICA... 31 O conceito de limite de Cauchy, conforme aponta Grabiner (2005), se aproxima muito da correspondente concepção moderna quando consideramos não propriamente a maneira como limite foi definido por ele, mas como de fato operava com essa definição. Quando provava algum resultado, Cauchy traduzia sua definição de limite em termos de desigualdades e épsilons e deltas, como se faz atualmente. Para efeitos comparativos, definições comuns no século XVIII, como a de Jean le Rond d’Alembert (1717-1783) e Jean-Baptiste de La Chapelle (1710-1792) (na Encyclopédie) nunca foram traduzidas em termos de inequações e, também, nunca foram usadas para provar nenhum resultado substancial (Grabi- ner, 2005). Figura 6 – Jean le Rond d’Alembert 32 ROSA LÚCIA SVERZUT BARONI • SÍLVIO CÉSAR OTERO-GARCIA Quantidade infinitamente pequena Dizemos que uma quantidade variável torna-se infinitamente pequena, quando seu valor numérico decresce indefinidamente de maneira a convergir para o limite zero. (Cauchy, 1821, p.26)7 A noção de grandeza infinitamente pequena já pode ser percebi- da na matemática antiga dos gregos em suas tentativas de superar as dificuldades lógicas encontradas em expressar razões e proporções de segmentos (vaga ideia de continuidade), em termos de números (para eles sempre discretos). Todavia, o rigor grego excluía o infini- tamente pequeno das demonstrações geométricas e o que prevaleceu na época foi o chamado método de exaustão. Problemas de variação não eram abordados quantitativamente pelos cientistas gregos. Também podemos perceber algumas aproximações desse concei- to, por exemplo, com os filósofos escolásticos, nos indivisíveis de Bonaventura Cavalieri (1598-1647) e na introdução da geometria analítica e representação de quantidades variáveis, no século XVII (Bourbaki, 2007; Thiele, 2003). Mas foi com a constituição do cálculo, sobretudo com Newton e Leibniz, que os infinitésimos tomaram importância. Newton, em- bora os usasse, dizia que seu cálculo (fluxões) não dependia deles; já Leibniz trabalhou bastante com essas quantidades, sobretudo com as diferenciais. Sabemos ainda que as ideias de Newton e Leibniz receberam várias críticas, e esse processo acabou por estabelecer um movimento de aprimoramento das noções do cálculo. Euler defen- dia que uma quantidade infinitamente pequena (ou evanescente) era simplesmente algo que viria a ser zero, mas também recebeu críticas. E assim foi com d’Alembert, Lagrange e outros, até che- garmos a Cauchy que, como vimos, escreveu que uma variável que tem zero como limite se torna infinitamente pequena. Esse conceito 7 On dit qu’une quantité variable devient infiniment petite, lorsque sa valeur numérique décroit indéfiniment de manière à converger vers la limite zéro. ASPECTOS DA HISTÓRIA DA ANÁLISE MATEMÁTICA... 33 é usado por Cauchy em várias de suas obras, mas hoje muitos histo- riadores defendem que a centralidade está no conceito de limite e os infinitésimos seriam apenas abreviações úteis para as variáveis que têm limite nulo. Assim, devemos ressaltar que, mesmo aceitando a simplicidade dos infinitésimos, Cauchy redefiniu esse conceito, sobretudo em relação às concepções de Euler e Leibniz, para quem os infinitésimos eram constantes. Para Cauchy, essas quantidades eram variáveis. Por fim, apesar dos avanços que Cauchy conseguiu na direção do rigor pretendido a sua época, ressalta-se que os seus infinitési- mos também não foram aceitos, pois ainda se baseavam em ideias e conceitos em vigor desde o século XVIII. Além disso, o atrela- mento dos infinitésimos à geometria (considerada pouco rigorosa) não havia sido totalmente superado. Conforme já apontamos, esse problema só seria resolvido com o movimento que ficou conhecido como aritmetização da análise, a partir do qual a base dos conceitos foi dos infinitésimos para os limites e, consequentemente, da geo- metria para os números. Continuidade Seja ( )f x uma função da variável x , e suponhamos que, para cada valor de x entre dois limites dados, essa função admita cons- tantemente um valor único e finito. Se, partindo de um valor de x compreendido entre esses limites, atribuímos à variável x um acréscimo infinitamente pequeno ,α a função receberá ela mesma por acréscimo a diferença ( ) ( ),f x f xα+ − que dependerá ao mesmo tempo da nova variável α e do valor de x . Isso posto, a fun- ção ( )f x será, entre os dois limites fixados para a variável x , função contínua dessa variável, se, para cada valor de x central entre esses limites, o valor numérico da diferença ( ) ( ),f x f xα+ − decresce inde- finidamente com o de α. Em outros termos, a função ( )f x perma- necerá contínua em relação a x entre os limites dados se, entre esses 34 ROSA LÚCIA SVERZUT BARONI • SÍLVIO CÉSAR OTERO-GARCIA limites, um acréscimo infinitamente pequeno da variável produzir sempre um acréscimo infinitamente pequeno da própria função. Dizemos ainda que a função ( )f x é, na vizinhança de um valor particular atribuído a variável x , função contínua dessa variável, todas as vezes que ela for contínua entre dois limites de x , mesmo muito próximos, que contêm o valor a que se referem. (Cauchy, 1821, p.34-35)8 A maior novidade, e talvez o conceito mais central na obra de Cauchy, é a noção de continuidade, notadamente diferente da de Euler, que na época era a mais aceita. Por exemplo, para Euler a função (2.1) , se 0 ( ) , se 0 x x f x x x − < =  ≥ era descontínua, já que era representada por mais de uma expressão analítica.9 Essa concepção levava a algumas incoerências, como observou Cauchy (1844). Ao se escrever a série de Fourier da fun- ção anterior obtém-se uma expressão analítica que indica que essa 8 Soit ( )f x une fonction de la variable x , et supposons que, pour chaque valeur de x intermédiaire entre deux limite données, cette fonction admette constam- ment une valeur unique et finie. Si, en partant d’une valeur de x comprise entre ces limites, on attribue à la variable x un accroissement infiniment petitα , la fonction elle-même recevra pour accroissement la différence ( ) ( ),f x f xα+ − qui dépendra en même temps de la nouvelle variable α et de la valeur de .x Cela posé, la fonction ( )f x sera, entre les deux limites assignées à la variable ,x fonction continue de cette variable, si, pour chaque valeur de x intermédiaire entre ces limites, la valeur numérique de la différence ( ) ( )f x f xα+ − décroit indéfiniment avec celle deα . En d’autres termes, la fonction ( )f x restera con- tinue par rapport à x entre les limites données, si, entre ces limites, un accrois- sement infiniment petit de la variable produit toujours un accroissement infi- niment petit de la fonction elle-même. On dit encore que la fonction ( )f x est, dans la voisinage d’une valeur particulière attribuée à la variable ,x fonction continue de cette variable, toutes les fois qu’elle est continue entre deux limites de x, même très-rapprochées, qui renferment la valeur dont il s’agit. 9 Segundo nos esclarece Jahnke (2003), para Euler eram contínuas as funções que podiam ser representadas por uma única expressão analítica, e as demais, descontínuas. ASPECTOS DA HISTÓRIA DA ANÁLISE MATEMÁTICA... 35 função poderia ser contínua segundo a própria definição de Euler (Lützen, 2003): (2.2) 2, 0 2( ) , 0 x se x f x x x se x π − < = = = ≥ 0 ∞ ∫ 2 2 2 , x dt t x+ ou seja, “uma simples mudança de notação é suficiente para trans- formar uma função contínua no sentido de Euler em uma função descontínua no sentido de Euler, e vice-versa”. (Lützen, 2003, p.165) * * * A alternativa de Cauchy para a definição de Euler, segundo en- tende Lützen (2003), foi concebida por meio do estudo das funções com saltos. O matemático francês Louis François Antoine Arbo- gast (1759-1803) já havia trabalhado com a definição de (des)con- tinuidade nesse tipo de função, tendo dado ao conceito o nome de “(des)contiguidade” (Arbogast, 1791; Jourdain, 1913). Entretan- to, tratava-se, ainda, apenas de uma generalização da definição de Euler. Cauchy foi além. Alguns anos antes de seu Cours d’Analyse, em suas investigações sobre integrais definidas, Cauchy (1814; 1827) escreveu: A primeira dificuldade que se apresenta concerne as funções de uma só variável. Se uma integral indefinida é expressa por uma certa função da variável aumentada de uma constante arbitrária, a mesma integral, tomada entre dois limites dados, a e b , será expressa em geral pela diferença dos valores da função relativa a esses dois limites. Todavia, esse teorema não é verdadeiro, senão no caso em que a função encontrada cresce ou decresce de uma maneira continua entre os dois limites em questão. Mas, se, quando fazemos crescer a variável em graus imperceptíveis, a função encontrada passe subitamente de um valor a outro, a diferença estando sempre compreendida entre os limites de integração, a diferença desses dois valores deverá ser retirada da integral definida, como de costume, e 36 ROSA LÚCIA SVERZUT BARONI • SÍLVIO CÉSAR OTERO-GARCIA cada um dos saltos bruscos que poderá fazer a função necessitará de uma correção de mesma natureza. (p.614-615)10 E mais adiante: Se a função ( )zϕ cresce ou decresce de uma maneira contínua entre os limites ´z b= , ´́z b= , o valor da integral será representado, como de costume, por ( ) ( ) ( ). b b z dz b bϕ ϕ ϕ ′′ ′  ′ ′′ ′= −  ∫ ( ) ( ) ( ). b b z dz b bϕ ϕ ϕ ′′ ′  ′ ′′ ′= −  ∫ ( ) ( ) ( ). b b z dz b bϕ ϕ ϕ ′′ ′  ′ ′′ ′= −  ∫ ( ) ( ) ( ). b b z dz b bϕ ϕ ϕ ′′ ′  ′ ′′ ′= −  ∫ Mas, se para um certo valor de z representado por Z e compreen- dido entre os limites de integração, a função ( )zϕ passa subitamente de um valor determinado a outro valor sensivelmente diferente do primeiro, de sorte que designando por ξ uma quantidade muito pequena, tenhamos ( ) ( ) ,Z Zϕ ξ ϕ ξ δ+ − − = então o valor ordi- nário da integral definida, a saber, ( ´́ ) ( )́,b bϕ ϕ− deverá ser dimi- nuído da quantidade ,δ como se pode facilmente demonstrar. (p.687-688)11 10 La première difficulté que se présente regarde les fonctions d’une seule varia- ble. Si une intégrale indéfinie est exprimée par une certaine fonction de la variable augmentée d’une constante arbitraire, la même intégrale, prise entre deux limites donnés, a e ,b sera exprimée en général par la différence des valeurs de la fonction relative à ces deux limites. Toutefois ce théorème n’est vrais que dans le cas où la fonction trouvée croit ou décroit d’une manière con- tinue entre les deux limites dont il s’agit. Mais si, lorsqu’on fait croitre la varia- ble par degrés insensibles, la fonction trouvée passe subitement d’une valeur à une autre, la variable étant toujours comprise entre les limites de l’intégration, la différence de ces deux valeurs devra être retranchée de l’intégrale définie prise à l’ordinaire, et chacun des sauts brisques que pourra faire la fonction trouvée nécessitera une correction de même nature. 11 Si la fonction ( )zϕ croit ou décroit d’une manière continue entre les limi- tes ,́z b= ´́ ,z b= la valeur de l’intégrale sera représentée, à l’ordinaire, par ( ´́ ) ( )́.b bϕ ϕ− Mais, si, pour certaine valeur de z représentée par Z et comprise entre les limites de l’intégration, la fonction ( )zϕ passe subitement d’une valeur déterminée à une autre valeur sensiblement différent de la première, en sorte qu’en désignant par ξ une quantité très-petite, on ait ( ) ( ) ,Z Zϕ ξ ϕ ξ δ+ − − = ASPECTOS DA HISTÓRIA DA ANÁLISE MATEMÁTICA... 37 Assim, o que Cauchy fez em 1814 foi definir descontinuidade por meio de uma tradução de propriedades das funções com salto. Entretanto, essa formulação algébrica de 1814 não é, embora possa parecer, inconsistente com a definição de continuidade que apare- ceria anos depois em seu Cours (Grabiner, 2005). São definições de naturezas diversas. Vamos analisar essa afirmação com um pouco mais de cuidado. Em sua definição de 1821, Cauchy especifica claramente um valor da variável x e estabelece que ( ) ( )f x f xα+ − tende a zero quando α tende a zero. Isso lembra o conceito atual de continuida- de pontual. Por outro lado, na definição de 1814, não se fala em um valor específico de x , mas do acréscimo da função. Isso pode reme- ter à ideia de continuidade uniforme. Embora Cauchy trabalhasse com as duas definições e conseguisse estabelecer sua análise com elas, ele não conseguia distingui-las claramente. Isso só seria feito por Bolzano em 1830; entretanto, esse trabalho só seria publicado cem anos depois (Bolzano, 1830; 1930; Grabiner, 2005; Lützen, 2003). Voltaremos a falar disso em 3.2. Convergência Chamamos série uma sequência indefinida de quantidades 0 1 2 3, , , ,u u u u … que derivam umas das outras segundo uma lei determinada. Essas quantidades são os diferentes termos da série que consideramos. Seja 0 1 2 1n ns u u u u −= + + + + a soma dos n primeiros termos, n designando um número inteiro qualquer. Se, para valores de n sempre crescentes, a soma ns se aproxima inde- finidamente de um certo limite s , a série será dita convergente, e o limite em questão se chamará a soma da série. Ao contrário, se, ao mesmo tempo que n cresce indefinidamente, a soma ns não se alors la valeur ordinaire de l’intégrale définie, savoir, ( ´́ ) ( )́b bϕ ϕ− , devra être diminuée de la quantité ,δ comme on peut aisément s’en assurer. 38 ROSA LÚCIA SVERZUT BARONI • SÍLVIO CÉSAR OTERO-GARCIA aproxima de algum limite fixo, a série será divergente e não terá soma. (Cauchy, 1821, p.123)12 Durante o século XVIII, era comum definir a convergência ou divergência de uma série em termos de seu n-ésimo termo. Assim, a série cujo n-ésimo termo tendia a zero, convergia; do contrário, não. Sabemos que essa condição não é sempre verdadeira, e a série harmônica 1/ n∑ talvez seja o contraexemplo mais emblemático. Esse resultado já era conhecido desde pelo menos Nicole d’Oresme, mas isso não era exatamente um problema, já que a própria ideia de convergência era outra, ou seja, a série harmônica convergia mesmo que sua soma não fosse finita (Grabiner, 2005). Na definição de Cauchy, a atenção se desloca dos termos da série (convergindo para zero) para sua própria soma (convergindo para um valor fixo). É evidente que essa noção gerou problemas, já que uma mesma série poderia divergir no sentido de Cauchy e conver- gir no sentido descrito no parágrafo anterior. Ou seja, o desafio ia além da definição matemática, perpassava pela própria definição do conceito; em outros termos, não bastava explicitar rigorosa e mate- maticamente o conceito de convergência, era necessário também se estabelecer o que se entendia por ele. E Cauchy, de fato, não foi o precursor dessa nova ideia de convergência; Euler, por exemplo, às vezes operava com ela em seu Institutiones Calculi Differentialis (1755). 12 On appelle série une suite indéfinie de quantités 0 1 2 3, , , ,u u u u … qui dérivent les unes des autres suivant une loi déterminée. Ces quantités elles-mêmes sont les différens termes de la série que l’on considère. Soit 0 1 2 1n ns u u u u −= + + + + la somme des n premiers termes, n désignanant un nombre entier quelconques. Si, pour des valeurs de n toujours croissantes, la somme ns s’approche indéfi- niment d’une certaine limite s , la série sera dite convergente, et la limite en question s’appellera la somme de la série. Au contraire, si, tandis que n croit indéfiniment, la somme ns ne s’approche d’aucune limite fixe, la série sera divergente, et n’aura plus de somme. ASPECTOS DA HISTÓRIA DA ANÁLISE MATEMÁTICA... 39 Figura 7 – Nicole d’Oresme Então, qual foi, de fato, a contribuição de Cauchy? Nossa res- posta poderá ser restritiva, mas, ainda que sob esse risco, destacare- mos alguns dos pontos que Lützen (2003) e Grabiner (2005) trazem sobre o assunto: a caracterização da convergência de séries, em várias demonstrações, por meio do par Nε − e, em particular, sua insistência em afirmar que séries divergentes não têm soma. Essa posição “chocou” os matemáticos da época, de modo que Cauchy se sentiu impelido a, antes de encontrar as somas das séries, melhor caracterizar (ou estabelecer) a convergência. A partir disso, provou diversos testes de convergência, como o da raiz, o do quociente e aquele que, por vezes, é conhecido como critério de Cauchy.13 Alguns desses testes já eram conhecidos, entretanto, Cauchy ino- 13 Uma série iu∑ converge se, e somente se, para todo 0ε > existe um natural N tal que 1| | ,n n n pu u u ε+ ++ + + < para todo .n N> Ou, equivalentemente, a série converge se, e somente se, suas somas parciais formam uma sequência de Cauchy. Entretanto, Cauchy apenas demonstrou a suficiência desse resultado. E isso é compreensível, pois a necessidade é um resultado derivado da com- pletude do conjunto dos números reais. Por fim, vale ressaltar que, por vezes, damos o nome de Cauchy ao teste da raiz, então convém não confundir esse teste com o que chamamos aqui de critério de Cauchy. 40 ROSA LÚCIA SVERZUT BARONI • SÍLVIO CÉSAR OTERO-GARCIA vou realmente nas provas rigorosas desses testes e na importância fundamental que deu a eles pela preocupação estabelecida com a questão da convergência das séries. Apesar da incontestável contribuição dada por Cauchy no que diz respeito ao parágrafo anterior, o teorema que liga os conceitos de continuidade e convergência obteve mais destaque dentro do seu Cours. Quando os diferentes termos da série 0 1 2 1[ , , , , , ]n nu u u u u +… são funções de uma mesma variável ,x contínuas em relação a essa vari- ável em uma vizinhança de um valor particular para o qual a série é convergente, a soma s da série é também, na vizinhança desse valor particular, função contínua de x. (p.131-132)14 Como já adiantamos, esse teorema seria alvo de algumas con- trovérsias, tendo sua demonstração, alguns anos depois, contestada por Niels Henrik Abel (1802-1829) (veja o item 3.3). Moderna- mente, por um lado, alguns historiadores consideram que Cauchy cometeu um erro, pois se consideramos os modernos significados atribuídos a alguns elementos da demonstração, esse teorema é falso. Por outro lado, se considerarmos que Cauchy tinha à mente à época convergência uniforme numa vizinhança de x , o resultado é verdadeiro (Lützen, 2003; Schubring, 1983). Voltaremos a tratar desse assunto nos próximos capítulos. Derivada Quando a função ( )y f x= permanece contínua entre dois limi- tes dados da variável ,x e quando determinamos a essa variável 14 Lorsque les différens termes de la série (1) sont des fonctions d’unes même varia- ble ,x continues par rapport à cette variable dans le voisinage d’une valeur particu- lière pour laquelle la série est convergente, la somme s de la série est aussi, dans le voisinage de cette valeur particulière, fonction continue de .x ASPECTOS DA HISTÓRIA DA ANÁLISE MATEMÁTICA... 41 um valor compreendido entre os dois limites a que se referem, um acréscimo infinitamente pequeno, atribuído à variável, produz um acréscimo infinitamente pequeno da própria função. Por consequên- cia, se pusermos então ,x i∆ = os dois termos do quociente das diferenças ( ) ( )y f x i f x x i ∆ + − = ∆ , serão quantidades infinitamente pequenas. Mas, enquanto esses dois termos se aproximam indefinidamente e simultaneamente do limite zero, o quociente poderá ele mesmo convergir rumo a um outro limite, seja positivo, seja negativo. Esse limite, quando existe, tem um valor determinado para cada valor particular de ,x mas ele varia com .x [...] a forma da função nova que servirá de limite ao quociente ( ) ( )f x i f x i + − dependerá da forma da função proposta ( )y f x= . Para indicar essa dependência, damos à nova função o nome de função derivada, e a designamos adicionando a ela um acento, pela notação ´y ou (́ )f x . (Cauchy, 1823, p.9)15 Embora Cauchy tenha usado de Lagrange o termo “derivada” e até mesmo a sua notação ,́f “rejeitou” a definição (de Lagrange) em 15 Lorsque la fonction ( )y f x= reste continue entre deux limites données de la variable ,x et que l’on assigne à cette variable une valeur comprise entre les deux limites dont il s’agit, un accroissement infiniment petit, attribué à la variable, produit un accroissement infiniment petit de la fonction elle-même. Par conséquent, si l’on pode alors ,x i∆ = les deux termes du rapport aux diffé- rences ( ) ( ) ,y f x i f x x i ∆ + − = ∆ seront des quantités infiniment petites. Mais, tan- dis que ces deux termes s’approcheront indéfiniment et simultanément de la limite zéro, le rapport lui-même pourra converger vers une autre limite, soit positive, soit négative. Cette limite, lorsqu’elle existe, a une valeur détermi- née, pour chaque valeur particulière de ;x mais elle varie avec .x [...] la forme de la fonction nouvelle qui servira de limite au rapport ( ) ( )f x i f x i + − dépendra de la forme de la fonctions proposée ( ).y f x= Pour indiquer cette dépendance, on donne à la nouvelle fonctions le nom de fonctions dérivée, et on la désigne, à l’aide d’un accent, par la notation ´y ou (́ ).f x 42 ROSA LÚCIA SVERZUT BARONI • SÍLVIO CÉSAR OTERO-GARCIA termos de expansões de séries de potências – , ( ) ( ) (́ ) ,f x i f x if x iV+ = + + em que V é uma função que tende a zero junto com i –, optando por traduzi-la a partir de uma percepção semelhante à de Lacroix, que definiu derivada em termos do quociente das diferenças16 (Grabi- ner, 2005; Katz, 1998; Lacroix, 1820; Lagrange, 1797). Entretanto, foi além e tratou esse quociente como um limite, eliminando assim a ideia de quociente de infinitésimos – presente nos trabalhos de Euler. Inclusive, o próprio termo infinitésimo (ou quantidade in- finitamente pequena) é bastante evitado na obra de Cauchy, apare- cendo mais como um recurso estilístico (linguagem abreviada) ou para indicar um limite que tende a zero (ver item 2.2) (Lintz, 2007). Cauchy calculou a derivada de um grande número de funções, como ( )f x = sen ,x ,( ) af x x= com a real. Para Katz (1998), no que diz respeito à definição de derivada, Cauchy não fez nada de par- ticularmente relevante. Grande parte de suas demonstrações, por exemplo, já haviam sido feitas por Lagrange. Entretanto, a defi- nição de Lagrange presumia que toda função podia ser expandida em séries de potências. Esse falso resultado, conjuntamente com o fato de Cauchy ter traduzido boa parte dessa linguagem e de outros matemáticos contemporâneos seus em uma definição conveniente para se demonstrar teoremas, fez com que sua abordagem prevale- cesse por tanto tempo, estando ainda em considerável parte presen- te em textos universitários modernos (Eves, 2004). 16 Sobre a vida e obra de Lacroix em língua portuguesa, recomendamos a leitura de Andrade (2012). ASPECTOS DA HISTÓRIA DA ANÁLISE MATEMÁTICA... 43 Figura 8 – Joseph-Louis Lagrange e Sylvestre-François Lacroix Integral Suponhamos que a função ( )y f x= seja contínua com relação à variável x entre dois limites finitos 0 ,x x= ,x X= designamos por 1 2 1, , , nx x x −… os novos valores de x interpostos entre esses limites, e que estejam sempre crescendo ou decrescendo desde o primeiro limite até o segundo. Poderemos nos servir desses valores para divi- dir a diferença 0X x− em elementos 1 0 2 1 3 2 1, , , , ,nx x x x x x X x −− − − … − que serão todos de mesmo sinal. Isso posto, concebemos que multi- plicamos cada elemento pelo valor de ( )f x correspondente à origem desse mesmo elemento, a saber, o elemento 1 0x x− por 0( ),f x o ele- mento 2 1x x− por 1( )f x , …, enfim, o elemento 1nX x −− por 1( );nf x − e s e j a 1 0 0 2 1 1 1 1( ) ( ) ( ) ( ) ( ) ( )n nS x x f x x x f x X x f x− −= − + − + + − a soma dos produtos assim obtidos. A quantidade S dependerá, evidentemente, primeiro do número n de elementos dentro dos quais tivermos dividido a diferença 0 ,X x− segundo dos próprios valores desses elementos, e, por consequência, do modo de divisão 44 ROSA LÚCIA SVERZUT BARONI • SÍLVIO CÉSAR OTERO-GARCIA adotado. Ora, é importante notar que, se os valores numéricos dos elementos tornam-se muito pequenos e o número n muito signi- ficativo, o modo de dividir não terá mais sobre o valor de S uma influência senão imperceptível; [...] o valor de S terminará por ser sensivelmente constante, ou, em outros termos, ele terminará por alcançar um certo limite que dependerá unicamente da forma da função ( )f x e dos valores extremos, 0 ,x ,X atribuídos à variável .x Esse limite é o que chamamos uma integral definida. (Cauchy, 1823, p.81-83)17 Se Cauchy não apresentou grandes inovações em relação às de- rivadas, o mesmo não podemos dizer quanto ao tratamento dado por ele às integrais. Seus antecessores (século XVIII) aceitavam a ideia, advinda principalmente de Newton, de integração como o in- verso da diferenciação. Cauchy apresentou um novo enfoque, mais inspirado em Leibniz – que havia considerado as integrais como somas de infinitésimos, definindo a integral como um somatório que tende a um limite. A ideia de integral como inversa da deriva- 17 Supposons que, la fonctions ( )y f x= étant continue par rapport à la varia- ble x entre deux limites finies 0 ,x x= ,x X= on désigne par 1 2 1, , , nx x x −… de nouvelles valeurs de x interposées entre ces limites, et qui aillent toujours en croissant ou en décroissant depuis la première limite jusqu’à la seconde. On pourra se servir de ces valeurs, pour diviser la différence 0X x− en éle- ments 1 0 2 1 3 2 1, , , , ,nx x x x x x X x −− − − … − qui seront tous de même signe. Cela posé, concevons que l’on multiplie chaque élément par la valeur de ( )f x correspondante à l’ origine de ce même élément, savoir, l’élément 1 0x x− par 0( ),f x l’élément 2 1x x− par 1( ),f x … , enfin l’élément 1nX x −− par 1( );nf x − et soi 1 0 0 2 1 1 1 1( ) ( ) ( ) ( ) ( ) ( )n nS x x f x x x f x X x f x− −= − + − + + − la somme des produits ainsi obtenus. La quantité S déprendra évidentemente, 1o . du nombre n des éléments dans lesquels on aura divise la différence 0 ,X x− 2 o . des valeurs mêmes de ces élémens, et par conséquent du mode de division adopté. Or, il importe de remarquer que, si les valeurs numériques des éléments deviennent très-petites et le nombre n très-considerable, le mode de division n’aura plus sur la valeur de S qu’une influente insensible; [...] la valeur de S finira par être sensiblement constante, ou, en d’autres termes, elle finira par atteindre une certaine limite qui dépendra uniquement de la forme de la fonction ( ),f x et les valeurs extrêmes 0 ,x X attribuées à la variable .x Cette limite est ce qu’on appelle une intégrale définie. ASPECTOS DA HISTÓRIA DA ANÁLISE MATEMÁTICA... 45 da tornava o cálculo integral uma espécie de apêndice do cálculo diferencial. Cauchy rompe com esse ponto de vista, já que define a integral de maneira independente da derivada. Por conta disso, Cauchy teve que provar a relação de dependência, e o fez por meio do Teorema do Valor Médio, que já era conhecido à sua época (ver próximo item). Seja como for, devemos observar que foi Fourier, em um traba- lho de 1822, quem primeiro mudou esse cenário, ao perceber que para calcular certos coeficientes – que hoje levam seu nome (veja o item 4.1) – de funções arbitrárias, ele não poderia usar o cálculo diferencial, que não se aplicava a determinados tipos de funções. Assim, ele focou nas integrais definidas e estabeleceu seu signifi- cado como a área entre a curva e o eixo. Também foi Fourier quem estabeleceu a notação ( ) b a f x dx∫ colocando os limites de integração a e b na parte superior e inferior do símbolo da integral (Fourier, 1822). Cauchy, de certa forma, seguiu Fourier, mas foi mais longe ao definir sua integral como o limite de uma soma à esquerda. Isso se mostrou mais preciso e permitiu que ele provasse que a conti- nuidade era uma condição suficiente para a integrabilidade. Essa demonstração, segundo Lützen (2003, p.170), “é uma das obras- -primas do Calculus de Cauchy”. Cauchy (1823) ainda define a integral de funções descontínuas num conjunto finito de valores. Essa definição pode ser comparada com a de Georg Friedrich Bernhard Riemann (1826-1866), que, por outro lado, em 1854 se baseou na definição de integral de Cau- chy para estendê-la a uma classe mais abrangente de funções que as contínuas (Lützen, 2003; Riemann, 1854; 1876). Voltaremos a tratar disso em 6.1. 46 ROSA LÚCIA SVERZUT BARONI • SÍLVIO CÉSAR OTERO-GARCIA Teorema Fundamental do Cálculo Se na integral definida 0 ( ) X x f x dx∫ fizermos variar um dos dois limites, por exemplo, a quantidade ,X a integral variará com essa quantidade; e, se substituirmos o limite ,X tornado variável, por ,x obteremos por resultado uma nova função de ,x que será o que chamamos de uma integral tomada a partir da origem 0 .x x= Seja (1) 0 ( ) ( ) x x x f x dx= ∫F essa nova função. Obtemos da fórmula (19) [Lição 22]18 (2) 0 0 0 0( ) ( ) [ ( )], ( ) 0,x x x f x x x xθ= − + − =F F 0 0 0 0( ) ( ) [ ( )], ( ) 0,x x x f x x x xθ= − + − =F F θ sendo um número inferior à unidade; e da fórmula (7) [Lição 23]19 0 0 ( ) ( ) ( ) ( ), x x x x x x f x dx f x dx f x dx f x α α α θα + + − = = +∫ ∫ ∫ ou (3) ( ) ( ) ( ),x x f xα α θα+ − = +F F segue das equações (2) e (3) que, se a função ( )f x é finita e contínua na vizinhança de um valor particular arbitrário da variável ,x a nova função ( )xF será não somente finita, mas também contínua na vizi- nhança desse valor, pois um incremento infinitamente pequeno de x corresponderá um incremento infinitamente pequeno de ( ).xF Portanto, se a função ( )f x permanece finita e contínua desde 0x x= até ,x X= o mesmo ocorrerá com a função ( ).xF Acrescen- temos ainda que, se dividirmos por α os dois membros da fórmula (3), concluiremos, passando o limite, que 18 Isto é, 0 0 0 0( ) ( ) [ ( )] X x f x dx X x f x X xθ= − + −∫ . 19 Isto é, 0 0 ( ) ( ) ( ) , X X x x f x dx f x dx f x dx ξ ξ = +∫ ∫ ∫ em que 0 .x Xξ≤ ≤ ASPECTOS DA HISTÓRIA DA ANÁLISE MATEMÁTICA... 47 (4) ( ) ( ).x f x′ =F Portanto a integral (1 ), considerada como função de x , tem por derivada a função ( )f x contida abaixo do sinal ∫ dessa integral. (Cauchy, 1823, p.101)20 Uma vez que Cauchy definiu as operações de integração e de- rivação de modo independente, foi necessário estabelecer a relação existente entre esses dois conceitos, o que se deu por meio da de- monstração do Teorema Fundamental do Cálculo (TFC).21 Ele mos- trou que se ( )f x é uma função contínua, então 0 ( ) ( ) x x F x f x dx= ∫ tem por derivada a função f . Newton e Leibniz já haviam formu- lado o TFC,22 mas foi Cauchy o primeiro, ao que se sabe, a trazer 20 Si, dans l’intégrale défine 0 ( ) , X x f x dx∫ on fait varier l’une des deux limites, par exemple, la quantité ,X l’intégrale variera elle-même avec cette quantité; et, si l’on remplace la limite X devenue variable par ,x on obtiendra pour résultat une nouvelle fonction de ,x qui sera ce qu’on appelle une intégrale prise à partir de l’origine 0.x x= Soit (1) 0 ( ) ( ) x x x f x dx= ∫F cette fonction nouvelle. On tirera de la formule (19) [[22.e leçon] (2 ) 0 0 0 0( ) ( ) [ ( )], ( ) 0,x x x f x x x xθ= − + − =F F 0 0 0 0( ) ( ) [ ( )], ( ) 0,x x x f x x x xθ= − + − =F F θ étant um nombre inférieur à l’unité; et de la formule (7) [23.e leçon] 0 0 ( ) ( ) ( ) ( ), x x x x x x f x dx f x dx f x dx f x α α α θα + + − = = +∫ ∫ ∫ ou (3) ( ) ( ) ( ),x x f xα α θα+ − = +F F Il suit des équations (2) et (3) que, si la fonc- tion ( )f x est finie et continue dans le voisinage d’une valeur particulière attri- buée à la variable ,x la nouvelle fonction ( )xF sera non-seulement finie, mais encore continue dans le voisinage de cette valeur, puisqu’à un accroissement infiniment petit de x correspondra un accroissement infiniment petit de ( ).xF Donc, si la fonction ( )f x reste finie et continue depuis 0x x= jusqu’à ,x X= il en sera de même de la fonction ( ).xF Ajoutons que, si l’on divise parα les deus membres de la formule (3), on en conclura, en passant aux limites, (4) ( ) ( ).x f x′ =F Donc l’intégrale (1), considérée comme fonction de ,x a pour déri- vée la fonction ( )f x renfermée sous le signe ∫ dans cette intégrale. 21 Vale salientar que essa denominação para o referido teorema é mais moderna. Segundo Sriraman (2012), o nome desse teorema conforme hoje o conhecemos provavelmente se deve à tradição francesa de utilizar a palavra fondamentale (fundamental) para designar algo básico. 22 Segundo Toeplitz e Bressound (2007), foi o matemático Isaac Barrow, ainda em 1667, o primeiro a demonstrar esse teorema. Para mais detalhes, consultar a referida obra (p.95-99). 48 ROSA LÚCIA SVERZUT BARONI • SÍLVIO CÉSAR OTERO-GARCIA uma prova rigorosa desse importante teorema para o cálculo e para a análise (Boyer, 1949). Em sua prova, Cauchy utilizou essencialmente dois conceitos: o do Teorema do Valor Médio para integrais, resultado bem conhe- cido atribuído a Lagrange; e a linearidade da integração para com a operação de adição, resultado este que, para Cauchy, resultou imediatamente da sua definição de integral. Na realidade, Cauchy não utilizou somente o resultado de Lagrange para o Teorema do Valor Médio para Integrais (TVMI),23 mas também a sua própria demonstração do TFC (Grabiner, 2005). Lagrange, em sua demonstração do TVMI, definiu a integral como o inverso da derivada, e estabeleceu esse teorema como uma variação do Teorema do Valor Médio para Derivadas.24 Como Cau- chy definiu a integração por meio de uma soma, não pôde usar do mesmo artifício. Ele derivou o seu TVMI a partir de alguns dos passos da sua própria definição de integral. Com relação ao TFC, a demonstração de Lagrange possuía diversas limitações, uma vez que ele não havia definido o conceito de integral definida e, em sua prova, exigiu que a função tomada fosse monótona. Mais uma vez, como no caso do TVMI, Cauchy tomou esse resultado já dado, deu a ele uma base lógica distinta e tornou-o suficientemente rigoroso (Grabiner, 2005). Assim, Cauchy, baseando-se numa prova aceitável do TVMI, estabeleceu uma prova do TFC que pode ser utilizada mesmo nos dias de hoje. Mais que isso, de uma maneira mais geral, refletindo sobre seus conceitos de derivada, integral e sua demonstração do TFC, podemos dizer que ele iniciou um processo que primeiro 23 Se :[ , ]f a b → é contínua em seu intervalo de definição, então existe um valor ,z com a z b< < tal que ( ) ( )( ). b a f x dx f z b a= −∫ Geometricamente, esse teorema nos garante que existe um valor z tal que o retângulo de base ( )b a− e altura ( )f z tem exatamente a mesma área da região sob a curva de .f 24 Se :[ , ]f a b → é contínua em seu intervalo de definição, e derivável em ( , ),a b então existe ( , )c a b∈ tal que ( ) ( )( ) .f b f af c b a −′ = − Geometricamente, esse teo- rema nos diz que existe um ponto c no gráfico de f cuja reta tangente tem exatamente a mesma inclinação do segmento .AB ASPECTOS DA HISTÓRIA DA ANÁLISE MATEMÁTICA... 49 converteu o cálculo integral, antes entendido apenas como inverso do cálculo diferencial, em uma disciplina autônoma, e, posterior- mente, com contribuições sobretudo de Riemann e Henri Léon Le- besgue (1875-1941) (veja no Capítulo 6), no estudo de uma classe de funções que possuem ou não integral, seja qual for a concepção de integral usada. 3 Gauss, Bolzano e aBel Escolhemos falar desses três matemáticos, no contexto da fun- damentação da análise, porque tanto Johann Carl Friedrich Gauss (1777-1855) quanto Bolzano tiveram ideias a esse respeito bastan- te semelhantes às de Cauchy, e Abel teve papel importante nesse início de reformas nos fundamentos da matemática. Além disso, Gauss, Bolzano e Abel, assim como seu contemporâneo Cauchy, foram pioneiros do moderno rigor da matemática. O século XVII tinha sido essencialmente um período de experimentação, no qual os resultados surgiram com grande abundância. Tinha chegado a época de se refletir sobre o significado dos resultados... (Struik, 1948). Carl Friedrich Gauss Carl Friedrich Gauss nasceu em Brunswick, na Alemanha, em 1777. Estudou em Göttingen de 1795 a 1798 e lá permaneceu trabalhando ativamente, de 1807 até sua morte em 1855. Jamais saiu da Alemanha, mas esse isolamento não o impediu de produzir grandes resultados, com ideias tão inovadoras que indicavam que 52 ROSA LÚCIA SVERZUT BARONI • SÍLVIO CÉSAR OTERO-GARCIA um novo período para a matemática estava se abrindo. Entretanto, perfeccionista que era, não publicava nenhuma de suas obras antes que estivessem completas, concisas, acabadas e convincentes; ado- tando o lema Pauca sed matura (poucos, porém maduros). Em de- corrência disso, as publicações oficiais de Gauss não refletem toda a grandeza de suas descobertas: os diários e cartas encontrados após sua morte mostram que ele guardou para si muitos resultados que não teve disposição de revelar publicamente, como as geometrias não-euclidianas (Eves, 2004). Figura 9 – Carl Friedrich Gauss Gauss trabalhou em diversas áreas, como teoria dos números, álgebra, geometria, astronomia, cristalografia, magnetismo, e aná- lise. No que tange a última, Lützen (2003) observa que há grande semelhança entre a introdução de Cauchy, no seu Cours d’Analyse, e as ideias de Gauss contidas numa carta endereçada a Heinrich Christian Schumacher (1780-1850), no que diz respeito ao ataque que fazem à crença na generalidade do mecanismo da análise e a uma especial repulsa [pelos matemáticos] às séries divergentes. Embora essa carta tenha sido escrita em 1850, bem depois da publicação do Cours d’Analyse, as ideias expressas nela eram da época da juventude de Gauss, portanto bastante anteriores ao ASPECTOS DA HISTÓRIA DA ANÁLISE MATEMÁTICA... 53 Cours. Por exemplo, por volta de 1800, numa discussão sobre sé- ries trigonométricas, Gauss começou a analisar os fundamentos da teoria das séries infinitas e, em uma de suas anotações, já aparecem as noções de limsup e liminf para séries, de forma bastante precisa e “até mais rigorosa que a encontrada mais tarde no Cours d’Analyse de Cauchy” (Lützen, 2003, p.174).1 A relutância de Gauss em publicar seus resultados fez com que ele tivesse pouco impacto no desenvolvimento dos fundamentos da análise. Entretanto, ele levantou a questão das séries infinitas em sua tese de doutorado (Gauss, 1799; 1866) quando tratava do teorema fundamental da álgebra e também em seu artigo (Gauss, 1813) sobre séries hipergeométricas. Bernard Bolzano Filho de um vendedor de artes italiano que escolheu Praga como seu novo lar depois do casamento com a filha de um comerciante daquela cidade, Bolzano nasceu em 1781 em meio a um contur- bado momento histórico na Europa. No ano da chegada de seu pai à Boêmia, cinco anos antes, o despotismo esclarecido de Maria Teresa e José II juntamente com os tímidos reflexos das tendências iluministas da França pré-revolução fizeram-se abater sobre a vida cultural, social e, sobretudo, educacional da Boêmia. No próprio ano de seu nascimento, a servidão foi abolida, bem como garantida a liberdade religiosa aos não católicos. Bolzano se formou na escola secundária, com honras, em 1796, tendo, em seguida, iniciado seus estudos em filosofia na Universidade Carolina de Praga. A essa altura, o Iluminismo de José III já vinha sendo substituído por um crescente medo da monarquia austríaca, com relação às possíveis influências da Revolução Francesa. Em decorrência disso, a re- pressão e endurecimento da censura e do regime policial alteraram 1 Esses conceitos aparecem em Cauchy quando ele tenta tornar mais clara a prova do teste da raiz. 54 ROSA LÚCIA SVERZUT BARONI • SÍLVIO CÉSAR OTERO-GARCIA radicalmente a vida por lá. Esse quadro mudaria só em 1848 com a Revolução Burguesa. Uma das instituições mais ativas na cam- panha antirrevolução foi a Igreja Católica – Bolzano chegou a ser padre (Folta, 1981). Figura 10 – Bernard Bolzano À parte da própria importância histórica dessas fatos, esse qua- dro como um todo influenciou fortemente a vida e a obra de Bolza- no, muitas vezes prejudicando sua carreira profissional. Com efei- to, apesar de Bolzano ter ido mais longe nos fundamentos da análise do que qualquer outro de seus contemporâneos – e hoje ser conside- rado um dos pioneiros em estabelecer bases rigorosas aos conceitos do cálculo, observadas em sua aritmetização e no estudo cuidadoso sobre o infinito –, a maneira como conduziu sua carreira, com um quase absoluto isolamento, o fato de Praga não ser um centro ma- temático importante à época e de boa parte dos mais importantes resultados seus não terem sido publicados em vida fizeram com que seus trabalhos permanecessem praticamente desconhecidos por cerca de cinquenta anos (Folta, 1981; Lützen, 2003). Segundo Lützen (2003), uma das mais importantes obras de Bolzano é o seu Rein analytischer Beweis des Lehrsatzes, dass zwis- chen je zwei Werthen, die ein entgegengesetztes Resultat gewähren, ASPECTOS DA HISTÓRIA DA ANÁLISE MATEMÁTICA... 55 wenigstens eine reelle Wurzel der Gleichung liege (1817). Nesse tra- balho são provados diversos resultados e dadas diversas defini- ções, como a de função contínua, que, à primeira vista, indicava claramente que a ideia básica de continuidade estava no conceito de limite: [...] uma função ( )f x varia de acordo com a lei de continuidade para todos os valores x dentro e fora de certos limites da seguinte maneira: se x é algum tal valor, a diferença ( ) ( )f x f xω+ − pode se tornar menor do que qualquer quantidade dada, desde que ω pode ser tomado tão pequeno quanto se quiser. (Bolzano, 1817, p.11-12)2 Essa definição não é essencialmente diferente da dada por Cau- chy, em 1821, mas, na opinião de alguns, como de Grabiner (2005), é muito mais elegante. A partir dela, Bolzano provou o teorema do valor intermediário. A prova, consideravelmente diferente da apresentada por Cauchy, usou o que modernamente chamamos de propriedade dos números reais de Bolzano-Weierstrass (Grabiner, 2005). Outra semelhança com Cauchy está nas sequências fundamen- tais (hoje também conhecidas como sequências de Cauchy). Bolza- no as definiu e “provou” que elas convergem para uma quantidade constante, porém essa demonstração não foi satisfatória. De fato, Bolzano provou, em primeiro lugar, possível assumir que o limite seja uma constante e, em segundo lugar, que esse limite é único e pode ser determinado de forma tão precisa quanto desejarmos. Seja como for, a partir desse resultado, Bolzano demonstrou a existência do supremo de um conjunto não vazio limitado superiormente, i.e., a propriedade de Bolzano-Weierstrass de que há pouco fala- 2 [...] eine Function fx für alle Werthe von ,x die inner- oder außerhalb gewisser Grenzen liegen, nach dem Gesetze der Stetigkeit sich ändre, nur so viel daß, wenn x irgend ein solcher Werth ist, der Unterschied ( ) ( )f x f xω+ − kleiner als jede gegebene Größe gemacht werden könne, wenn manω so klein, als man nur immer will, annehmen kann. 56 ROSA LÚCIA SVERZUT BARONI • SÍLVIO CÉSAR OTERO-GARCIA mos. Hoje sabemos que esse resultado caracteriza a completude do conjunto dos números reais, mas na época de Bolzano isso ainda não estava em pauta. Nos livros modernos, uma das provas mais comumente encontradas é a que usa a propriedade dos intervalos encaixados, o que nada mais do que uma equivalência da proprie- dade do supremo de Bolzano. Para Bolzano, seu resultado principal era a demonstração do teorema do valor intermediário. Porém, resultados secundários advindos desse – como os que citamos – também possuem grande importância para a história da análise, muito embora tenham sido por muito tempo ignorados. Por fim, os últimos resultados que gostaríamos de destacar advêm de uma publicação póstuma de Bolzano, Funktionenlehre (Bolzano, 1830; 1930). Nela, Bolzano traz outra definição de con- tinuidade pontual, mais precisa em relação à que havia apresentado em 1817, sendo adequada, inclusive, para os padrões atuais: Se a função monótona de uma ou mais variáveis Fx é constituída de tal forma que a variação sofrida, quando uma de suas variáveis passa de um determinado valor x para um diferente valor x x+ ∆ , dimi- nui infinitamente à medida que x∆ diminui infinitamente, isto é, quando ,Fx bem como ( )F x x+ ∆ – o último, pelo menos, para certos valores de x∆ e menores que ele – forem mensuráveis3 e o valor absoluto da diferença ( )F x x Fx+ ∆ − tornar-se inferior a qualquer fração 1/ N para x∆ suficientemente pequeno, que, no entanto, pode ser tomado ainda menor, então eu digo que a função Fx é contínua em x para um incremento positivo (ou em uma direção positiva), quando o que acabamos de dizer ocorre para um valor positivo de ;x∆ ; e contínua em x para um incremento negativo (ou em uma direção negativa), por outro lado, quando o que acaba- mos de dizer ocorre para um valor negativo de ;x∆ ; se, finalmente, a condição descrita é satisfeita tanto para um incremento positivo 3 Não no sentido da teoria da medida, como veremos adiante; nesse contexto, reais e finitos. ASPECTOS DA HISTÓRIA DA ANÁLISE MATEMÁTICA... 57 quanto negativo de ,x eu digo, simplesmente, que Fx é contínua em x. (Bolzano, 1830, 1930, p.14)4 Podemos notar que Bolzano define até mesmo continuidade à direita e à esquerda. Mais importante que essa definição de con- tinuidade pontual, certamente é a distinção que Bolzano faz entre esse tipo de continuidade e a uniforme, conceitos que pareciam confusos da obra de Cauchy (ver item 3.2): Não é porque uma função Fx é contínua para todos os valores de sua variável x que se encontra entre a e b, que para todo x entre esses valores há um número fixo e pequeno o suficiente que se possa afirmar que é necessário tomar x∆ em valor absoluto e< a fim de garantir que ( ) 1/F x x Fx N+ ∆ − < . (Bolzano, 1830; 1930, p.23-24)5 4 Wenn eine einförmige Function Fx von einer oder auch mehreren Verän- derlichen so beschaffen ist, daß die Veränderung, die sie erfährt, indem eine ihrer Veränderlichen x aus dem bestimmten Werthe x in den Veränderten x x+ ∆ übergehet, in das Unendliche abnimmt, wenn x∆ in das Unendliche abnimmt, wenn also der Werth Fx sowohl als auch der Werth ( )F x x+ ∆ , der letztere wenigstens anzufangen von einem gewissen Werthe der Differenz x∆ für alle kleineren abermahls meßbar ist, der Unterschied ( )F x x Fx+ ∆ − aber seinem absoluten Werthe nach kleiner als jeder gegebene Bruch 1/ N wird und verbleibt, wenn man nur x∆ klein genug nimmt, und so klein man es dann auch noch ferner werden läßt: so sage ich, daß die Function Fx für den Werth x stetig verändere, und zwar bey einem positiven Zuwachse oder im positiver Richtung, wenn das nur eben gesagte bey einem positiven Werthe von x∆ ein- tritt: und daß sie dagegen sich stetig verändere bey einem negativen Zuwachse oder in negativer Richtung, wenn das Gesagte bey einem negativen Werthe von x∆ Statt hat: wenn endlich das Gesagte bey einem positiven sowohl als negativen Zuwachs von x∆ gilt: so sage ich schlechtweg nur, daß Fx stetig sey für den Werth x . 5 Blos daraus, daß eine Function Fx für alle innerhalb a und b gelegenen Werthe ihrer Veränderlichen x stetig sey, folgt nicht, daß es für alle inner- halb dieser Grenze gelegenen Werthe von x eine und eben dieselbe Zahl e geben müsse, klein genug, um behaupten zu können, daß man x∆ nach sei- nem absoluten Werthe nie e< zu machen brauche, damit der Unterschied ( ) 1 /F x x Fx N+ ∆ − < ausfalle. 58 ROSA LÚCIA SVERZUT BARONI • SÍLVIO CÉSAR OTERO-GARCIA Ou seja, Bolzano diz que não é por que uma função é contí- nua em um intervalo que ela é necessariamente uniformemente contínua. Entretanto, embora originalmente escrita em 1830, essa obra de Bolzano só foi publicada cem anos depois. Por esse motivo que costumamos atribuir esses resultados ao matemático Eduard Heine (1821-1881), que teve sua obra publicada sessenta anos antes da de Bolzano (veja Capítulo 5) (Heine, 1871). Ainda em Funktionenlehre, Bolzano construiu uma função con- tínua não diferenciável em um conjunto denso (na realidade, não diferenciável em ponto algum). Esse resultado, portanto, contra- riaria as expectativas de Lagrange e André-Marie Ampère (1775- 1836), que por muito tempo tentaram provar que todas as funções contínuas, exceto por pontos isolados, eram diferenciáveis. Embora Cauchy não tenha tentado exatamente o mesmo que Lagrange e Ampère, podemos notar pelo seu trabalho (ver Capítulo 2) que muitas vezes ele passa essa impressão. Essa função criada por Bolzano em 1830 poderia ter servido para a matemática como algo crucial naquele momento, mostrando, a despeito de todas as intuições geométricas e sugestões da física, que funções contínuas não necessariamente possuem derivadas. Todavia, destacamos o contrariaria e o poderia em linhas anteriores porque o trabalho de Bolzano não foi reconhecido naquele tempo e, conforme já apontamos, sua obra de 1830 só fui publicada muito tempo depois. Por esse motivo, assim como os louros da continui- dade ficaram para Heine, o primeiro a publicar um exemplo de função não diferenciável em conjunto denso acabou sendo Weiers- trass em 1872, quase quarenta anos depois de Bolzano, portanto (Weierstrass, 1872; 1895). De modo geral, pudemos observar que, embora as ideias de Bol- zano indicassem a direção que deveriam seguir não só a formulação das leis do cálculo, mas também a maioria do pensamento do século XIX, elas não foram decisivas para isso. Seu trabalho permaneceu sem divulgação até ser redescoberto e publicado muitos anos de- ASPECTOS DA HISTÓRIA DA ANÁLISE MATEMÁTICA... 59 pois, quando Cauchy, Heine e Weierstrass, com ideias semelhantes, mas escritas de forma diferente, já haviam estabelecido os funda- mentos da análise e traçado a história de outra maneira6. Niels Henrik Abel Figura 11 – Niels Henrik Abel Terceiro nome importante no contexto da reforma dos funda- mentos da matemática, Niels Henrik Abel (1802-1829), em sua curta vida interrompida pela tuberculose, sofreu muitas privações, mas apesar disso o seu grande talento manifestou-se por meio de trabalhos valiosos para a matemática. Esteve na Alemanha, Itália e França, mas pessoalmente estabeleceu poucos contatos matemáti- cos. Morreu logo após retornar à Noruega e não teve tempo de ver o reconhecimento de seus trabalhos por parte de grandes figuras da época, como Adrien-Marie Legendre (1752-1833), Carl Gustav Jakob Jacobi (1804-1851) e Gauss. Um de seus mais famosos textos 6 Para mais detalhes sobre o papel de Bolzano na história da análise matemática, recomendamos a leitura de Jarník (1981) e Rusnock e Kerr-Lawson (2005). 60 ROSA LÚCIA SVERZUT BARONI • SÍLVIO CÉSAR OTERO-GARCIA (Abel, 1824) é o que prova a impossibilidade de resolver a equação geral do quinto grau por meio de radicais – um problema que tinha ocupado matemáticos como Rafael Bombelli (1526-1572), Viète e Paolo Ruffini (1765-1822) (Eves, 2004; Burton, 2011). Durante o período de sua viagem, Abel escreveu vários artigos sobre convergência de séries, trazendo grande contribuição à ten- tativa de definir de forma precisa esse conceito. Isso o coloca como um dos precursores, junto com Cauchy, da defesa de que algo de- veria ser feito para fundamentar a Matemática em “bases sólidas e rigorosas”. É sobre esse aspecto de Abel que vamos discorrer. Em março de 1826, numa carta a seu professor Christopher Hansteen (1784-1873), ele manifestava sua intenção de “trazer mais luz à vasta escuridão que, sem dúvida, existe na análise” (Abel, 1902, p.21).7 Dizia ainda que pouquíssimos teoremas ha- viam sido provados com rigor convincente, e que em todo lugar ele encontrava métodos imprecisos que concluíam do particular para o geral. Também numa carta a seu amigo Bernt Michael Holmboe (1745-1850), ele tece críticas à falta de fundamentação nos estudos das séries infinitas e questiona, por exemplo, o fato de que vários resultados eram aplicados a essas séries como se fossem finitas (di- ferenciação, multiplicação, divisão etc.) (Stubhaug, 2002). Além disso, pontuava: Nós podemos deduzir qualquer coisa que quisermos quando as usamos [séries divergentes], e elas têm feito muito dano e cau- sado muitos paradoxos. Você pode pensar em algo mais terrível do que dizer que 0 1 2 3 4n n n= − + − + etc. quando n é um inteiro positivo. Meus olhos têm sido abertos da forma mais espantosa; de fato quando você excetua os casos simples, por exemplo, as séries geométricas, dificilmente existe em toda a matemática uma única série infinita cuja soma tenha sido determinada de maneira rigo- rosa. Em outras palavras a parte mais importante da matemática 7 Alle mine Kræfter vil jeg anvende paa at bringe noget mere Lys i det uhyre Mørke som der uimodsigelig nu tindes i Analysen. ASPECTOS DA HISTÓRIA DA ANÁLISE MATEMÁTICA... 61 está sem uma fundamentação. Muito disso está correto, é verdade, e é muito estranho. Eu tentarei encontrar as razões para isso. (Abel, 1902, p.16)8 Nessa mesma carta, ele diz que encontrou uma prova rigorosa da convergência de ( ) ´ / 2 ´́x x x xϕ α ϕ αϕ α ϕ+ = + + + no Resumé de Cauchy (1823). Figura 12 – Carl Gustav Jakob Jacobi e François Viète Essas críticas de Abel mostram que ele apontava fraquezas nos argumentos de seus contemporâneos, como Cauchy e Gauss. Em algumas de suas cartas, anuncia que publicaria alguns pequenos ar- tigos sobre essas questões, entretanto, sua morte prematura o impe- 8 Man kan faae frem hvad man vil naar man bruger dem, og det er dem som har gjort saa megen Ulykke og saa mange Paradoxer. Kan der tænkes noget skrækkelige[re] end at sige at 0 1 2 3 4n n n= − + − + etc hvor n er et heelt positivt Tal. Risum teneatis amici. Jeg har i det