UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS AURO HADANO TANAKA MULTAS EM TUTELAS JUDICIAIS DE URGÊNCIA CONTRA OPERADORAS DE PLANOS DE SAÚDE SUPLEMENTAR FRANCA 2017 AURO HADANO TANAKA MULTAS EM TUTELAS JUDICIAIS DE URGÊNCIA CONTRA OPERADORAS DE PLANOS DE SAÚDE SUPLEMENTAR Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como requisito parcial para a obtenção de título de Mestre em Direito. Área de Concentração: Sistemas normativos e fundamentos da cidadania. Orientadora: Profª Drª Yvete Flávio da Costa FRANCA 2017 Tanaka, Auro Hadano. Multas em tutelas judiciais de urgência contra operadoras de planos de saúde suplementar / Auro Hadano Tanaka. – Franca : [s.n.], 2017. 277 f. Dissertação (Mestrado em Direito). Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências Humanas e Sociais. Orientadora: Yvete Flávio da Costa. 1. Direitos fundamentais. 2. Planos de saúde. 3. Tutela antecipada. 4. Astreinte. I. Título. CDD – 341.4 AURO HADANO TANAKA MULTAS EM TUTELAS JUDICIAIS DE URGÊNCIA CONTRA OPERADORAS DE PLANOS DE SAÚDE SUPLEMENTAR Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como requisito parcial para a obtenção de título de Mestre em Direito. Área de Concentração: Sistemas normativos e fundamentos da cidadania. BANCA EXAMINADORA Presidente:__________________________________________________________ Profª Drª Luciana Lopes Canavez 1ª Examinadora:_____________________________________________________ Profª Drª Elisabete Maniglia-Unesp/FCHS 2º Examinador:______________________________________________________ Prof. Dr. Antonio Marcio da Cunha Guimarães-PUC/SP Franca,_____de__________________de 2017. Dedico este trabalho à minha família da terra, dos irmãos de sangue e de espírito, que têm me acompanhado nesta jornada, e à minha família espiritual, dos irmãos eternos que jamais me abandonaram. AGRADECIMENTOS Agradeço aos professores da Universidade Estadual Paulista pela oportunidade de adquirir um pouco de seu conhecimento, em especial ao professor David Rubio, que me forneceu uma nova visão sobre os Direitos Humanos. Meus sinceros agradecimentos aos professores Luciana Lopes Canavez, Elisabete Maniglia, Antonio Marcio da Cunha Guimarães, Peterson de Souza e Alfredo José dos Santos, por terem aceitado o convite para participar das minhas bancas de qualificação e avaliação final, por suas valiosas orientações que ajudaram a melhorar a qualidade do trabalho. A minha mãe, que me acompanha desde o início dos meus passos nesta seara do Direito, a meu pai, que acompanha o fim desta jornada em outros planos, sem os quais eu não estaria aqui. Agradeço ao pessoal da secretaria do curso, que sempre procurou atender prontamente aos meus pedidos, que não foram poucos. Por fim, não poderia deixar de agradecer à minha orientadora, professora Yvete, que mesmo diante de tantas adversidades pessoais e problemas de saúde, se doou e encontrou forças para me orientar e foi fundamental na conclusão deste mestrado. TANAKA, Auro Hadano. Multas em tutelas judiciais de urgência contra operadoras de planos de saúde suplementar. 2017. 262 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2017. RESUMO A dissertação faz uma breve análise sobre a estrutura da fixação e execução das astreintes como instrumento garantidor da eficácia das tutelas de urgência emanadas em demandas judiciais envolvendo a recusa na prestação de serviços por parte de empresas operadoras de planos de saúde suplementar. Trata-se, pois, de importante ferramenta de garantia de um direito garantido constitucionalmente: a saúde. A ineficiência do Estado em provê-la, ainda que minimamente, só fez aumentar a procura por serviços de saúde suplementar, os quais, embora recebam contraprestação para tanto, vêm ao longo dos anos diminuindo consideravelmente a qualidade dos serviços e ocasionando com isso aumento exponencial de ações judiciais contra as operadoras de planos de saúde. Referidas ações buscam garantir a cobertura de despesas com medicamentos, tratamentos médicos hospitalares e até mesmo internações de urgência, situações que colocam em risco a saúde e a vida dos segurados. A fixação de multas (astreintes), como instrumento de coerção para o cumprimento das ordens judiciais de urgência, não têm sido suficientes para forçar o cumprimento das decisões. Ainda que o Código de Processo Civil de 2015 tenha autorizado a execução provisórias dessas multas, é necessário observar alguns critérios importantes no momento sua fixação e de sua execução, a fim de torna-las eficientes instrumentos de garantia dos direitos dos cidadãos e de uma ordem social mais justa. Palavras-chave: direitos fundamentais. efetividade. exigibilidade. tutela de urgência. plano de saúde. execução. astreintes. TANAKA, Auro Hadano. Multas em tutelas judiciais de urgência contra operadoras de planos de saúde suplementar. 2017. 262 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2017. ABSTRACT The dissertation makes a brief analisys about the structure of the establishment and execution process of the astreintes as an enforcer instrument of the urgent relief issued in judicial procedures involving the refusal to render services by the supplementary health care providers. This is an important tool to guarantee a constitutional right: health. The State has been inefficient to provide the minimum conditions of public health services, and that has increased the search for supplementary health services. Thus, even against insurance premiums payments for rendered services, there has been a declining in the quality of the supplementary health care providers services, that has caused an exponential increase of law suits numbers against supplementary health care providers claiming the payment of expenses with remedies, medical and hospital treatments and even urgent hospitalizations, placing at risk the life and health of the insured persons. The establishment of fines (astreintes), as a coercion instrument to force the compliance of the urgent relief orders has not being enough to make these decisions to be obeyed. Even though the Civil Procedure Code of 2015 has authorized the provisory execution of theses fines, it is necessary to observe some important issues in the moment that they are being settled and by the time of its execution, in order to make them important instrument of guarantee of the citizens’ rights e of a more just social order. Keywords: fundamental rights. effectiviness. collectability. injunctive relief. health plan. enforcement. astreintes. LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 1 - Evolução do índice médio de reclamações das Operadoras de Saúde de Grande Porte (março/13 – fevereiro/15)......................... 86 Gráfico 2 – Evolução do índice médio de reclamações das Operadoras de Saúde de Médio Porte (março/13 – fevereiro/15)........................... 87 Gráfico 3 – Evolução do índice médio de reclamações das Operadoras de Saúde de Pequeno Porte (março/13 – fevereiro/15)...................... 87 LISTA DE QUADROS Quadro 1 – Resumo da posição do STJ sobre a possibilidade de execução provisória das astreintes fixadas em tutela antecipada.................. 138 Quadro 2 - Tempo de demora nos julgamentos em 1º grau na Justiça Estadual no Brasil........................................................................... 140 Quadro 3 - Tempo de demora nos julgamentos em 2º grau na Justiça Estadual no Brasil........................................................................... 140 Quadro 4 - Tempo de demora nos julgamentos no STJ.................................... 141 Quadro 5 - Códigos de assuntos para peticionamento no SAJ-EST................. 142 LISTA DE TABELAS Tabela 1 - Contratos de planos de saúde novos e antigos (março/2006).......... 116 Tabela 2 - Beneficiários de planos privados de saúde por tipo de contratação do plano, segundo cobertura assistencial do plano (Brasil – set/15 – mar/17)........................................................................................... 117 LISTA DE SIGLAS ABRAMGE Associação Brasileira de Medicina de Grupo ABRASCO Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva ADI Ação Direta de Inconstitucionalidade ADPF Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental ANS Agência Nacional de Saúde Suplementar CAP Caixa de Aposentadorias e Pensões CAS Comissão de Assuntos Sociais CDC Código de Defesa do Consumidor CEJUSC Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania CEME Centro de Medicamentos CID Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde CIT Comissão Intergestores Tripartite CLPS Consolidação das Leis da Previdência Social CPC Código de Processo Civil CREMESP Conselho Regional de Medicina de São Paulo DJe Diário da Justiça Eletrônico DL Decreto Lei EC Emenda Constitucional EMI Esplanada dos Ministérios FENASAUDE Federação Nacional de Saúde Suplementar FMUSP Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo FONAJE Fórum Nacional de Juizados Especiais FUNABEM Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor FUNAI Fundação Nacional do Índio FUNDACENTRO Fundação Jorge Duprat e Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho FUNRURAL Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural HC Habeas Corpus IAPAS Instituto de Administração Financeira da Previdência Social IAPB Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Bancários IAPC Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Comerciários IAPETC Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Empregados em Transportes de Cargas IAPFESP Instituto dos Trabalhadores de Ferrovias e Serviços Públicos IAPM Instituto de Aposentadorias e Pensões aos Marítimos IBGE IDEC Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor INAMPS ILO INCA Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social International Labour Organization Instituto Nacional de Câncer INPS Instituto Nacional de Previdência Social IPASE Instituto de Previdência e Assistência dos Servidores do Estado ISSB Instituto de Serviços Sociais do Brasil LBA Legião Brasileira de Assistência LC Lei Complementar LOPS Lei Orgânica da Previdência Social MF Ministério da Fazenda MONGERAL Montepio Geral dos Servidores do Estado MS Ministério da Saúde NAT Núcleo de Apoio Técnico e de Mediação NUPEMEC Núcleo Permanente de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos OIT Organização Internacional do Trabalho OMS Organização Mundial da Saúde ONU Organização das Nações Unidas PDT Partido Democrático Trabalhista PGFN Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional PRO-RURAL Programa de Assistência ao Trabalhador Rural PROSUS Programa de Fortalecimento das Entidades Privadas Filantrópicas e das Entidades Sem Fins Lucrativos que Atuam na Área da Saúde RCPS Regulamento de Custeio da Previdência Social RFB Receita Federal do Brasil RN Resolução Normativa SAJ-EST Sistema de Automação da Justiça Estadual (SP) SAMDU Serviço de Assistência Médica e Domiciliar de Urgência SIB Sistema de Informações de Beneficiários SINPAS Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social STF Supremo Tribunal Federal STJ Superior Tribunal de Justiça SUDS Sistemas Unificados e Descentralizados de Saúde SUS Sistema Único de Saúde TJ Tribunal de Justiça TJSP TRF Tribunal de Justiça de São Paulo Tribunal Regional Federal TRT Tribunal Regional do Trabalho TST Tribunal Superior do Trabalho UFSC Universidade Federal de Santa Catarina UPF Universidade de Passo Fundo SUMÁRIO INTRODUÇÃO..................................................................................................... 16 CAPÍTULO 1 DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS..................................... 19 1.1 Importância do direito fundamental da saúde........................................... 19 1.2 Breve histórico dos direitos humanos....................................................... 19 1.3 Documentos de proteção aos direitos humanos...................................... 24 1.4 Proteção estatal dos direitos humanos..................................................... 26 1.5 Direitos humanos fundamentais................................................................. 27 1.5.1 Dimensões ou gerações dos direitos fundamentais.................................... 28 1.5.2 Efetividade e eficácia dos direitos humanos fundamentais......................... 30 1.5.3 Mudanças de paradigmas........................................................................... 31 CAPÍTULO 2 A JUSTICIABILIDADE DOS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS......................................................................... 34 2.1 Normativismo jurídico................................................................................. 34 2.2 Sociologismo jurídico................................................................................. 34 2.3 Teoria da argumentação............................................................................. 36 2.4 Teoria crítica do direito............................................................................... 37 2.5 Teoria dos princípios.................................................................................. 37 2.5.1 Princípio da dignidade humana.................................................................. 41 CAPÍTULO 3 DIREITO À SAÚDE....................................................................... 45 3.1 Conceito de saúde....................................................................................... 45 3.2 Breve histórico do direito à saúde............................................................. 47 3.3 A saúde na Constituição Federal de 1988................................................. 52 3.4 Sistema Único de Saúde – SUS (Lei n. 8.080/90)...................................... 54 3.5 Saúde e Previdência Social......................................................................... 57 3.5.1 Breve histórico da previdência social.......................................................... 57 3.5.2 A previdência no direito estrangeiro............................................................ 58 3.5.3 Previdência social no Brasil........................................................................ 61 3.5.3.1 A Previdência na Constituição de 1824................................................... 61 3.5.3.2 A Previdência na Constituição de 1891................................................... 63 3.5.3.3 A Previdência na Constituição de 1934................................................... 66 3.5.3.4 A Previdência na Constituição de 1937................................................... 67 3.5.3.5 A Previdência na Constituição de 1946................................................... 68 3.5.3.6 A Previdência na Constituição de 1967................................................... 71 3.5.3.7 Emenda Constitucional n. 01, de 1969................................................... 72 3.5.3.8 Constituição Federal de 1988.................................................................. 76 3.6 Saúde privada............................................................................................... 81 3.6.1 Breve histórico dos planos suplementares de saúde no Brasil................... 83 3.6.2 Lei n. 9.656/98 – Planos e seguros privados de assistência à saúde........ 83 3.6.3 Reclamações contra operadoras de saúde................................................ 85 CAPÍTULO 4 JUSTICIABILIDADE DO DIREITO À SAÚDE.............................. 89 4.1 Discricionariedade da Administração Pública.......................................... 89 4.2 A separação dos Poderes........................................................................... 91 4.3 A reserva do possível.................................................................................. 97 4.4 Tutela jurisdicional do direito à saúde....................................................... 100 4.5 Judicialização da saúde pública................................................................. 104 4.6 O direito do consumidor à saúde............................................................... 108 4.6.1 Função social do contrato........................................................................... 110 4.6.2 Código de Defesa do Consumidor e o equilíbrio contratual........................ 111 4.6.3 A Ciência Atuarial e os contratos de saúde suplementar............................ 112 4.6.4 A coletivização dos contratos de saúde suplementar................................. 116 4.7 Instrumentos processuais de efetividade de direitos.............................. 120 4.7.1 As astreintes............................................................................................... 121 4.7.1.2 Evolução das astreintes do Direito Brasileiro........................................... 122 4.7.1.3 Da multa dos artigos 500, 536, §1º e 537, do CPC de 2015................... 126 4.7.1.4 As astreintes e as obrigações fungíveis de acordo com os Tribunais..... 127 4.7.1.5 Da titularidade da multa........................................................................... 132 4.7.1.6 Do valor da multa..................................................................................... 135 4.7.1.7 A execução das astreintes....................................................................... 137 4.7.1.8 Dados estatísticos do TJSP sobre liminares concedidas contra operadoras de planos de saúde em 2015............................................... 141 4.7.1.9 Peculiaridades das astreintes nas ações contra operadoras de saúde... 145 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................. 149 REFERÊNCIAS.................................................................................................... 151 ANEXOS ANEXO A - Informação sobre multas em Tutelas de Urgência contra Operadoras de Planos de Saúde (TJSP)...................................... 180 ANEXO B - Petição da Associação Juízes para a Democracia para o Presidente do TJSP........................................................................ 194 ANEXO C – Modelo de contrato de planos de saúde coletivos por adesão 198 16 INTRODUÇÃO A saúde pública vem sendo objeto de atenção estatal desde a Revolução Industrial. Com o tempo, a prestação dos serviços destinados à garantia da saúde pública se mostrou ineficiente, sendo um problema enfrentado por países emergentes, como o Brasil, bem como países do primeiro mundo, como é o caso dos Estados Unidos. O Brasil é o 5º país mais populoso do mundo, e segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), conta atualmente com uma população de aproximadamente 207,7 milhões de pessoas.1 Aliado a esse fato, também é um país de dimensões continentais, o que dificulta, sobremaneira, o exercício homogêneo das políticas públicas. Ciente da própria ineficiência, o Poder Público acaba transferindo parte de sua responsabilidade para particulares, a fim de minimizar os seus encargos. Exemplo disso ocorre na área da saúde, onde o próprio texto constitucional admite a prestação de serviços por entidades privadas2, ficando a atividade sujeita à regulamentação da Agência Nacional de Saúde (ANS). Embora os serviços prestados pelas operadoras de planos de saúde suplementar não sejam prestados de forma graciosa, mas somente mediante uma contraprestação financeira por parte dos usuários, tem havido um aumento constante das reclamações administrativas junto à agência reguladora do setor (ANS), bem como de demandas judiciais, indicando que os serviços não estão sendo prestados adequadamente. Nessa área da saúde, há demandas que exigem uma solução imediata, o que é feito através das tutelas de urgência, com a fixação de multas pecuniárias diárias, para o caso de descumprimento dessas ordens, as denominadas astreintes. Essas multas estavam previstas no Código de Processo Civil de 1973, em seu artigo 461, §§ 3º e 4º, tendo sido transpostas para o novo Código de 1 PORTAL BRASIL. População brasileira passa de 207,7 milhões em 2017. Brasília, DF, 30 ago. 2017. Disponível em: . Acesso em: out. 2017. 2 Art. 199, CF: “A assistência à saúde é livre à iniciativa privada [...].” BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial de União, Brasília, DF, n. 191-A, out. 1988. Anexo. p. 1-32. Disponível em: . Acesso em: out. 2017. 17 Processo Civil de 2015 em seu artigo 497. No caso específico das tutelas de urgência contra as operadoras de planos de saúde, a ausência de menção expressa no texto legal, sobre o momento em que as multas poderiam ser exigidas dos devedores quando estes viessem a descumpri-las, culminou no surgimento de três correntes nos tribunais, inclusive no Superior Tribunal de Justiça (STJ): (i) a minoritária, a que admitia a execução imediata das astreintes; (ii) a que admitia a execução provisória das multas, e (iii) a que só admitia sua execução após o trânsito julgado da decisão que fosse favorável ao autor. Embora a prática pareça cruel, diante desse cenário, era mais benéfico para as operadoras deixar de cumprir decisões em situações em que o estado de saúde do autor fosse grave e que seu tratamento fosse muito custoso, e isso porque, caso viesse a ocorrer o seu óbito, o pedido inicial ficaria prejudicado, não havendo como continuar a cobrança da multa diária. No final, ainda que se falasse no pagamento de uma multa única a ser passada para os eventuais sucessores do falecido autor, o valor seria inferior àquele que a operadora teria de pagar para cobertura do tratamento. Essa forma de raciocinar está em consonância com a própria forma de atribuição de custos das operadoras, que se baseiam em cálculos atuariais complexos, onde a expectativa de vida dos usuários é um fator importante, e tanto que isso é verdade que há uma mudança na tabela de valores das prestações mensais com base na idade dos beneficiários. Uma solução para o problema já havia sido encontrada no Código de Processo Italiano de 1940, com as alterações introduzidas pela Lei 353/1990, que em seu artigo 282, passou a admitir a produção imediata dos efeitos das sentenças constitutivas e declaratórias de primeiro grau3, sistema esse que foi incorporado no Código de Processo Civil brasileiro de 2015. Resta saber se a possibilidade se o impacto financeiro e atuarial decorrente da execução provisórias das astreintes será suficiente para fazer com 3 Cf. Luiz Guilherme Marinoni, discorrendo sobre a questão da execução imediata das sentenças declaratória e constitutiva tratada pelo artigo 282, do Código de Processo Civil Italiano, nos esclarece: “O fato de o artigo 282 admitir, em princípio, a produção imediata dos efeitos das sentenças constitutiva e declaratória, torna o direito italiano uma fonte muito rica, em termos de direito comparado, para solução de problemas da tutela antecipatória nas ações declaratória e constitutiva.” (MARINONI, Luiz Guilherme. A antecipação da tutela. 6. ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2000a. p. 185). 18 que as operadoras de saúde mudem sua política e passem a cumprir com suas obrigações contratualmente assumidas, vindo a beneficiar não só os seus clientes, como toda a sociedade. 19 CAPÍTULO 1 EVOLUÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS 1.1 Importância do direito fundamental da saúde Embora o direito à saúde pareça ser algo evidente e inequívoco, inerente à própria essência do ser humano, o seu reconhecimento como um direito inalienável é fruto de um longo trajeto de lutas e desenvolvimento das ciências sociais. A abordagem dos direitos humanos, portanto, é essencial para o desenvolvimento do próprio tema da saúde e, consequentemente, das ferramentas jurídicas criadas para garantir a eficácia da tutela jurisdicional. Conquanto discorrer sobre os direitos humanos pareça ser algo um tanto redundante, ante a ampla discussão existente sobre o tema e em função da diversidade de diplomas legais positivaram os direitos fundamentais, mostra-se oportuno destacar que a simples previsão normativa desses direitos não é suficiente para garantir sua eficácia. Embora tenha sido grande a luta para o reconhecimento dos direitos humanos, como se verá a seguir, garantir sua efetividade e eficácia é um passo além que deve ser dado não só pelos governos, mas pela própria humanidade. O direito à saúde é um dos mais importantes dentre todos os direitos fundamentais. Compreender e desenvolver mecanismos jurídicos de garantia e efetividade de tais direitos, quer seja na esfera pública ou na privada, é imprescindível, pois somente ao transformá-lo em uma realidade concreta, acessível aos cidadãos, é que se estará promovendo a verdadeira cidadania. 1.2 Breve histórico dos direitos humanos A Idade Moderna é considerada um período de transição por excelência, cujo marco histórico inicial possui algumas divergências entre historiadores, sendo que alguns consideram como sendo 29 de maio de 1453, com a tomada de Constantinopla pelos turcos otomanos, outros como sendo a Conquista de Ceuta pelos portugueses em 1415, a viagem de Colombo ao continente americano em 1492, ou a viagem de Vasco da Gama à Índia, em 1498. Quanto ao seu término, no entanto, não há controvérsia, sendo uníssonos ao considerar a Revolução Francesa 20 em 14 de julho de 1789. Antecedendo a Idade Moderna temos a Idade Média, cujo sistema político, social e econômico predominante era o feudalismo, que tinha por base as relações servo-contratuais, com uma economia baseada na agricultura de subsistência sem existência de relações comerciais, predominando a prática do escambo. Nesse sistema os servos não possuíam direitos, cabendo aos senhores feudais o direito de vida e morte sobre eles, e todo o seu trabalho era feito meramente para garantir sua subsistência, sem a menor possibilidade de mudança de classe social, a não ser através da opção de seguir a vida eclesiástica, e a maior autoridade política era o monarca, que possuía poder absoluto, isto é, independentemente de qualquer outro órgão ou pessoa. Os poderes do estado eram concentrados exclusivamente nas mãos do soberano. Exemplo maior do poder absolutista foi Luís XIV de França, também conhecido como “Rei-Sol", a quem é atribuída a célebre frase “o Estado sou eu”. O ocaso da Idade Média coincide com a ascensão da burguesia, que passou a questionar o poder absoluto dos monarcas e, com o apoio dos trabalhadores do campo, que sofriam toda sorte de injustiças praticadas pelos senhores feudais e pelos monarcas, iniciaram uma série de revoluções conhecidas como revoluções burguesas. Na Inglaterra de 1688 e 1689 a burguesia passa dominar o Parlamento e o rei perde muitos de seus poderes, passando os lordes a ocupar um segundo plano. O passo seguinte dessa revolução na Inglaterra foi a independência das colônias americanas, proclamada em 1776, e que em 1787 se uniram para criar os Estados Unidos da América. Pouco depois, em 1789, ocorre na França um movimento semelhante, que ficou conhecido como Revolução Francesa, que é um marco histórico importante para o surgimento do conceito moderno de cidadania. O evento mais importante deste último movimento foi a Tomada da Bastilha, que consistiu na invasão da prisão da Bastilha em 14 de julho de 1789, para libertação dos presos acusados de serem inimigos do regime absolutista. A Revolução Francesa possui grande importância na sintetização da nova natureza do cidadão, e os ideais revolucionários franceses de liberdade, igualdade e fraternidade passaram a constituir a própria essência da palavra cidadão ou cidadã. A luta para uma consolidação política e social, da classe burguesa que já conquistara uma ascensão econômica, tinha nos ideais da Revolução Burguesa, 21 bem definidos na Revolução Francesa como liberdade, igualdade e fraternidade, tinham por fazer reconhecer para si uma série de direitos e prerrogativas perante o Estado, garantindo uma conquista dessa luta social. A consolidação desse pacto social, no entender de Figueiredo, a lei e o princípio da legalidade, e posteriormente a Constituição e o princípio da supremacia constitucional, tornaram-se os instrumentos jurídicos de veiculação do novo pacto social que se afirmava, recuperando a noção de “justo” da antiguidade clássica e da escolástica, desse modo, permitindo a abertura do sistema a uma dimensão ético- valorativa.1 Dalmo de Abreu Dallari esclarece que a Revolução Francesa foi um importantíssimo marco na organização social francesa e em seu sistema de governo, no entanto, tece uma crítica dizendo que embora a premissa fosse a eliminação de privilégios, pouco a pouco foi utilizada exatamente para garantir a superioridade de novos privilegiados.2 Em 1789, foi proclamada a “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, com a intenção que tal Carta de Direitos tivesse um caráter universal e estabelecesse o direito universal à liberdade e igualdade, além de outros direitos que entendiam ser fundamentais. Dallari aponta, ainda, que pouco depois esses preceitos foram esquecidos, em especial o direito à igualdade, que deixou de ser proclamada como um direito de todos, surgindo novas desigualdades, como aquelas contra as quais lutaram os revolucionários.3 Dallari menciona, ainda, diversos atos contrários aos ideais revolucionários franceses de liberdade, igualdade e fraternidade, praticados pelos próprios revolucionários após a aprovação da primeira Constituição Francesa (1791), tais como a criação da regra de que para ter participação na vida política, votando e recebendo mandato e ocupando cargos elevados na Administração Pública, era preciso ser cidadão ativo, não bastando ser apenas cidadão. Além disso, para ter cidadania ativa era necessário preencher alguns requisitos, não bastando ser apenas pessoa. Surge, então, o direito à cidadania como um direito de 1 FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Direito fundamental à saúde. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 20. 2 DALLARI, Dalmo de Abreu. Direitos humanos e cidadania. 2. ed. ref. São Paulo: Moderna, 2004. p. 19. 3 Ibid., p. 20. 22 participação política.4 Em que pese a distorção desse conceito de direitos humanos, o entendimento de que o homem é um ser único dotado de direitos básicos e inerentes à sua própria condição humana remonta à antiguidade clássica. Apesar de haver alguns que refutem a ideia que os gregos possuíam uma noção de direitos humanos, é possível notar em diversos textos de filósofos gregos apontamentos a direitos básicos do ser humano, que não poderiam ser violados por homens ou deidades. Exemplo disso pode ser visto em Antígona, de Sófocles, no diálogo entre o rei Creonte e Antígona onde, após ter ela sepultado o irmão contrariando um édito imperial, é admoestada pelo rei por sua atitude irreverente, e justifica ela dizendo o direito de sepultar os mortos pertence às leis divinas que nunca foram escritas, mas que são irrevogáveis e eternas, e que não seria uma lei humana que poderia suplantá-la. Na Idade Média os direitos do homem, ou direitos naturais, se baseavam em regras divinas, provenientes da divindade, não podendo o homem desafiar tais leis ditas “naturais”, que seriam imanadas de Deus. Os direitos humanos, portanto, possuíam um caráter iminentemente místico com estreita ligação com a religião, que atrelava a existência dos direitos humanos com a vontade divina. Com a queda do absolutismo, o reconhecimento dos direitos do homem deixou de ser definido com base em critérios sobrenaturais, garantido através da punição divina exteriorizada pelos reis e representantes eclesiásticos, e passou a ser definido com base em critérios racionais e lógicos, que permitiam a qualquer ser humano, independentemente de sua crença ou religião, entender e aceitar suas premissas. Cabia ao homem, e não a Deus ou outra entidade divina qualquer, determinar quais eram os direitos básicos dos seres humanos. Com essa ruptura entre Estado e religião surge a ideia do jusnaturalismo, que estabelece direitos naturais que independem de qualquer tipo de fundamento divino por se tratar de direitos inerentes à própria condição humana, e que podem ser descobertos através de um pensamento racional. O próprio homem, portanto, sendo um ser racional e detentor de direitos e liberdades, poderia instituir as suas próprias regras de conduta. 4 DALLARI, Dalmo de Abreu. Direitos humanos e cidadania. 2. ed. ref. São Paulo: Moderna, 2004. p. 21. 23 Durante esse período diversos filósofos e estudiosos trataram da questão dos direitos naturais do homem. Dentre os principais podemos citar Thomas Hobbes, em sua obra Leviatã, defendendo a irrenunciabilidade do direito do homem de defender a si mesmo, sendo todos os demais direitos decorrências deste último5; John Locke, sublevando a supremacia do Estado, porém, dizendo que ele deveria respeitar as leis natural e civil. Embora defendesse que todos os homens eram iguais, defendia a escravidão, não a relacionando à raça, mas sim com a derrota na guerra. Os inimigos capturados poderiam ser mortos, porém, sendo-lhes poupadas as vidas, deveriam trocar a liberdade pela escravidão. Para Rousseau, em sua obra “O contrato social”, os direitos inalienáveis do homem garantiriam de forma equilibrada a liberdade e a igualdade.6 Dallari dá uma primorosa definição sobre os direitos humanos: A expressão direitos humanos é uma forma abreviada de mencionar os direitos fundamentais da pessoa humana. Esses direitos são considerados fundamentais porque sem eles a pessoa humana não consegue existir ou não é capaz de se desenvolver e de participar plenamente da vida. Todos os seres humanos devem ter asseguradas, desde o nascimento, as condições mínimas necessárias para se tornarem úteis à humanidade, como também devem ter a possibilidade de receber os benefícios que a vida em sociedade pode proporcionar. Esse conjunto de condições e de possibilidades associa as características naturais dos seres humanos, a capacidade natural de cada pessoa e os meios de que a pessoa pode valer-se como resultado da organização social. É a esse conjunto que se dá o nome direitos humanos.7 Conforme Bobbio, os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas.8 5 MALMESBURY, Thomas Hobbes de. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Os Pensadores). 6 ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social. Tradução de Rolando Roque da Silva. 3. ed. São Paulo: Ridendo Castigat Mores, 2001. 7 DALLARI, Dalmo de Abreu. Direitos humanos e cidadania. 2. ed. ref. São Paulo: Moderna, 2004. p. 12. 8 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Nelson Coutinho. 9. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 5. 24 Não basta, pois, simplesmente reconhecer a existência dos direitos humanos, mas se faz necessário torná-lo algo real e palpável, passível de ser normatizado e garantido juridicamente, tornando-se um dos principais papéis do Estado. A ideia de justiça surge com a concepção de “direitos naturais”, assim considerados os direitos inerentes ao homem e que decorrem de sua própria natureza humana. Tendo por base essa concepção, tais direitos seriam anteriores até mesmo ao surgimento do Estado, logo, por este inderrogáveis. São direitos abstratos e universais, imprescritíveis e inalienáveis.9 Se num primeiro momento o poder de ingerência do Estado na vida de seu povo era absoluto, inexistindo direitos individuais, com o passar do tempo esse poder foi mitigado em favor do reconhecimento das liberdades e direitos subjetivos dos cidadãos que teve um importante momento histórico nos séculos XVII e XVIII, com as Revoluções Burguesas. Tais direitos fundamentais são, portanto, fruto de reivindicações da sociedade de seu poder de autodeterminação, garantindo, assim, os seus direitos, passando o Estado a ocupar um novo e importante papel de garantidor e instrumento de equilíbrio desses direitos e garantias individuais. 1.3 Documentos de proteção aos direitos humanos Seguindo a elaboração publicação francesa da “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão” de 1789, outras cartas de direito tiveram o objetivo de proteger os direitos fundamentais sociais, proclamadas por organismos internacionais criados para garantir os direitos humanos e evitar conflitos armados, como a Primeira e Segunda Guerra Mundiais. As atrocidades cometidas nas guerras, em especial nas duas Grandes Guerras, tiveram o efeito de unir a comunidade internacional em torno da ideia de criar mecanismos e órgãos capazes de evitar a repetição das graves ofensas aos direitos humanos. Em 28 de abril de 1919, em Versalhes, pouco após o término da Primeira Grande Guerra, foi criada a Sociedade das Nações, também conhecida como Liga 9 FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Direito fundamental à saúde. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 20. 25 das Nações, com a reunião das potências vencedoras daquele conflito, para negociar um acordo de paz. O documento mais importante criado por essa organização foi o Tratado de Versalhes (1919), que foi um tratado de paz assinado pelas potências europeias, e que declarou oficialmente encerrada a Primeira Grande Guerra. Esse órgão durou até 1946, quando, não tendo sucesso em manter a paz no mundo, acabou sendo dissolvida, passando suas responsabilidades à recém- criada Organização das Nações Unidas (ONU). A ONU foi estabelecida em 24 de outubro de 1945, após o término da Segunda Grande Guerra, para promover a cooperação internacional e tendo por objetivo impedir outro conflito igual àquele. Iniciada com 51 estados-membros, atualmente conta com 193 países, tendo sua sede localizada na cidade de Nova Iorque, nos Estados Unidos. Em 1948, a ONU adotou a Declaração Universal dos Direitos Humanos a qual, embora não tivesse a característica da obrigatoriedade legal, serviu de base para dois tratados sobre direitos humanos da ONU que já tiveram força de lei: o “Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos” e o “Pacto internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais”. Trata-se de um importante documento que foi editado com o intuito de definir as áreas de influência dos países após o término da Segunda Guerra Mundial, além de criar uma organização internacional que participasse de negociações sobre conflitos internacionais, evitando a guerra e promovendo a paz e a democracia, fortalecendo os Direitos Humanos os quais, na visão de Figueiredo: [...] formam um conjunto único e indivisível, em que a falência das medidas de concretização de um direito inevitavelmente repercute na fruição plena do conjunto restante, havendo interação e inter-relação dos direitos civis e políticos com os direitos econômicos, sociais e culturais.10 Um dos principais instrumentos de validação e reafirmação dos direitos humanos na comunidade internacional foi a Declaração de Viena de 1993, que teve por objetivo principal a reafirmação da comunidade internacional de garantir os direitos humanos, as liberdades fundamentais e o respeito à diversidade de culturas 10 FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Direito fundamental à saúde. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 30. 26 e identidades, o que fica expresso já no primeiro item.11 1.4 Proteção estatal dos direitos humanos Há diversas interpretações para a palavra Estado na linguagem jurídica. Segundo Pinto Ferreira, “Estado é ordem normativo-coativa da conduta humana dotado de uma autonomia constitucional ampla ou restrita.”12 Arthur Machado Paupério, citando diversos doutrinadores, apresenta inúmeros conceitos usuais de Estado: O Estado é a maior e mais importante das sociedades de ordem temporal, abarcando todos os outros grupos naturais, cujos interesses, subordinados ao bem comum, procura defender e promover [...]. Estado é uma parte especial da humanidade considerada como unidade organizada [...]. Estado é a nação politicamente organizada, onde se estabeleceu, portanto, a diferença entre governantes e governados, ou seja, a constituição da autoridade, seu elemento formal [...].13 Independentemente das diversas variações do conceito de Estado, é uníssono o entendimento de que ele possui três elementos ou condições essenciais de existência: seu povo, o território e um poder político soberano. De acordo com o disposto no artigo 1º, da Constituição Federal de 1988, o Estado brasileiro tem como fundamentos a sua soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político. A finalidade precípua do Estado é a proteção dos direitos humanos. Observa Fernando Aith, que o desenvolvimento do Estado será tanto maior quanto maior for a rede de proteção de direitos humanos oferecida, através de políticas 11 “1. A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos reafirma o compromisso solene de todos os Estados de promover o respeito universal e a observância e proteção de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais de todas as pessoas, em conformidade com Carta das Nações Unidas, outros instrumentos relacionados aos direitos humanos e o direito internacional. A natureza universal desses direitos e liberdades está fora de questão. Nesse contexto, o fortalecimento da cooperação internacional na área dos direitos humanos é essencial à plena realização dos propósitos das Nações Unidas. Os direitos humanos e as liberdades fundamentais são direitos naturais de todos os seres humanos; sua proteção e promoção são responsabilidades primordiais dos Governos.” (ONU. Declaração de Viena. Viena, 1993. Disponível em: . Acesso em: set. 2017). 12 FERREIRA, Pinto. Teoria geral do Estado. 2. ed. Rio de Janeiro: José Konfino, 1957. t. 2. p. 27. 13 PAUPERIO, Arthur Machado. Teoria geral do Estado. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1964. p. 36. 27 públicas eficazes.14 O artigo 3º, da Constituição Federal estabelece como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e outras formas de discriminação. Esses objetivos, dispostos expressamente pela primeira vez numa Constituição Federal brasileira em 1988, denotam a preocupação do legislador em estabelecer as diretrizes de um Estado Social que, conforme José Afonso da Silva, busca a realização da justiça social.15 A criação de um Estado Social não pode se limitar a mera conceituação teórica de direitos sociais, mas deve buscar a concretização de uma igualdade social real, que possibilite igualdade de condições de vida e de realização pessoal de cada indivíduo. No ensinamento de Sarmento, o Estado assumiu um novo papel na concretização dessa busca pela igualdade social, adotando uma série de encargos e atividades que antes não eram considerados como atividades tipicamente estatais, como a prestação de serviços de saúde, educação, assistência social, além de intervir diretamente na regulação dos mercados.16 1.5 Direitos humanos fundamentais A diferença primordial mais corrente entre os doutrinadores, entre direitos fundamentais e direitos humanos, é que os primeiros dizem respeito à pessoa humana e fazem parte do ordenamento jurídico de determinado Estado, já o segundo, ainda não foram positivados no ordenamento jurídico estatal, já tendo sido 14 AITH, Fernando. Políticas públicas de Estado e de governo: instrumentos de consolidação do Estado Democrático de Direito e de promoção e proteção dos direitos humanos. In: BUCCI, Maria Paula Dallari (Org.). Políticas públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 207-232. 15 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 25. ed. rev. e atual. nos termos da Reforma Constitucional (até a Emenda Constitucional n. 48, de 10.08.2005). São Paulo: Malheiros, 2005. p. 112. 16 SARMENTO, Daniel. A dimensão objetiva dos direitos fundamentais: fragmentos de uma teoria. In: SAMPAIO, José Adércio Leite (Org.). Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 252. 28 reconhecidos pela ordem jurídica internacional nas diversas Declarações de Direitos e Tratados. Eduardo Braga Rocha aponta a diferença entre os direitos humanos e os direitos fundamentais, como sendo: Os direitos fundamentais também diferem dos direitos do homem, sendo estes valores éticos estendidos ao indivíduo por força de sua existência, ainda não reconhecidos no ordenamento internacional e nem positivados ordenamento estatal.17 A positivação dos direitos do homem, segundo o autor, promovida nas Constituições dos Estados, garante maior segurança e proteção jurídica aos indivíduos, permitindo a propositura de ações judiciais, não sendo mais necessário o uso da resistência física direta, que também constitui um direito natural do ser humano contra situações que, segundo seu entendimento, sejam arbitrárias. 1.5.1 Dimensões ou gerações dos direitos fundamentais Os direitos fundamentais de primeira dimensão são os direitos individuais e políticos presentes no constitucionalismo liberal do século IX. Exemplo disso é a Constituição brasileira de 1824, que consolidou a passagem do Estado absolutista, onde o poder do monarca tinha origem divina e ilimitado, para um Estado Liberal de Direito, cujas principais características eram: a separação dos Poderes; a garantia da liberdade dos cidadãos perante o Estado, propiciada especialmente pelo reconhecimento constitucional dos direitos fundamentais, e a legalidade, tendo todos de se submeterem às regras ditadas pelos ordenamentos jurídicos. Foi o jurista Karel Vasak quem primeiro utilizou o termo gerações de direitos fundamentais, na década de 70, ao proferir a aula inaugural do Curso do Instituto Internacional dos Direitos do Homem, em Estrasburgo, esclarecendo que essa divisão era feita como um paralelo entre o lema da Revolução Francesa (liberdade, igualdade e fraternidade) e a própria evolução dos direitos fundamentais. Os de primeira geração compreenderiam aos direitos civis e políticos, baseados na liberdade (liberté); a segunda geração seriam os direitos econômicos, sociais e culturais, que teriam por base o lema da igualdade (egalité); e a terceira geração 17 ROCHA, Eduardo Braga. A justicialidade do direito fundamental à saúde no Brasil. São Paulo: Letras Jurídicas, 2011. p. 22. 29 seria a dos direitos de solidariedade, desenvolvimento, meio ambiente e fraternidade (fraternité). Os direitos fundamentais de primeira dimensão ganharam vida no liberalismo burguês, como um mecanismo de proteção em relação ao Estado, que tinha atuação mínima para garantia da ordem externa e interna, contudo, sem maiores preocupações com a efetividade dos direitos, não havendo verdadeira preocupação om bem-estar social, razão pela qual as desigualdades sociais estavam presentes, privilegiando-se a burguesia, que era a classe social detentora dos meios de produção. Na segunda metade do século XIX, quando ocorreu a segunda fase da Revolução Industrial, os cidadãos passaram a exigir uma garantia de seus direitos trabalhistas e previdenciários. Surge, então, a ideia do Estado Social, que tem por objetivo primordial a garantia do bem-estar social dos seus cidadãos. Com o novo conceito de Estado Social, ou Estado de Bem-Estar Social ou Estado-Providência, o papel dos direitos fundamentais deixa de ser o de meros limites da atuação estatal para transformar-se em instrumentos jurídicos de controle de sua atividade positiva, que deve ser exercida de forma a possibilitar a atuação de grupos e indivíduos no exercício do poder. Disso decorre a necessidade de serem exigíveis e tutelados judicialmente, não apenas as liberdades clássicas, mas também os direitos econômicos, sociais e culturais, tornando-os realidades palpáveis e não meros ideais inatingíveis. Na lição de Eduardo Braga Rocha: O Estado Social proporcionou o surgimento do constitucionalismo social, que solidificou a positivação dos direitos fundamentais de segunda dimensão (direitos sociais, econômicos e culturais), os quais vão exigir uma atuação intensa e permanente por parte do Estado, visando atender aos anseios sociais (saúde, educação, etc.), constituindo-se em ‘direitos de crédito’ pertencentes aos indivíduos diante, o Estado, ou seja, os indivíduos passam a ser credores das prestações sociais estatais.18 Não se consideram direitos fundamentais de segunda dimensão apenas os direitos, mas os atos do Estado que materializam esses direitos, e que proporcionam uma melhoria nas condições de vida dos cidadãos, em especial aos 18 ROCHA, Eduardo Braga. A justicialidade do direito fundamental à saúde no Brasil. São Paulo: Letras Jurídicas, 2011. p. 27. 30 mais necessitados, gerando maior igualdade social. Posteriormente, surgem os direitos fundamentais de terceira dimensão (meio ambiente, paz, desenvolvimento, fraternidade e solidariedade). Para Paulo Bonavides, há uma quarta dimensão de direitos fundamentais, que englobaria os direitos à democracia ao pluralismo e à informação.19 A expressão gerações, embora seja a mais utilizada, vem sendo sucedida pela expressão dimensões, pois a palavra geração dá uma ideia errônea de substituição, sendo que isso não condiz com a realidade. De fato, o que ocorre é uma sucessão de direitos onde os novos direitos sociais não eliminam os anteriores, mas os complementam. Nesse sentido, seria mais correto dizer que ocorre uma ampliação da dimensão desses direitos. 1.5.2 Efetividade e eficácia dos direitos humanos fundamentais O problema da ineficácia e inefetividade dos direitos humanos fundamentais deve ser analisado com profundidade, há uma retórica vazia dos direitos fundamentais. Seriam 3 as hipóteses a serem analisadas: (i) A inefetividade se deve a uma cultura lógico-formal do positivismo jurídico (teórico); (ii) Política, que trata das limitações do estado liberal capitalista em tornar efetivos os direitos fundamentais, em detrimento dos interesses de uma minoria titular da maior parte do capital; (iii) o controle econômico do Estado, feito com base em interesses econômicos (patrimonialismo). A teoria dos direitos fundamentais deve ser analisada como o modo de se enxergar, assim sendo, está no terreno do conhecimento. A palavra teoria vem do grego Theorein, que significa enxergar, ver. No campo do direito, as ideologias são elementos sempre presentes na sua aplicação, e lhe são intrínsecas, não havendo isenção ideológica, espécie de inimputabilidade. A ideologia interfere nas ciências naturais de fora para dentro, já nas ciências sociais e humanas, ela influencia de dentro para fora, ou dentro e fora. A efetividade do Direito está ligada à aplicabilidade do Direito, ou seja, relacionado aos resultados práticos. A efetividade dos direitos humanos 19 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 571. 31 fundamentais é permanente, ou tem efetividade prática, ou não são direitos, mas podem vir a ser. Os direitos humanos fundamentais exigem uma eficácia e efetividade permanente, não apenas quando são violados. Identificar os direitos humanos fundamentais como rol de promessas previstas em tratados internacionais ou constituição federal, é muito pouco, pois estes devem ser exercidos nas práxis para serem direitos. Eles são reconhecidos pelo suporte fático consolidado nas normas jurídicas, constituições e tratados internacionais. Mais importante do que ter uma visão teórica e abstrata desses direitos, é passar para a prática, encontramos modos de torná-lo factível no mundo real. Não há como se negar que é necessária uma decisão política de se investir recursos nos direitos humanos fundamentais. A partir do grau de intervenção estatal na sociedade e da forma como são exercidas as políticas públicas de garantia e efetividade dos direitos humanos fundamentais, podemos identificar se é um Estado Democrático de Direito ou um Estado totalitário. 1.5.3 Mudança de paradigmas No processo de elaboração de todo ordenamento jurídico há um claro viés político que é influenciado pelos preponderantes interesses dos legisladores, que nem sempre estão em sintonia com os reais interesses dos seus eleitores. Não é raro vermos a prática de lóbi, uma atividade que se equilibra numa linha tênue entre o mero exercício regular do direito e a prática ilegal de corrupção, nas suas mais diversas formas. As normas jurídicas criadas para dar efetividade a esses direitos fundamentais resvalam, inevitavelmente, na vontade política de nossos governantes, cujos interesses não estão sempre ligados ao bem esta público, como deveria ser numa sociedade ideal, mas acabam se ligando a interesses financeiros próprios, que acabam causando prejuízos ao erário e, consequentemente, à população. Segundo a ideia do quadrado paradigmático – Romper com Estado Liberal – Romper com o Capitalismo – A esperança está na luta social pela ruptura do paradigma político, para o paradigma da superação. A efetividade dos direitos humanos fundamentais, portanto, estaria na formação de uma vontade política que 32 privilegiasse o bem-estar público em detrimento dos interesses isolados de uma minoria, culminando numa verdadeira reorganização social. Os direitos fundamentais, durante séculos, foram estudados pelas escolas do pensamento sob o viés do quadrilátero paradigmático do positivismo, de maneira, cada escola surgida, apesar de trazer argumentos parcialmente novos sempre retornava a retórica positiva. A finalidade dos direitos humanos positivados deveria ser de buscar dar a mais ampla efetividade as necessidades sociais que são fundamentais do homem como ser vivente e social, no entanto, é possível se observar a existência de uma “síndrome da inefetividade” dos direitos humanos fundamentais. A inefetividade dos direitos humanos fundamentais tem uma clara ligação com aspectos políticos, pois o Direito posto é um fato político, pois é originário das casas legislativas, que possuem uma natureza exclusivamente política. Pela sua natureza política, num mundo ideal, e pela previsão de nossa carta magna, seriam os efetivos representantes do povo, eleitos pelo sufrágio popular e universal, que trabalhariam incessantemente em seu favor, buscando meios para efetivar ao máximo no mundo real, o acesso aos direitos humanos fundamentais, promovendo a concretização da democracia e da dignidade do homem. Segundo o dicionário Houaiss20, a palavra dignidade vem do latim dignitatem, que significa merecimento, valor, nobreza. É a qualidade do que é nobre, elevado, que inspira respeito, solenidade, gravidade, brio, distinção. A dignidade não é apenas um valor intrínseco do ser humano e tampouco é algo exclusivo do ordenamento constitucional brasileiro, mas, na atualidade, constitui requisito essencial e inafastável da ordem jurídico-constitucional de qualquer Estado que se diz Democrático de Direito.21 A doutrina possui divergências com relação à estrutura e conteúdo dos direitos fundamentais sociais. Alexy, citando Konrad Hesse, exemplificando o quanto dito anteriormente, aponta a dúvida que pode surgir quanto ao resultado do texto normativo, impondo um questionamento se ele confere direitos subjetivos ou se 20 HOUAISS, Antonio. Dicionário Houaiss eletrônico. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. 1 CD ROM. 21 ABUJAMRA, Ana Carolina Peduti; BAHIA, Cláudio José Amaral. A justiciabilidade do direito fundamental à saúde: Concretização do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. In: NERY JUNIOR, Nelson (Org.); NERY, Rosa Maria de Andrade (Org.). Responsabilidade civil: direito fundamental à saúde. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2010. cap. 2. p. 72. 33 apenas cria uma obrigação objetiva do Estado, segundo a qual o legislador teria a obrigação de fazer o necessário para realizar os direitos sociais sem que haja para isso um direito subjetivo. Indaga o autor, ainda, se tal norma será vinculante ou apenas programática; e se confere direitos definitivos ou prima facie, isto é, se podem ser princípios ou regras. Os direitos fundamentais sociais estão dispostos como princípios, na Constituição Brasileira de 1988, isso quer dizer que tais regramentos não podem ser aplicados na forma do tudo ou nada, quer dizer, se existe um direito, o Estado não pode negar-lhe aquele direito. Concomitantemente a esses direitos, é certo que há outros direitos que devem ser sopesados no momento de tornar o direito pleiteado algo tangível e concretizado através de uma decisão judicial. Para tanto, e com o fim de se evitar a concretização não de um direito, mas de uma injustiça, é imprescindível que o aplicador do direito considere as possibilidades fáticas e jurídicas, baseando-se nos princípios e regras do ordenamento jurídico vigente. 34 CAPÍTULO 2 A JUSTICIABILIDADE DOS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS 2.1 Normativismo jurídico A teoria jurídica hegemônica é a do normativismo jurídico, que tem por farol, Hans Kelsen. Em sua Teoria Pura do Direito, Kelsen esclarece que o caráter ideológico da doutrina jurídica tradicional, combatida por sua doutrina, se revelava na definição então existente sobre o conceito de direito. Com a Revolução Francesa ocorrida no século XIX, iniciou-se uma reação contra a metafísica e a Teoria Natural através do progresso das ciências empíricas. O doutrinador, no entanto, reconhecia que embora tivesse ocorrido uma mudança radical de paradigma, essa mudança não foi completa. Reconheceu-se que o seu conteúdo sofre constante mudanças, acompanhando a própria evolução histórica, sendo um fenômeno condicionado pelas circunstâncias de espaço e tempo.1 Para o autor positivista, há inúmeros motivos para que o ser humano atenda ao mandado de uma norma jurídica, e que vão muito além do mero temor de aplicação da regra coercitiva contida no dispositivo legal, tais como motivos religiosos, morais, respeito aos usos e costumes sociais, dentre outros.2 O que se vê, na realidade, é a necessidade de se transpor a mera positivação do direito e torná-lo algo concreto e palpável. A finalidade é utilizar a teoria com efeito prático. A teoria deve se encontrar com a prática e a prática deve se encontrar com a teoria, caso contrário, qualquer norma editada ficará coberta sob o manto da inefetividade, não passando o cabedal normativo fundamental (Constituições Federais, Leis; Convenções e Tratados Internacionais) de meras peças decorativas de pouco efeito prático. 2.2 Sociologismo jurídico O Sociologismo jurídico é uma doutrina que interpreta o Direito é um fato social, concreto, que gera inclusão ou exclusão. O Objeto não é mais a lei posta, 1 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito (versão condensada pelo autor). 3. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais. 2003. p. 65-66. 2 Ibid., p. 73. 35 mas o fato social posto, e o seu método: é o sociológico (método da sociologia), que busca o conhecimento do direito através do estudo sociológico dos fatos. Nenhuma das escolas jurídicas dos ramos da civil law ou da common law, conseguiu extirpar do conceito de Direito a existência do normativismo, da influência da dimensão normativista de lei, para adotar o conceito que o Direito é só fato social, sintetizado pela lei, e interpretado pelos operadores do Direito. Rudolf von Ihering introduziu o conceito de finalidade do Direito, que está além da lei, estando presente também no fato social. A Principal contribuição da escola sociológica é que o Direito possui um fim, uma finalidade social. Clóvis Beviláqua, na sua obra “Teoria Geral do Direito Civil”, explica a tendência sociologista que passou a dominar a jurisprudência nacional: Por ciência geral do direito, pretendo significar, com Herman Post, a exposição sistematizada de todos os fenômenos da vida jurídica da humanidade e a determinação de suas causas. E, como a vida jurídica por um lado se manifesta sob a forma de leis e usos jurídicos e, por outro lado, é operação da consciência individual, a ciência geral do direito e ao mesmo tempo sociológica e psicológica.3 Kelsen faz a distinção entre a sociologia jurídica e a ciência do direito, esclarecendo que a primeira é uma ciência explicativa e a segunda, normativa. A sociologia tenta encontrar os motivos por trás do comportamento jurídico dos homens, levando em conta os porquês dessas condutas. No caso da ciência do direito, entendida como a ciência do dever-ser, é uma ciência de objetos ideais que objetiva a criação e compreensão das normais que dão um sentido jurídico à conduta humana. Não se pode deixar de notar a importância que as diversas ciências têm sobre o Direito, o mesmo dizendo no sentido contrário. Por se tratar de uma ciência que evolui pari passu com o desenvolvimento da própria humanidade, é importante que as diversas Ciências que surgem para tratar de assuntos específicos da evolução humana também façam parte do desenvolvimento das Ciências Jurídicas, fornecendo elementos para a melhor compreensão das necessidades e do bem- estar social, inclusive formando ciências para estudos específicos, como é o caso do 3 BEVILÁQUA, Clóvis. Teoria geral do direito civil. 7. ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1955. p. 9. 36 Sociologismo Jurídico. 2.3 Teoria da argumentação A teoria da argumentação tem relevante importância para a teoria dos direitos fundamentais, surgindo juntas e caminhando paralelas. Através da corrente sistêmica argumentativa, desenvolvida pelo neopositivismo argumentativo, é possível notar os seguintes elementos constitutivos: (i) o direito deixa de ser um puro conjunto de normas e passa a ser um conjunto de argumentos; (ii) a norma seria um conjunto de argumentos que se impõe para solucionar o caso concreto; (iii) os argumentos que resolverão os problemas devem ser de razoáveis, não podendo ser regras esdrúxulas que firam o pensamento jurídico; (iv) casos idênticos podem ter soluções diferentes, não se limitando a uma única solução trazida na norma. As teorias dos direitos humanos acabam sempre resvalando no problema da inefetividade/efetividade. Os princípios são tão importantes quanto as normas, tendo efetividade, necessitando-se de uma argumentação para ser efetivados e aplicados, sendo que, segundo Dworkin4, sofrendo críticas neste ponto por Ávila5 e Alexy6, as normas devem ser aplicadas incontinenti, sem necessidade de interpretações deontológicas. Direitos humanos fundamentais são normas principiológicas, que devem ser efetivados por meio da argumentação, composta de decisões razoáveis. Para o autor, se o Direito posto é o do capitalismo (burguês) a contraposição é um Direito não burguês. Teorias jurídicas positivas são burguesas, assim a teoria crítica seria contrária ao pensamento burguês. Se consideramos que é possível realizar uma transformação social, desde que se lute para isto, a transformação social está intimamente relacionada com as lutas sociais. O Direito, portanto, é um fenômeno político, como afirma a teoria crítica. O Direito para a teoria crítica, não é ciência, não tem como dizer que se pode conhecer o Direito pela ciência, não existe método para entender o Direito: 4 DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001. 5 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros. 2009. p. 35 e 36. 6 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 120. 37 método formal, uma interpretação lógica-formal do Direito. Não é importante dizer que o Direito e uma ciência ou não, mas é algo posto na realidade, devendo ser analisado e usado. 2.4 Teoria crítica do direito A Teoria Crítica propõe: (i) Antes de buscar o Direito lógico-normativo, tem que o ver como algo a ser utilizado; o que fará com o Direito; (ii) a chave do conhecimento é o que fazer com o Direito; (iii) uma retórica crítica baseada na práxis, uma práxis transformadora; (iv) a teoria crítica está sempre em diálogo com as outras teorias jurídicas no campo ideológico, mas a transformação da sociedade só ocorre na práxis. Destarte, extrai-se dessa teoria que o Direito é uma dimensão da política, na qual é possível se fazer coisas, sempre com a pretensão política, e.g., mudar uma ordem existente; manter a ordem. O Direito não se baseia em métodos e objeto, não se pode considerar como mundo autônomo, mas sim como uma dimensão da política. A teoria crítica do Direito surge com a teoria dos Direitos humanos fundamentais que passam a buscar uma maior efetividade, de modo que, os direitos fundamentais são uma vertente da efetividade da democracia na pratica e não só teórica. Os direitos humanos fundamentais, portanto, deveriam ir além dos tribunais e serem efetivados pela própria sociedade nas práxis. 2.5 Teoria dos princípios Para se compreender a importância da Teoria dos Princípios é necessário compreender a distinção entre regras e princípios, onde parte da doutrina que possui partidários da separação forte e da separação fraca entre ambos. De acordo com Alexy, a teoria dos princípios é um importante instrumento de esclarecimento da estrutura das normas constitucionais, sobre a forma dos direitos fundamentais, e sobre as diversas formas de se proceder a sua aplicação e interpretação. Para ele, se trata de “uma chave para a solução de problemas centrais da dogmática dos direitos fundamentais”.7 7 ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2002. p. 81. 38 No entendimento do autor, ainda, o conceito mais apropriado de direito é o resultado da inter-relação de três elementos: legalidade de acordo com o ordenamento jurídico; eficácia social e correção material, sem os quais haveria tão- somente um conceito de direito positivista ou jusnaturalista. A base da Teoria dos Direitos Fundamentais de Alexy8 é a tipologia das normas jurídicas, que é constituída de regras e princípios. O doutrinador alemão leva em conta a importância dos direitos fundamentais, adotando uma diferenciação entre princípios e regras, dando ao seu conceito de norma, a denominação de conceito semântico, Segundo seu conceito, as normas de direito fundamental podem ser divididas em normas diretamente estatuídas pela constituição e normas a elas adstritas. O primeiro grupo é constituído pelas regras dispostas de forma expressa na Constituição, enquanto a segunda corresponde a um resultado de uma interpretação do texto constitucional, com o claro intuito de esclarecer o seu conteúdo. Para o autor, a diferença entre normas e princípios é uma questão qualitativa, e não de grau, sendo que tanto os princípios como as regras são normas e ambos expressam um dever ser. A novidade proposta por essa teoria é que, ao formular o conceito de princípio, o define como sendo uma norma que ordena que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades fáticas e jurídicas, constituindo “mandados – ou mandamentos – de otimização”. Em que pese a importância do conceito, ele não deixou de ser alvo de críticas de outros doutrinadores (Aarnio e Sieckmann), pois não permitia a diferenciação entre regras e princípios. No caso das regras, são elas consideradas normas que devem ser cumpridas de maneira exata e integral, e caso haja conflito entre elas, a solução seria que pelo menos uma fosse declarada inválida ou é introduzida uma cláusula de exceção em uma delas. Já quando existir colisão entre princípios, um deles deve ceder frente ao outro, sendo que a prevalência de um sobre o outro será feita de acordo com as circunstâncias envolvendo o caso concreto e a importância e dimensão dos princípios em conflito. 8 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 120. 39 Alexi deu a esta maneira de solucionar o conflito entre princípios de “lei de colisão”, que é um dos principais fundamentos da teoria dos princípios de Alexy. É um reflexo da característica de otimização dos princípios e da inexistência de prioridades absolutas entre eles, devendo a escolha do princípio mais adequado a cada caso, ser feita através de ponderação entre eles. Alexy, partindo da classificação de conceitos práticos elaborada por Georg Henrik von Wright, esclarece que a diferença entre valor e princípio está que o último se encontra no nível deontológico, enquanto o valor está no nível axiológico.9 Vejamos, em apertada síntese, a classificação feita por von Wright: Os conceitos práticos se dividem em três grupos: (i) antropológicos: abordam a vontade, o interesse, a necessidade e as ações; (ii) axiológicos: têm por objeto principal o que é bom, se modificando conforme os critérios que qualificam algo como bom; e (iii) deontológicos: podem ser ligados a um conceito deôntico fundamental, o de mandado ou dever ser. Através dessa divisão, portanto, é possível enquadrar os princípios na classe dos conceitos deontológicos e os valores na classe dos conceitos axiológicos.10 A diferença entre princípios e valores é perceptível nos níveis axiológico e deontológico. O modelo de valores indica o que é melhor, já o modelo de princípios indica o dever-ser. Após definir os dois níveis ou classes de conceitos, distinguindo valores de princípios, chega-se a uma barreira lógica de se criar um rol hierárquico taxativo e abstrato de valores e princípios, o que, por si só, impediria uma análise caso a caso, levando-se em conta as diversas situações concretas apresentadas ao julgador. Para solucionar esse impasse propõe Alexy uma avaliação dos princípios e regras através de uma ordem fraca ou flexível, que, ao invés de desconsiderar, prestigia a ponderação. Essa avaliação é feita com base nas preferências e qualidades perceptíveis à primeira vista, que têm certos princípios ou valores, bem como tendo por base certas preferências construídas por meio de decisões proferidas em casos concretos. Para Alexy, a vantagem desse sistema de tomadas de decisões é que as avaliações das preferências e da ordem de prioridade dos valores e princípios 9 ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales, 2002. p. 140-141. 10 Ibid., p. 141. 40 deverá ser sempre revista, adequando-se à realidade atual a fim de solucionar os litígios que forem sendo apresentados ao Judiciário. No mesmo sentido, Humberto Ávila entende que o modo de aplicação de uma regra deve levar em conta a análise das circunstâncias de cada caso, o que deve ser feito por meio de um processo de ponderação de razões e contrarrazões. Exemplificando tal assertiva, Ávila menciona um julgado do Supremo Tribunal Federal onde foi afastada a presunção de violência em relação sexual praticada com menor de 14 anos. Embora o artigo 224 do Código Penal estabelecesse que a violência era presumida nos casos de relação sexual praticada contra menor de 14 anos, analisando detidamente o caso concreto, levando em conta a aquiescência e a aparência física e mental da vítima, a Corte entendeu preliminarmente que não se configurou o tipo penal em virtude das características fáticas não previstas pela norma. Nestas situações, Ávila sustenta que é possível deixar de implementar as regras contidas nas normas, pois existirão razões de razões superiores àquelas que preveem sua aplicação.11 Tal entendimento afastaria a ideia de Dworkin, de que as regras devem ser aplicadas de modo tudo ou nada. Também fica prejudicado o critério de distinção entre princípios e regras, uma vez que as últimas precisam de um processo de interpretação que decide, após análise dos elementos fáticos, quais consequências serão realizadas. Da mesma forma que Alexy, Ávila entende que o afastamento dos efeitos de uma regra só pode ser confirmado se, após o exame de aspectos concretos, se chegar à conclusão que há razões suficientes para afastar a obrigatoriedade dessa regra. Humberto Ávila aponta que o afastamento das consequências de uma determina regra é possível, desde que seja feito “[...] com uma fundamentação capaz de ultrapassar a trincheira decorrente da concepção de que as regras devem ser obedecidas.”12 Por fim, Ávila faz outra crítica sobre os critérios de ponderação. Para o autor, ela não deve ser utilizada apenas nos casos de aplicação de princípios, mas também no âmbito das regras. Acontecem ponderações de regras quando seu conteúdo pode ser superado por razões contrárias, que devem ser suficientemente 11 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. São Paulo: Malheiros, 2003. p . 41. 12 Ibid., p. 46 41 fortes para justificar o descumprimento de uma regra. Justamente por não haver como prever todas essas razões no ordenamento jurídico, necessário se faz a ponderação. Diz Ávila, sobre esse processo valorativo: O processo mediante o qual as exceções são constituídas também é um processo de valoração de razões: em função da existência de uma razão contrária que supera axiologicamente a razão que fundamenta a própria regra, decide-se criar uma exceção. Trata-se do mesmo processo de valoração de argumentos e contra- argumentos – isto é, de ponderação.13 Analisando as diversas teorias sobre os princípios e as regras, nota-se o elo comum entre eles, que é o processo de ponderação, que servirá de elemento definidor da regra ou princípio a ser adotado em determinado caso concreto, bem como a preponderância de um sobre o outro ou até mesmo da mesma espécie. 2.5.1 Princípio da dignidade humana A dignidade é um valor universal, reconhecido independentemente das diferenças socioculturais dos povos, não importando todas as suas diferenças físicas, intelectuais, psicológicas. Embora cada ser humano possua seus caracteres individuais, pela sua condição essencial humana, é dotado das mesmas necessidades e faculdades elementais. Nesse ponto surge a dignidade como um conjunto de direitos existenciais compartilhados por todos os homens, em igual proporção, pela sua própria condição humana, e existe ainda que falte ao indivíduo a capacidade de se relacionar, expressar, comunicar, criar, sentir. Dispensa a autoconsciência ou a compreensão da própria existência e, como ensina Ingo Wolfgang Sarlet: “[...] mesmo aquele que já perdeu a consciência da própria dignidade merece tê-la (sua dignidade) considerada e respeitada.”14 O Princípio da Dignidade Humana é notado em diversas passagens na Carta Magna de 88, como no artigo 5º, incisos III (não submissão a tortura), VI (inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença), VIII (não privação de direitos por motivo de crença ou convicção), X (inviolabilidade da vida privada, honra 13 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 41. (grifo do autor). 14 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 50. 42 e imagem), XI (inviolabilidade de domicílio), XII (inviolabilidade do sigilo de correspondência), XLVII (vedação de penas indignas), XLIX (proteção da integridade do preso). Para Camargo, a dignidade humana é o maior lastro dos direitos humanos, dos direitos da personalidade e é um fundamento do Estado Democrático de Direito e Social, que é exatamente o oposto da pessoa vista como objeto. A dignidade deve ser como um supraprincípio que dirige, reforma e mitiga, se for o caso, os direitos relacionados à igualdade, liberdade, solidariedade, saúde, previdência social, educação, honra, etc.15 Tem a sua fonte ética na dignidade da pessoa humana os direitos, liberdades e garantias pessoais e os direitos econômicos, sociais e culturais comuns a todas as pessoas.16 A dignidade da pessoa humana, prevista no artigo 1º, inciso III da Constituição Federal, constitui um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito da República brasileira. O objetivo deste princípio fundamental é assegurar ao homem um mínimo de direitos que devem ser respeitados pela sociedade e pelo poder público, valorizando, assim, o próprio ser humano. Por se tratar de um princípio fundamental, que serve de base a todo um ordenamento jurídico pátrio, não há como mitigá-lo ou relativizá-lo, sob pena de se perderem os fundamentos do próprio regime democrático. A dignidade da pessoa humana é um preceito fundamental para os Estados democráticos que têm por fundamento a preservação da liberdade individual e da personalidade do indivíduo. Nesse sentido, Flávia Piovesan preleciona: A dignidade da pessoa humana, [...] está erigida como princípio matriz da Constituição, imprimindo-lhe unidade de sentido, condicionando a interpretação das suas normas e revelando-se, ao lado dos Direitos e Garantias Fundamentais, como cânone constitucional que incorpora as exigências de justiça e dos valores éticos, conferindo suporte axiológico a todo o sistema jurídico brasileiro.17 15 CAMARGO, Daniel Marques de. Neoconstitucionalismo e caminhos emancipatórios pelo direito. In: PICCIRILLO, Miguel Belinati (Coord.). Inclusão social e direitos fundamentais. Birigui: Boreal, 2009. p. 84. 16 MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. 4. ed. Coimbra: Coimbra, 2008. t. 4. p. 174. 17 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 4. ed. São Paulo: Max Limonad, 2000. p. 54. 43 A autora entende, ainda, que: É no valor da dignidade da pessoa humana que a ordem jurídica encontra seu próprio sentido, sendo seu ponto de partida e seu ponto de chegada, na tarefa de interpretação normativa. Consagra-se, assim, dignidade da pessoa humana como verdadeiro super princípio a orientar o Direito Internacional e o Interno.18 O Supremo Tribunal Federal19, conferindo à dignidade da pessoa humana um status de princípio fundamental, já decidiu: [...] o postulado da dignidade da pessoa humana, que representa - considerada a centralidade desse princípio essencial (CF, art. 1º, III) - significativo vetor interpretativo, verdadeiro valor-fonte que conforma e inspira todo o ordenamento constitucional vigente em nosso País e que traduz, de modo expressivo, um dos fundamentos em que se assenta, entre nós, a ordem republicana e democrática consagrada pelo sistema de direito constitucional positivo [...]. (HC 95464, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 03/02/2009, DJe-048, divulg. 12-03-2009, public. 13-03-2009 EMENT VOL-02352-03 p.00466) Diante desse contexto, adotando-se o princípio da dignidade humana como um dos pilares da República, não pode ele ser relativizado, pois constitui um valor absoluto, e, nessa hipótese, garante uma proteção especial ao indivíduo, colocando-o em contraposição à sociedade ou ao Poder Público. Indo mais além, verificando-se a ocorrência da interpenetração dos Direitos Público e Privado e a constitucionalização do Direito Civil, o princípio da dignidade da pessoa humana passa a ter uma abrangência maior, devendo ser aplicado não apenas às relações do indivíduo com a sociedade e o Poder Público, mas também às relações interindividuais de cunho civil e comercial, daí surgindo a concepção de relativização da dignidade da pessoa humana. No entender de Sarmento, em se tratando de indivíduos em situação de igualdade, a dignidade de um indivíduo encontra-se em contraposição à igual dignidade do outro.20 Conclui-se, portanto, que sempre que houver um choque entre princípios 18 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 4. ed. São Paulo: Max Limonad, 2000. p. 92. 19 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Brasília, DF, 2017. Disponível em: . Acesso em: out. 2017. 20 CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. Dignidade da Pessoa Humana: o princípio dos princípios constitucionais. In: SARMENTO, Daniel; GALDINO, Flávio (Org.). Direitos fundamentais: estudos em homenagem ao professor Ricardo Lobo Torres. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p.140. 44 individuais, ainda que tenham como vetor a dignidade da pessoa humana (subprincípios), dela derivando, não há como afastar a necessária relativização do princípio em si, cabendo ao aplicador do direito o bom senso de atribuir a importância, peso ou valor à dignidade de um em detrimento da dignidade do outro na busca da solução mais adequada para o caso concreto, como apregoa Alexy em sua “Teoria dos Princípios”. 45 CAPÍTULO 3 DIREITO À SAÚDE 3.1 Conceito de saúde A Organização Mundial de Saúde (OMS) define a saúde como "[...] um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doenças e enfermidades."1 Essa definição consta do preâmbulo da Constituição da Organização Mundial de Saúde, adotado pela Conferência Internacional de Saúde em Nova Iorque, realizada em junho de 1946 e assinada no dia 22 de julho de 1946, pelos representantes dos 61 Estados, tendo entrado em vigor em 7 de abril de 1948.2 Essa definição não foi alterada desde sua constituição em 1948, e constitui o resultado de uma evolução conceitual, substituindo o antigo conceito de que a saúde era simplesmente a ausência de doenças biológicas. Analisando essa definição, Dallari faz um brilhante resumo dos princípios que devem ser seguidos nos cuidados com a saúde, atentando para as diretrizes 1 OMS. Constituição da Organização Mundial da Saúde (OMS/WHO) – 1946. Nova Iorque, 1946. Disponível em: . Acesso em: out. 2017. 2 Ibid. - Assim consta do preâmbulo da Constituição da Organização Mundial de Saúde: “Os Estados Membros desta Constituição declaram, em conformidade com a Carta das Nações Unidas, que os seguintes princípios são basilares para a felicidade dos povos, para as suas relações harmoniosas e para a sua segurança; A saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade. Gozar do melhor estado de saúde que é possível atingir constitui um dos direitos fundamentais de todo o ser humano, sem distinção de raça, de religião, de credo político, de condição econômica ou social. A saúde de todos os povos é essencial para conseguir a paz e a segurança e depende da mais estreita cooperação dos indivíduos e dos Estados. Os resultados conseguidos por cada Estado na promoção e proteção da saúde são de valor para todos. O desigual desenvolvimento em diferentes países no que respeita à promoção de saúde e combate às doenças, especialmente contagiosas, constitui um perigo comum. O desenvolvimento saudável da criança é de importância basilar; a aptidão para viver harmoniosamente num meio variável é essencial a tal desenvolvimento. A extensão a todos os povos dos benefícios dos conhecimentos médicos, psicológicos e afins é essencial para atingir o mais elevado grau de saúde. Uma opinião pública esclarecida e uma cooperação ativa da parte do público são de uma importância capital para o melhoramento da saúde dos povos. Os Governos têm responsabilidade pela saúde dos seus povos, a qual só pode ser assumida pelo estabelecimento de medidas sanitárias e sociais adequadas. Aceitando estes princípios com o fim de cooperar entre si e com os outros para promover e proteger a saúde de todos os povos, as partes contratantes concordam com a presente Constituição e estabelecem a Organização Mundial da Saúde como um organismo especializado, nos termos do artigo 57 da Carta das Nações Unidas.” 46 fornecidas pela OMS: Quando se fala em saúde, a primeira ideia das pessoas é que se tem saúde quando não se tem doença. E muitos acham que não adianta querer ter saúde ou querer que o governo garanta a saúde porque muitas doenças acontecem por motivos que não dependem da vontade das pessoas ou das ações dos governos e por isso não podem ser evitadas. Para os que pensam desse modo parece estranho falar em direito à saúde. Será possível que uma pessoa possa ter o direito de não apanhar uma verminose, de não ter bronquite, de não contrair tuberculose ou sarampo? Antes de tudo, para que se diga que uma pessoa tem saúde não basta que ela não sofra de alguma doença. Urna das organizações mais importantes do mundo especializada em assuntos de saúde, a Organização Mundial da Saúde (OMS), adverte que não é suficiente a ausência de doenças. Para que se diga que uma pessoa tem saúde e preciso que ela goze de completo bem-estar físico, mental e social. Isso quer dizer que, a1em de estar fisicamente bem, sem apresentar sinal de doença, a pessoa deve estar com a cabeça tranquila, podendo pensar normalmente e relacionar-se com outras pessoas sem qualquer problema. E preciso também que a pessoa não seja tratada pela sociedade como um estorvo ou fardo repugnante e que possa conviver com as demais em condições de igualdade e de respeito. Tudo isso faz parte da saúde.3 Dando exemplos de condições que estão relacionadas com o direito à saúde, o ilustre autor cita a possibilidade de as pessoas terem boas condições do meio ambiente no lugar onde vivem, trabalham, estudam e exercem outras atividades. Direito ao ar puro e a ausência de excesso de barulho, boas condições de moradia, de repouso e higiene, direito a uma boa alimentação, para que possam ter um bom desenvolvimento físico e mental, além de boas condições de trabalho. A compreensão sobre a complexidade e amplitude do conceito de saúde pode ser visto pela atual admissão de doenças de cunho espiritual, como são os estados de transe e possessão, que estão incluídas na relação de doenças internacionalmente reconhecidas sob o Código Internacional de Doenças (CID) - CID-10, da OMS.4 3 DALLARI, Dalmo de Abreu. Direitos humanos e cidadania. 2. ed. ref. São Paulo: Moderna, 2004. p. 73-74. 4 CID 10 – Estados de transe e de possessão. Transtornos caracterizados por uma perda transitória da consciência de sua própria identidade, associada a uma conservação perfeita da consciência do meio ambiente. Devem aqui ser incluídos somente os estados de transe involuntários e não desejados, excluídos aqueles de situações admitidas no contexto cultural ou religioso do sujeito. Exclui: Esquizofrenia (F20.-); Intoxicação por uma substância psicoativa (F10-F19 com quarto caractere comum .0); Síndrome pós-traumática (F07.2); Transtorno(s): - orgânico da personalidade e (F07.0); - psicóticos agudos e transitórios (F23.-). 47 Dallari destaca, ainda, que a preocupação com o bem-estar e com as boas condições de saúde de um povo são primordiais para o próprio desenvolvimento do Estado, afirmando: É lição da História que os povos com melhor nível de saúde sempre se colocaram em posição de vanguarda, tanto no plano de produção material quanto intelectual. E no interior de cada sociedade o que se verifica é um fenômeno paralelo, obtendo maior desenvolvimento e conquistando as melhores posições as pessoas que, desde crianças, ou mesmo antes de seu nascimento, tiveram o benefício do recebimento de bons cuidados de saúde.5 A preocupação do Estado com a saúde de seus cidadãos, portanto, não deve ser vista apenas como um encargo do ente público, mas como uma forma de garantir cidadãos capazes de promover um maior desenvolvimento desse próprio Estado, tendo melhores condições físicas, intelectuais, psicológicas e espirituais, o que não só garantirá um aumento de sua capacidade produtiva, que beneficia o Estado direta e indiretamente, como também acaba diminuindo os custos com tratamentos, permitindo que os recursos financeiros sejam utilizados em outras áreas da Administração Pública. 3.2 Breve histórico do direito à saúde O conceito de que a saúde é um direito humano e fundamental, sujeito à proteção estatal decorre de um longo processo evolutivo da própria humanidade. De acordo com Moacyr Scliar, a primeira noção de saúde estava ligada com um conceito mágico da realidade, onde os povos primitivos tinham uma ideia de que o doente era, na realidade, “[...] vítima de demônios e espíritos malignos, mobilizados talvez por um inimigo.”6 Esse conceito místico de doença foi questionado na antiguidade grega. Hipócrates efetuou observações empíricas que foram além do próprio paciente, para englobar o ambiente onde vivia. Partindo dessa visão mais ampla, o filósofo grego introduziu a discussão sobre os fatores ambientais que estariam ligados à doença, 5 DALLARI, Dalmo de Abreu. Direitos humanos e cidadania. 2. ed. ref. São Paulo: Moderna, 2004. p. 74. 6 SCLIAR, Moacyr. Do mágico ao social: a trajetória da saúde pública. Porto Alegre: L&PM, 1987. p. 10. 48 defendendo a ideia de uma multicausalidade na origem das doenças. Do tratamento místico, efetuado por meio de rituais, houve uma evolução, com o uso de ervas e métodos naturais em seu lugar. Outro filósofo grego, Platão, ampliou ainda mais o conceito fornecido por Hipócrates para saúde, dizendo que para sua obtenção era necessário promover um equilíbrio interno entre alma e corpo, que depois foi ampliada para afirmar o equilíbrio do homem com a organização social e com a natureza. Estava, então, compreendido o conceito de saúde, mais próximo daquele concebido atualmente. A Idade Média, também conhecida por Idade das Trevas, apresentou um grande retrocesso na área sanitária, sendo um período em que ocorreram surtos de epidemias, como a peste negra, que devastou a Europa, e que decorreram, dentre outras coisas, de conflitos bélicos, miséria generalizada e de um desconhecimento de conceitos básicos de higiene pela população. A medicina começou a desenvolver estudos nos campos da farmacologia, oftalmologia, cirurgia, entre outros, no entanto, o clero passa a dominar e impor seus conceitos religiosos, voltando a relacionar as doenças como um resultado da ira divina, e limitando os cuidados sanitários ao afastamento do doente do convívio social para evitar o contágio, e, também, para tirar a doença da visão geral. Como bem ensina Scliar, o único contraponto a esse declínio no desenvolvimento das artes médicas e farmacêuticas se deu com o fortalecimento da caridade através do surgimento dos primeiros hospitais, "[...] mais apropriadamente hospícios, ou asilos, nos quais os pacientes recebiam, se não o tratamento adequado, pelos menos conforto espiritual.”7 Com o Renascimento, ocorre uma progressiva restauração do conhecimento clássico greco-romano, sendo, na área da saúde, um período de transição, onde o misticismo medieval e as práticas exotéricas reminiscentes se contrapunham ao progresso das ciências, com as descobertas sobre o corpo humano, e ao pensamento e método científicos. A partir do final do século XVIII e no decorrer do século XIX, ocorreu a consolidação do Estado Liberal burguês. Nesse período, a assistência pública, envolvendo a assistência social e médica, deixou de depender da "solidariedade da vizinhança” para incluir a proteção à saúde entre o feixe de atividades tipicamente 7 SCLIAR, Moacyr. Do mágico ao social: a trajetória da saúde pública. Porto Alegre: L&PM, 1987. p. 23-24. 49 estatais, inclusive com status legal-constitucional.8 A Revolução Industrial é a transição para novos processos de manufatura, que ocorreu nos séculos XVIII e XIX. Nesse período houve um grande movimento de urbanização, com a migração da população do campo para as cidades, com a formação de cinturões ao redor das fábricas. A forma como eram assentados esse aglomerado de trabalhadores, aliado à total falta de higiene facilitava uma rápida disseminação de doenças entre a população, o que fez com que a classe operária começasse a reivindicar, além de melhores condições de trabalho, uma melhoria nas condições sanitárias, o que acabou sendo apoiado pelos empregadores, que necessitam que seus funcionários estivessem hígidos para manter a produção das fábricas. Sendo o Estado um instrumento da classe empresária dominante, a transferência da responsabilidade pela promoção da saúde pública acabou se mostrando relativamente simples. Nesse tocante, Schwartz observa: “[...] o capitalismo, por mais paradoxal que pareça, fez nascer uma visão social da saúde.”9 Para Sueli Gandolfi Dallari, o direito à saúde é um direito fundamental da pessoa humana, que foi positivado constitucionalmente para se conformar às regras internacionais de direitos humanos de segunda geração, dependendo sua efetivação da adoção e realização de políticas públicas específicas.10 No século XX, a proteção sanitária seria finalmente tratada como saber social e política de governo. Desde a II Guerra Mundial, essa noção foi ampliada, estabelecendo-se a responsabilização do Estado pela saúde da população e reforçando-se a lógica econômica, a partir da evidente interdependência entre as condições de saúde do trabalhador e a atividade produtiva. Instituíram-se os sistemas de previdência social. Ao término da II Grande Guerra, a devastação que atingiu diversos países e deixou uma multidão de órfãos, doentes e mutilados, além de privar muitos dos recursos mínimos necessários para garantir sua sobrevivência, mostrando-se muito mais mortal do que foi a sua antecessora, alguns anos antes, gerou a consciência 8 DALLARI, Sueli Gandolfi; VENTURA, Deisy de Freitas Lima. Reflexões sobre a saúde pública na era do livre comércio. In: SCHWARZT, Germano (Org.). A saúde sob os cuidados do direito. Passo Fundo: Ed. UPF, 2003. p. 32-33. 9 DALLARI, Sueli Gandolfi; VENTURA, Deisy de Freitas Lima. Reflexões sobre a saúde pública na era do livre comércio. In: SCHWARZT, Germano (Org.). A saúde sob os cuidados do direito. Passo Fundo: Ed. UPF, 2003. p. 113. 10 DALLARI, Sueli Gandolfi. Direito a saúde. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 22, n.1, p. 57- 63, 1988. Disponível em: . A