127 ALGUNS FUNDAMENTOS DE ORGANIZAÇÃO DO CURRÍCULO PARA A ESCOLA DEMOCRATIZADA: PISTAS HISTÓRICAS E PERSPECTIVAS NECESSÁRIAS1 Sebastião de Souza LEMES2 Sueli Ap. Itman MONTEIRO3 Ricardo RIBEIRO4 RESUMO: Tendo por pressuposto que a trajetória do processo de democratização da escola brasileira encontra-se em evidência e em um momento sem retorno, a reflexão sobre seu modelo torna-se necessária e de inadiável pertinência. Apresenta alguns elementos pontuais de trajetória histórica, voltados para circunstâncias e momentos, que estabeleceram marcos importantes na construção do currículo escolar no Brasil e direcionaram a mentalidade do fazer pedagógico. O pensamento democratizante se faz presente de forma constante, porém, ainda hoje, encontra-se de forma inconclusa no meio acadêmico e fragilizado teoricamente no cotidiano da escola. Nessa trajetória de grande complexidade o essa questão começa revelar, por alguns traços, suas possibilidades para superação de um modelo institucional em estado de esgotamento. PALAVRAS-CHAVE: Escola democrática. Currículo. Modelo de escola. Traços na história A escola democratizada5 pressupõe condições de acesso a todos os cidadãos e a permanência deles, pelo menos, durante o período equivalente ao da escolarização básica. Essa instituição, nos moldes tradicionais nos quais está estabelecida, não dispõe de instrumental, estrutura ou mesmo recursos suficientes para tanto. Por isso, a organização curricular deverá ter uma conformação adaptada a essa condição. A escola democratizada, no momento, é algo ainda a se alcançar apesar de já se ter muito a defender. Nesse sentido, é preciso que se compreenda a necessária flexibilidade da organização curricular de forma que seja adequada aos desafios que serão postos para essa trajetória na sua complexidade e circunstancialidade.                                                              1 Texto originalmente elaborado para apresentação didática em concurso público de efetivação como docente na disciplina de Teoria e Prática do Currículo, no Departamento de Ciências da Educação agora reescrito e atualizado pelas pesquisas desenvolvidas no Grupo de Estudos denominado Incubadora de Gestores. 2 UNESP – Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências e Letras - Departamento de Ciências da Educação. Araraquara – SP – Brasil. 14800-901 – sslemes@uol.com.br 3 UNESP – Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências e Letras - Departamento de Psicologia da Educação. Araraquara – SP – Brasil. 14800-901 – suitman@terra.com.br 4 UNESP – Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências e Letras - Departamento de Ciências da Educação. Araraquara – SP – Brasil. 14800-901 – despertarosol@gmail.com 5 Esse termo é aqui empregado no sentido de que temos uma escola democrática em construção, ou seja, estabelecida por marco legal, mas ainda não a temos de fato, no cotidiano de nossas instituições. 128 Desde o século XVI, a educação jesuítica instituída no Brasil manteve-se arraigada profundamente em princípios de caráter elitista, reducionista e etnocêntrico, tanto no que se refere ao sistema de ensino como à mentalidade de seus principais atores. Orientada pelo Ratio Studiorum,6 imprimiu a marca do pensamento educativo inaciano na educação brasileira por mais de duzentos anos. No século XVIII – momento caracterizado pela subordinação da educação ao estado –, a Reforma Pombalina provocou uma ruptura brusca com esses princípios e colocou a educação a cargo do estado. Este, por sua vez, não apresenta nenhuma alternativa efetiva para o processo em curso. Foram mais de 50 anos de decadência, atraso e precariedade na educação básica brasileira. Com a vinda da família real para o Brasil, o rompimento com a escolástica jesuítica foi concluído, porque as necessidades eram, então, outras e imediatas, principalmente as relativas à formação dos quadros para o serviço público e às profissões liberais. Com a República (século XIX), novamente a educação volta a ser colocada em uma perspectiva mais ampla para que atinja um espectro maior da população. Ainda assim, questões de ordem política e institucionais são prioridades para os governos que pouco fazem pela educação básica no sentido de que fosse oferecida para toda a sociedade. No início do século XX, um momento histórico e politicamente diferente, o movimento acadêmico que ficou denominado como Novista7 expôs, pela perspectiva de seu ideário, preocupações com a organização do currículo no processo de escolarização. Isso ocorreu quando, liderado por Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo e M. B. Lourenço Filho, a partir dos fundamentos propostos por Dewey (1959) e Kilpatrick (1918), promoveu reformas educativas em diversos estados brasileiros. Na ocasião, os primeiros questionamentos eram dirigidos aos processos de escolarização da época para contestar, principalmente, seu caráter reprodutivista etnocêntrico. No entanto as reformas propostas por esse ideário ocorreram em um período político desfavorável a esses princípios – décadas de 1920 e 1930 – e, por isso, tiveram grandes dificuldades para serem levadas adiante na sua totalidade. O movimento praticamente se extinguiu em 1932, com a publicação do “Manifesto dos Pioneiros”. Na década seguinte, já na época de pós-guerra, um grupo de trabalho foi organizado para elaborar o anteprojeto de lei que viria ser a primeira lei de diretrizes e bases da educação brasileira. O pensamento democratizante era absoluto e favoreceu esse posicionamento frente à questão educacional. Ocorreu, porém, que Francisco Campos foi indicado para substituir Anísio Teixeira na secretaria da cultura do Distrito Federal e, com                                                              6 “A Razão de ser dos estudos da Companhia de Jesus”, primeiro documento corporativo significativo publicado em 1599, com toda a orientação de conduta para o processo educativo proposto por Inácio de Loyola (PACHTLER, 1887). 7 Também denominado de Movimento da Escola Nova no Brasil. 129 isso, o ideário reformador da escola nova cedeu lugar ao pensamento educacional desenvolvimentista, que não efetivou a esperada renovação científica da educação brasileira (ZOTTI, 2004). Apesar disso, os apelos para a democratização do processo de escolarização, mesmo que por diferentes caminhos, continua permeando a educação básica. Com base na Constituição liberal e democrática de 1946 e nos princípios educacionais defendidos pelo Grupo dos Pioneiros da educação nova, a escolarização, no início dos anos 60, desenvolveu-se sob regras institucionalizadas por processos democráticos inspirados em doutrinas sociais estabelecidas a partir de princípios de liberdade do século XX (FAZENDA, 1985, p.40). Com efeito, nesse momento, os embates se estabeleceram entre aqueles que faziam a defesa da escola pública e os que defendiam a iniciativa privada no ensino. Estes eram liderados pela Igreja Católica que contava, à época, com o apoio do presidente Juscelino Kubistchek. Entre o declínio do movimento reformador do pensamento novista, a partir dos anos 30, e a reforma efetiva que ocorreu nos anos 60, algumas outras reformas educacionais foram feitas; a última delas culminou na primeira lei de diretrizes e bases da educação brasileira (BRASIL, 1961). Essa lei possibilitou que se aprofundassem os debates e a busca de argumentos que defendessem a necessidade da democratização da educação básica. Concebida e gestada durante 12 anos no Congresso Nacional, foi regulamentada pelo governo militar no período posterior a 1964. Como não poderia ser diferente, essa regulamentação descaracterizou seus princípios democráticos e promoveu diretrizes pertinentes às novas características do poder instituído e em conformidade com os acordos internacionais firmados na época, entre eles, o MEC/USAID,8 em 1965, que firmou o convênio de assessoria e cooperação entre o Brasil e os EUA na área educacional. Importa destacar que os Estados Unidos promoviam, então, reestruturações em seus sistemas de ensino, tratando-os, do ponto de vista da organização curricular, como Ordenamento Hierárquico da Informação e a organização da aula, como Planejamento Independente de Lições Individuais (POPKEWITZ, 1997, p.63). Essas mudanças no processo de escolarização – com foco na gestão – refletiam a opção dos Estados Unidos por uma orientação weberiana na organização da escola, o que significou que ela passou a ser vista como uma organização burocrática; portanto a administração, no sentido de gerenciamento organizacional, aumentou o controle sobre os                                                              8 MEC/USAID é a sigla de um acordo que incluiu uma série de convênios realizados a partir de 1964, durante o regime militar brasileiro, entre o Ministério da Educação (MEC) e a United States Agency for International Development (USAID). Os convênios, conhecidos como acordos MEC/USAID, tinham o objetivo de implantar o modelo norte-americano nas universidades brasileiras por meio de uma profunda reforma universitária. 130 processos ali desenvolvidos.9 Essa opção favoreceu significativamente a receptividade à influência da tecnologia e dos meios de comunicação, fortalecendo os argumentos pela democratização da educação. Apesar disso, a ótica gerencial impunha certa divisão de poderes com os setores acadêmico e pedagógico em relação à estrutura e à organização curricular na escola com vistas à eficiência institucional. Em 1964, houve um momento de ruptura política que levou o estado brasileiro a uma completa reestruturação dos aparelhos políticos, então, sob nova ordem institucional. Além disso, os acordos estabelecidos na Carta de Punta Del Leste,10 em 1961, mostraram, de forma clara, a forte influência norte-americana nos processos educativos dos países da América Latina, “embora de forma implícita, constituíram-se em modelos para remodelação do ensino [...] que acabaram por isolar a educação do contexto global da sociedade, embotando todo o sistema educacional” (FAZENDA, 1985, p.68). Contudo o regime instalado, pela sua natureza, regulamentou a legislação de 1961, suprimindo e alterando princípios de liberdade e democracia estabelecidos seja por atos de regulamentação à legislação, seja por atos institucionais que lhes atribuíam prerrogativas e poderes autoritários e antidemocráticos.11 Como resultado desse fechamento do processo democrático no Brasil, o país ficou isolado das demandas políticas, acadêmicas, sociais e intelectuais do resto do mundo, exceto em relação aos Estados Unidos, cujos acordos eram respeitados e, em certos casos, ampliados. Importa destacar que, na Europa, principalmente na Inglaterra e França, os anos 60 foram férteis de movimentos e ações contestadoras do pensamento ortodoxo sobre o conhecimento produzido no paradigma etnocêntrico. O pensamento da Nova Sociologia da Educação, na Inglaterra, e a Teoria da Reprodução, na França, lideraram os movimentos de contestação e deram o tom das argumentações que sustentam essas críticas. Esse período, apesar dos focos de resistência, perdurou, de fato, até os anos 1980, quando a chamada redemocratização do país, promovida de maneira lenta e gradual, consolidou a abertura política do regime e o retorno do país ao contexto internacional dos                                                              9 Ver, sobre essa questão, o trabalho de Lady Lina Traldi (1966) publicado no Brasil, pela UnB. Sua obra, Reconstrução do currículo, apresenta uma concepção significativamente ampla do termo e a sustenta por uma consistente argumentação weberiana na qual a instituição é tratada como uma organização burocrática, e seu controle é essencialmente administrativo. 10 Na Carta de Punta del Leste (CARTA..., 1961), foi estabelecido um amplo programa de auxílio financeiro internacional que envolveu a América Latina, conhecido por Aliança para o Progresso. Para ter acesso a tais auxílios, os países latino-americanos teriam de elaborar programas nacionais de desenvolvimento que contemplassem tanto projetos ligados ao desenvolvimento econômico, quanto propostas nas áreas de reforma agrária, habitação, educação e saúde. 11 Além de alguns atos institucionais, o acordo MEC-USAID, a Lei da Reforma Universitária (BRASIL, 1968) e a Lei de Diretrizes e Bases do Ensino de Primeiro e Segundo Graus (BRASIL, 1971) foram instrumentos significativos para o controle autoritário, pelo regime, das ações pedagógicas e acadêmicas desenvolvidas nas escolas e na universidade brasileira neste período. 131 povos democráticos no mundo. Em 1988, esse processo foi concluído com a promulgação da nova Constituição. Os efeitos dessa redemocratização foram observados nas propostas legislativas apresentadas ao congresso para a área educacional e nos debates que se estabeleceram a partir de então até o ano 1996. A herança institucional e os debates inconclusos O resultado dos debates foi a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL, 1996), que instituiu a democratização do ensino para a educação básica; porém o cenário político institucional mostrou um ambiente de debates intensos e morosos até a sua efetiva implementação. Iniciava-se, então, uma das reestruturações mais amplas e complexas da história da educação brasileira que tinha como um dos seus maiores desafios a construção de uma escola pública, laica e democrática. Nos pequenos nichos de discussão sobre a dimensão desse processo, não raros eram os momentos em que se observava, subjacente ao discurso meritocrático em defesa da qualidade da escola, a sutil desqualificação de um processo escolar igual para toda sociedade. Azanha (1990-1991, p.23), em um desses raros e brilhantes momentos de argumentação em defesa dessa democracia, diz que: Quase sempre os estudos disponíveis são muito mais julgamentos ideológicos do que descrições confiáveis sobre as alterações da vida escolar provocadas pelos movimentos reformistas. No entanto, sabe-se que é no interior das salas de aula que se decide o destino de políticas e reformas educacionais. Até mesmo a decisão política de democratizar o ensino de 1º grau, pela abertura ampla de vagas, acabou muito comprometida, nas duas últimas décadas, pela resistência oferecida pelo magistério ao ingresso maciço de uma clientela até então afastada da escola. Essa resistência, que muitas vezes se traduziu numa elevação das taxas de reprovação, é um exemplo de como há necessidade de estudos sobre os modos pelos quais reformas e políticas educacionais modificam padrões de trabalho vigentes nas escolas ou são anuladas por eles. Essa argumentação mostra claramente que, além das dificuldades técnicas e pedagógicas entre outras, há um obstáculo dissimulado na cultura escolar que é a mentalidade meritocrática predominante. Seguindo suas convicções, Azanha (1990-1991, p.28) afirma que “[...] democratizar a educação escolar implica uma democracia plena enquanto regime político [...] não se poderia, na atualidade, limitar sua aplicação a uma parcela da sociedade 132 como na Grécia antiga onde a vida democrática era privilégio de alguns.” E conclui: “não se democratiza o ensino reservando-o para uns poucos sobre pretextos pedagógicos.” Os pressupostos norteadores da concepção de democracia colocam-na como um conceito inconcluso e de grande dificuldade para sua realização. Desde o pós-guerra, esse conceito tem sido amplamente debatido, a ponto de Azanha (1979, p.93) destacar a afirmação de Gerth e Wright Mjlls (1973) de que “a palavra Democracia, em especial quando usada na moderna competição propagandística, passou, literalmente, a significar todas as coisas, para todos os homens.” Assim posta, a observação elimina qualquer tentativa de se ter claro o significado do termo; apesar disso, reflete uma característica da situação histórica na qual o prestígio da posição democrática é tão grande que o termo “democracia” e seus derivados se transformaram em elemento indispensável a qualquer esforço ideológico de persuasão político-social. Isso já se havia revelado num simpósio promovido pela Unesco em 1948, no qual se discutiram os “conflitos ideológicos acerca da democracia” (CARVALHO, 2010, p.105). Nesse sentido, naquele momento, as diferenças afloradas com radicalidade sobre o seu significado e consequente implicações, convergiram para um ponto que refletia a necessária valorização do denominado ideal democrático. Azanha (apud CARVALHO, 2010, p.106, grifo nosso) conclui sobre isso afirmando que “é essa unanimidade na superfície e essa divergência profunda acerca do significado de democracia que tomam muito difícil o esclarecimento da noção derivada de ensino democrático”. Com base nessa dificuldade, procurou-se, sem a pretensão de exaurir o conceito, uma concepção adequada e atualizada para democracia e para escola democrática. Para tanto, assumiu-se a concepção de democracia radical apresentada por Torres (2003, p.81): “[...] a democracia radical vai além das tentativas de evitar formas de exclusão que impeçam a participação política e social dos cidadãos. Essa democracia prega e defende igualdade radical nas interações racial-étnicas, de classes e de gênero.” Pensar a escola democrática nessa linha de reflexão impõe certa convergência para o âmbito da educação escolar e, para Bernstein (1996), a educação é um bem público e tem um papel central na produção e reprodução das injustiças sociais. Considerando ainda os pressupostos sociais dos sistemas de ensino e do próprio processo de aprendizagem, esse autor afirma que a escola, para cumprir esse papel, deverá garantir três direitos: o do desenvolvimento pessoal, que opera no nível individual; o social, que diz respeito ao direito de ser incluído, diferentemente de ser absorvido apenas, e que compreende a ideia de autonomia; por fim, o político, que incorpora a possibilidade de participação na construção, manutenção e/ou nas mudanças na ordem social. Bernstein (1996, p.8) conclui sua discussão 133 dizendo que “é altamente provável que os estudantes que não recebem esses direitos na escola tenham origem em grupos sociais que não recebem esses direitos na sociedade.” É por essa ótica que uma sociedade verdadeiramente democrática deve interpretar o processo de escolarização. Sacristán (2001) em uma aparente proposição contraditória, apresenta e afirma que uma escola democratizada é uma escola plural, inclusiva e obrigatória Nesse contexto, continua esse autor, a escolaridade obrigatória faz parte da realidade social e se transformou em uma dimensão essencial para caracterizar o passado, o presente e o futuro das sociedades, dos povos, dos países, das culturas e dos indivíduos. É assim que a escolarização obrigatória se constitui em um projeto humanizador que reflete a perspectiva do progresso dos seres humanos e da sociedade. Um projeto otimista que, ao apoiar-se nos valores da racionalidade e da democracia, eleva a condição humana. Na democracia atual, o potencial mais significativo que a educação escolar desempenha para todos é o da inclusão. Diante disso, pode-se afirmar que, enquanto a desigualdade significa distâncias entre uns e outros, a exclusão supõe um distanciamento irrecuperável e, portanto, a condenação do excluído à degradação na categoria de renegado. É dessa maneira que, na verdadeira democracia, o processo de escolarização é elevado à condição de direito social e universal de todo cidadão. A educação assim concebida não pode ser negada a ninguém. Essa é a concepção de democracia radical que orienta a concepção de escola democrática. No caminho para o currículo Para atender a essas demandas, há que se considerarem as necessárias transformações pelas quais o currículo escolar deverá passar enquanto trajetória complexa de formação. Bonamino e Brandão (1995), ao discutirem essa questão por uma perspectiva reflexiva e problematizadora, detectam uma grande complexidade nos fundamentos e debates que se apresentam para dar sustentação aos conceitos e, com efeito, inúmeras dificuldades para sua implementação adequada. Nesse texto, as autoras apresentam um debate que envolve uma argumentação “pendular” permanente sobre o assunto no Brasil. Afirmam que se dará certa tensão nos argumentos que sustentam os prós e os contras relativos, de um lado, ao Currículo Unitário e o Currículo Plural de outro. Contudo, tecnicamente, as definições e concepções de currículo se estendem por um amplo espectro de acepções que vão do “produto amorfo de gerações e remendões” (KELLY, 1981, p.3), passando por programas de atividades a serem cumpridos pelos alunos em seu curso na escola e chegando a “toda aprendizagem planejada e 134 guiada pela escola seja ela ministrada em grupos ou individualmente, dentro ou fora da escola” (KELLY, 1981, p.6). Na primeira LDB (BRASIL, 1961) – 4024/61 –, o termo currículo é utilizado referindo-se à organização do conjunto de disciplinas a serem desenvolvidas nas escolas; assim o concebe como Matriz ou Grade Curricular (ZOTTI, 2004) Bonamino e Brandão (1995), ao mostrarem diferentes influências recebidas pelos debates sobre a questão do Currículo, evidenciam inconsistências teóricas e as discutem à luz das necessidades da escola atual. Apresentam, por suas perspectivas pendulares de análises, o multiculturalismo se opondo ao etnocentrismo, que pode, por sua vez, gerar um novo etnocentrismo pelo confinamento cultural de determinados grupos. Até certo ponto, opõem- se, em tese, à necessidade de uma educação inter/multicultural sustentada por Stoer (2008) para a escola democrática, cuja concepção tem o foco na questão da pluralidade cultural e na educação da diferença a partir da recontextualização pedagógica. Diante das incertezas produzidas por tal complexidade e sua consequente fragilidade paradigmática, as necessidades da escola atual têm sido tratadas por ações que tangenciam o seu cerne. É fundamental o aprofundamento das reflexões sobre o modelo unitário de currículo, do qual a escola tradicionalmente se apropriou, que, já há algum tempo, dá sinais evidentes de seu estado de esgotamento frente às exigências das demandas impostas pela democratização institucional. Ao mesmo tempo, esse esgotamento se acelera impulsionado pelas crises paradigmáticas por que passam os conhecimentos universais até então hegemônicos no processo de escolarização (LEMES, 2003). As dificuldades que se apresentam para o currículo em uma escola democratizada têm sido ampliadas por entraves vindos de políticas públicas que precisam atender demandas de realidades tão diferentes quanto complexas. Tais demandas avançam em um continum crescente quantitativa e qualitativamente. Buscando oferecer sugestões concretas, embora dentro da concepção problematizadora na qual propõem discutir a questão, Bonamino e Brandão (1995) afirmam que a organização curricular deverá considerar a construção de núcleos curriculares básicos que articulem, com um projeto educativo, as categorias: saber, político-social, cultural, epistemológica e pedagógica. Essa construção estaria sustentada pela reflexão escola-sociedade na perspectiva político social; assim, os núcleos de saberes formadores constituiriam um suporte epistêmico universal que consideraria a expressão das experiências culturais e individuais do sujeito que aprende. Essas seriam as bases dos conteúdos escolares democratizados e os eixos da construção dos currículos. É a referência nuclear que possibilita as reflexões pela ótica epistemológica, daí a concepção de “conceitos nucleares” e de “nuclearidade curricular”. 135 Esses princípios, segundo as autoras, apresentam uma pauta epistemológica de reflexão nessa linha, com consciência de sua insuficiência, mas legítima enquanto princípio e como um primeiro passo. Nessa etapa, encontram-se pistas sobre a estruturação e/ou organização dos conteúdos; é, pois, o momento para a discussão de algumas formas possíveis para sua efetividade. A adequação, a participação e a flexibilização curricular se mostram como essenciais para o currículo na escola democratizada. A adequação diz respeito tanto à realidade local/regional quanto à forma de aplicação de suas ações pedagógicas, isto é, a dimensão cultural como instrumento de regulação da dinâmica curricular. Acrescenta-se que as orientações para esses procedimentos estejam claras em um projeto pedagógico e educativo que atenda às necessidades e demandas dessa realidade para a escola. A partir de então, resta a busca de uma forma adequada de utilização do tempo e dos procedimentos do fazer pedagógico para que se tenha, de fato e democraticamente, a produção e a disseminação do conhecimento em si. Os marcos, legal e institucional, apontam- nos para os elementos estruturais dessa escola nesse momento: o acesso e a permanência de toda a sociedade em idade escolar, pelo menos, na totalidade do período de escolarização básica. O acesso em si impõe a universalização desse nível de ensino, e os indicadores atuais mostram que o caminho está sendo percorrido. Quanto à permanência qualificada, parece ter avançado significativamente a partir da inversão vetorial da direção e do sentido observado no processo: da trajetória sempre descrita partindo do ensino, tem-se, agora, o foco no desenvolvimento e na aprendizagem. Independentemente de outras possibilidades em andamento, os ciclos plurianuais têm sido notadamente assumido pelos diferentes sistemas de ensino, e penso que essa forma de tratar o processo escolar têm muito a oferecer para a qualificação da referida permanência. Acredito que compreender, com amplitude e profundidade, o pensamento de Perrenoud (2004) seja fundamental, pois esse autor enumera e discute com propriedade e algumas razões para que se empreguem os ciclos plurianuais de aprendizagem. São elas: (a) etapas mais compatíveis com as unidades de progressão das aprendizagens; (b) um planejamento mais flexível das progressões, uma diversificação das trajetórias; (c) uma maior flexibilidade quanto ao atendimento diferenciado dos alunos, em diversos tipos de grupos e dispositivos didáticos; (d) uma maior continuidade e coerência, ao longo de vários anos, sob a responsabilidade de uma equipe e, por fim, (e) objetivos de aprendizagem incidindo sobre vários anos, constituindo pontos de 136 referência essenciais para todos e orientando o trabalho dos professores. (PERRENOUD, 2004, p.14). Conforme esse autor, os ciclos, durante o seu desenvolvimento, irão produzindo uma espécie de individualização dos percursos de formação e ritmo dos sujeitos envolvidos. Ressalta, no entanto, que não se trata de individualizar o ensino, mas sim, os percursos de formação. Nesse sentido, e em uma compreensão mais ampla dessa questão, observa-se também uma mudança paradigmática. Essa proposta contempla uma necessidade intrínseca do trabalho conjunto e participativo dos envolvidos no processo: alunos, professores, diretores, coordenadores pedagógicos etc. Nesse contexto, deve-se considerar a possibilidade da proposta apresentada e desenvolvida por Hernández e Montserrat (1998), que construíram a estrutura do currículo a partir de projetos de trabalho em Barcelona. Tal como nos postulados de Dewey (1959) e Kilpatrick (1918),12 para Hernández e Montesserrat (1998) também o ponto de partida é a necessidade de mudança. Importa, contudo, ressaltam ainda, que a inovação venha de reflexões e discussões pedagógicas originadas nas necessidades reais vivenciadas em suas práticas. Ou seja, os projetos surgem como respostas às situações problema observadas no cotidiano educativo. O fluxo,13 a seguir, ilustra o percurso. Frente ao exposto, verificamos que o processo de escolarização, no momento em que se pretende compreendê-lo, de fato, é significativamente maior e mais complexo do que o                                                              12 As discussões apresentadas por William H. Patrick, orientando de J. Dewey à época, posicionavam-se criticamente em relação à forma como a educação tradicional trava a formação dos jovens e, além disso, apresentavam-se como alternativa a ela naquele momento. 13 O fluxo apresentado foi adaptado do quadro proposto por Hernández e Montserrat (1998, p.28). Necessidade real do cotidiano. Revisão dos fundamentos Aproximação ao Campo do Currículo Desenvolviment o dos Projetos Projeto Curricular Novas necessidades de aprofundamento ou adequação 137 percebemos. Os recortes e reducionismos provocados pela mentalidade instalada, a partir do pensamento tradicional de ensino e de escolarização, impõem tais concepções e, com isso, impedem, não só no momento atual, mas também durante grande parte de sua história, que se conheça sua essência educativa, política, cultural e social criticamente e em toda sua amplitude e profundidade. Assim, longe de se estar propondo a solução para tais questões, mas considerando a legitimidade do princípio, talvez, mais um passo nesse sentido, esse é, hoje, o nosso maior desafio.   SOME FOUNDATIONS OF ORGANIZATION OF THE CURRICULUM FOR DEMOCRATIZED SCHOOL: HISTORICAL CLUES AND NECESSARY PERSPECTIVES ABSTRACT: Taking for granted that the trajectory of the process of democratization of Brazilian school is in evidence and in a moment of no return, thinking about your model becomes necessary and urgent relevance. Presents some specific elements of historical course, facing circumstances and moments that established milestones in the construction of the school curriculum in Brazil and directed the mentality of the pedagogical. The thought is present democratizing steadily, but still, is so inconclusive in academic and theoretically fragile in the school routine. Along the way the great complexity of this issue begins to reveal, for some traits, their chances for overcoming an institutional model in a state of exhaustion. KEYWORDS: Democratic school. Curriculum. School model.     REFERÊNCIAS AZANHA, J. M. P. A democratização no ensino como expansão de oportunidades. 1979. Comunicação oral apresentada no 31. Congresso Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, Fortaleza, 1979. ______. Cultura escolar brasileira. Revista USP, São Paulo, n.8, p.37-40, dez./jan/fev. 1990- 1991. BERNSTEIN, B. Pedagogy, symbolic control and identity: theory, research, critique. 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