PEDRO HENRIQUE SANTOS DECANINI MARANGONI As faces do perspectivismo: Estudos sobre a percepção em Gurwitsch e Merleau-Ponty ASSIS 2022 PEDRO HENRIQUE SANTOS DECANINI MARANGONI As faces do perspectivismo: Estudos sobre a percepção em Gurwitsch e Merleau-Ponty Tese apresentada à Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, para a obtenção do título de Doutor em Psicologia (Área de Conhecimento: Psicologia e Sociedade) Orientador: Danilo Saretta Verissimo Bolsista: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP, Processo no 2017/15348-3). ASSIS 2022 MARANGONI, Pedro Henrique Santos Decanini. As faces do perspectivismo: estudos sobre a percepção em Gurwitsch e Merleau-Ponty. 2022, p. 247, Tese (Doutorado em Psicologia) Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, 2022. RESUMO O propósito deste trabalho é apresentar e confrontar dois modelos distintos de fenomenologia da percepção, representados pelos pensamentos de Aron Gurwitsch e Maurice Merleau-Ponty, tecendo paralelos e localizando as divergências específicas em seus modos de teorizar a estrutura perspectiva da experiência sensível. Em ambos os autores, a investigação do perspectivismo é motivada pela elaboração filosófica do caráter paradoxal da abertura perceptiva. No discurso fenomenológico assumido pelos pensadores, a percepção lança-nos a um mundo de objetos sensíveis, apresentados na experiência direta como objetos reais, sob a condição de que esta visada seja constitutivamente inacabada e aberta. A concretude do real não se opõe ao perspectivismo da experiência: são fenômenos inextrincáveis. Em Gurwitsch e Merleau-Ponty, a operacionalização filosófica desta inextrincabilidade se perfaz na tarefa de conciliar a inesgotabilidade do percebido, o perspectivismo essencial dos objetos espaciais, cuja dimensão horizontal e fugidia é, precisamente, o que os definem enquanto objetos reais, com a inerência do sujeito a um ponto de vista, este perspectivismo evidenciado pela nossa condição de seres finitos. Nesta dupla significação do perspectivismo, a comparação das teses de Gurwitsch e Merleau-Ponty nos permite colocar em relevo a tensão entre um elemento fenomenológico, a descrição das estruturas essenciais da manifestação dos objetos à consciência, e um elemento antropológico, marcado pela ênfase na finitude, na encarnação e no enraizamento do sujeito perceptivo em suas situações concretas. Nossa investigação busca retraçar e entrecruzar os percursos que conduzem os autores a elaborar o vínculo entre a a teoria da doação por perfis, oriunda da análise fenomenológica, e a reflexão sobre o essencial arraigamento da experiência em um ponto de vista, o que nos exigirá o aclaramento do caráter antecipatório, prático e encarnado da percepção. Levando em consideração que o tema do perspectivismo constitui o alicerce de suas elaborações fenomenológicas acerca da organização perceptiva, a acareação de seus pensamentos se realiza à luz do duplo arcabouço conceitual, central para estes pensadores, concernente ao pensamento de Husserl e às elaborações descritivas da Psicologia da Gestalt. Palavras-chave: Fenomenologia, Gurwitsch, Merleau-Ponty, Percepção, Perspectivismo. MARANGONI, Pedro Henrique Santos Decanini. The adumbrations of perspectivism: studies on perception in Gurwitsch and Merleau-Ponty. 2022, p 247. Thesis (Doctorate in Psychology). – São Paulo State University (UNESP), School of Sciences, Humanities and Languages, Assis, 2022. ABSTRACT The purpose of this work is to present and confront two distinct models of phenomenology of perception, represented by the thoughts of Aron Gurwitsch and Maurice Merleau-Ponty, weaving parallels and locating specific divergences in their ways of theorizing the perspectival structure of sensitive experience. In both authors, the investigation of perspectivism is motivated by the philosophical elaboration of the paradoxical character of perceptual openness. In the phenomenological discourse shared by both thinkers, perception launches us into a world of sensible objects, presented in direct experience as real objects, under the condition that this visage is constitutively unfinished and open. The concreteness of the real is not oposed to the perspectivism of experience; rather, they are inextricably linked. In Gurwitsch and Merleau-Ponty, the philosophical operationalization of this inextricability is made in the task of reconciling the inexhaustibility of the perceived, the essential perspectivism of spatial objects, whose horizontal and elusive dimension is precisely what defines them as real objects, with the inherence of the subject to a point of view, this perspectivism evidenced by our condition as finite beings. In this double meaning of perspectivism, the comparison of Gurwitsch's and Merleau-Ponty's theses allows us to place in relief the tension between the phenomenological element, the description of the essential structures of the manifestation of objects to consciousness, and the anthropological element, marked by the emphasis on the finitude, the embodiment, and the rootedness of the perceptual subject in his concrete situations. Our investigation seeks to trace and intersect the paths that lead the authors to elaborate the link between the theory of perceptual adumbration, originating from phenomenological analysis, and the reflection on the essential rootedness of experience in a point of view, which will require us to clarify the anticipatory, practical, and embodied character of perception. Taking into consideration that the theme of perspectivism constitutes the foundation of their phenomenological elaborations about perceptual organization, the comparison of their thoughts is made in the light of a double conceptual framework, central to these thinkers, concerning Husserl's thought and the descriptive elaborations of Gestalt Psychology. Keywords: Phenomenology, Gurwitsch, Merleau-Ponty, Perception, Perspectivism. AGRADECIMENTOS Minha mais profunda gratidão a todos e a todas que participaram, direta ou indiretamente, desta romaria chamada doutorado. Dedico este trabalho à Paula, companheira da minha vida. Agradeço pelo amor, compreensão e cumplicidade na forma de olhar o mundo. Aos meus pais, Célio e Alexandra, e à Isadora, minha irmã, agradeço de toda alma por pavimentarem meu percurso com carinho e presença. Ao Filipe, meu cunhado, por toda força e presença em minha família. Agradeço a minha família, especialmente minha tia Mônica, a quem sou grato por instigar em minha vida o desejo pelo conhecimento e a fascinação pela leitura. À Vó Vita (In memoriam) e à Vó Carmen (In memoriam), meus anjos da guarda. Agradeço ao clã Belavenute: Eliane, Vitor, João, Bruna e Gê, minha segunda família, pelo suporte e carinho. Aos meus irmãos e irmãs de caminhada: Maico, Lucas, Mário, Lourenço, Chris, Jaqueline, Ricardo, Roberto, Gonzalo, Mayara, Emily, Miguel, Marita, Magayver, pela leveza que trazem e pela habilidade tão única de sempre renovar meu coração de afeto. Ao Joquinha, meu fiel escudeiro desde 2013. Aos companheiros e companheiras do grupo de pesquisa, GeFeFiPe, pelas trocas e discussões sempre vivas. Agradeço especialmente ao Hernani, à Rafaela e ao Samuel, parceiros intelectuais e amigos para a vida. Agradeço à Unesp/Assis, núcleo de meu ser, por sua gente maravilhosa e prestativa, por seus convites inusitados e por seu charme atemporal. Agradeço, especialmente, à equipe técnica da Pós-graduação, sobretudo, à figura do João; aos funcionários e funcionárias de Biblioteca, e ao Márcio, do escritório de pesquisa, pela presteza, respeito e paciência às minhas demandas sempre frequentes. O trabalho de vocês é o alicerce invisível de toda tese. Ao professor Etienne Bimbenet, meu supervisor de pesquisa em Paris, sou grato pelo acolhimento e contribuições singulares à minha forma de pensar. Agradeço aos funcionários e funcionárias do Archives Husserl de Paris, por me possibilitarem um contato acadêmico rico na École Normale Superieure. Aos amigos e amigas do grupo de pesquisa na França – ARP (Atelier de Recherches Phènomenes) que sempre me instigaram o exercício do pensamento. Agradeço, especialmente, ao Marco, Raphäel, Verônica, Luz e Jing. Também, agradeço às pessoas incríveis que alegraram e compartilharam das lágrimas e sorrisos numa Paris longínqua: Samuca, Fabião, Raquel, Cibele e Beatriz. Um salve saudoso à bela e acolhedora casa dos estudantes suecos, na Cidade Universitária de Paris, meu Umwelt parisiense e incubadora original desta tese. Um abraço afetuoso aos meus amigos e amigas de Botucatu (the social workers); esta nova trilha que percorro com um sorriso no rosto. Aos professores Matheus Hidalgo e Sávio Passafaro, agradeço profundamente pelos valiosos apontamentos no exame de qualificação. À banca de defesa, constituída pelos professores André Andrade, Claudinei Freitas, Marcelo Carbone e Matheus Hidalgo, agradeço por terem feito parte, indireta e diretamente, do meu percurso de pensamento. Agradeço, imensamente, por terem aceitado o convite para participarem desta banca. Ao mestre Danilo, meu carinho incomensurável e meu respeito eterno. Obrigado por sempre acreditar em mim. Agradeço à Fundação de Amparo à pesquisa do Estado de São Paulo- FAPESP (processo no país nº 2017/15348-3 e processo BEPE: 2019/ 11870-2) por ter fornecido o apoio financeiro e institucional necessário para a realização desta pesquisa. Tenho vontade de ver as coisas como realmente são mas só consigo ver através de meus olhos Luiz Olavo Fontes - Cegueira Como quem num dia de Verão abre a porta de casa E espreita para o calor dos campos com a cara toda, Às vezes, de repente, bate-me a Natureza de chapa Na cara dos meus sentidos, E eu fico confuso, perturbado, querendo perceber Não sei bem como nem o quê... Mas quem me mandou a mim querer perceber? Alberto Caeiro, Poema XXII- O Guardador de Rebanhos. SUMÁRIO Introdução............................................................................................................................. 12 Ordem dos capítulos e apontamentos metodológicos............................................................18 Observações históricas...........................................................................................................24 Capítulo I - A linguagem da inadequação: o perspectivismo na fenomenologia transcendental de Husserl...................................................................................................29 1.1) O perspectivismo na análise eidética: a teoria de doação por perfis.............................. 29 1.2) Estrutura e função do noema.......................................................................................... 48 Capítulo II - A organização do sentido: o perspectivismo na fenomenologia-gestáltica de Gurwitsch......................................................................................................................... 62 2.1) Notas sobre a fenomenologia-gestáltica de Gurwitsch....................................................63 2.2) O perspectivismo da Psicologia da Forma: a crítica à hipótese de constância..................67 2.2.1) O sentido fenomenológico da Psicologia da Gestalt: a interpretação de Gurwitsch.....76 2.3) O perspectivismo noemático............................................................................................79 2.3.1) Consciência de identidade e estrutura noemática.........................................................80 2.3.2) Sobre a organização.....................................................................................................86 2.3.3) As implicações perceptivas...........................................................................................91 2.4) O sentido e a co-presença...............................................................................................98 Capítulo III- O transbordamento do olhar: atitude categorial e multiplicidade perspectiva .........................................................................................................................108 3.1) Esclarecimentos histórico-conceituais...........................................................................108 3.2) A noção de atitude categorial........................................................................................111 3.3) Tipicalidade perceptiva e intuição categorial em Gurwitsch..........................................118 3.3.1) Do tipo à categoria......................................................................................................124 3.3.2) A interpretação fenomenológica da atitude categorial................................................126 3.4) A determinação antropológica da atitude categorial em Merleau-Ponty........................128 3.4.1) A multiplicidade perspectiva........................................................................................134 Capítulo IV- Intermezzo: a dimensão metodológica do perspectivismo.......................145 4.1) A crítica ao pensamento objetivo e seu embasamento metodológico...........................146 . Capítulo V- A síntese carnal das implicações perceptivas ............................................162 5.1) A elaboração do paradoxo.............................................................................................162 5.2) O centro de perspectiva.................................................................................................166 5.2.1) Notas sobre o esquema corporal................................................................................169 5.2.2) A intencionalidade motora...........................................................................................175 . Capítulo VI- O autos da percepção e o corpo marginal....................................................188 6.1) O sentido encarnado......................................................................................................188 6.2) Os aspectos, as coisas e o sensível..............................................................................194 6.3) Corpo: sujeito da percepção?.........................................................................................203 6.4) O corpo marginal e a tese da irrelevância......................................................................211 6.4.1) A estrutura da autoconsciência e a existência encarnada..........................................214 6.5) Apontamentos críticos....................................................................................................221 6.5.1) Aportes contemporâneos............................................................................................222 6.5.2) O objetivismo de Gurwitsch....................................................................................... 225 Considerações Finais........................................................................................................ 232 Referências......................................................................................................................... 239 12 INTRODUÇÃO O propósito deste trabalho é apresentar e confrontar dois modelos distintos de fenomenologia da percepção, representados pelos pensamentos de Aron Gurwitsch e Maurice Merleau-Ponty. Esta tarefa comparativa se orienta pelo objetivo específico de tecer paralelos e localizar divergências em seus modos de teorizar a estrutura perspectiva da experiência sensível, tratada aqui sob a alcunha de “perspectivismo”. O estabelecimento deste exercício de cotejo demanda considerarmos suas compreensões particulares da fenomenologia de Husserl e da Psicologia da Gestalt, visto que ambos os pensadores desenvolveram suas teorias valendo-se de insights teórico-metodológicos advindos, sobretudo, destas duas ordens de pensamento. No plano da análise fenomenológica, de caráter central para nosso trabalho, localizamos o cerne da ideia de perspectivismo na teoria da doação por perfis [Abschattungen] de Husserl (1913/1950). Presente desde escritos como Investigações Lógicas (HUSSERL, 2012), Coisa e Espaço (HUSSERL, 1989) até textos como Ideias para uma Fenomenologia Pura e para uma Filosofia Fenomenológica (HUSSERL, 1950/2016), a teoria da doação por perfis é basilar ao estudo fenomenológico da percepção e discorre sobre a essência do modo de manifestação dos objetos espaciais à consciência, definindo tal doação como unilateral, perspectiva ou perfilática. O perfil [Abschattung] é o emblema de uma inadequação (HUSSERL, 1950/2016, §44) essencial da percepção; todo objeto espacial se exibe por lados ou aspectos em presença imediata, enquanto resguarda uma dimensão ausente, virtualmente passível de ser percebida. O perspectivismo assim definido possui o valor de verdade eidética sobre a percepção; ele designa “aquilo sem o quê” um fenômeno não pode ser chamado de perceptivo. O exame do perspectivismo nos coloca face ao problema de criar um enredo único para dois fenômenos que, aparentemente, se contradizem: de um lado, o objeto percebido se doa como uma presença carnal, sua aparição ao sujeito é definida por sua apresentação em “carne-e-osso” (HUSSERL, 1913/1950); de outro, essa carnalidade da coisa frente à percepção parece contrastar com o fato mesmo de que vemos o objeto apenas perspectivamente. Como podemos visar a coisa em sua concretude se ela nunca se revela inteiramente? 13 “A percepção é, pois, um paradoxo, e a coisa percebida é em si mesma paradoxal”, escreve Merleau-Ponty (1990, p.48). O tratamento fenomenológico deste “paradoxo” da percepção nos conduz a caracterizar a dimensão excessiva ou horizontal do percebido. A aparência presente comporta referências não-temáticas àquilo que não vejo; ela porta em sua presença a marca tímida da ausência, que a reflexão deve procurar caracterizar. Nesta compreensão fenomenológica, cara aos autores em questão, entende-se que a investigação sobre o modo de doação dos objetos percebidos não se furta à tarefa de descortinar a estrutura horizontal da percepção; na verdade, a análise sobre a composição perspectiva da percepção exige ou requer que investiguemos esse excesso fundamental do percebido sobre a visada que o apresenta, pois é a perspectiva que “faz com que o percebido possua nele mesmo uma riqueza escondida e inesgotável, que ele seja uma ‘coisa’ (MERLEAU- PONTY, 1942/1967, p.201). Nessa direção, uma das questões mais pertinentes para nosso estudo é entender como os autores endereçaram a temática do horizonte perceptivo, o problema do enovelamento da ausência na presença, esta “implicação” do não-visto no visível, que está na raiz da constatação de que visamos a coisa em carne-e-osso e não um signo de uma realidade em-si, ou inacessível. Vejo a mesa deste ponto vista, sob esta orientação; isto não significa, contudo, que eu veja o perfil ou o lado da mesa – é o próprio objeto que eu encontro na percepção. Desta maneira, o perspectivismo comungado por estes autores, oriundo da análise eidética da teoria de doação por perfis, configura-se como um discurso sobre o real. A fenomenologia não seria partidária de uma espécie de relativismo epistemológico, que afirmaria a impossibilidade de conhecer a realidade, concebendo o perspectivismo no plano do conhecimento. A consideração de que o perspectivismo da coisa é a marca mesmo de sua pertença ao real se afigura íntima à discussão sobre os perfis e o horizonte, apresentando-se como um tópico central de investigação. Na junção destes temas, um dos objetivos que alicerçam este trabalho é, portanto, inquirir as maneiras pelas quais Gurwitsch e Merleau-Ponty conceberam esta “implicação” fundamental das aparências perceptivas entre-si. A relação entre o objeto e seu horizonte interno, seus lados não-vistos, assim como sua imersão em um contexto, um horizonte externo, são estruturas fundamentais que nos permitem aprofundar o tema do perspectivismo sem o risco de guinadas relativistas. Se o perspectivismo é o alicerce do real, então a transcendência da coisa não pode se 14 apagar ou se dissolver em cada ponto de vista; a coisa, em sua transcendência, comunga ou demanda a variação perspectiva e, nesse sentido, ela nos é dada como uma “verdade intersubjetiva” (MERLEAU-PONTY, 1942/1967, p.229). Meu ponto de vista e o ponto de vista do outro sobre o objeto não se anulam ou se esfacelam, mas se complementam e possibilitam sua determinação. Porém, o estudo da percepção em sua conotação eidética, sob a forma da teoria de doação por perfis, é apenas um dos lados da moeda do perspectivismo. A própria acepção comum da palavra “perspectiva”, assemelhada à ideia de ponto de vista, já nos convida a investigar o sentido do perspectivismo como um outro tipo de discurso, cuja função não seria apenas desvelar a estrutura fenomenológica da coisa. A incumbência de estudar esta outra face do perspectivismo equivale a elevar ao largo da reflexão filosófica este fato fundamental: vejo o mundo daqui, deste lugar, com este corpo e nesta situação histórica específica. Assim, o perspectivismo é uma forma de expressar o enraizamento da experiência em um ponto-de-vista, em um certo mundo histórico-social etc. A reflexão sobre a perspectiva assume, então, uma roupagem antropológica, cujo representante, aqui, é Merleau-Ponty. Assimilado ao lado do sujeito perceptivo, e não tão somente à estrutura de doação do objeto espacial, o perspectivismo nos escolta aos temas da encarnação da visão ou do enraizamento da percepção em oposição à metafísica de sobrevôo, cara ao pensamento moderno, que recoloca, no lugar do sujeito vivente, o sujeito pensante. Sob este ângulo, o perspectivismo denota a essencial centralidade de toda experiência – ver é sempre ver de algum lugar. Se a reflexão sobre o modo de doação dos objetos espaciais implica levar em conta a existência de um horizonte de indeterminação que acompanha a presença do objeto, uma transcendência operativa na constituição do real, o perspectivismo, considerado sob a égide do “ponto de vista”, enquanto origem carnal da percepção, exige uma reflexão que se detenha sobre a esfera de virtualidade ou possibilidade que se abre no coração da experiência – vejo daqui mas posso ver dali. Se “ver é sempre ver mais do que se vê” (MERLEAU-PONTY, 1964/1979, p.295), a atenção à perspectiva não equivale apenas a refletir sobre a percepção atual, ou sobre a face que o objeto nos mostra. Em outras palavras, a centralidade da percepção humana, o fato de que minha percepção parece se fazer “daqui”, porta em seu germe a capacidade de uma oscilação ou de uma descentralização “mais ou menos” possível (BIMBENET, 2011/2014; 2012a). Não posso inteiramente me desapropriar de meu ponto de vista, tornando-me uma visão desencarnada, alheia a 15 minha ancoragem no mundo, ou se quisermos, não posso assumir uma perspectiva “sem perspectiva”, uma visão de 360º graus sobre o objeto. Posso, no entanto, visar aquilo que há multiplicando meus olhares, alterando meus pontos de vista e, nesse sentido, ensaiando, sempre, uma descentralização que jamais é completa e que, ao mesmo tempo, não desintegra a coisa em aparências ilusórias. O encontro da percepção com o percebido se perfaz em “uma só visão com mil olhares” (MERLEAU- PONTY, 1945/1976, p.84) - a visão do objeto nesta perspectiva já é um convite a vê- lo por outro ponto de vista. A descentralização de nossa inerência ao atual em direção a pontos de vista possíveis demanda uma reflexão sobre esta posição fundamental do espaço a partir do qual as coisas aparecem: o corpo. A investigação do perspectivismo em sua acepção ‘subjetiva’, tomado como “ponto de vista”, deve assumir como tarefa entender a interação carnal entre a inerência do sujeito a um determinado situs, esta teimosia constitutiva de toda experiência em jamais deixar de situar-se completamente, e sua necessária potencialidade, ou referencialidade a outros pontos de vista, motivo que configura nossa experiência também como um processo de descentralização. O nó formado na tensão entre a doação perfilática da coisa e a inerência vital do sujeito a um ponto de vista configura, ao menos ao nosso ver, a estrutura do que chamamos de perspectivismo. O perspectivismo se averigua não apenas como o modo designativo da percepção humana, mas expressa, principalmente, uma certa forma de se apossar da paradoxal relação entre o real, tomado enquanto real transcendente, e a perspectiva, estigma de nossa finitude. Nessa direção, uma das questões centrais é a seguinte: como a multiplicidade do ver, emblema mesmo de uma percepção humana, se coaduna com a objetividade do real? É na confrontação entre as compreensões específicas de Gurwitsch e Merleau-Ponty destas duas faces complementares do perspectivismo, a inerência da experiência a um ponto de vista e a essencial unilateralidade da doação dos objetos espaciais, que se situa nossa intenção metodológica. Esta confrontação nos evidenciará as diferenças entre uma filosofia da consciência e uma filosofia devotada à dimensão encarnada da experiência. Nos pensamentos de Husserl e Gurwitsch, tanto a centralidade quanto a possibilidade da experiência, são compreendidas no interior da rede de atos de consciência que constituem o objeto. Para os autores, é importante esclarecer como a pluralidade de perfis exibida pelo objeto pode, justamente, confluir em uma unidade 16 coerente, afinal de contas, perceber um objeto não equivale a perceber seus lados ou aspectos isoladamente e religa-los por um outro tipo de síntese para, daí então, formar sua unidade objetiva. Somos endereçados ao problema do sentido, referente à estrutura de identidade na multiplicidade, e sua constituição na relação com os elementos internos do objeto e seu contexto. No interior da problemática fenomenológica em sua acepção transcendental (HUSSERL, 1950/2016; GURWITSCH, 1957), o artifício conceitual utilizado para compreender a estrutura de identidade-multiplicidade que caracteriza o processo perceptivo consiste na ideia de noema. Para Husserl (1950/2016), há na estrutura interna do noema, do objeto tal qual aparece sob uma determinada orientação para o sujeito, um componente central responsável por organizar a multiplicidade, em torno de um núcleo invariável, e que permite a re-identificação do objeto sob outros modos de doação. Este componente é, justamente, o sentido. A tentativa de delimitar a natureza da relação entre sentido e objeto é um dos pontos mais importantes e, ao mesmo tempo, mais problemáticos que a fenomenologia deve enfrentar no interior do tema do perspectivismo. A compreensão da obra de Gurwitsch, a seu turno, demanda a referência constante à fenomenologia transcendental de Husserl, tal como se pode notar em sua tese de doutorado (GURWITSCH, 1929/2009a)1. A necessidade de preparar a leitura de Gurwitsch a partir da introdução a Husserl não é, no entanto, genérica. Orientados pela seara de problemas concernentes ao perspectivismo perceptivo, veremos como a fenomenologia da percepção de Gurwitsch é marcada por uma interpretação original do perspectivismo de Ideias I. Sustentamos que Gurwitsch é capaz de providenciar um modelo incipiente de perspectivismo perceptivo pautado na imbricação entre a teoria da doação por perfis e a teoria do noema. Trata-se, a nosso ver, de uma tentativa, correlata a de Merleau-Ponty em sua intenção geral, de “encarnar” o sentido perceptivo em sua manifestação sensível. A concepção de que o sentido é “encarnado” em sua manifestação sensível é uma interpretação que se constrói a partir do domínio teórico aberto pela noção de Gestalt. Interessa-nos mostrar como Gurwitsch desenvolve uma interpretação específica do noema perceptivo que o 1 Na primeira página de Fenomenologia da Temática e do Eu puro lê-se: “Em relação aos seus problemas, o presente trabalho preocupa-se com a obra de Husserl, Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica, volume I. De acordo com Ideias, a fenomenologia é uma ciência eidética da consciência e de suas estruturas mais gerais. Esta concepção fundamental serve como base na qual as análises presentes são desenvolvidas e definem o ponto de vista histórico deste ensaio. Será fenomenologia no sentido estabelecido em Ideias” (GURWITSCH, 1929/2009a, p. 193). 17 habilita a pensar o sentido, cuja natureza é definida primordialmente como ideal e a- espacial, a partir dos termos propostos pelo perspectivismo da teoria de doação por perfis. Veremos, em sequência, quais são os avanços e os problemas que surgem em sua reflexão na reinterpretação do noema pela via da Psicologia da Gestalt. Nossos esforços para apresentar e discutir a filosofia de Merleau-Ponty se encaminham no sentido de demonstrar que sua elaboração filosófica do perspectivismo está intimamente vinculada ao exame deste paradoxo constitutivo da percepção, ditado pelo entrelaçamento entre a dimensão objetiva e excedente da coisa, o em-si, e a dimensão presentificadora da subjetividade, o para-si. A discussão sobre Merleau-Ponty será realizada tendo como fundo este modelo “clássico” de fenomenologia da percepção, representado, aqui, por Gurwitsch. Por essa razão, a introdução do pensamento do filósofo francês será “tardia” e começará no capítulo III. Nosso intuito é mostrar como o filósofo francês se serve da estrutura metodológica- conceitual da fenomenologia e da Gestalt na compreensão do perspectivismo sem, no entanto, recair no mesmo tipo de abordagem cara à Gurwitsch. Mesmo que Merleau-Ponty empregue as recomendações basilares de Husserl sobre a estrutura da doação perceptiva, seu perspectivismo não se restringe à esfera do discurso fenomenológico; há uma tendência antropológica na reflexão de Merleau-Ponty sobre o perspectivismo, que será avaliada a partir do campo teórico-experimental aberto pela noção de Estrutura. Com efeito, como tentaremos demonstrar, a reflexão sobre a inadequação da coisa, seu caráter aberto e horizontal, exige levar em consideração a esfera “carnal” do perspectivismo – o fato de que a síntese do objeto se faz para um sujeito encarnado e situado em um ponto de vista. Uma síntese da posição que buscaremos clarificar pode ser encontrada na citação a seguir: Não é por acidente que o objeto se oferece deformado a mim, segundo o lugar que eu ocupo; é a este preço que ele pode ser “real”. A síntese perceptiva deve pois ser completada por aquele que pode delimitar nos objetos certos aspectos perceptivos, únicos atualmente dados, e, ao mesmo tempo, superá-los. Esse sujeito que assume um ponto de vista é meu corpo como campo perceptivo e prático, enquanto meus gestos têm um certo alcance e circunscrevem, como meu domínio, o conjunto de objetos que me são familiares (MERLEAU-PONTY, 1990, p.47) Ademais, sugerimos que as teorias da organização perceptiva de Merleau- Ponty e de Gurwitsch encontram certa convergência em torno da Psicologia da 18 Gestalt, mas divergem completamente no que concerne a interpretação da fenomenologia de Husserl. Sustentamos que em ambas as teorias da percepção existe uma preocupação em entrelaçar três teses sobre a percepção, derivadas do fenômeno fundamental da doação perspectiva. Tratam-se das seguintes ideias: a) o objeto é uma unidade na multiplicidade; b) a síntese perceptiva é também uma unidade sempre aberta e inacabada; c) o campo perceptivo é autóctone, isto é, ele não depende de fatores extrassensíveis, como atos de coligação explícita, para a formação do sentido daquilo que aparece. O detalhamento das convergências e diferenças teóricas concernentes a estas três teses forma a espinha dorsal de nosso trabalho. Ordem dos Capítulos e apontamentos metodológicos. Nossas análises se desenvolvem em seis capítulos, dedicados a tratar das estruturas metodológico-conceituais, fenomenológico-gestálticas, que fundamentam as visões de Gurwitsch e Merleau-Ponty sobre o perspectivismo perceptivo. Apresentaremos, primeiro, um quadro resumido das intenções de cada estudo e, em seguida, explicitaremos em mais detalhes seus objetivos e a natureza de suas discussões. Sinteticamente, o propósito geral de cada capítulo pode ser expresso como segue : I) apresentação da abordagem fenomenológica do perspectivismo, em Husserl; II) exposição do perspectivismo fenomenológico-gestáltico em Gurwitsch; III) discussão do perspectivismo com base na comparação das interpretações de Gurwitsch e Merleau-Ponty a respeito do conceito de atitude categorial, oriundo das pesquisas de Goldstein; IV) exposição da composição metodológica que permite Merleau-Ponty elaborar uma crítica ao pensamento objetivo, na Fenomenologia da Percepção, sob a influência de Gurwitsch; V) elucidação da correlação entre organização perceptiva e organização corporal em Merleau-Ponty; VI) debate de cunho comparativo entre as teorias de Gurwitsch e Merleau-Ponty, acerca das relações entre a auto-organização perceptiva e a experiência do corpo-próprio. A seguir, oferecemos uma sinopse ampliada de cada um destes seis capítulos, ao mesmo tempo em que delineamos um conjunto de justificativas metodológicas que explicam a ordem escolhida. 19 O objetivo de nosso capítulo inicial é avaliar a estrutura do perspectivismo perceptivo na obra Ideias I2, de Husserl. Nosso intuito é elucidar a composição da teoria de doação por perfis, no interior da análise eidética, transitando à clarificação da elaboração do conceito de noema. Malgrado o fato de que a apresentação da teoria de doação por perfis [Abschattungen] não é uma novidade da obra de 1913, nela o perspectivismo será integrado a preocupações transcendentais, relativas à constituição do objeto no âmbito da consciência purificada pela redução. Daí nosso interesse neste trabalho específico de Husserl: compreender qual a função do perspectivismo no interior de uma fenomenologia transcendental, para a qual toda objetividade, toda presença perceptiva, passa a ser referida a atos ou a conjuntos de atos que a constitui. Elencamos quatro razões que justificam a escolha de começar a discussão sobre o perspectivismo por Ideias I. Em primeiro lugar, temos uma razão de ordem estrutural. A exposição de Ideias I (HUSSERL, 1913/1950; 2016) nos permite apresentar certos conceitos fundamentais da teoria fenomenológica, como as ideias de atitude natural, atitude fenomenológica, intencionalidade, noese e noema, para os quais qualquer elaboração fenomenológica, deve, em algum momento, voltar-se. Em segundo lugar, mais especificamente, veremos que a teoria de doação por perfis, pensada no interior da trajetória transcendental, auxilia Husserl a afirmar a absolutidade da consciência em oposição ao modo de ser contingente do mundo percebido. A explicitação desta oposição é fundamental, visto que ela permite formular o perspectivismo da coisa a partir da noção de “inadequação” (HUSSERL, 1950, §44). Para Husserl, a consciência é adequada e absoluta – ela não pode não ser, ao passo que o objeto, porquanto se mostra perspectivamente, é essencialmente contingente, sempre aberto à possibilidade do não-ser. Neste sentido, a teoria de doação por perfis nos oferece uma concepção do real enquanto inadequado, perfilático e indeterminado. Em terceiro lugar, esta apresentação específica do perspectivismo é central para a compreensão da fenomenologia da percepção de Gurwitsch. Por meio dos desenvolvimentos teóricos de Ideias I, acessamos o núcleo de sua concepção do “perspectivismo”. Na verdade, sustentaremos a hipótese de que Gurwitsch busca a convergência entre dois elementos fundamentais da fenomenologia da percepção de 2 Nossas citações a este trabalho serão tanto referenciadas pela tradução francesa realizada por Ricoeur (HUSSERL, 1950), quanto pela versão brasileira elaborada por Márcio Suzuki (HUSSERL, 2016). Salientamos que o trabalho original foi publicado em 1913. 20 Husserl. O filósofo lituano aproxima a noção de perfil [Abschattungen], tal como pensada na teoria de doação por perfis, com o conceito de noema. Esta aproximação é o que chamamos de “perspectivismo noemático”. O noema recebe uma interpretação própria do punho de Gurwitsch, que o concebe como o objeto tal como visado em uma dada perspectiva ou orientação. Nosso quarto motivo nos encaminha a Merleau-Ponty. Embora Ideias I não tenha exercido sobre o filósofo francês o mesmo impacto que exerceu sobre Gurwitsch, o perspectivismo husserliano marca de forma importante o desenvolvimento da teoria da percepção de Merleau-Ponty. N’A Estrutura do Comportamento, observamos o filósofo discorrer, logo nas primeiras páginas de seu último capítulo, sobre o que ele próprio chama de perspectivismo perceptivo, fazendo referência às reflexões centrais de Husserl, desenvolvidas entre os §41 e §44, da obra de 1913 (MERLEAU-PONTY, 1942/1967, p.201). No âmbito da Fenomenologia da Percepção, a seu turno, as menções à Ideias I são esparsas e referem-se tanto ao tratamento da percepção quanto à formulação do método fenomenológico. No entanto, o instrumental providenciado por Husserl em Ideias I será, indiretamente, importante para a discussão do pensamento de Merleau-Ponty. Eis a razão: ao entendermos a teoria da doação por perfis em sua roupagem transcendental, estamos aptos a compreender o que em suas formulações é criticado ou rejeitado por Gurwitsch e isto, por sua vez, nos habilita a apresentar e discutir a natureza das críticas endereçadas pelo autor lituano a Merleau-Ponty, em sua obra magna O Campo de consciência (GURWITSCH, 1957). Reiteramos que esses são os motivos que, a nosso ver, justificam a decisão de iniciar uma investigação sobre o perspectivismo tomando como objeto de análise a obra de Husserl. No segundo capítulo, apresentamos alguns pontos centrais que marcam a elaboração do perspectivismo na fenomenologia-gestáltica de Gurwitsch. Investigamos como a apropriação de determinados princípios da Psicologia da Forma permite uma reformulação do perspectivismo husserliano de Ideias I, ainda pautado em uma concepção dualista de percepção, oriunda da repartição entre as sensações e os atos doadores de sentido (GURWITSCH, 1929/2009a; 1957). De acordo com Gurwitsch, a crítica realizada pela Psicologia da Gestalt à hipótese de constância, segundo a qual à cada sensação deve corresponder um estímulo objetivo, se traduz para uma orientação noemática e possui o valor de uma redução fenomenológica incipiente (GURWITSCH, 1929/2009a; 1957). A crítica à hipótese de constância conduz, ainda que com ressalvas, à esfera do sentido, ao domínio noemático ou, se 21 preferirmos, ao campo da experiência direta. O valor metodológico desta crítica é fundamental para uma discussão acerca do perspectivismo perceptivo, tendo em vista que o naturalismo da Psicologia científica possui como característica, justamente, a obliteração da perspectiva em prol de uma concepção totalmente determinada da realidade. Adiantamos que o capítulo IV, dedicado a Merleau-Ponty, se serve desta exposição “metodológica” do perspectivismo. Ainda no capítulo II, salientamos que a crítica à hipótese de constância será apoiada no trabalho de Kurt Koffka (1936). Finalizada tal etapa, seguimos para a discussão acerca do noema, momento em que nossa tarefa consistirá em colocar em relevo a releitura do sentido perceptivo a partir da ideia de Gestalt, proposta por Gurwitsch. Mostramos que uma tal redefinição torna possível uma concepção perspectiva de sentido, a qual buscaremos avaliar a plausibilidade. Ao final, tratamos da relação entre o sentido daquilo que aparece – o tema - e sua relação com o contexto, ou campo temático (GURWITSCH, 1957), sublinhando a função que este tem de ser um vetor perspectivo ou de conferir uma orientação ou uma luz sob a qual aparece o objeto percebido. A respeito das particularidades que o tema do perspectivismo assume ao longo da obra de Merleau-Ponty, é necessário esclarecermos, tão logo, três questões metodológicas fundamentais. Em primeiro lugar, o perspectivismo de Merleau-Ponty, ao qual fazemos alusão neste trabalho, refere-se ao contexto de suas duas primeiras obras: A Estrutura do Comportamento (MERLEAU-PONTY, 1942/1967) e a Fenomenologia da Percepção (MERLEAU-PONTY, 1945/1976). Isto deve ser destacado em virtude do fato de que, na fase “intermediária” de seu pensamento, o perspectivismo, a assunção da transcendência na variação perfilática, será substituído por formulações atinentes ao arcabouço conceitual oriundo da linguística de Saussure, que encontra na ideia de “diacriticidade” um outro modelo de compreensão da dinâmica perceptiva. A síntese dos perfis formando a unidade do objeto cede lugar a uma reforma mesma na própria noção de consciência como apreensão de objetos positivos; o sentido perceptivo não será mais definido como essência ou como unidade na multiplicidade, mas como sentido lacunar produzido na diferença entre os signos, assim como na linguagem (MERLEAU-PONTY, 2011). A segunda observação metodológica refere-se à própria discussão do perspectivismo no interior da Fenomenologia da Percepção. Em última análise, ao final da obra, o fundamento responsável pelo sentido, pela organização espontânea e significativa do sensível, é a temporalidade. Contudo, nos interessa, especificamente, compreender o problema 22 da síntese perceptiva em sua correlação com a síntese do corpo-próprio, especialmente, pelo fato deste tema constituir o núcleo central das críticas desenvolvidas por Gurwitsch, em O Campo de consciência (GURWITSCH, 1957). Por essa razão, não adentraremos a fundo no problema da temporalidade. Em decorrência do fato de que o problema do “perspectivismo”, a nosso ver, está restrito ao plano filosófico das primeiras obras de Merleau-Ponty, nossa terceira advertência metodológica sinaliza para a ausência de uma discussão detida sobre suas notas e comentários de leitura, escritos em 1959, a respeito de O Campo de Consciência, de Gurwitsch (MERLEAU-PONTY, 2001). Julgamos que este material é importante tanto em razão de ser a única referência significativa de Merleau-Ponty a Gurwitsch, como pelo fato de mostrar a própria dinâmica da relação entre o filósofo francês e a fenomenologia ao final de sua vida. Todavia, a análise destas notas implicaria um movimento de aclarar o abandono do perspectivismo Husserliano ao longo dos escritos dos anos 50, o que constitui o interesse de nossas pesquisas futuras. Feitas tais sinalizações metodológicas, retornemos ao conteúdo de nossos capítulos seguintes. Após a apresentação dos pontos essenciais da teoria fenomenológica da percepção, em Husserl e Gurwitsch, em nosso terceiro capítulo, transitamos a uma analise comparativa, na qual o tema do perspectivismo perceptivo será debatido na intersecção entre a fenomenologia e os desdobramentos da noção de Estrutura. Este capítulo representa um exercício de exposição e de confrontação do tema do perspectivismo, em Gurwitsch e Merleau-Ponty, baseando-se nos dispositivos teórico- experimentais aportados por Kurt Goldstein, representados pela noção de atitude categorial. Na primeira obra de Merleau-Ponty, A Estrutura do Comportamento (MERLEAU-PONTY, 1942/1967), a paisagem teórica sob a qual o conceito de perspectivismo aparece alude ao pensamento de Kurt Goldstein e ao problema da chamada “atitude categorial”, considerada como a dimensão propriamente virtual e cognitiva do comportamento humano. Este cenário conceitual específico, ainda debatido no interior do recorte sobre o tema do “perspectivismo”, é motivado pela tese historiográfica de que a transmissão do pensamento de Goldstein a Merleau-Ponty fora realizada por Gurwitsch. O estudo da noção de atitude categorial nos permitirá compreender, de forma mais específica e não apenas limitada à fenomenologia de Husserl, como a questão do perspectivismo perceptivo se desdobra em uma análise sobre a especificidade da conduta humana em relação à ordem vital, aos 23 comportamentos animais. Nosso objetivo específico, neste capítulo, é mostrar que, se por um lado, a questão do perspectivismo em Merleau-Ponty funda-se sob a problemática da atitude categorial, ou da função simbólica, como forma de caracterizar a dimensão abstrata, ideal ou virtual da conduta humana, por outro, sua leitura da dimensão idealizante da vida subjetiva será profundamente distinta daquela proposta por Gurwitsch. Está em questão tratar dos modos como os autores endereçaram o problema da virtualidade ou da horizontalidade das experiências no seio de seus desdobramentos particulares da noção de atitude categorial. O capítulo IV, por sua vez, representa uma espécie de interlúdio, em que explicitaremos como o exercício de crítica ao pensamento objetivo, realizado por Merleau-Ponty na parte introdutória da Fenomenologia da Percepção, está em consonância com a aproximação realizada por Gurwitsch entre o procedimento gestáltico de recusa da hipótese de constância e a redução fenomenológica. Especificamente, contamos mostrar que a ideia de que a crítica à hipótese de constância possui o valor de redução fenomenológica incipiente representa um fundamento metodológico importante empregado por Merleau-Ponty (1945/1976). A análise da crítica à hipótese de constância, como procedimento redutivo que permite o acesso ao campo fenomenal, acresce ao debate a importante ideia de que o campo perceptivo é, primordialmente, auto-organizado ou espontaneamente significativo. No capítulo V, passamos à exposição pormenorizada do tema da organização perceptiva, na Fenomenologia da Percepção. Priorizamos as discussões de Merleau- Ponty em torno da espacialidade do corpo-próprio. Mostraremos como o filósofo acresce à análise fenomenológica do perspectivismo uma descrição das condições carnais do ver. Desta maneira, por exemplo, a própria estrutura “objeto-horizonte”, a perspectiva, será pensada em relação aos poderes de estruturação implícitos ao engajamento do corpo no mundo. O esclarecimento do papel do corpo na organização perceptiva nos permitirá desvelar os traços fundamentais do diagnóstico crítico fornecido por Gurwitsch (1957) à teoria de Merleau-Ponty, tarefa esta que compõe o cerne de nosso último capítulo. Posteriormente, na seção final deste trabalho, propomos confrontar as teorias de Gurwitsch e Merleau-Ponty a partir das relações entre a corporeidade e a organização perceptiva. A ênfase que Merleau-Ponty confere ao corpo, concebendo- o como o “sujeito da percepção” (MERLEAU-PONTY, 1945/1976, p. 239) é uma das ideias mais censuradas pela parte de Gurwitsch, em razão, como veremos, de sua 24 fidelidade ao modelo transcendental de fenomenologia. Tais censuras percorrem desde a sinalização de um “existencialismo” vigente na leitura da redução fenomenológica de Merleau-Ponty, que implicaria uma ênfase na experiência corpórea em detrimento da posição da consciência como agente da constituição e um consequente mal-uso do arcabouço fenomenológico, até a ideia de que o filósofo francês teria cindido a coisa de suas aparições perspectivas, entendendo que a coisa ela-mesma não se expressaria por inteiro em cada aparição. Essas críticas apontam para os motivos pelos quais o modelo de fenomenologia da percepção exercido por ambos os autores não é o mesmo. Além disso, após havermos exposto os traços essenciais do problema do corpo na teoria de Merleau-Ponty, elucidaremos a posição específica de Gurwitsch, sustentada em sua obra publicada postumamente e intitulada Consciência Marginal (GURWITSCH, 1985/2010). A nosso ver, sua posição é essencialmente distinta da assumida por Merleau-Ponty e, conforme defenderemos, as reflexões do filósofo francês são mais fiéis à descrição da percepção enquanto ato de um sujeito encarnado e aberto ao mundo pelo corpo. Frisamos que, embora a disposição escolhida reúna, no decorrer da argumentação, elementos que enriquecem cada capítulo porvir, ela, no entanto, não se configura de forma teleológica ou obrigatória ao estudo do tema. A necessidade de compor um caminho próprio decorre de dois fatos fundamentais. Primeiro, o problema do perspectivismo na fenomenologia é central às análises da percepção e, nessa medida, dispõe de um número enorme de possibilidades de recorte. O caminho escolhido configura-se, a nosso ver, como uma delas. Em segundo lugar, são escassos os trabalhos que se propõem a um exercício comparativo entre as filosofias de Gurwitsch e Merleau-Ponty. Portanto, não há indicações de caminhos prévios, de modo que nossa proposição de debate não almeja esgotar a complexidade do tema e, tampouco, abarcar todas as nuances possíveis que a mobilização dos pensamentos de Gurwitsch e Merleau-Ponty ensejam. Observações históricas. Em virtude da índole comparativa deste trabalho, é importante, tão logo, afirmar que configuração geral de nossa pesquisa não é, propriamente, histórica. Não se trata, para nós, de traçar as influências do pensamento de Gurwitsch em Merleau-Ponty, o que, todavia, aparecerá como um efeito a ser trabalhado no interior de nossas preocupações. Ainda assim, uma contextualização histórica mínima se faz necessária 25 em vista do programa geral de nossas investigações, pois está em questão avaliar certas mutações que o problema do perspectivismo sofre em ambas as filosofias, a partir dos eixos abertos pela fenomenologia transcendental de Husserl e pela Psicologia da Gestalt. Algumas considerações históricas preliminares podem indicar certos pontos teóricos sensíveis da relação entre os autores, que servirão, ao menos, como horizonte para o tratamento específico do problema da percepção. Conforme sinaliza Toadvine (2001), após uma onda de interesse centrada no estudo das consequências da filosofia de Merleau-Ponty para o pós-estruturalismo e o pós-modernismo, observa-se, a partir da década de 90, um movimento acadêmico de retorno à investigação da gênese de seu legado fenomenológico. Esta tendência arqueológica, que tradicionalmente concentrava-se na Psicologia da Gestalt, na biologia Organicista de Goldstein ou nos textos finais de Husserl, depara-se, neste momento, com a figura de Aron Gurwitsch3 (PINTOS, 2007). Este movimento interpretativo pode ser encontrado, especialmente, nos artigos publicados pela professora Maria Luz Pintos (2007), que busca demarcar ideias ou expressões presentes em Merleau-Ponty com um fundo nitidamente gurwitscheano. De origem lituana, ex-aluno de Husserl e Goldstein, Gurwitsch tem se revelado um componente importante para a compreensão da formação do pensamento de Merleau-Ponty, tanto no que concerne a apresentação de temas e autores ao pensador francês quanto ao fato de ter servido de modelo para Merleau-Ponty rever sua relação com a fenomenologia em seus textos finais, conforme comenta Stephan Menasé, editor das Notas e comentários de leitura sobre o Campo de consciência, de Aron Gurwitsch (MERLEAU-PONTY, 1959/2001). Fato notável, Gurwitsch fora o primeiro filósofo a articular Fenomenologia e Psicologia da Gestalt, em sua tese de doutorado, publicada em 1929, intitulada Fenomenologia da Temática e do Eu puro. É pertinente também salientar que o autor lituano ministrou, na década de 30, seminários sobre Fenomenologia e Psicologia da Gestalt na Sorbonne, compilados na obra Esboços de Fenomenologia constitutiva (GURWITSCH, 2002). Já é notório que Merleau-Ponty teria assistido e participado de tais cursos (PINTOS, 2007). Sabe- se também que, nesta época, o jovem autor auxiliou Gurwitsch na tradução francesa 3 Aron Gurwitsch (1901-1973) foi um importante intérprete e colaborador da fenomenologia, conhecido por realizar análises exegéticas e de cunho crítico das obras de Husserl. Sua proposta de alargar os horizontes do pensamento fenomenológico se fez, sobretudo, a partir de articulações com a psicologia da Gestalt. 26 do texto Alguns aspectos e desenvolvimentos da teoria da forma (PINTOS, 2007). De acordo com o que nos relata Lester Embree, ex-aluno e amigo de Gurwitsch, em sua introdução aos Esboços (GURWITSCH, 2002), os pensadores teriam se conhecido na casa de Gabriel Marcel, em 1933, em uma situação um tanto quanto anedótica. Merleau-Ponty perguntara a Gurwitsch se ele era parente do filósofo que havia escrito Fenomenologia da temática e do eu puro, ao que o Gurwitsch, para a surpresa de Merleau-Ponty, respondeu que ele próprio era o autor da tese. Mesmo tendo em vista estes dados históricos, que nos permitem, ao menos, conjecturar a existência de alguma espécie de intercâmbio entre os autores no plano teórico, deve-se observar que, no entanto, a presença de Gurwitsch na maturação do pensamento merleau-pontyano é um tópico escassamente comentado ou, na maioria dos casos, não reconhecido em seu devido valor pela literatura crítica (PINTOS, 2007). Um dos motivos que, talvez, possam ter contribuído para uma falta de interesse no estudo das relações entre os dois autores é uma apresentação errônea da natureza historiográfica de suas interações. O principal modelo de compreensão dos dados historiográficos sobre os anos de formação de Merleau-Ponty foi, por muito tempo, o livro de Theodore Geraets (1971), intitulado Em direção a uma nova filosofia transcendental: a gênese da filosofia de Maurice Merleau-Ponty até a Fenomenologia da Percepção. Segundo Pintos (2007), Geraets cometera três erros cruciais, internamente conectados, relativos à interpretação das influências iniciais do pensamento de Merleau-Ponty. Em primeiro lugar, o autor supôs que o contato de Merleau-Ponty com a fenomenologia teria ocorrido apenas ao cabo da redação d’A Estrutura do comportamento, em 1938. Essa interpretação se justifica a partir de dois outros deslizes históricos cometidos por Geraets. Em segundo lugar, o comentador francês teria negligenciado completamente o papel desempenhado por Gurwitsch, ao longo dos anos 30, de figura intermediária entre Merleau-Ponty e os desenvolvimentos fenomenológicos e científicos da época. Os próprios projetos de pesquisa de Merleau- Ponty (1990), de 1933 e 1934, publicados pela primeira vez como apêndices ao livro de Geraets (1971), fazem referência tanto à tese de Gurwitsch, primeira obra a lidar com a articulação entre Fenomenologia e Gestalt, quanto a Husserl. Além de sua tese de doutorado, devemos conferir uma importância especial ao conteúdo dos cursos ministrados por Gurwitsch (2002), em seu período parisiense. Eis a intenção geral destes cursos: 27 [...] os quatro cursos dados por Gurwitsch na Sorbonne têm como objetivo fazer uma fenomenologia da consciência perceptiva, uma fenomenologia de como o sujeito constitui sua percepção, sua percepção do próprio corpo e sua percepção do objeto. (PINTOS, 2007, p.209) Seriam estes cursos que marcariam o estilo de Merleau-Ponty, conforme entende a autora (PINTOS, 2007). Mais especificamente, “nestes cursos Merleau- Ponty tem a ocasião de ser introduzido a uma fenomenologia da percepção”. (PINTOS, 2007, p.197). Se retornarmos às considerações de Geraets (1971), a respeito da relação do filósofo francês com Gurwitsch, deparar-nos-emos com apreciações exíguas e questionáveis. Em se tratando da mediação entre os autores em torno da Psicologia da Gestalt, por exemplo, Geraets tece o seguinte comentário: “Graças a estes estudos psicológicos, Merleau-Ponty foi capaz de ajudar A. Gurwitsch a preparar a publicação de um longo artigo sobre ‘Alguns aspectos e desenvolvimentos da Psicologia da Forma’” (GERAETS, 1971, p.14). Segundo Pintos (2007), esta citação posiciona Merleau-Ponty como uma espécie de figura intermediária entre Gurwitsch e a Psicologia da Gestalt. Este tipo de representação histórica mostra-se imprecisa e contribui para distorcer o real papel de Gurwitsch na construção do pensamento de Merleau-Ponty. O terceiro deslize historiográfico consiste na não atinência, por parte de Geraets (1971), a um conjunto de circunstâncias históricas que teriam introduzido Merleau-Ponty à fenomenologia logo no início dos anos 30. Como, por exemplo: o contato de Merleau-Ponty com Gurwitsch em 1933, o retorno de Sartre da Alemanha enfatizando a singularidade da fenomenologia frente ao neokantismo e a leitura do texto de Fink “Die phanomenologische philosophie Edmund Husserl in der gegenwartigen kritik” [A filosofia fenomenológica de Edmund Husserl face à crítica contemporânea] (FINK, 1933). Agora, atentemo-nos para duas pistas fornecidas pelo próprio Gurwitsch, que podem nos ajudar a entrever quais teriam sido suas contribuições a Merleau-Ponty. De acordo com uma carta endereçada a Alfred Schütz, datada de 15 de dezembro de 1946, o autor lituano relata ter terminado a leitura da A Estrutura do Comportamento (MERLEAU-PONTY, 1942/1967) e afirma que Merleau-Ponty utilizara muito de seus materiais sobre Goldstein, tanto aqueles impressos como as anotações dos cursos ministrados pelo filósofo lituano na década de 1930 (GRATHOFF, 1989, p.88). Em outra carta, de 11 de agosto de 1947, Gurwitsch demonstra suas impressões sobre a 28 Fenomenologia da percepção, expressando-se da seguinte forma: “Ele aprendeu muito de mim e tomou grande parte disto. Não apenas em detalhes, onde ele levou muitas coisas adiante. Eu duvido que ele teria tido a ideia de interpretar o material psicopatológico fenomenologicamente, sem a minha influência”. (GRATHOFF,1989, p.93). O curioso é que Goldstein consiste, com efeito, em uma figura central para a paisagem conceitual das duas primeiras obras de Merleau-Ponty. Mais curioso ainda, como veremos, é o fato de que a questão do perspectivismo, principalmente em sua primeira obra, é desenvolvida sob a tutela do pensamento de Goldstein4. Esta breve resenha histórica acrescida destas pistas conceituais reforça a sugestão de Lester Embree, de que “um estudo interessante poderia ser realizado concernente ao uso do pensamento de Gurwitsch por Merleau-Ponty” (EMBREE, 1981, p.1). Ainda que não seja este nosso objetivo, esperamos que nosso trabalho possa contribuir, indiretamente, ao aprofundamento dos estudos da relação entre os autores. Há certas pistas, portanto, que nos permitem inferir que Gurwitsch tivera mais influência sobre Merleau-Ponty do que seus próprios escritos parecem mostrar. Porém, não nos limitamos a buscar o que há de Gurwitsch em Merleau-Ponty, mas sim a encontrar os pontos de tensão que indicam, justamente, a natureza da diferenciação entre os autores segundo suas visões acerca do problema do perspectivismo perceptivo. O mapeamento das diferenças requer, como tentaremos mostrar, uma necessária avaliação da relação dos pensadores com duas matrizes epistemológicas fundamentais: A fenomenologia de Husserl e a psicologia da Gestalt. 4 Estas pistas oferecidas por Gurwitsch configuram o fundo histórico da análise comparativa a ser empreendida no capítulo III. 29 Capítulo I- A linguagem da inadequação: o perspectivismo na fenomenologia transcendental de Husserl. Sinopse: Neste capítulo apresentamos uma discussão específica sobre o tema da percepção tal como exposto por Husserl em sua obra Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica, de 1913. Interessa-nos analisar o problema do perspectivismo perceptivo no interior do programa transcendental desenvolvido pelo filósofo nesta obra, a partir da ideia de que a transcendência possui um modo próprio de manifestação para a consciência, marcado pela apresentação por perfis (Abschattungen). Os desdobramentos mais importantes de um tal perspectivismo notam-se em dois momentos: desde análises eidéticas da percepção, cuja função geral é delimitar a estrutura universal dos vividos de percepção e da coisa percebida, até à exposição sistemática da estrutura da intencionalidade sob o regime da redução fenomenológica. Neste segundo momento, o perspectivismo será explorado à luz do conceito de noema, a fim de que possamos verificar a plausibilidade de se pensar o perspectivismo não mais no âmbito da coisa, mas do sentido, referente ao objeto apreendido no interior da redução fenomenológica. Este capítulo representa um primeiro passo para a compreensão fenomenológica do perspectivismo, nos servindo como base para as discussões futuras sobre as filosofias de Gurwitsch e Merleau-Ponty. 1.1) O perspectivismo na análise eidética: a teoria de doação por perfis. Nossa apresentação do programa transcendental estabelecido em Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica5, obra de 1913, será orientada por um tema fundamental à fenomenologia da percepção. Trata-se do fenômeno das Abschattungen ou da doação perceptiva por perfis. Tal tema configura o centro daquilo que chamaremos de “perspectivismo husserliano” e seu estudo nos permitirá estabelecer certos alicerces conceituais, pré-requisitos teóricos, para a compreensão dos pensamentos de Gurwitsch e Merleau-Ponty. Procuraremos mostrar que a tessitura de tudo que compõe uma perspectiva, tanto o ponto de vista do sujeito, quanto o modo de doação da coisa e, enfim, a correlação entre ambos, aparece sob diversas luzes no percurso realizado por 5 Doravante Ideias I 30 Husserl, em Ideias I6. Ela está presente desde menções ao “situacionismo” da orientação natural, na qual estamos imersos e voltados a uma objetividade partilhada intersubjetivamente, onde cada sujeito visa “o” mundo a partir de seu situs individual; migrando para considerações de ordem eidética, momento em que se está em jogo uma delimitação da essência da consciência em geral, até a passagem para o plano propriamente transcendental, domínio da consciência pura desvelada pelo complexo de reduções. Se estamos aptos a mencionar um “perspectivismo” em Ideias I7, certamente, não tratar-se-á de um sinônimo ou mesmo produto de uma visão fática ou existencialista da experiência8. Ali, o perspectivismo não é um índice de nossa condição humana, pois a tarefa central que se impõe nesta obra é o desvelamento do campo da consciência pura, a região originária do ser, a partir do exercício metodológico de despimento gradual e sistemático das teses da orientação natural, via diversos tipos de procedimentos redutivos (redução eidética, fenomenológica e transcendental). Nossa tarefa neste capítulo é dupla. Em primeiro lugar, buscamos evidenciar as variações internas do perspectivismo no percurso apontado acima, na obra Ideias I. Especificaremos sua posição e sua função tanto nas reflexões que antecedem a entrada propriamente dita no terreno da redução transcendental, sendo caracterizadas por uma análise eidética dos vividos em geral, como no campo propriamente purificado da redução fenomenológica, em que emergem duas estruturas fundamentais da consciência transcendental: a noese e o noema. Em segundo lugar, a construção deste percurso tem o intuito de introduzir certos emblemas conceituais da reflexão fenomenológica, como a redução e a atitude natural, a fim de criar uma ambiência que propiciará uma melhor compreensão das discussões concernentes a Gurwitsch e Merleau-Ponty. Por ora, nos manteremos no âmbito das análises eidéticas, buscando entender como se desenha uma noção de perspectivismo no interior da tarefa de delimitar o sentido geral da consciência. Desde o início de Ideias I, observam-se certas menções ao perspectivismo que ocorrem no âmbito da diferenciação entre fato e essência. No §3 desta obra, intitulado 6 O problema do perspectivismo emerge no coração das discussões sobre a percepção e possui uma presença longitudinal na obra de Husserl (VERISSIMO, 2016). 7 A utilização do termo “perspectivismo” para se referir às contribuições husserlianas à teoria da percepção em Ideias I nos é sugerida por Bimbenet (2012b). 8 A questão da facticidade como dimensão originária do acesso ao mundo é um dos pontos principais das críticas de Gurwitsch a Merleau-Ponty e será abordada posteriormente. 31 Visão de essência e intuição individual, a referência ao perspectivismo emerge no seio da distinção metodológica feita entre intuição empírica e intuição de essência. Intuições empíricas são percepções voltadas à apreensão de fatos situados na espaço-temporalidade do mundo natural. O objeto é visado como indivíduo empírico e possui exatamente esta forma, com tal conteúdo e cor, localiza-se neste ponto do espaço e tempo, perece à tais e tais intempéries químicas etc. Percebo meu caderno a minha frente, em sua retangularidade, como um certo objeto funcional, com sua chamativa cor roxa e páginas quadriculadas. Posso rasgá-lo, queimá-lo, ou registrar minhas ideias em suas páginas. Sua existência empírica pode, portanto, ter um fim ou sofrer inúmeras modificações. Esta “facticidade” do mundo, entendida por Husserl como possibilidade sempre aberta de que as coisas sejam diferentes, não é, ela própria, também explicada por fatores contingentes, mas é reportada em seu cerne a uma “necessidade eidética” (HUSSERL, 1950, p. 17; 2016, p.35, §2). Haveria, nesse sentido, uma relação de solidariedade entre fato e essência: a parte de seus caracteres mutáveis ou acidentais, todo objeto contingente ou empírico pode ser pensado a partir de um núcleo ou uma essência que instituem a base de sua facticidade. Conforme nos explica Husserl: Um objeto individual não é meramente individual, um ‘este aí’, que não se repete; sendo ‘em si mesmo’ de tal e tal índole, ele possui sua especificidade, ele é composto de predicáveis essenciais que têm de lhe ser atribuídos (‘enquanto ele é como é em si mesmo’) a fim de que outras determinações secundárias, relativas, lhe possam ser atribuídas” (HUSSERL, 1950, p.17; 2016, p.35, §2). A apreensão de uma essência, assim como a apreensão de um objeto ideal, como o número 3, requer um outro tipo de método, não mais centralizado na intuição empírica ou na visada direta do material sensível, mas que seja capaz de apreender objetos essencialmente atemporais e a-espaciais. Desta forma, essências não são objetos passíveis de apreensão por via do mesmo tipo de intuição que adere ao mundo sensível. Antes, elas se enquadram no domínio daquilo que Husserl (1901/1963) denomina, em Investigações lógicas, de intuição categorial. De modo geral, a intuição categorial refere-se à relação entre parte e todo que se estabelece por meio de um juízo, como quando digo: meu caderno roxo está sob a mesa. A experiência categorial é uma experiência racional e analítica que constitui os objetos em uma camada mais complexa do que aquela proporcionada pela percepção. Conforme explica Sokolowski “na fenomenologia, constituir um objeto 32 categorial significa trazê-lo à luz, enuncia-lo, trazê-lo para o primeiro plano, realizar a sua verdade” (2004, p.103). Pelo conceito de intuição categorial, Husserl mostra que a intuição não é apenas sensível – intuímos não só objetos diretamente acessíveis pela percepção como também intuímos estados de coisas, que são os correlatos noemáticos dos juízos, e objetos ideais ou abstratos como a raiz quadrada de 4, o conceito de justiça etc. Atos categoriais são uma classe de atos fundados em intuições simples, mas que não se limitam só à percepção. Na expressão: “o caderno roxo está sob a mesa”, os termos “caderno” e “roxo” são objetos perceptíveis, ao passo que o verbo “ser” não apresenta correlato sensível. Compreende-se, neste ponto, que os atos perceptivos tão somente não são suficientes para explicar a apreensão de objetos complexos ou de estados de coisas. Atos categoriais articulam-se em juízos que expressam relações entre o todo e as partes do objeto. Em um primeiro nível de percepção, o objeto apresenta-se emaranhado em suas qualidades, sem que haja o destaque imediato de um de seus aspectos. Em um segundo nível, há uma mudança atencional que focaliza uma parte ou aspecto do objeto – a “roxidão” de meu caderno, por exemplo. Essa reestruturação do objeto dá ensejo à formação de um juízo, que envolve necessariamente, a emergência de uma diferença ou do destacamento de um aspecto: o caderno é roxo, mas também possui partes amarelas, é grande, desgastado etc9. Retornando ao contexto de Ideias I, Husserl designa como visão de essência (Wesenchau) o método que permite extrapolar dentre as qualidades acidentais do objeto seu núcleo invariável, isto é, sua essência. Acabamos de dizer: a apreensão das essências recorre a um outro tipo de intuição que excede a manifestação sensível, visto que uma essência não é um objeto empírico ou contingente. Ainda assim, Husserl compreende que a essência não foge à esfera objetal e tampouco se elude de uma apreensão intuitiva (HUSSERL, 1950/2016, §3). Ao contrário, ao adentrar no domínio eidético é com um novo objeto que nos deparamos e que, tal como o objeto empírico, também pode ser visado por uma intuição; não mais sensível e sim categorial ou eidética. Esta apresentação preparatória nos habilita a explorar o sentido que o tema do perspectivismo recebe no §3. Finalmente, e ainda no §3, Husserl afirma que a intuição 9 Embora nosso intuito, neste momento, seja o de mencionar o problema categorial para apresentar o nível da reflexão eidética, adiantamos que o problema das relações entre a experiência categorial e a experiência perceptiva será discutido em nosso capítulo III. 33 de essência (Wesenchau) se desdobra em dois tipos: as intuições adequadas e as inadequadas. Neste contexto, a adequação parece designar um modo de apreensão cuja característica é o “esgotamento” do objeto – tal como na intuição de um som por exemplo. A utilização do verbo “esgotar” (épuiser) por parte de Ricoeur (1950, p.20, §3), em suas notas de tradutor, nos leva a crer que, desde já, a adequação designa um modo de apreensão voltado a objetos cujo aparecimento identifica-se à própria estrutura de seu ser. A apreensão intuitiva chamada de “inadequada”, por outro lado, capta a essência da manifestação própria às coisas espaciais, que se exibem ou se mostram de maneira perspectiva ou lateral. Retroativamente, portanto, essências adequadas podem ser definidas de maneira negativa: elas referem-se a objetos que não se doam perspectivamente. Assim, já se esboça no §3 uma primeira ideia de perspectivismo: “basta por ora a indicação de que mesmo a forma espacial de uma coisa física só pode ser dada, por princípio, em meros perfis unilaterais [Abschattungen] [...]” (HUSSERL, 1950, p. 21; 2016, p.36, §3). Eis aqui a primeira menção a uma importante ideia, que compõe a base de toda a discussão subsequente sobre o perspectivismo perceptivo: a noção de perfil10 (Abschattung). Etimologicamente o termo Abschattung refere-se à ação segundo a qual algo se torna sombreado, mostrando-se de maneira parcial (ENGLISH, 2009). Nas traduções francesas, optou-se pelo vocábulo esquisse cuja significação, em português, assemelha-se à ideia de “esboço”, tal como o “esboço” de um desenho por exemplo. Em suas notas de tradutor, Ricoeur considera a escolha por “esboço” [esquisse] passa “a ideia de uma revelação fragmentária e progressiva da coisa” (RICOEUR, 1950, 132).11 No entanto, é comum que a menção às Abschattungen seja feita, em português, por meio do vocábulo “perfil”, conforme consta na tradução brasileira de Ideias I (HUSSERL, 2016). A escolha francesa por esquisse realça, justamente, a ideia de algo que se forma no horizonte – um esboço. (ENGLISH, 2009). Sobre o modo de manifestação por perfis, Husserl escreve: [...] é da conformação própria de certas categorias eidéticas que suas essências só possam ser dadas por um lado e, subsequentemente, 10 Para uma compreensão da teoria de doação por perfis no panorama da obra de Husserl, recomendamos o trabalho de Verissimo (2016). 11 Além, disso, o autor assinala que a tradução poderia ter sido feita a partir de outros vocábulos, como: perfil [profile], aspecto [aspect], perspectiva [perspective], embora, em francês, tais termos não se dêem como verbos. No caso de “esquisse” tem-se o verbo “s’esquisser” (esboçar-se) (RICOEUR, 1950, p.132) 34 ‘por vários lados’, jamais, porém, ‘por todos os lados; correlativamente, as singularizações individuais a elas correspondentes só podem, portanto, ser experimentadas e representadas em intuições empíricas inadequadas, ‘unilaterais. Isso vale para toda essência referente à coisa[...] (1950, p.21; 2016, p.36, §3) Embora o autor antecipe uma descrição do inacabamento da coisa espacial na percepção, desde o terceiro parágrafo da obra, o sentido profundo dessa análise eidética só será explorado na segunda secção, no período que compreende as seções §41 a §44, o qual é identificado por Granel (1968/2012) como o lugar em que Husserl oferece uma doutrina do real enquanto “real esboçado” (réel esquissé). Deve-se observar que desta breve amostra de uma eidética da coisa espacial até as análises que serão desenvolvidas entre os §41 a §44, e que apresentaremos posteriormente, o perspectivismo aparecerá no interior de reflexões dedicadas à atitude natural. Dediquemo-nos a elas neste momento. Tanto na vida pré-científica e cotidiana quanto na posição teórica que se assume pela reflexão o mundo é visado como polo absoluto de nossas intenções. A percepção sensível encontra objetos que nos aparecem sob um determinado índice existencial, como estando “simplesmente aí”, em uma disponibilidade original e, aparentemente, alheia ou indiferente as nossas possibilidades de apreensão. Esta “orientação ou atitude natural” consiste, portanto, em uma tese implícita, não formulada, que anima toda visada consciente, fazendo-a gesto em direção a um mundo sempre presente – mesmo quando não diretamente esquadrinhado pelos poderes da atenção. Conforme explica Bimbenet: “A atitude natural é esta crença fundamental segundo a qual percebemos o próprio ser, e não o ser para nós” (BIMBENET, 2012a, p. 252). A transição do perspectivismo da análise eidética ao plano da consciência pura, aberta pelo exercício da redução, só pode ser caracterizada em referência à orientação natural – a crença implícita que alimenta o realismo ingênuo no nosso contato com o mundo. Não se trata, importante dizer, de compreender a atitude natural como uma tese no sentido de uma atividade de explicitação, ou de uma tomada de posição judicativa (HUSSERL, 1950/2016, §31). Trata-se, isto sim, de uma crença fundamental, que não necessita ser tematizada, ou transformada em juízo, para existir. Esta “atitude natural” subjaz o mundo das experiências em todas as suas formas – da prática à teórica, apresentando-nos o mundo percebido sob o caráter existencial de uma presença “maciça” e inalienável. A tese natural é o “denominador comum” (GURWITSCH, 2002, 35 p.87) de todas atividades mentais e estabelece a implícita aceitação no caráter existencial do mundo como “estando aí”. Tal uso da tese é implícito, precisamente, na medida em que o sujeito não a apossa como um objeto de reflexão. A tese da orientação natural infiltra todo ato da consciência empírica e se expressa ao influenciar dois caracteres específicos da manifestação do mundo: a dimensão de disponibilidade originária do mundo frente nossas intenções –o “caráter do aí” que impregna toda apresentação do mundo (HUSSERL, 1950, p. 96; 2016, p.78); e a dimensão de sua objetividade, o fato de que a pluralidade das experiências e a existência de outros eus-sujeitos se transcorre e visa coisas sob o teto de uma mesma “morada” – “o” mundo. Esta “disponibilidade” sob a qual o mundo se mostra na orientação natural não se estende apenas aos objetos que caem sob a luz projetada pelo campo de percepção atual. Igualmente, estão disponíveis como efetividades os objetos que ocupam o halo de indeterminação que circunda os raios atencionais. Dessa maneira, não obstante o aspecto elucidativo da atenção, que faz variar os graus de clareza na apreensão dos objetos, o campo das indeterminidades ou obscuridades da consciência também se apresenta sob a insígnia da disponibilidade. Enquanto disponíveis, os objetos que não mantenho sob o foco da atenção são sempre alvos possíveis de uma intuição clara. Segundo Husserl: “na consciência desperta eu sempre me encontro referido a um único e mesmo mundo, sem jamais poder modificar isso, embora este mundo varie em seu conteúdo” (HUSSERL, 1950, p. 90; 2016, p.75, §28). O que nos interessa, neste instante, é mostrar como na orientação natural que, frisamos, é a crença fundamental no caráter existencial do mundo como totalidade prévia e excedente à subjetividade, a disponibilidade do real não constitui somente um atributo dos objetos que se encontram sob o olhar da consciência. O campo da co-presença, assim como o domínio dos dados indeterminados, já está envolto pela possibilidade de ser determinado, isto é, trazido à atualidade, ainda que, segundo Husserl (1950/2016, §27), o horizonte de indeterminação se expanda infinitamente. Além disso, Husserl salienta que a disponibilidade dos objetos na atitude natural não se restringe aos objetos físicos, às coisas, mas se estende ao mundo prático- valorativo. As coisas estão impregnadas de qualidades que são “constitutivas dos objetos ‘disponíveis como tais’, quer eu me volte, quer não, para eles e para os objetos em geral” (HUSSERL, 1950, p. 90; 2016, p.75, §27). Na atitude natural, as diversas expressões da vida da consciência como os atos de contar, descrever, coligar, ou 36 ainda, no domínio afetivo, o prazer e a dor, constituem-se referenciadas ao mundo circundante. Toda esta riqueza figurativa da consciência, enquanto posição de um objeto, é concernida, segundo Husserl, pela expressão cartesiana cogito. O cogito, para Husserl, qualifica todo ato consciente dado sob o modo da atualidade. Lembro de minha família agora e, neste momento, este lembrar ocupa um lugar central no meu fluxo de vivências. É válido salientar que as reflexões de Husserl aqui apresentadas ainda estão no contexto da atitude natural. Uma significação muito mais profunda do cogito ainda será depreendida no seio da análise eidética. O que está em jogo é demonstrar como na atitude natural toda forma de visada atual da consciência está inextrincavelmente ligada ao mundo, ainda que não visemos objetos passíveis de serem encontrados no mundo natural. A referência ao cogito não implica uma defesa do solipsismo, a possibilidade da existência de apenas uma única consciência, mas a caracterização de um modo de ser fundamental à consciência em geral: ser enquanto movimento em direção a algo. Além desta diferença no sentido do cogito, Husserl sublinha como o perspectivismo das experiências individuais não solapa a objetividade do mundo, sua apresentação como uma unidade frente a uma multiplicidade de diferentes perspectivas ou pontos de vista. O problema da constituição intersubjetiva da objetividade não é, no entanto, devidamente desenvolvido por Husserl em Ideias I, conforme nota Ricoeur (1950, p. 93, § 29). Sua breve menção, por outro lado, nos reforça a necessidade de explorar a indissociabilidade entre perspectiva e objetividade. O perspectivismo, na orientação natural, nada mais é senão a própria facticidade, ou situação pela qual o sujeito se dirige ao mundo enraizado em um ponto de vista. É o que parece expressar Husserl na seguinte citação: “Cada um tem seu lugar, a partir do qual vê as coisas disponíveis, e respectivamente ao qual elas se manifestam diferentemente para cada um deles” (HUSSERL,1950, p.93, 2016, p.76, § 29)12. Na atitude natural, estamos concernidos direta e profundamente à realidade a partir de nossos atos de sujeitos empíricos, envolvendo-nos em um mundo que, desde sempre, é vivido como uma entidade disponível e efetiva. Mesmo a dúvida ou a incerteza em relação a certos aspectos da 12 Em um momento posterior da obra, no § 151, Husserl propõe-se a pensar “níveis” de constituição da coisa, desde a aparição desta para um único fluxo de consciências, até um “nível superior”, em que está em jogo “a coisa intersubjetivamente idêntica” (HUSSERL, 1950, p.508; 2016, p.336). 37 realidade não é suficiente para que a tese da orientação natural, alicerce fundamental de todo ato, seja também posta em dúvida. [...] encontro constantemente à disposição, como estando frente a frente comigo, uma efetividade espaço-temporal da qual eu mesmo faço parte, assim como todos os outros homens que nela se encontram e que de igual maneira estão a ela referidos. Eu encontro a ‘efetividade’, como a palavra já diz, estando aí, e a aceito tal como se dá para mim, também como estando aí. Toda dúvida e rejeição envolvendo dados do mundo natural não modifica em nada a tese geral da orientação natural. “O” mundo sempre está aí como efetividade [...] (HUSSERL, 1950, p. 96; 2016, p.77, §30) A tensão entre o relativismo do ponto de vista e a objetividade na atitude natural, que se torna evidente em virtude da análise reflexiva, não é formulada na espontaneidade e concretude do acesso ao mundo. Dirijo-me “ao” mundo sem precisar nem colocar em questão toda a maquinação consciente ou intencional que me permite visar algo para além de mim mesmo e sem, tampouco, balizar a certeza de meu acesso a partir de uma constante comparação com a experiência de outrem. Todo esse sistema, eu-mundo-outrem, nos coloca face a uma objetividade que é espontaneamente apreendida em suas múltiplas aparições. Resta ao trabalho fenomenológico suspender o circuito operante da tese natural para que se possa descrever o sentido deste acesso, desta disponibilidade e presença inalienável enquanto correlata de todo um trabalho secreto da consciência. Uma tal tarefa será realizada sob a tutela da epoché fenomenológica (HUSSERL, 1950/2016, §31). A epoché torna viável uma descrição da essência da correlação entre consciência e mundo13 à medida em que se esforça para suspender a crença fundamental na validade ontológica do mundo enquanto existente em-si. A tese que assegura o caráter existencial do mundo infiltra todo ato de consciência, independente da atitude assumida, mesmo nos casos em que a posição do objeto é duvidosa, já que, conforme explica Gurwitsch, os tipos “duvidoso”, “problemático”, “incerto” são caracteres existenciais que derivam de uma tipologia existencial mais primordial: a existência pura e simples (GURWITSCH, 2002, p.86). A redução fenomenológica consiste, portanto, em uma “parentetização” (HUSSERL, 1950, p.102; 2016, p.81, § 13 Parece-nos que uma boa forma de definir a correlação a priori na fenomenologia transcendental encontra-se na seguinte citação de Gurwitsch: “Todo objeto, em qualquer domínio mundano que ele pertença, implica e pressupõe necessariamente a consciência, ou, melhor dizendo, os atos pelos quais ele aparece como aquilo que acontece em nossa vida. A consciência se revela assim como um meio universal de apresentação dos objetos, como um domínio o qual todos os domínios mundanos reenviam necessariamente” (1957, p.131). 38 32) ou inibição na atuação da tese da orientação natural, pela qual o mundo é apreendido sob os índices existenciais de “simplesmente aí”, como “dado” ou “disponível”. Esta epoché fenomenológica representa o primeiro passo rumo à clarificação dos elos intencionais que vinculam subjetividade e objetividade, conforme Husserl atesta em um parágrafo posterior: “Colocar a natureza fora de circuito foi para nós o meio metódico de possibilitar que o olhar se voltasse para a consciência transcendental pura” (HUSSERL, 1950, p. 187; 2016, p.131, §56). A redução não se subsume à negação da realidade natural, tal como procede Descartes pela via da dúvida, mas configura uma alteração ou uma suspensão no índice existencial do mundo, o qual é marcado pela experiência da transcendência enquanto efetividade. Eis a tarefa que se impõe à atitude fenomenológica, conforme delineia Husserl: Seguiremos nestes estudos. Exclui-se a região do “natural”. O interesse no mundo como fato é substituído ao interesse no mundo como eidos. Nesse movimento, torna-se mais claro o propósito da redução: desvelar uma nova região do ser que, como vimos, diz respeito à consciência pura. (HUSSERL, 1950, p. 106; 2016, p. 83, §33). A consciência pura representa a proto-região do ser, a dimensão originária na qual encontram-se referidas todas as outras regiões do ser (HUSSERL, 1950/2016, §76). Ela é o “resíduo fenomenológico”, ou a resposta à pergunta: o que resta após o procedimento da redução? A delimitação do campo da consciência pura, a qual Husserl também denomina de consciência transcendental, é gradual e multifacetada. Quer dizer, a passagem da atitude natural para a atitude fenomenológica não se transcorre no espaço de um salto, mas envolve uma gradativa mise-en-scene de “passos” ou “pistas” metodológicas que auxiliam o filósofo a aproximar-se do domínio purificado. Tratar-se-iam, mesmo, de “reduções fenomenológicas” (HUSSERL, 1950, p.109; 2016, p.85, §33) e não somente da atuação de um dispositivo intermediário que conduziria, sem grandes obstáculos, a atenção da atitude natural à orientação fenomenológica. O acesso à consciência purificada, também chamada de consciência transcendental, exige a colocação em ação do procedimento da epoché. Mas, até aqui, a investigação inicial acerca do sentido geral da consciência ainda é realizada fora de seu alcance, conforme adverte Husserl no §33: Mantemos, pois, o olhar firmemente voltado para a esfera da consciência e estudamos o que nela encontramos de modo imanente. Antes de tudo, ainda sem excluir fenomenologicamente os juízos do 39 circuito, submetemo-los a uma análise eidética sistemática, embora ainda não de todo exaustiva. Aquilo de que indispensavelmente precisamos é certa evidência geral sobre a essência da consciência em geral (HUSSERL, 1950, p. 107; 2016, p.84, §33). Passemos então à explicitação do exercício de circunscrição do eidos da consciência, ainda anterior à redução, o que conduzirá Husserl a uma reflexão mais detida sobre o modo de ser da coisa espacial e nos colocará frente à posição principal do perspectivismo na obra. O sentido primário de consciência adotado pelo autor e apresentado no âmbito destas reflexões prévias à redução transcendental, como vimos, corresponde aquilo que Descartes designava por cogito. O “eu penso”, que engloba todas as modalidades de inflexão da consciência em direção a um objeto – tal como percepções e desejos por exemplo. O cogito husserliano é, em primeiro lugar, um “cogito vivo” (HUSSERL, 1950/2016, §28) - a consciência irrefletida que acompanha todo ato expresso do pensamento. Neste sentido, o cogito não vê luz apenas por meio de uma formulação reflexiva. De acordo com Ricoeur “o cogito pré-reflexivo é a intencionalidade que se ignora ainda. A reflexão ainda não será a redução e não separará somente a “região” consciência” (RICOEUR, 1950, p.91). É importante ressaltar que, no §28, Husserl associa o cogito a “toda forma fundamental de vida atual”, representações, percepções e desejos, por meio dos quais nos ocupamos de objetos – sejam eles exteriores ou imanentes. Aquilo que é visado no cogito, como quando percebo uma mesa, por exemplo, não integra a cogitatio, mas é, na verdade, diferente desta no sentido em que é cogitatum, não o vivido, mas objeto visado. A todo gênero de vividos que porta a referência a algo Husserl denomina de “vividos intencionais” (HUSSERL, 1950, p. 116; 2016, p. 89, § 36). A direção ao objeto que caracteriza o vivido intencional não se constata na forma de um vínculo psicológico – uma referência real ou natural da consciência à coisa. No nível da análise eidética, a referência revela-se como uma “necessidade incondicionada” dos vividos, como algo que os constitui internamente, em sua essência e que nela está contida a priori. Nas palavras do filósofo: “Na própria essência do vivido não está contido apenas que ele é consciência, mas também do que é consciência, e em que sentido determinado ou indeterminado ela o é.” (HUSSERL, 1950, p. 116; 2016, p.89, §36). Todo vivido de percepção tem como seu correlato, essencialmente, o percebido, assim como em toda rememoração aquilo do que se tem consciência é o rememorado etc. O fluxo de consciência, no entanto, não é constituído apenas de vividos 40 intencionais. Dele fazem parte, também, certos componentes do vivido que não são propriamente intencionais, como os dados da sensação, por exemplo. As sensações, assinala Husserl, são “suporte da intencionalidade”, mas são, elas próprias, destituídas de uma referência intrínseca a algo (HUSSERL, 1950/2016, §36). Elas são o material sob o qual uma atividade animadora irá se sobrepor a fim de que se possa ter referência a “algo”. A suposição de uma camada de sensações desprovida de intencionalidade deve ser distinta da qualidade enquanto aspecto inerente ao objeto. O marrom escuro de minha mesa de trabalho é diferente, nessa medida, da sensação de “marrom”, componente real da consciência, que funciona, segundo Husserl (1950/2016, §36) como “conteúdo exibidor” da qualidade do objeto após a atividade doadora de sentido. Este é um dos pontos mais importantes do perspectivismo husserliano: a assunção de que o sensível não é intencional, exigindo uma atividade de segunda ordem para a formação de um objeto intencional. Vejamos, antes de entrarmos em mais detalhes sobre a composição sensação/vivido intencional, como o autor define a percepção de coisa em contraste com a percepção imanente. No §37, Husserl considera a possibilidade de princípio de uma conversão do “olhar do eu puro” em direção as suas próprias cogitatio, apreendendo-as como objetos. Dissemos que a consciência não se limita a sua forma cogitativa: deve-se reiterar que “o fluxo de vividos jamais pode consistir de puras atualidades” (HUSSERL, 1950, p. 114 ;2016, 88, §35). O que está em questão, para Husserl, é afirmar que toda visada atual é circundada por um “halo de intuições de fundo” que, tal como o ato cogitativo atual, também integra o campo da intencionalidade, sendo consciência de alguma coisa. Pertence, portanto, à essência dos vividos a dinâmica que remete o atual ao possível e vice-versa, de modo que todo vivido atual ou determinado tornar- se-á inatual, compondo uma espécie de background para outros atos que ocuparão o lugar do cogito. De acordo com o filósofo: “Toda cogitatio pode tornar-se objeto daquilo que chamamos de percepção interna e, posteriormente, objeto de uma avaliação reflexiva, de uma aprovação ou desaprovação, etc.” (HUSSERL, 1950, p. 122; 2016, p.92, §37). Isto significa que os vividos irrefletidos, componentes inatuais do fluxo, podem ser tematizados a partir de um gênero específico de percepção, cunhado por Husserl de percepção imanente ou interna (HUSSERL, 1950/2016, §38). Os vividos intencionais imanentes são caracterizados por apreender como objetos as vivências contidas dentro do mesmo fluxo de vividos. O objeto intencional de uma visada imanente é sempre um outro vivido, seja ele intencional ou não, o que indica 41 que “a consciência e seu objeto formam uma unidade individual unicamente constituída por vividos” (HUSSERL, 1950, p.122; 2016, p.93, § 38). É da essência de um vivido, assevera Husserl, a identificação entre seu ser e seu aparecer, ou seja, “o ser de um ato de consciência é um com seu ser vivido, quer dizer, com seu aparecer” (GURWITSCH, 2002, p. 343). No plano da percepção imanente, o percebido (o visado) e a percepção (o ato) formam uma unidade indissociável, em que há uma inclusão real ou uma relação de dependência entre os vividos. Tanto a percepção imanente é um gênero particular de percepção direcionada ao próprio fluxo de consciência quanto o modo de manifestação dos vividos é absoluto, visto que não há distinção entre seu ser e seu aparecer. Há de se considerar ainda a percepção tal como voltada à transcendência, especialmente na forma de percepção espacial, o que nos remete prontamente ao que já fora indicado no §3 acerca da inadequação da categoria eidética da “coisa”. Os vividos dirigidos de forma transcendente visam dados que não estão inclusos de maneira real na consciência, já que não constituem o tecido formado por sensações e vividos intencionais. Nesta categoria de percepção transcendente estão os atos dirigidos aos vividos de outros sujeitos, assim como os atos dirigidos a objetos em geral, sejam eles reais ou não. A respeito da percepção transcendente, Husserl esclarece que não se observa essa estrutura de “inclusão real”, haja vista que o objeto percebido ou visado não compartilha do mesmo gênero de existência do ato – eles não formam uma unidade essencial, ainda que estejam essencialmente referidos. Conforme explica o autor no §41: “É evidente, então, que intuição e intuído, percepção e coisa percebida estão reciprocamente referidos em sua essência, mas não são, em necessidade de princípio, nem uma coisa só, nem estão ligadas, realmente e por essência” (HUSSERL, 1950, p. 131 ;2016, p.97, §41). Acentuemos a distinção entre os modos de manifestação dos vividos e a estrutura de aparecimento da coisa na percepção. Vimos que, no §3, a essência da percepção de coisa reside em uma forma específica de doação à consciência, marcada pela inadequação ou pela apresentação perspectiva do objeto espacial. De modo distinto à identificação entre ser e aparecer que determina a essência dos vividos como uma doação adequada, todo objeto transcendente é um desfile de lados ou aspectos que carrega em sua essência um horizonte de indeterminação. A árvore que vejo de meu quarto se apresenta, em uma percepção particular, de um certo lado, sob uma certa luz, enredada por uma determinada paisagem perceptiva que me abre 42 a possibilidade de vê-la sob um outro ponto de vista. É patente que aquilo que aparece não esgota a totalidade daquilo que é o objeto percebido – resta sempre uma zona de indeterminação para além do intuído. Nessa medida, no projeto husserliano de Ideias I, a percepção de um objeto espacial é parcial e contingente, pois aquilo que se mostra pode sempre revelar novos aspectos que frustrem a concreção dos perfis em uma unidade coesa. Se tomo como objeto de minha exploração perceptiva uma mesa, posso visa-la de infinitas maneiras, afastando-a, ou aproximando-me, vendo-a por cima, ou observando sua estrutura interna por baixo, de modo que, resta-me tanto a opção de variar seus aspectos indefinidamente ou mesmo de intensificar a apreensão atentiva no interior de um mesmo aspecto. Neste processo, a unidade do objeto mesa poderia ser deturpada se descobrisse que sua parte de baixo não é composta por pernas de madeira, mas por pessoas segurando sua tábua. No entanto, embora o objeto seja sempre aberto à dúvida e a possibilidade de não-ser, a multiplicidade perspectiva não desintegra sua unidade; em toda a variação perceptiva, que tenha como condição a coerência dos aspectos dados, é ainda “a” mesa, como o objeto idêntico no decorrer da exploração, que é visada. Por outro lado, a percepção ela mesma se altera a todo instante; ela é, conforme qualifica Husserl, “uma continuidade de percepções cambiantes” (HUSSERL, 1950, p. 131; 2016, p. 97, §41). Da consciência empírica de uma mesma coisa, que abrange ‘todos os aspectos’ desta e se confirma em si mesma numa unidade contínua, faz parte, por necessidade de essência, um sistema multifacetado de contínuas diversidades de aparências e perfis, nas quais se exibem ou perfilam em continuidades determinadas todos os momentos objetivos que entram na percepção com o caráter daquilo que se dá a si mesmo em carne e osso. (HUSSERL,1950, p. 132; 2016, p.98, §41, grifos do autor) O objeto transcendente se “exibe” ou se “mostra” a partir dos seus aspectos, vindo à tona com base na síntese dos dados das sensações, ao passo que os vividos não possuem nenhuma lacuna entre seu ser e aparecer. A exibição perspectiva implica que outros aspectos do objeto se “escondam” e constituam a face invisível daquilo que apresenta à consciência. Nota-se, portanto, que o modo de doação dos objetos espaciais carece desta “absolutidade” que fundamenta o ser dos vividos. Uma vez que o ser da coisa percebida se recobre ao mesmo tempo que se exibe, o aspecto 43 presente não esgota a totalidade do ser percebido e tampouco é apenas uma imagem ou uma representação do objeto. Sob tal luz, a percepção de coisa diferencia-se essencialmente da percepção imanente, visto que esta última “faz parte, por princípio, da essência regional ‘vivido’ [...], mas não da essência da coisa no espaço” (HUSSERL, 1950, p. 135; 2016, p.100, §42). A discussão do par imanência- transcendência revela um desnível ontológico original entre a esfera dos vividos, própria da consciência, e a esfera da realidade, o domínio da “