Unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP Izac Trindade Coelho Pedagogia Histórico-Crítica e Alfabetização: elementos para uma perspectiva histórico-crítica do ensino da leitura e da escrita ARARAQUARA 2016 Izac Trindade Coelho Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Educação Escolar. Linha de Pesquisa: Teorias pedagógicas, trabalho educativo e sociedade. Orientador: Prof. Dr. Francisco José Carvalho Mazzeu Bolsa: CAPES (período de Junho/ 2014 à Janeiro/2016) ARARAQUARA 2016 Pedagogia Histórico-Crítica e Alfabetização: elementos para uma perspectiva histórico-crítica do ensino da leitura e da escrita COELHO, IZAC TRINDADE Pedagogia Histórico-Crítica e Alfabetização: elementos para uma perspectiva histórico–crítica do ensino da leitura e da escrita/Izac Trindade Coelho – 2016 Número de páginas f. 117; 30 cm Dissertação (Mestrado em Educação Escolar) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Faculdade de Ciências e Letras - Campus de Araraquara. Orientador: Prof. Dr. Francisco José Carvalho Mazzeu Palavras-Chave: Pedagogia Histórico-Crítica. Alfabetização. Linguagem Escrita. Leitura e escrita. Título. IZAC TRINDADE COELHO Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Educação Escolar da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Educação Escolar. Linha de Pesquisa: Teorias Pedagógicas, Trabalho Educativo e Sociedade. Orientador: Prof. Dr. Francisco José Carvalho Mazzeu Bolsa: CAPES (período de Junho/2014 à Janeiro/2016) Data da defesa: 26/02/2016 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientador: Prof. Dr. Francisco José Carvalho Mazzeu UNESP – Universidade Estadual Paulista – Araraquara - SP Membro Titular: Prof. Dra. Eliza Maria Barbosa UNESP – Universidade Estadual Paulista – Araraquara – SP Membro Titular: Prof. Dr. Francisco de Paiva Lima Neto Secretaria Municipal de Educação – Araraquara – SP Membro Suplente: Profa. Dra. Luci Pastor Manzoli UNESP – Universidade Estadual Paulista – Araraquara – SP Membro Suplente: Profa. Dra. Sonia Marise Salles Carvalho UNB – Universidade de Brasília – Brasília – DF Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras/FCL UNESP – Campus de Araraquara Pedagogia Histórico-Crítica e Alfabetização: elementos para uma perspectiva histórico-crítica do ensino da leitura e da escrita AGRADECIMENTOS ESPECIAIS Toda objetivação existente na cultura material e intelectual ainda que inovadora parte das objetivações já produzidas pelas gerações passadas e das condições materiais também produzidas por essas gerações. E é nesse processo de relação com os outros que foi possível a realização do presente trabalho. Por ter clara a coexistência de muitos na confecção desta pesquisa, em especial, agradeço ao Professor Francisco José Carvalho Mazzeu, meu orientador, cujo apoio afetivo-cognitivo tornou o caminhar pelo mestrado mais fácil, interessante e suportável. Do mesmo modo Tatiana Bukowitz também coabitará sempre este trabalho e a mim porque constantemente presente, prestativa e rigorosa com a objetividade dos dizeres. As inúmeras vivências positivas com vocês jamais se esvairão de minha memória. AGRADECIMENTOS À todas as pessoas que coexistem esta pesquisa por meio da comunicação de suas ideias e do diálogo sobre as minhas, e àquelas cujo apoio através de condições materiais de existência foi de igual valor para minha dedicação à este estudo. Aos professores Francisco J. C. Mazzeu, Newton Duarte, Lígia Márcia Martins, José Luiz Vieira de Almeida, Achilles Delari Jr., pelos conhecimentos à mim transmitidos e por possibilitarem-me alegria porque aproximaram-me dos clássicos. Aos meus amigos Devisson Santos Ferreira, Antônio Leonam Alves Ferreira e Leandro Dias dos Santos pelo companheirismo mesmo que distante e pelos ricos diálogos sobre a temática que envolve esta pesquisa. Aos amigos Alessandro de Oliveira, Ana Paula da Luz, Gustavo Rodrigues Salinas, Gisele Marins, Raul Alejandro Delgado, Edna Sanchez, Marcelo Ubiali Ferracioli, Afonso Mancuso de Mesquita, Efraim Maciel e Silva, Mariana de Cássia Assumpção, Maria Cláudia Saccomani, pela amizade e incentivo tão necessários no espinhoso caminho da vida. Ao corpo docente do colégio Pedro II, campus Humaitá I – Rio de Janeiro, pela compartilha de ideias e experiências sobre o trabalho educativo com crianças do ensino fundamental, e por me possibilitarem imprimir a “minha marca” no trabalho com meus alunos, ainda que “professor iniciante”. Aos meus alunos do 5º ano do Primeiro Segmento do Ensino Fundamental (turmas 502 e 504), do colégio Pedro II - RJ, em 2015, por conferirem sentido a minha escolha de ser professor. Aos meus atuais alunos do 2º ano do Primeiro Segmento do Ensino Fundamental (turma 202), do colégio Pedro II - RJ, pelo afeto à mim demonstrado e por me apontarem o caminho para o desenvolvimento de uma alfabetização histórica e crítica. À equipe da seção de pós-graduação em Educação Escolar pela prestatividade no atendimento a demandas burocráticas por mim solicitadas. Aos membros integrantes da Banca Examinadora de qualificação: Professora Dra. Eliza Maria Barbosa e Professora Dra. Luci Regina Muzzeti, por fazerem-me reorganizar a minha relação com o objeto desta pesquisa. Aos professores Drs. Eliza Maria Barbosa e Francisco de Paiva Neto pela disposição em compor a banca de defesa e significância das contribuições que realizaram sobre este trabalho. À CAPES pelo apoio financeiro através de bolsa de estudos. À minha mãe que, conhecendo alguns percalços da profissão docente em nossa sociedade, apoiou-me integralmente na escolha de me tornar um “professor de crianças da escola pública”. Aos meus irmãos, pelo carinho e respeito à mim dedicados. Ao meu pai, por ajudar-me à sua maneira. É preciso que o êxito de uma determinada atitude pedagógica não se transforme em obstáculo ao prosseguimento do curso da própria educação (VIEIRA PINTO, 2000, p. 26). RESUMO Este trabalho versa sobre a alfabetização na perspectiva pedagógica histórico-crítica. Nossa problemática de pesquisa reside na necessidade de propostas pedagógicas aliadas à uma concepção crítica e dialética de alfabetização e, simultaneamente, na ausência de estudos que enfoquem o ensino inicial da leitura e da escrita por esse viés analítico. No percurso de delineamento de uma concepção histórica e crítica de alfabetização, dialogamos com as concepções atuais de alfabetização e letramento, proposta por Magda Soares, bem como a influente concepção construtivista e a, ainda resistente, perspectiva tradicional. O objetivo do diálogo foi o de estabelecer os postulados de cada vertente pedagógica em relação à alfabetização de modo a esclarecer as divergências de suas concepções à de uma proposta histórico-crítica de alfabetização. Como objeto de estudo, tomamos a linguagem escrita nas formulações psicológicas da Escola de Vigotski e as proposições metodológicas da Pedagogia Histórico-Crítica, refletindo como a segunda estabelece em princípios pedagógicos aquilo que a primeira postula como percurso do desenvolvimento cultural dos indivíduos em fase de escolarização. Partindo da hipótese de que a palavra é o instrumento-guia do ensino- aprendizagem dos conteúdos da alfabetização e, ademais, de que as propostas pedagógicas para a alfabetização de crianças existentes reforçam a cisão entre conteúdo e forma da palavra, priorizando sua face fonética em detrimento de sua face semântica, constatamos que, apenas uma alfabetização que unifique tais faces fonética e semântica dará conta de ensinar a linguagem escrita aliada às dimensões simbólica, abstrata e conceitual que lhe é própria. A título de conclusão e contribuição do trabalho desenvolvido, esboçamos ideias gerais sobre a alfabetização dirigida pelos termos da Pedagogia Histórico-Crítica e orientada à humanização dos seres humanos. Palavras-chave: Alfabetização. Ensino de Leitura e Escrita. Linguagem Escrita. Prática Pedagógica. Didática da Alfabetização. Psicologia Histórico-Cultural. Pedagogia Histórico- Crítica. ABSTRACT This research deals with literacy process on the critical historical pedagogy perspective. Our research problem is established by the necessity of pedagogical proposals related to a dialectic and critical conception of literacy and, simultaneously, to the absence of studies focused on the teaching of writing and reading process through this point of view. By defining a critical and historical conception of literacy, we dialogued with current conception of writing and reading process, proposed by Magda Soares, as well as the influent constructivist conception and, the so resistant, traditional perspective. That dialogue aimed at establishing the postulates of each pedagogical fields related to literacy in order to clarify divergences between these conception and a critical and historical literacy proposal. As object of study it was taken up the concept of written language from the Vigotskian School and the pedagogical approaches of critical historical pedagogy as we reflected on how both theories deal with the concept of written language. Assuming that the word is the leading-instrument for the learning and teaching of reading and writing and, besides that, the pedagogical proposals for children literacy rupture both phonetic and semantic faces of the word, we found that the teaching of writing and reading must unify both sides phonetic and semantic in order to address the abstractive, symbolic and conceptual dimension of the written language. In conclusion, we sketched out some general ideas for the educator who wishes to teach according to a critical perspective and oriented towards human beings humanization. Keywords: Literacy. Writing and Reading Teaching. Written Language. Teaching Practice. Literacy Teaching. Cultural Historical Psychology. Historical Critical Pedagogy. LISTA DE TABELAS Tabela 1 Resultados do Inaf – Habilidades de leitura e Habilidades matemáticas 29 Tabela 2 Analfabetismo na faixa etária de 15 anos ou mais– Brasil 1900/2010 32 Tabela 3 Analfabetismo na faixa etária de 15 anos ou mais– Brasil 2000/2013 37 LISTA DE QUADROS QUADRO 1 Taxa de analfabetismo das pessoas de 15 anos ou mais de idade, por sexo ...... 24 QUADRO 2 Taxa de analfabetismo das pessoas de 10 a 14 anos de idade, por sexo ............ 28 QUADRO 3 Taxa de analfabetismo das pessoas de 10 anos ou mais de idade, por sexo ................................................................................................................................................. 26 QUADRO 4 Número de analfabetos na faixa etária de 15 anos ou mais– Brasil 1900/2010 . 33 QUADRO 5 Distribuição dos analfabetos de 15 anos ou mais entre as Unidades da Federação – Brasil 2012 .......................................................................................................... 34 QUADRO 6 Proposta de rotina pedagógica semanal do Material Ler e Escrever ao primeiro ano do ensino fundamental ....................................................................................... 37 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS FNDE Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística INAF Indicador de Analfabetismo Funcional INEP Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira IPM Instituto Paulo Montenegro MEC Ministério da Educação ONG Organização Não Governamental PNAD Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílio UNESCO United NationsEducational, Scientíficand Cultural Organization(Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) Pedagogia Histórico-Crítica e Alfabetização: elementos para uma perspectiva histórico-crítica do ensino da leitura e da escrita Sumário Apresentação Delimitação do problema de pesquisa, do objeto e das questões norteadoras ................................. 16 Seção I – O Debate sobre alfabetização no Brasil .......................................................... 26 1.1 Dados atuais do problema da alfabetização no Brasil ............................................................... 27 1.2 Dilemas intrínsecos ao tratamento conferido à alfabetização na atualidade .............................. 40 1.3 O histórico dos métodos de alfabetização, a “desmetodização” e a permanência dos impasses .............................................................................................................................. 50 1.4 Analfabetismo como problema histórico-social: desafios de uma proposta histórico-crítica de alfabetização ..................................................................................................................................... 68 Seção II – Pedagogia Histórico-Crítica e alfabetização no ensino fundamental ......... 73 2.1 Os fundamentos teórico-metodológicos da Pedagogia Histórico-Crítica .................................. 73 2.3 As contribuições teórico-metodológicas atuais sobre alfabetização pautadas na Psicologia Histórico-Cultural e na Pedagogia Histórico-Crítica ....................................................................... 80 Seção III – Para uma Alfabetização Histórico-Crítica: elementos para uma contribuição didática ao campo da alfabetização de crianças .............................................................. 87 3.1 A concepção de linguagem escrita na Psicologia Histórico-Cultural ....................................... 88 3.2 O percurso de apropriação da linguagem escrita pela criança ................................................... 94 3.3 A relação grafofonêmica como conteúdo específico da alfabetização: a Palavra como síntese de múltiplas determinações ............................................................................................................... 98 Considerações Finais ..................................................................................................................... 107 Referências Bibliográficas ............................................................................................................. 114 16 Apresentação O processo de construção desta pesquisa envolveu um constante esforço de pautar as considerações aqui expostas o mais coerente possível com os princípios teórico-pedagógicos da Pedagogia Histórico-Crítica. Tarefa árdua. E se em algum momento não logramos alcançar os picos mais elevados do raciocínio, não foi por falta de tentativa. A aproximação ao objeto de pesquisa requer também o afastamento dele, de modo que nos possibilita recompor o campo de observação em que o objeto está inserido e conferir se a parte observada vincula-se dinamicamente com este todo, num processo constante de refeituras e redefinições do tecido analítico que vai se compondo no decorrer da pesquisa. Neste movimento de idas e vindas, portanto, foram se estabelecendo novos interlocutores teóricos para o diálogo sobre o problema do analfabetismo no Brasil, dados quantitativos como tabelas e gráficos foram surgindo e ilustrando nosso quadro analítico e, em alguns momentos, houve a necessidade de desfazer os trechos cosidos e retomar o fio de análise quando este foi longo ou curto demais. Este é o trabalho a que nos pusemos nesta pesquisa ao caracterizar o problema do analfabetismo na sociedade brasileira partindo da fecundidade da análise que toma em conta não o analfabetismo em si, como conceito abstrato, mas o sujeito analfabeto, concreto, real, inserido em relações de trabalho e sociais reais. Por aí nos pareceu mais fecundo e producente a análise do problema do analfabetismo brasileiro, e é por esse viés analítico que ora apresentamos uma síntese possível do tecido costurado por nós. Analisando os momentos da alfabetização no Brasil constatamos que o ensino da relação grafofonêmica tem tido um papel fundamental para a apropriação da leitura e da escrita. Tal fato, portanto, conduziu à ideia de que aí radicaria o cerne do ensino da escrita e da leitura, levando as proposições mais tradicionais a iniciarem a alfabetização por essa relação seguindo um processo definido que caracteriza os chamados métodos sintéticos ou analíticos de alfabetização. Na década de 1980, na contramão desse processo, as pesquisas de Emilia Ferreiro pautadas na Psicologia Genética de Jean Piaget e consubstanciadas no livro Psicogênese da Língua Escrita reforçam a crítica ao diretivismo em alfabetização e preconiza intensamente que a criança é capaz de, progressivamente, construir a representação da escrita ao estar em contato com a língua escrita em seus usos sociais, interagindo com materiais de leitura. Tal 17 concepção de alfabetização culminou na rejeição à utilização de qualquer metodologia que sistematizasse o processo de aquisição da escrita e supervalorizou os estágios de desenvolvimento psicológico da criança em detrimento do objeto de estudo, descaracterizando, assim, a especificidade do processo de alfabetização, a apropriação dos rudimentos da linguagem escrita. Hoje vemos, de fato, que a revolução do construtivismo no âmbito da alfabetização se limitou ao que seus adeptos mesmos denominaram “revolução conceitual”, porque os números referentes ao analfabetismo e ao analfabetismo funcional, de acordo com os dados oficiais, permaneceram alarmantes (Mortatti, 2010; IBGE, 2010). Por essa razão a continuidade da investigação no campo da alfabetização em busca de formas e conteúdos adequados e que assegurem verdadeiramente o aprendizado da língua escrita é indispensável. A linguagem escrita, como objetivação do gênero humano na cultura material e intelectual, deve ser disponibilizada aos seres humanos em suas melhores formas, pois sabemos que é através da aquisição desta ferramenta simbólica que a criança poderá galgar patamares de desenvolvimento de pensamento mais elevados no seu processo de escolarização. Assim, é indispensável fazer frente às teorias que prescindem do ensino sistemático e intencional dessa ferramenta, advogando suposto espontaneísmo na aquisição da escrita e da leitura. Leontiev (1979) já nos alertava que a apropriação dos objetos da cultura material e intelectual historicamente acumulados pelo homem não se dão espontaneamente, mas num processo de aproximação sistemática e intencional no qual são reproduzidos nos indivíduos os atributos e a atividade condensada no objeto da cultura, num processo de intensa comunicação entre aquele que já domina o objeto a ser apropriado e aquele que busca dominar o objeto. Em outras palavras, processo que em nossa sociedade denominamos educação. Do nosso ponto de vista, portanto, é imprescindível que o período da alfabetização seja de contato sistemático e consciente da criança com a escrita e a leitura, mediado pelo ato de ensinar do professor. Não concebemos o ato de ensinar como desrespeito, autoritarismo, violência simbólica, etc., por parte do professor em relação ao aluno. Pelo contrário, defendemos o ensino dos conteúdos escolares como a essência da educação escolar, e lutamos por sua manutenção na escola pública com a devida melhoria, pois entendemos que a apropriação por parte dos indivíduos do conhecimento científico, artístico e filosófico através 18 da escola é condição sine qua non para a formação de pessoas capazes de deliberar sobre os rumos de sua própria vida e da sociedade no geral. Neste sentido, esta pesquisa parte dos pressupostos teóricos da Pedagogia Histórico- Crítica porque defensora de uma escola pública que ensine os conhecimentos historicamente acumulados e elaborados socialmente e aliada à uma concepção política cuja finalidade é a superação da exploração do trabalho e a socialização dos produtos materializados na cultura. Dessa forma, sabendo-se que indivíduos concretos e reais serão os únicos responsáveis pelas transformações estruturais da sociedade, esta corrente pedagógica atua no sentido de instrumentalizar a escola e os educadores para que efetivem uma educação sistematizada e de aproximação aos conhecimentos clássicos, porque através da apropriação desses conhecimentos esses mesmos indivíduos serão capazes de estabelecer uma relação crítica com a realidade e apontar objetivos revolucionários coletivamente. Diante deste apelo formativo, não menos importante é o papel da alfabetização. O domínio da linguagem escrita em suas formas mais elaboradas se coloca então como tarefa a ser garantida pela proposta de educação histórico-crítica, uma vez que esse domínio assegurará o desenvolvimento posterior do indivíduo seja nas ciências naturais e humanas, seja nas artes. E é neste campo que nos colocamos. Dentre outras problemáticas relativas ao papel da alfabetização na formação do ser humano livre e universal 1 , o eixo central desta pesquisa é a relação conteúdo e forma da alfabetização nas condições postas pela sociedade atual, fundamentada na concepção pedagógica Histórico-Crítica e nas formulações da Psicologia Histórico-Cultural. Para fins de delimitação do problema, o objeto de estudo é o ensino da linguagem, mais especificamente sua modalidade escrita e as possíveis derivações didáticas que decorrem do entendimento que dela fizemos neste estudo. Em outros termos, estamos advogando a necessidade da compreensão do conteúdo e forma de uma alfabetização histórico-crítica, já partindo do pressuposto de que não devemos estabelecer uma forma única de ensino, mas propor indicações para um modelo possível, calcado nas correntes teóricas adotadas. Neste sentido, entendemos que os dilemas da prática educativa poderiam nos nortear no encaminhamento de princípios didático-pedagógicos, por isso algumas questões levantadas por nós enquanto alfabetizador de crianças e adultos foram discutidas na Seção I deste trabalho. Há uma validade teórica relevante ao se discutir tais 1 Para ler sobre a “formação do ser livre e universal” conferir DUARTE, N. A individualidade para si: contribuição a uma teoria histórico-social da formação do indivíduo. Ed. Comemorativa. Campinas: Autores Associados. 2013. 19 questões, mesmo que sejam aparentemente simples. Não são poucos os trabalhos acadêmicos sobre alfabetização que, dizendo-se inovadores, fazem propostas didáticas reiterando a cisão entre atividade significativa e atividade mecânica, letramento e aprendizagem da escrita. E também não são poucos aqueles que, buscando pautar-se na pedagogia crítica, revivem atividades amplamente adotadas por teorias que criticam. Intentando um processo de ensino que unifique ambas as dimensões da linguagem, fonética e semântica, postularemos, na última seção deste trabalho, a relevância em se tomar a palavra como elemento nuclear do processo de ensino da escrita e da leitura por condensar em si os aspectos fonéticos e semânticos da linguagem. A título de contextualização, queremos também afirmar que o trajeto de encontro com o problema desta pesquisa foi dinâmico. Durante a graduação, tivemos a oportunidade de realizar estágio supervisionado no ensino fundamental. Naquele momento, íamos ao estágio munido de reflexões sobre o processo de alfabetização baseado nas diversas perspectivas que o abordam e as confrontávamos com a prática que observávamos no contexto da escola. Observávamos, igualmente, a relação do que propunham os métodos de alfabetização no campo teórico com o que realizavam as professoras alfabetizadoras com as quais mantivemos contato. Com efeito, ao confrontar o que vínhamos estudando sobre os métodos e metodologias de alfabetização com o que presenciávamos no estágio, ficávamos frequentemente inquietos com a necessidade de aprofundar os conhecimentos sobre o tema e a possível elaboração de instrumentos teórico-práticos que superassem os limites apresentados pela perspectiva construtivista que era a adotada pela maioria dos alfabetizadores da escola. Vale dizer que nenhuma prática fundamentava-se exclusivamente na perspectiva construtivista, ainda que os alfabetizadores afirmassem que essa era a mais eficiente. Utilizavam elementos dos métodos sintéticos, analíticos, analítico-sintéticos e, das metodologias, extraíam exercícios dos mais variados tipos que tratassem do fonema e/ou sílaba que estivessem trabalhando no dia. Daí, normalmente, seguia-se ao reconhecimento dos fonemas ou sílabas nas palavras, à escrita de palavras e, por fim, ao reconhecimento dessas palavras nos textos, parlendas, cantigas de roda, adivinhas etc. A literatura infantil, por sua vez, tinha seu espaço no início ou fim da aula, não sendo retomada durante o processo de apropriação da língua escrita. Tendo esse contexto prático como pano de fundo, pensávamos constantemente sobre a necessidade de elaborar instrumentos teórico-práticos para a nossa prática alfabetizadora, que se iniciaria ao terminar a graduação. Pensávamos, mais especificamente, sobre o uso do texto, 20 quais textos deveria selecionar, que critérios utilizar para a seleção de textos, como trabalhar o sentido do texto com as crianças, como integrá-lo à sistematização do estudo das relações grafofonêmicas, sintáticas, morfológicas etc. da língua portuguesa e, mesmo, como organizar o processo de estudo dessas relações. Partiria da letra, da sílaba, do texto? Seria possível estruturar o ensino dos aspectos formais da escrita com base nos textos selecionados pelo professor e consubstanciá-lo num único processo? Foi, então, no início do segundo semestre de 2010 que, sob a orientação do professor Dr. Francisco José Carvalho Mazzeu, começamos a estudar, junto com um grupo de colegas graduandos em Pedagogia, a confecção de um material de alfabetização que superasse as dificuldades das metodologias que mencionamos sobre seleção de textos, palavras, apropriação da relação grafofonêmica e que, indo além, articulasse esses elementos num único processo. Esse material, no entanto, seria direcionado aos educandos adultos e não às crianças, como havíamos desejado inicialmente. Porém, já sinalizava a possibilidade de compreender teoricamente questões que nos colocávamos no período do estágio, referentes à seleção e ao uso de textos e a como definir e trabalhar o conteúdo da alfabetização, no processo de aquisição da linguagem escrita. O material que tomou forma no final do ano de 2010 foi denominado de Caderno de Alfabetização e continha, já nesses poucos meses de elaboração, um conjunto de aproximadamente 15 lições, cada uma das quais possuía um tema gerador, um texto de suporte e uma palavra geradora, que dariam início ao processo de alfabetização dos educandos adultos. Os temas, sobretudo, deveriam trazer em si uma carga de sentido existencial e emocional, isto é, deveriam estar ligados à experiência dos alfabetizandos adultos. O trabalho com esse conjunto de elementos, ou seja, temas, textos e palavras geradoras, consubstanciados no Caderno de Alfabetização, foi estruturado em três momentos básicos. O primeiro momento, o da discussão do tema gerador, pretendia situar a palavra no contexto de uma enunciação concreta, isto é, vinculá-la semanticamente a uma situação comunicativa, na qual adquirisse significado para o educando adulto. É o momento também da problematização de sua realidade, pois o texto gerador inicial trazia temáticas que são candentes à vida diária desses adultos. O segundo momento tratava-se do estudo sistemático da palavra geradora, já situada e significada. Desmembrava-se a palavra geradora em sílabas, em letras e, partindo ao quadro de formação de sílabas, formavam-se sílabas com as consoantes presentes na palavra 21 geradora. Em seguida, esse quadro servia de base para a formação de palavras novas, as quais seriam classificadas em substantivos próprios e comuns, verbos e outras que pudessem surgir. Dessas palavras criavam-se frases tendo em vista o tema gerador. Nessa etapa, tínhamos por objetivo que o adulto automatizasse a identificação e produção do desenho das letras contidas na palavra geradora e se apropriasse das relações entre letras e sons, entendendo os caracteres escritos em sua conexão com os significados. No terceiro momento, então, buscava-se retomar o tema e o texto gerador, recriando-o, já com um conjunto de novas palavras que emergiram do estudo da palavra geradora inicial. Assim, reapresentávamos o texto gerador de modo que o aluno pudesse reescrevê-lo ou criar o seu com base no texto disponível. Essa foi, sumariamente, a configuração a que chegou o Caderno de Alfabetização e que, no início do segundo semestre do ano de 2011, buscamos aplicar em uma sala de educandos adultos do Programa Brasil Alfabetizado 2 na cidade de Américo Brasiliense-SP. Com efeito, a aplicação do Caderno de Alfabetização no processo de alfabetização dos adultos foi fundamental para que tomássemos conhecimento de seus alcances possíveis e limitações existentes. A reformulação dos procedimentos didáticos inadequados, por sua vez, foi feita durante o processo de alfabetização conforme os alfabetizandos apresentassem dificuldade em compreendê-los. Nas primeiras aulas que ministramos, por exemplo, os alunos pouco se manifestavam ao serem questionados sobre o tema e o texto gerador. Assim, decidimos diminuir o tempo de dedicação a essa etapa no início da aula e aumentá-lo quando chegássemos à produção textual, pois ali apareceria outra vez o tema e o texto gerador. Ao cabo de uma semana, aproximadamente, os educandos já se manifestavam mais vigorosamente quando surgia o texto gerador e eram-lhes apresentadas as questões problematizadoras. Desse modo, o Caderno de Alfabetização foi se reconfigurando durante nossa prática pedagógica com os adultos, que foi de outubro a novembro de 2011, até meados de 2012, quando terminei a graduação e o grupo de confecção do material se dissolveu por motivos diversos. 2 O Programa Brasil Alfabetizado é uma iniciativa do governo federal que busca alfabetizar pessoas a partir dos quinze anos de idade. O Brasil Alfabetizado é desenvolvido em todo o território nacional, com o atendimento prioritário a municípios que apresentam alta taxa de analfabetismo. Esses municípios recebem apoio técnico na implementação das ações do programa, visando garantir a continuidade dos estudos aos alfabetizandos. O programa tem como principal objetivo promover a superação do analfabetismo entre jovens com 15 anos ou mais, adultos e idosos e contribuir para a universalização do ensino fundamental no Brasil. (Fonte: http://portal.mec.gov.br/). 22 Em fins de 2012 participamos do processo seletivo para contratação de professores temporários para a rede municipal de São Carlos–SP. O contrato previa o período de trabalho de fevereiro a junho de 2013, com possível prorrogação até dezembro do mesmo ano. Com a aprovação no processo seletivo para contratação de professores, fomos convocados a participar da atribuição de turmas uma semana após o início do ano letivo, e a contratação aconteceu exatamente um dia antes de assumir o emprego. Vale a pena apontar esse fato porque tem implicação direta na prática pedagógica do professor, considerando que este não pode iniciar seu trabalho sem um planejamento de como serão e quais serão as atividades para o semestre/ano, o que implica, por outro lado, ter em mente os objetivos específicos a se atingir em cada área e os objetivos gerais, que dizem respeito à formação como um todo. Contudo, no dia seguinte à contratação, apresentamo-nos à escola como professor do 1º ano do ensino fundamental, do período vespertino. Ao chegar à escola, atendeu-nos a direção com a qual mantivemos um breve diálogo sobre as demandas da escola e dos alunos. Em seguida, fomos conduzidos à sala de aula da turma de 1º ano, com a qual trabalharíamos. Esta já se encontrava com a professora de apoio, que havia assumido a sala desde o início do ano letivo até o momento que o professor contratado estivesse disposto a assumir o trabalho. Em nenhum momento, vale salientar, houve diálogo sobre a proposta pedagógica da escola, o currículo utilizado, os recursos materiais existentes etc., elementos que, reiteramos, fomos apreendendo conforme preparávamos as aulas semanais no diário de classe. Isso posto, pensamos estar claras as condições nas quais se deram nossa contratação, seja no âmbito burocrático, seja no âmbito pedagógico, considerando, como já afirmamos, a necessidade de um planejamento prévio das ações pedagógicas a serem desenvolvidas que não prescinde de um conhecimento prévio do currículo, dos recursos existentes ou, até mesmo, da proposta e objetivos pedagógicos da escola na qual se trabalha. Desse modo iniciamos nosso trabalho, e, no que diz respeito à alfabetização, optamos, inicialmente, pelas orientações da coordenação pedagógica em seguir o método global, utilizando o material do Ler e Escrever disponível na escola. Durante o primeiro mês, então, trabalhamos cantigas de roda, parlendas, adivinhas etc., contextualizando fonemas e sílabas. Lançamos mão também do estudo dos fonemas a partir dos nomes das crianças, reforçando seus valores fonéticos nos diferentes contextos e exercitando a escrita a partir de seus nomes. Assim, no final do primeiro mês, por solicitação da coordenação, realizamos uma sondagem de escrita cujos resultados fizeram-nos questionar os procedimentos que vínhamos utilizando. 23 Ora, exigia-se das crianças, no momento da sondagem, a consciência silábica e, no entanto, orientavam-nos a não trabalhar com sílabas, isto é, com o “tradicional ba-be-bi-bo-bu”, pois “tiraria a possibilidade da criança pensar sobre a composição das palavras” que, por sua vez, deveriam ser decodificadas na sondagem cujos instrumentos necessários para a decodificação o professor também não devia fornecer. A partir da primeira sondagem, portanto, começamos a utilizar outro método para alfabetizar. Iniciamos por retomar os momentos desenvolvidos no Caderno de Alfabetização, cujos passos estão apresentados acima. Utilizamos também o material didático Alfabetização e Letramento do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) disponível na escola, mas o eixo estruturador do trabalho consistiu no Caderno de Alfabetização, que possui uma sequência de ensino da escrita baseada em textos. Os textos do Caderno, por sua vez, não eram de interesse infantil, propriamente, então buscávamos as palavras em textos que líamos para as crianças, como a “Arca de Noé”, de Vinícius de Moraes; “Era uma vez um gato xadrez”, de Bia Vilella; e “Chapeuzinho Amarelo”, de Chico Buarque, basicamente. Levantávamos, juntamente com os alunos, uma palavra que continha o fonema que pretendia trabalhar no dia, escrevíamo-la na lousa, decompúnhamo-la em sílabas, em letras e entregávamos um quadro impresso para as crianças no qual nos acompanhavam na construção do “Quadro de Sílabas” lançando mão das consoantes presentes na palavra escolhida. Muitas crianças compunham e decompunham as palavras em sílabas, as quais nós solicitávamos constantemente que nos mostrassem a decomposição com o levantamento de um dedo para cada sílaba. Eventualmente, nós pedíamos que os alunos circulassem na lousa as sílabas que ditávamos, para compor palavras. Esse trabalho acompanhou a confecção de pequenos livros pelas crianças que, como haviam memorizado a história do livro que líamos diariamente, escreviam com ajuda as pequenas frases que figuravam cada página do livro e faziam o respectivo desenho. Com efeito, a sondagem de escrita que se seguiu a esse trabalho trouxe resultados animadores. Nela, um número considerável de alunos já pôde escrever as palavras solicitadas seguindo o critério da silabação, outros avançaram no reconhecimento do valor sonoro dos fonemas e na lógica de composição das sílabas. Assim, nos meses seguintes, continuamos utilizando os procedimentos do Caderno de Alfabetização e buscamos modos de articular textos e produção de textos que fizessem as crianças avançarem no domínio da escrita e da leitura. 24 No que tange também a alfabetização, vale apontar que a prática alfabetizadora da escola estava circunscrita a utilização dos materiais didáticos disponíveis pela secretaria municipal e estadual de educação: Ler e Escrever, Alfabetização e Letramento. Entretanto, algumas práticas de alfabetização limitavam-se ao uso de uma “folhinha de atividade”, com a qual o professor explicava todo um conceito a partir dessa folhinha, que deveria ser simples para o aluno. Trata-se de uma folha de exercícios de uma letra, de localização de uma palavra ou de pintura da letra que se está estudando. Alguns professores, ainda, comentavam que não conseguiriam dar aula se não possuíssem a folhinha em mãos. Gostaria de sinalizar, portanto, que as condições materiais nas quais nós professores estruturávamos nosso trabalho traziam dificuldades para a elaboração de procedimentos metodológicos diferenciados e por vezes o impossibilitavam. Disso decorriam outras dificuldades que consideramos importantes: a do conhecimento de todo o processo pedagógico; a do domínio do conteúdo específico de trabalho; a da elaboração de materiais próprios que corroborassem os momentos do processo pedagógico de cada professor etc. Essa precariedade de condições objetivas implicava uma prática alfabetizadora, na maioria dos casos vistos e vividos, semelhantes às que descrevemos anteriormente, ou seja, práticas baseadas em folhinhas de atividades e circunscritas exclusivamente à adoção de materiais didáticos disponíveis pela secretaria municipal de educação. Feitas essas considerações, voltemos ao caso de nossa prática alfabetizadora. Os resultados que obtivemos ao terminar o semestre e haver lançado mão dos procedimentos do Caderno de Alfabetização foram muito animadores. A maioria dos alunos, quando dizíamos que estudaríamos alguma palavra, já classificavam-na em sílabas, levantando os dedos da mão, um para cada sílaba, procedimento esse que, como já mencionamos, utilizava constantemente no estudo da escrita. Também produziam bilhetes e registravam algumas ideias no diário que possuíam, por nossa orientação. Sobre a leitura, os que liam ainda o faziam silabando, sendo que uns o faziam com maior velocidade que outros. É interessante notar que através desta experiência nos colocamos a pensar sobre a possibilidade de articular o domínio dos elementos básicos da escrita, isto é, automatizá-los, simultaneamente à aquisição de significado e sentido do que estavam se apropriando, e buscamos resposta para esta questão na articulação das palavras e fonemas com o texto, entendendo que o texto, a estrofe, a frase de um poema, por exemplo, pudesse ser colocada como fundo no estudo do fonema, sílaba ou palavra que estivesse em destaque. Daí outras questões se colocaram como, por exemplo, o critério de seleção de textos infantis que 25 permitissem essa articulação tendo clareza de que o conteúdo dos textos também devesse ser levado em consideração nessa possível articulação. Contudo, acreditamos que não conseguimos superar essa dificuldade, pois ao programar a aula sob essa demanda, sentíamos a necessidade de instrumentos teóricos capazes de nos permitir articular ambos os momentos num único processo. Assim, depois desse período de trabalho no ensino fundamental e de consultar artigos, livros, dissertações e teses, verificamos que o uso de textos na alfabetização de crianças se trata de um problema mais amplo do que colocar a criança em relação com livros, com literatura, considerando que, baseado no percurso aqui explicitado, a relação entre letras e fonemas caracteriza-se como conteúdo dominante da alfabetização e deve, sim, ser apreendido significativamente, sob a base de textos. Não se trata de ensinar esse conteúdo em detrimento de textos, tampouco de prescindir dele sob uma suposta concepção de “letramento”, mas da articulação dialética do ensino da relação entre fonemas e letras. Assim, chegamos à problemática que envolve esta pesquisa: a necessidade de se estabelecer novos princípios pedagógicos para o trabalho com o ensino da leitura e da escrita a partir de um viés histórico-crítico, já que as propostas hegemônicas atuais do construtivismo, da alfabetização fônica, e do letramento partem da cisão dos aspectos fonético e semântico da linguagem, caros e necessários à uma apropriação da linguagem escrita em suas dimensões conceitual, abstrata e simbólica. Há algumas questões-síntese a serem respondidas por esta pesquisa: qual o conteúdo específico nos primeiros anos da alfabetização? Há algum elemento da linguagem que sintetizaria os aspectos semânticos e fonéticos necessários à apropriação da linguagem escrita? Que critérios utilizar para a seleção de textos na alfabetização? Como se estrutura o fenômeno da linguagem oral e da linguagem escrita? Por que os aspectos semânticos e fonéticos da linguagem devem ser trabalhos em unidade? Em síntese, o movimento analítico pretendido é o de reconhecimento e incorporação dos avanços, e não apenas o da crítica negativa daquelas propostas didáticas em alfabetização que não se coadunam com a perspectiva histórico-crítica. Por outro lado, é igualmente pretendida a objetivação de reflexões ricas e férteis sobre os dilemas existentes na prática dos alfabetizadores das escolas brasileiras, encaminhando respostas à problemas postos desde sempre ao professor de crianças e materializando uma pedagogia articulada com os interesses da classe trabalhadora. 26 À título de encerramento desta apresentação, esclarecemos que este trabalho está estruturado em três seções. Na primeira seção, procuramos esboçar o tratamento que se tem dado à alfabetização na história brasileira, evidenciando as soluções apresentadas pelos governos e os resultados obtidos até o momento. Argumentamos que imputar aos indivíduos o problema do analfabetismo é escamotear sua natureza histórico-social, na medida em que apenas a supressão das formas mais extremadas de exploração do trabalho, da divisão social do trabalho, e da divisão do trabalho em trabalho manual e trabalho intelectual possibilitará a verdadeira erradicação do analfabetismo. Por isso, não se trata apenas de elaborar métodos novos, mas de estabelecer no bojo dos métodos que se está criando, a formação de indivíduos que lutem pela transformação da sociedade atual. Na seção de número dois, anotamos como a pedagogia pensaria os problemas relativos à alfabetização a partir dos fundamentos teórico- metodológicos que postula. Do mesmo modo, analisamos dois artigos que consideramos relevantes para o avanço de uma didática histórico-crítica em alfabetização, donde sintetizamos algumas formulações pedagógicas que, por sua vez, foram mais detalhadas na seção três. Na seção três iniciamos com uma síntese sobre as elaborações de Vigotski e Luria sobre o fenômeno da linguagem escrita e sobre o percurso realizado pela criança para aquisição dos rudimentos da escrita e da leitura. Finalizamos esta seção com apontamentos sobre o papel da palavra como elemento nuclear no processo de alfabetização por carregar em si as propriedades fundamentais que apontam para a formação de conceitos na criança escolar: a fonética e a semântica. Tentamos, por fim, postular algumas orientações didático-pedagógicas a partir da conclusão da centralidade da palavra. Esperamos que reverberem como contribuição do esforço aqui empreendido. Fica mais uma vez a indicação de que este trabalho não visa definir uma forma única de ensino da leitura e da escrita baseado na perspectiva histórico- crítica. Vê-se ao longo do trabalho que a própria dinâmica de sala de aula, as circunstâncias objetivas de cada escola, estado, cidade, as características linguísticas e culturais dos alunos são elementos que devem ser considerados sempre no trabalho educativo e, portanto, esclarecem para nós a dimensão do domínio da atividade de ensino exigida do professor antes de nos fazer crer na necessidade de uma forma acabada de se ensinar a linguagem escrita. 27 Seção I O debate sobre alfabetização no Brasil O trabalho que ora se apresenta insere-se no debate contemporâneo sobre alfabetização de crianças no ensino fundamental e objetiva, em seu conjunto, analisar este fenômeno e contribuir com seu avanço metodológico a partir da corrente pedagógica histórico-crítica. É sabido que a construção desta teoria pedagógica tem sido realizada por diversos pesquisadores em âmbito nacional, e muitas têm sido as publicações de artigos, dissertações e teses abordando a temática do ensino da alfabetização. Se a necessidade do ensino intencional e sistematizado já está bem posta e esclarecida para os educadores adeptos desta vertente, do qual nenhuma proposição teórica deste campo abre mão, por outro lado pouco tem-se avançado no entendimento dos procedimentos pedagógicos alinhados à perspectiva histórico- crítica. Por isso esse trabalho intenciona contribuir com essa lacuna no que diz respeito a alfabetização de crianças no primeiro e segundo anos do ensino fundamental, corroborando todo o estofo filosófico e político preconizado pela Pedagogia Histórico-Crítica: o materialismo histórico-dialético postulado pelos trabalhos clássicos de Karl Marx e Friedrich Engels. O trabalho a ser empreendido por nós não é simples, e não pretende, de forma alguma, esgotar a discussão do que se propõe discutir, mas objetiva apontar caminhos profícuos para o desenvolvimento de uma didática adequada aos pressupostos teóricos da Pedagogia Histórico-Crítica. Em síntese, nos quatro itens desta primeira seção, demonstraremos o analfabetismo como problema ainda pulsante na sociedade brasileira, e pela natureza histórico-social que lhe é própria, não pode ser tratado apenas como decorrente do emprego de métodos inadequados de ensino da escrita e da leitura, como veremos no histórico da alfabetização no Brasil. Por fim, veremos como a Pedagogia Histórico-Crítica, posicionando-se na luta pela superação do capitalismo, entende este fenômeno. 28 1.1 Dados atuais do problema da alfabetização no Brasil Notícias jornalísticas, reportagens televisivas, redes sociais, sítios de internet, artigos científicos alardeiam constantemente as elevadas taxas de analfabetismo em nosso país acentuando o desgaste e a ineficiência dos programas governamentais para a alfabetização de crianças, jovens e adultos. Veem-se gráficos de coluna, de pizza, tabelas, fotografias de pessoas pobres e muitos números percentuais ilustrando as inúmeras justificativas e discursos sobre a causa da existência de tantas pessoas sem saber ler e escrever em pleno século XXI: o descuido das famílias em educar seus filhos; a preguiça dos indivíduos; a incapacidade de adaptação ao meio; o baixo nível intelectual da criança; a pobreza familiar; o descaso do governo em ofertar alfabetização de qualidade para todos. Do mesmo modo, soluções várias são propostas para o enfrentamento do problema: a atuação do governo por meio de programas ou campanhas, a criação de organizações não governamentais que ofertem alfabetização, a adoção de novos métodos de alfabetização, livros didáticos e, inclusive, o retorno ao denominado método tradicional, às antigas cartilhas. Segundo dados do IBGE, 13 milhões de brasileiros são considerados analfabetos, totalizando 8,6% da população de 15 anos ou mais, enquanto do total da população brasileira 27% são analfabetos funcionais, conforme podemos observar nos gráficos e tabelas que se seguem. Contudo, cabe apontar que os conceitos de analfabetismo funcional e absoluto nem sempre são consensuais entre os órgãos que evidenciam dados sobre este fenômeno. Em outros termos, há dificuldade em se estabelecer o que é um indivíduo analfabeto e/ou alfabetizado. Vejamos. Se a definição do que seja analfabeto é mais fácil de delinear, por tratar-se do indivíduo incapaz de fazer qualquer uso da língua escrita, o mesmo não ocorre com o analfabetismo funcional. Os dados apresentados pelo IBGE pautam-se numa definição questionável sobre analfabetismo funcional, o que enseja uma diluição do conceito de analfabetismo. A inferência do quantitativo de analfabetismo absoluto e funcional baseava-se, para este órgão, em pesquisas amostrais realizadas em domicílio a partir da autodeclaração do indivíduo à pergunta “sabe ler e escrever?”, devendo, portanto, se a resposta fosse afirmativa, redigir um bilhete simples sobre sua vida cotidiana. Dadas às mudanças na definição de alfabetismo, desde 1990 o IBGE passou a definir o analfabetismo funcional em relação aos anos de escolarização, considerando, portanto, como analfabeto funcional, quem possui menos de quatro anos de escolaridade. Sabendo-se, contudo, que a alfabetização constitui-se de dois processos distintos e complementares entre si, a leitura e a escrita, e que a leitura é um processo mais complexo do que a escrita por comportar um grau maior de exigência de 29 relações, inferências e interpretações do que é lido, não seria adequado medir a competência em leitura a partir da produção escrita de bilhetes, por exemplo. Essa constatação, portanto, fragiliza o critério utilizado pelo IBGE na pesquisa sobre o quantitativo de analfabetos funcionais. Com efeito, a palavra analfabeto refere-se àquele que carece do alfabeto, ou seja, o indivíduo que não aprendeu a utilizar em nenhum nível a linguagem escrita, seja para a elaboração de um texto escrito ou para a escrita do próprio nome. À esse estado se refere o analfabetismo absoluto. No entanto, a denominação analfabetismo funcional pretende caracterizar indivíduos capazes de ler e escrever em algum grau de domínio, mas incapazes de utilização da linguagem escrita e da leitura nas diversas formas em que estas se apresentam nos espaços sociais. Ora, esta é também outra fragilidade das pesquisas sobre analfabetismo pautadas nessas definições, pois vemos que o que se denomina analfabetismo funcional se trata da medição do processo conhecido atualmente como letramento. Alfabetização e letramento são processos distintos, como já apontados pelos estudiosos de tais processos. Há que se aclarar cada um desses conceitos para que se obtenham dados precisos e reais sobre a condição cultural da sociedade brasileira em termos de leitura e escrita e, consequentemente, que se proponham medidas pedagógicas adequadas ao problema do analfabetismo e do letramento. Veremos mais adiante como se caracteriza cada um desses processos. Tais apontamentos tornam-se necessários para precisarmos adequadamente o que estamos definindo como analfabetismo e analfabetismo funcional, visto que os dados apresentados acima pelo IBGE, de que 27% da população brasileira de 15 anos ou mais é analfabeta funcional, saltam a vista e não esclarecem que os 27% dominam a escrita e a leitura em algum grau de conhecimento. Tratam-se, acreditamos, mais propriamente de iletrados do que de analfabetos, ao nosso ver. Os gráficos a seguir ilustram o quantitativo dos indivíduos analfabetos, na acepção que já indicamos. Figura 1 – Taxa de analfabetismo das pessoas de 15 anos ou mais de idade, por sexo - Brasil 30 Comparativamente, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2005, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) demonstra que 10,9% dos brasileiros de 15 anos ou mais não sabia ler nem escrever. Em 2002, esse índice era de 11,8%, totalizando 14,8 milhões de analfabetos. Desse montante, contabilizados em 2002, apenas 213 mil conseguiram se alfabetizar nos três anos seguintes. O IBGE também divulga os seguintes dados sobre o analfabetismo entre crianças de 10 anos ou mais: Figura 2 - Taxa de analfabetismo das pessoas de 10 a 14 anos de idade, por sexo - Brasil FIGURA 3 – Taxa de analfabetismo das pessoas de 10 anos ou mais de idade, por sexo - Brasil 31 Embora os números apresentados acima sejam alarmantes, dado o atual avanço socioeconômico da sociedade brasileira e os grossos investimentos feitos pelo governo federal em programas de alfabetização de jovens e adultos, vemos que mais estarrecedores se tornam quando nos atentamos ao percentual relativo ao analfabetismo funcional, de 27%, tal como evidenciado pelo IBGE e por dados do Instituto Paulo Montenegro - IPM (2012), apresentados a seguir: Tabela 1: Resultados do Inaf – Habilidades de leitura e Habilidades matemáticas Fonte: Instituto Paulo Montenegro/Ação Educativa - INAF (2012) Os dados da tabela acima, elaborados pelo Instituto Paulo Montenegro e pela ONG Ação Educativa (2012), baseiam-se na definição de analfabetismo funcional já demonstrada por nós como problemática, porque confunde dois conceitos básicos: alfabetização e letramento. Vejamos como essas organizações caracterizam o analfabetismo funcional: a) analfabetos funcionais ou pessoas parcialmente alfabetizadas podem ser agrupados em duas 32 categorias. Os alfabetizados em nível rudimentar (analfabetos funcionais de nível 1) identificam-se pelo reconhecimento da maior parte das palavras na forma escrita e pela localização de informações simples em microtextos, mas apenas se a informação estiver explícita. Redigem pequenos enunciados, como bilhetes, mensagens de texto virtuais, listas e respostas curtas com graves problemas de coerência e clareza. Possuem dificuldade em produzir enunciados longos e complexos; b) alfabetizados em nível básico (analfabetos funcionais de nível 2) conseguem localizar informações implícitas, leem e compreendem textos simples pequenos, com dificuldade em localizar informações implícitas em textos mais complexos, ainda que pequenos. Ou seja, não conseguem interpretar textos com competência satisfatória senão de assuntos cotidianos. Produzem redações de temas simples e são quase incapazes de sintetizar informações de fontes variadas. Possuem dificuldade em produzir paráfrases de informações ou argumentos, mesmo dos de média complexidade; c) plenamente alfabetizado (alfabetização em nível 3) é quem lê, compreende e depreende ideias implícitas de qualquer texto de qualquer tamanho ou grau de complexidade. É capaz de resumir o sentido geral dos textos que lê, e consegue comunicar suas ideias com clareza e coerência através de textos. Consegue sintetizar informações reunidas de várias fontes. De acordo com estes parâmetros de análise do problema do analfabetismo, em 2012 foi publicado pelo IPM e ONG Ação Educativa o Indicador de analfabetismo funcional – Inaf, evidenciando que o número de pessoas plenamente alfabetizadas com o ensino médio é de apenas 35%. Ou seja, 65% dos estudantes aptos a ingressarem na universidade seriam considerados ou analfabetos ou analfabetos funcionais de nível 1 e 2 (IPM, 2012). A situação se obscurece entre estudantes de nível superior. A despeito do alarde do Ministério da Educação em relação ao crescimento do número de diplomados em nível superior, do total de 7,9% desta população em 2010, 48% de seu contingente compunha-se de analfabetos funcionais. Os índices apresentados acima, como veremos, podem apresentar outra configuração se partirmos da definição e distinção de letramento e alfabetização proposta por Soares (2006). Conforme esta autora, estes processos possuem especificidades claras e devem ser levadas em conta na elaboração de intervenções pedagógicas que objetivem a erradicação do fenômeno do analfabetismo. Desse modo, cremos que os índices demonstrados pelo Inaf (2012) evidenciam, sim, a deficiência do letramento dos indivíduos consultados, e não propriamente o quão alfabetizados estão estes indivíduos. Por isso, o conceito de letramento é o que julgamos ser o 33 mais adequado para interpretar os índices demonstrados por esse indicador. Magda Soares (2006), buscando delimitar as fronteiras do conceito de letramento, afirma o seguinte: [...] Conhecemos bem, e há muito, o “estado ou condição de analfabeto”, que não é apenas o estado ou condição de quem não dispõe da “tecnologia” do ler e do escrever: o analfabeto é aquele que não pode exercer em toda sua plenitude os seus direitos de cidadão, é aquele que a sociedade marginaliza, é aquele que não tem acesso aos bens culturais de sociedades letradas e, mais que isso, grafocêntricas; porque conhecemos bem, e há muito, esse “estado de analfabeto”, sempre nos foi necessária uma palavra para designá-lo, a conhecida e corrente analfabetismo. Já o estado ou condição de quem sabe ler e escrever, isto é, o estado ou condição de quem responde adequadamente às intensas demandas sociais pelo uso amplo e diferenciado da leitura e da escrita, esse fenômeno só recentemente se configurou como uma realidade em nosso contexto social. Antes, nosso problema era apenas o do “estado ou condição de analfabeto” – a enorme dimensão desse problema não nos permitia perceber esta outra realidade, o “estado ou condição de quem sabe ler e escrever”, e, por isso, o termo analfabetismo nos bastava, o seu oposto – alfabetismo ou letramento – não nos era necessário. Só recentemente passamos a enfrentar esta nova realidade social em que não basta apenas saber ler e escrever, é preciso também saber fazer uso do ler e do escrever, saber responder às exigências de leitura e escrita que a sociedade faz continuamente – daí o recente surgimento do termo letramento (SOARES, 2006, p. 19-20 grifos nossos). A definição de letramento proposta por Soares (2006) demarca justamente o fenômeno do letramento. O termo analfabetismo funcional, então, carece de correspondência prática se nos atentarmos ao fato de que o indivíduo que faz uso da escrita e da leitura, mesmo em graus baixíssimos de domínio, não é analfabeto, e, portanto, não vive em “estado ou condição de analfabeto”. Há sim que se lutar para que os indivíduos se apropriem da escrita e da leitura em seus graus mais elevados, a tornem parte de sua individualidade e façam uso crítico e consciente das variadas formas em que se apresentam nas diversas práticas sociais existentes. Ou seja, o processo de escolarização em seu conjunto deve garantir o letramento adequado e crítico dos indivíduos, potencializando assim intervenções e usos críticos das práticas de leitura e escrita contemporâneas. Não sendo um problema unicamente das instituições brasileiras, a confusão de conceitos evidenciados em pesquisas sobre analfabetismo e letramento aparece em outros países. Soares (2006) faz apontamentos acerca dessa incompreensão: A avaliação do nível de letramento, e não apenas da presença ou não da capacidade de escrever ou ler (o índice de alfabetização) é o que se faz em países desenvolvidos, em que a escolaridade básica é realmente obrigatória e realmente universal, e se presume, pois, que toda a população terá adquirido a capacidade de ler e escrever. Assim, de um modo geral, esses países tomam como critério avaliar o nível de letramento da população o número de anos de escolaridade completados pelos indivíduos [...]: o pressuposto é que a escola, em 4,5 anos ou mais, terá levado os indivíduos não só à 34 aquisição da “tecnologia” do ler e escrever, mas também aos usos e práticas sociais da leitura e da escrita. O que interessa a esses países é a avaliação do nível de letramento da população, não o índice de alfabetização, e frequentemente buscam esse nível pela realização de censos por amostragem em que, por meio de numerosas e variadas questões, avaliam o uso que as pessoas fazem da leitura e da escrita, as práticas sociais de leitura e de escrita de que se apropriaram. [...] é importante compreender que é a letramento a que estão se referindo os países desenvolvidos quando denunciam, como têm feito com frequência, índices alarmantes de illiteracy (Estados Unidos, Grã- Bretanha, Austrália) ou de illetrisme (França) na população; na verdade, não estão denunciando, como se costuma crer no Brasil, um alto número de pessoas que não sabem ler e escrever [...] mas estão denunciando um alto número de pessoas que evidenciam não viver em estado ou condição de quem sabe ler e escrever, isto é, pessoas que não incorporaram os usos da escrita, não se apropriaram plenamente das práticas sociais de leitura e de escrita: em síntese, não estão se referindo a índices de alfabetização, mas a níveis de letramento (SOARES, 2006, p. 22 – 23). A despeito da extensão da citação, é importante apontar esse trecho na íntegra pelo fato de corroborar a definição de letramento já delineada por nós e por Soares (2006) anteriormente. Fica evidente que há uma incongruência na designação do fenômeno do analfabetismo também no Brasil, caracterizado pelos dados do IBGE e IPM – Inaf, cuja nebulosidade dever desfeita. Traremos, posteriormente, algumas reflexões sobre consequências didático-pedagógicas para os anos iniciais de escolarização advindas da definição dos conceitos de alfabetização e de letramento. Por ora ilustramos os índices absolutos de analfabetismo no Brasil a partir de dados do IBGE. Tabela 2. Analfabetismo na faixa etária de 15 anos ou mais– Brasil 1900/2010 Ano População com 15 anos ou mais Total da população¹ População Analfabeta¹ Taxa de analfabetismo 1900 9.728 6.348 65,3% 1920 17.564 11.409 65,0% 1940 23.648 13.269 56,1% 1950 30.188 15.272 50,6% 1960 40.233 15.964 39,7% 1970 53.633 18.100 33,7% 1980 74.600 19.356 25,9% 1991 94.891 18.682 19,7% 2000 119.533 16.295 13,6% 2010 144.814 13.933 9,6% Fonte: IBGE, Censo Demográfico. 35 FIGURA 4 – Número de analfabetos na faixa etária de 15 anos ou mais– Brasil 1900/2010 Fonte: IBGE, Censo Demográfico. É possível observar no gráfico acima que, em números absolutos, chegamos ao ano de 2010 com o quantitativo maior de analfabetos do que tínhamos em 1940. A despeito do aumento significativo da população brasileira nos últimos 70 anos (1940-2010), que passou de 23.648 para 144.814 milhões de habitantes, percebe-se a manutenção de um quantitativo de analfabetos ao longo dos últimos 70 anos, decaindo aproximadamente 6% a cada década, sendo que a menor redução em percentuais ocorreu na década de 2000 a 2010, 4%. FIGURA 5: Distribuição dos analfabetos de 15 anos ou mais entre as Unidades da Federação – Brasil 2012 24.746 33.114 70.079 73.362 108.839 139.263 142.063 164.433 189.990 200.499 213.199 265.979 361.275 380.955 414.421 449.315 453.012 492.603 524.969 550.529 588.000 974.267 1.157.158 1.183.081 1.313.461 1.797.145 0 500.000 1.000.000 1.500.000 2.000.000 Roraima Acre Rondônia Tocantins Mato Grosso Amazonas Goiás Rio Grande do Norte Paraná Alagoas Pará Pernambuco São Paulo População analfabeta 36 Fonte: IBGE, Censo Demográfico. Ora, que dizem os gráficos e tabelas expostos? Do espectro demonstrativo que possuímos, indo de 1900 à 2012, os dados nos comunicam os picos mais elevados de analfabetos na sociedade brasileira e os períodos de declínio deste fenômeno, obrigando-nos a constatar a veracidade da queda de taxas de analfabetismo no Brasil e, daí, a inferir que ano a ano este fenômeno vem sendo combatido pelos governos cuja postura tem sido a de enfrentamento do problema em sua raiz através das campanhas e programas de alfabetização de jovens e adultos e da universalização da escola básica às crianças de 0 a 10 anos. Seria isso o que nos comunicam os números e percentuais? Que mais nos dizem? Há algo mais sendo dito cuja descoberta estaria acessível apenas aos plenamente alfabetizados, capazes de obter informações implícitas dos textos que leem? Vamos retomar o caso dos analfabetos funcionais, pois, como vimos, a taxa é de 27% da população total brasileira e de 48% entre os diplomados com nível superior. Podemos afirmar que o descaso, a privatização e o sucateamento da educação ao longo de anos no Brasil, frutos de uma política de mercantilização intensa dos bens culturais e materiais produzidos historicamente pelo conjunto da humanidade, é, sem dúvida, responsável por tamanho montante de analfabetos funcionais. A condição precária de tantas escolas públicas, com baixíssimos salários aos professores e infraestrutura didático-pedagógica parcamente estabelecida, bem como a abertura sem critérios de faculdades, universidades e institutos de educação em cada esquina aliada a um projeto de precarização da educação superior pública devem ser responsabilizadas e reconhecidas como fabricantes de tantos diplomados iletrados em nosso país. A formação de diplomados semialfabetizados em grande percentual é constantemente alardeada pelos órgãos educacionais e pelo governo como expressão de vitória da sociedade brasileira, no entanto, não se tem colocado em pauta a precarização do modelo de expansão universitária praticado, que tem sucateado o ensino superior. Numa sociedade extremamente desigual como é a sociedade brasileira, onde relações de poder marcam a deliberação ou não de políticas sociais que possibilitem o avanço da classe dominada, de modo que as políticas sociais de favorecimento da população pobre traz em si o contraditório da conservação da desigualdade social, a prática de diplomar iletrados evidencia o propósito claro de criar uma oferta de mão-de-obra barata e abundante, revitalizando o denominado “exército de reserva”. A consequência visível e já experienciada é a “bola de neve” que isso se torna, em que cada 37 vez mais se aceita postos de trabalho com salários abaixo do justificável devido à ampla concorrência existente. Para que não fique dúvida sobre os esforços empreendidos a nível nacional e internacional com vistas a combater o fenômeno do analfabetismo, relatório da UNESCO intitulado “Alfabetização como liberdade”, com publicação de 2003, esclarece o posicionamento desta organização frente ao problema e aponta inúmeras ações, a nível internacional, desenvolvidas ao longo de 40 anos para o suposto debate e proposições de projetos que erradicassem o analfabetismo. A conclusão final extraída deste “esforço coletivo” dos países através da UNESCO é inaceitável para aqueles que veem as condições objetivamente postas e existentes para o enfrentamento adequado do analfabetismo. Os quarenta anos de atividades em prol da alfabetização consistiram em: Congresso Mundial de Ministros da Educação sobre a Erradicação do Analfabetismo, Teerã – 1965; Simpósio Internacional sobre Alfabetização, Perseópolis – 1975; Ano Internacional da Alfabetização, AIA – 1990; Conferência Mundial sobre Educação Para Todos, Jomtien – 1990; Quinta Conferência Internacional sobre Educação de Adultos, Hamburgo – 1997; Fórum Mundial de Educação, Dacar – 2000. Embora se tratem de ações a nível internacional, o documento “Alfabetização como liberdade” (2003) deixa claro que ao longo dos 40 anos de atividade da organização aliada a governos de inúmeros países, o número de analfabetos obteve um pífio decréscimo: de 879 milhões para 861 milhões. Avaliando o resultado das atividades, o relatório coloca que: Este panorama dos eventos e compromissos internacionais relativos à alfabetização revela dois focos de tensão: em primeiro lugar, embora a retórica de preocupação quanto ao enfoque da questão da alfabetização tenha se mantido forte e clara, os avanços reais foram frustrantes – diversas metas foram estabelecidas e não cumpridas, e nenhum aumento significativo nos investimentos foi ainda verificado. Em segundo lugar, embora a alfabetização permaneça no cerne das atribuições da UNESCO, e a ela tenha se engajado intensamente no processo internacional, nada disso resultou na colocação da alfabetização no centro dos debates internacionais sobre educação. A solução desses focos de tensão, necessariamente, fará parte de toda e qualquer ação a ser adotada no futuro (UNESCO, 2003, p.33 – grifos nossos). É justo lançar a questão do porque, ao longo de 40 anos, uma organização com o alcance da UNESCO, declaradamente “engajada no processo internacional”, não reviu os procedimentos utilizados para enfrentar o problema do analfabetismo. Protela-se ainda mais: “A solução desses focos de tensão, necessariamente, fará parte de toda e qualquer ação a ser adotada no futuro”. Haveria um interesse político por trás do analfabetismo? 38 Constatado o irrisório acréscimo de 5% de alfabetizados no mundo todo, na década de 1990 á 2000, estabeleceu-se seis metas para serem alcançadas até 2015, no Fórum Mundial de Educação de Dacar, também liderado pela UNESCO. Em relação à alfabetização, essas metas significavam alcançar, até 2015, um aumento de 50% de adultos alfabetizados, principalmente entre mulheres, bem como acesso igualitário à educação básica e a educação continuada para todos os adultos. Curiosamente, já em 2002, o Relatório de Acompanhamento Global de Educação Para Todos relatou que, entre as metas de Dacar, a alfabetização é a que menor possibilidade apresenta de ser atingida na maioria dos países – 79 países encontram-se em situação de risco, 40 deles em risco grave, quanto a não atingir as metas de Dacar para a alfabetização (UNESCO, 2003, p. 33). Em 2003, a solução apresentada pelo então governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi o Brasil Alfabetizado 3 . Este programa visou a combater os baixos índices de alfabetismo apresentados por pesquisas da UNESCO, do Instituto Paulo Montenegro e IBGE, sintetizadas em documento “Estatísticas sobre Analfabetismo no Brasil: Audiência Pública – Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado Federal” 4 . A proposta vinculou-se aos órgãos do SECADI/MEC – Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão, FNDE – Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, EEx – Ente Executor (Secretaria de Educação do Município ou Distrito Federal), e CNAEJA – Comissão Nacional de Alfabetização e Educação de Jovens e Adultos com o intuito de ser melhor executada. Do mesmo modo, alianças com secretarias estaduais e municipais foram realizadas para que os alfabetizandos pudessem seguir os estudos básicos na Educação de Jovens e Adultos - EJA após o término da alfabetização. Vale também apontar que o Programa Brasil Alfabetizado surge com o propósito de atender a uma população histórica e socialmente marginalizada e excluída do direito à alfabetização: [...] jovens, adultos e idosos não-alfabetizados ou com baixa escolaridade, afrodescendentes e quilombolas, populações do campo, povos indígenas, população privada de liberdade, crianças e adolescentes em situação de risco e vulnerabilidade social, mulheres e pessoas com deficiência (BRASIL, 2011, p. 5). 3 Para uma análise detalhada sobre o Programa Brasil Alfabetizado, sugerimos a leitura de capítulo dedicado à análise deste programa desenvolvida na dissertação de mestrado de BRAGA, A, C. O desafio da superação do analfabetismo no Brasil: uma análise do Programa Brasil Alfabetizado no município de Araraquara/SP. Dissertação de mestrado. UNESP/Fclar. 2014. 39 E quais resultados obteve o Brasil Alfabetizado ao longo desta década? De 2003 a 2015, com doze anos de vigência do programa, reduziu-se o analfabetismo à zero? Se assim tivesse sido, talvez estivéssemos postulando aqui outro objeto de pesquisa, pois significaria dizer que o programa adotara medidas radicais no tratamento social e didático-pedagógico da alfabetização, bem como ampliara o atendimento de outras carências sociais da população brasileira: o lazer, o trabalho, a saúde, o acesso à cultura. Lidemos, contudo, com os seguintes dados: Tabela 3. Analfabetismo na faixa etária de 15 anos ou mais– Brasil 2000/2013 População com 15 anos ou mais Ano População de analfabetos Taxa percentual de analfabetismo 2000 16,2 milhões 13,6% 2010 13,9 milhões 9,6% 2013 13,3 milhões 8,5% Fonte: IBGE, PNAD. São diversos os obstáculos a serem superados para reduzirmos o analfabetismo à zero. Temos visto ao longo das considerações que fizemos até o momento que o fenômeno do analfabetismo assola milhares de brasileiros e que, contudo, os programas de alfabetização lançados como possíveis erradicadores do problema têm sido paliativos que fazem diminuir irrisoriamente as elevadas taxas e protelar a tomada de uma solução radicalizada. Variadas são as soluções propostas: a substituição de métodos pedagógicos, o maior investimento em programas de alfabetização, a melhoria dos materiais didáticos disponibilizados aos professores, a ampliação do acesso à educação básica etc. Seriam esses os caminhos para o real tratamento do analfabetismo? É importante observar que o problema do analfabetismo, ao qual viemos caracterizando empiricamente ao longo deste texto, pode ser tratado com os paliativos demonstrados acima, no entanto o resultado é nulo, e a História nos mostra, se tivermos em conta que o objetivo da alfabetização não é o aprendizado da escrita e da leitura em si mesmo, mas como preparação para a apropriação de formas mais elaboradas do conhecimento humano. Desta forma, pelos dados que oferecemos até o momento, vemos que a compreensão de que o analfabetismo deve ser combatido existe e é profundamente insuficiente. Insuficiente 40 porque os governos têm insistido ao longo do tempo em programas de alfabetização que objetivem a erradicação do analfabetismo entre seu povo e pouco se tem conquistado com tais programas. Poderíamos citar o já abordado Programa Brasil Alfabetizado. Por isso retomamos a ideia. Os esforços coletivos da sociedade brasileira em torno da erradicação do analfabetismo devem vir acompanhados de políticas públicas sérias de erradicação da pobreza, de garantia de condições básicas de vida aos alfabetizandos. Se assim for, novos critérios se colocarão para a definição dos métodos e procedimentos pedagógicos a serem utilizados. O analfabetismo é compreendido, pelas forças dominantes, como dificuldade individual, incapacidade cognitiva e falta de esforço. Nesse sentido, governos atuam como entidades filantrópicas na oferta de programas de alfabetização que minimizem as altas taxas de analfabetismo entre a população. Historicamente, ao invés de crescente redução do número de analfabetos, percebemos uma estagnação no número absoluto, de modo que podemos afirmar baseados em dados oficiais que o quantitativo de indivíduos sem saber ler e escrever em 2010 era o mesmo de 1940. Em contrapartida, os esforços empreendidos pelos governos são profundamente ineficazes por pelo menos duas razões: a) os materiais fornecidos ignoram uma abordagem crítica e radical da leitura e da escrita, ao mesmo tempo em que não se oferece condições objetivas para que crianças, jovens e adultos permaneçam na escola; b) a natureza histórico-social do analfabetismo enraizada na sociedade de classes é superada com a supressão dessa sociedade por um modelo de conformação social em que a alienação do trabalho humano desapareça. Baseados nesse pressuposto, no item seguinte analisaremos mais especificamente os resultados dessas medidas paliativas governamentais na sala de aula, mostrando alguns dos dilemas que o alfabetizador frequentemente enfrenta no dia a dia de sala de aula e qual o caminho adequado para o encaminhamento destes dilemas. 1.2 Dilemas intrínsecos à alfabetização escolar na atualidade A forma de inserção da educação na luta hegemônica configura dois momentos simultâneos e organicamente articulados entre si: um momento negativo que consiste na crítica da concepção dominante (a ideologia burguesa); e um momento positivo que significa: trabalhar o senso comum de modo a extrair seu núcleo válido (o bom senso) e dar-lhe expressão elaborada com vistas à formulação de uma concepção de mundo adequada aos interesses populares (SAVIANI, 2002, p. 3). Dermeval Saviani, na epígrafe em destaque, nos alerta para o modus operandi de uma postura revolucionária no campo da educação. Claramente, é urgente nos dias atuais postular 41 uma teoria pedagógica que dê conta não apenas de retomar a função crítica da escola, mas que definitivamente se insira no ambiente escolar com propostas teórico-metodológicas eficientes e eficazes aliadas à uma concepção de mundo revolucionária, socialista. A teoria pedagógica revolucionária deve invadir o espaço escolar propositivamente, evidenciando os escamoteamentos da realidade educacional e social impostos pela ideologia burguesa e rearticulando o núcleo válido das atuais propostas teórico-metodológicas para todos os anos da educação escolar com vistas ao estabelecimento de práticas pedagógicas adequadas aos interesses populares. Buscando estabelecer reflexões necessárias sobre a prática pedagógica no campo da alfabetização escolar, vamos propor adiante um diálogo entre a concepção pedagógica histórico-crítica e a prática de alfabetização, com vistas a compreender em que medida esta teoria pedagógica contribui para o equacionamento das questões que o professor alfabetizador se defronta em sala de aula. Vejamos. Confrontado com a necessidade de alfabetizar ou vendo-se na condição de professor alfabetizador, muitas questões emergem instantaneamente, mesmo àqueles cuja opção teórico- metodológica aparentemente encontra-se resolvida. É comum as questões-problemas colocadas pelo professor antes de alfabetizar sofrerem uma guinada quando este mesmo educador está na condição de alfabetizador. Isso vale para a alfabetização de adultos e de crianças, pois em nenhuma destas áreas a problemática da alfabetização está solucionada. E é a partir dos problemas que começam a surgir na prática de sala de aula que os alfabetizadores, em sua grande maioria, vão estabelecendo referenciais teórico-metodológicos buscando respostas supostamente válidas aos questionamentos existentes no dia a dia escolar. O professor alfabetizador se vê na constante condição de responder questões e problemas práticos do seu dia a dia escolar. Tais questionamentos, relativos à o quê, como, por quê e para quê ensinar, são respondidos de inúmeras maneiras dentro de condições materiais específicas do contexto escolar do alfabetizador. Isto é, influi sobre a resposta prática que o alfabetizador dá à essas questões a condição didático-pedagógica da unidade escolar (existência ou não de materiais pedagógicos para a realização do trabalho educativo), as diretrizes (im)postas pela direção e coordenação escolar ou pela secretaria de educação (havendo, portanto, margens de autonomia diferenciadas de atuação do docente), e a formação obtida pelo alfabetizador em seu curso superior. Em muitos casos, buscando solucionar os problemas presentes em sala de aula, as respostas apresentadas são pragmáticas, imediatas e descontextualizadas, não fornecendo os efeitos esperados pelo educador. 42 Isso impõe, a nosso ver, a necessidade de colocar a teoria pedagógica em diálogo com a prática docente, e aqui tomamos partido. Em defesa de uma pedagogia crítica, porém não de modo sectário, buscaremos sistematizar a partir da Pedagogia Histórico-Crítica respostas à questionamentos que observamos presentes tanto em nossa prática de alfabetizador, como já apontado, quanto na prática de outros alfabetizadores cujo trabalho em conjunto possibilitou compartilha de angústias, problemas e utopias pedagógicas. Partindo do contexto prático da escola, as questões comumente levantadas pelo educador alfabetizador podem ser assim sumariadas: O quê ensinar?  Qual o conteúdo da alfabetização?  Por qual conteúdo começo a alfabetizar: o alfabeto, o nome dos alunos, uma palavra geradora, um texto?  O que uma criança alfabetizada precisa saber?  Qual o critério de seleção de um texto para a alfabetização de crianças?  O que ensino com o texto?  Quais textos são apropriados para os alunos da alfabetização? Como ensinar?  Que material vou usar para alfabetizar: cartilhas, método fônico, Ler e Escrever, material próprio?  Como lidar com os diferentes níveis de aprendizagem existentes na sala de aula – crianças que chegam sabendo ler e escrever, e crianças que ainda não manuseiam o lápis.  Como eu começo a alfabetizar?  Como usar o texto em sala de aula? Para quê ensinar?  O que é uma criança alfabetizada?  Para que se alfabetiza uma criança?  Porque usar textos na alfabetização? Por que ensinar?  Por que é necessário alfabetizar uma criança? Vale salientar que, o discurso hegemônico no campo da alfabetização na atualidade oferece respostas claras às questões acima explicitadas. Afinados com a proposta construtivista e sócio-construtivista, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), bem como o material Ler e Escrever, disponibilizados pela Secretaria Estadual de Educação do Estado de São Paulo (SEE/SP), sugerem ao alfabetizador iniciar o processo de ensino da língua escrita pelos nomes dos alunos, elaborando-se crachás e situações nas quais as crianças reflitam sobre as letras e fonemas presentes no nome de cada aluno na sala de aula. Aliado à este processo, o uso de textos presentes na realidade cotidiana do aluno é fundamental, e visa contextualizar a aprendizagem global das relações entre letras e fonemas. Portanto, neste momento inicial, comumente os alfabetizadores lançam mão de parlendas, adivinhas, cantigas de roda, rótulos de produtos e símbolos existentes no contexto social da criança. O alfabetizador deve criar situações de contato com a escrita de modo que a criança avance na 43 formulação de hipóteses sobre a língua. O percurso a seguir pelo alfabetizador está dado pelo desenvolvimento psicogenético da língua escrita, cujo trajeto perpassa necessariamente as fases pré-silábica, silábica sem valor sonoro, silábica com valor sonoro e alfabética. O objetivo é que a criança atinja a fase alfabética da língua. À esta perspectiva construtivista de alfabetização, amplamente divulgada e praticada nas escolas brasileiras, une-se a perspectiva do letramento. Deslocando o foco do conteúdo da prática de leitura e escrita para o uso que dela o aluno fará, as variadas concepções de letramento passaram a permear o discurso pedagógico no campo da alfabetização. De tal modo que o dito “já não basta alfabetizar, a escola deve letrar o aluno” tornou-se corriqueiro. Percebeu-se, ao mesmo tempo em que se confundiu, a existência de duas dimensões diferenciadas de domínio da leitura e da escrita: a alfabetização e o letramento. Consequentemente, das práticas exclusivas de ensino da relação grafema-fonema passou-se a enfatizar a prática de leitura em sala de aula e o contato do aluno com inúmeros tipos e suportes textuais, uma vez que o necessário para esta nova proposta era que o aluno fizesse uso adequado da leitura e da escrita nas diversas formas em que elas se apresentassem no seu cotidiano. Documentos oficiais e materiais didáticos sobre alfabetização disponibilizados aos educadores ainda ilustram a confusão gerada entre alfabetização e letramento, cuja consequência se reflete nas propostas didáticas destes materiais. No material Ler e Escrever (2011), por exemplo, disposto pela Secretaria Estadual de Educação de São Paulo, é possível observar a supervalorização do trabalho com textos em detrimento da sistematização do ensino das relações grafofonêmicas. Ilustra este fato a proposta de rotina semanal para o primeiro ano do ensino fundamental presente no material do Ler e Escrever, tal como podemos observar abaixo: Figura 6: Proposta de rotina pedagógica semanal do Material Ler e Escrever ao primeiro ano do ensino fundamental 44 Como se pode observar, a sistematização e o ensino intencionalizado das relações entre grafemas e fonemas pelo professor escapam à esta proposta de organização da rotina escolar, sob uma suposta habilidade pré-concebida da criança em refletir sobre o sistema alfabético de escrita. Ademais, vê-se a supervalorização da inserção de textos variados na rotina escolar da criança, como se esse contato lhe possibilitasse o domínio do ler e do escrever. Supõe-se que o fato de o professor constantemente ler textos diferenciados aos alunos e colocá-los em contato com material escrito despontará na criança o conhecimento de 45 associar letras e sons na escrita e na leitura, já que no plano acima, a despeito de não haver nenhum momento de ensino intencional das relações grafofonêmicas que envolvem a escrita, há momento de produção de texto e de leitura pela criança. Observemos os trechos em destaque: Ao incluir o 1º ano no Ler e Escrever estamos dando um importante passo na melhoria do processo de alfabetização. Sabemos que, para as crianças pequenas, participar das práticas sociais de leitura e escrita, conviver com leituras, livros, histórias, revistas, informações, num ambiente estimulante e convidativo, não “apressa” a aprendizagem da leitura e da escrita, e sim, torna-o mais fácil e natural (LER E ESCREVER, 2011, p. 4, grifo nosso). As crianças do 1º ano têm o direito de aprender e desenvolver competências em comunicação oral, em ler e escrever de acordo com suas hipóteses. Para isso, é necessário que a escola de Ensino Fundamental promova oportunidades e experiências variadas para que elas desenvolvam com confiança crescente todo o seu potencial na área e possam se expressar com propriedade por meio da linguagem oral e da escrita (LER E ESCREVER, 2011, p.20, grifo nosso). [...] propor atividades em que os alunos escrevam de acordo com suas hipóteses de escrita é fundamental para que possam refletir sobre o sistema alfabético (LER E ESCREVER, 2011, p.32, grifo nosso). Nos excertos por nós destacados, é possível observar que para a perspectiva construtivista de alfabetização não está claro o entendimento de que o fenômeno da linguagem escrita constitui-se de uma unidade complexa entre sentidos e significados da linguagem expressos por um sistema gráfico socialmente convencionalizado. Ao afirmar que o contato “harmonioso” com diferentes leituras no ambiente escolar não “apressa” a aprendizagem da leitura e da escrita, e sim, torna-o mais fácil e natural fica evidente que há uma ruptura entre o que seria o momento de contato com a literatura infantil e o momento da aprendizagem da leitura e da escrita. Entretanto, a clareza de que há um conteúdo específico da alfabetização a ser transmitido e assimilado no primeiro ano do ensino fundamental e a compreensão dialética desse conteúdo nos leva a entender que essa ruptura conceitual não se sustenta, porque definido o conteúdo nuclear deste processo, as demais atividades girarão em torno de assegurar o seu domínio e, por sua vez, concentrar esforços na transmissão-assimilação desse conteúdo nuclear não quer dizer desprezar outras faces importantes do processo de aprendizado significativo da leitura e da escrita. Afirmamos isso com base no pressuposto vigotskiano de que a palavra não deve ser desvinculada de seu significado uma vez que apenas o significado da palavra possibilita a formação dos conceitos espontâneos e, posteriormente, científicos na criança. O contato com a literatura, em realidade, possibilita à criança o pano de fundo semântico do estudo das relações entre grafemas e fonemas em destaque, e à elas confere sentido e significado. E é por esta via de 46 análise que preferimos trilhar. Portanto, não se trata de “se apressar” à aprendizagem da escrita e da leitura, mas de garanti-la na esteira da formação de conceitos espontâneos e científicos. Assim, poderíamos afirmar que a perda da especificidade da alfabetização, isto é, a nebulosidade existente na compreensão dos conteúdos e os objetivos específicos deste momento da escolarização, do fenômeno da linguagem oral e escrita bem como das práticas pedagógicas geram orientações pedagógicas questionáveis, tais como vemos nas rotinas propostas pelo Ler e Escrever. Acresça-se o fato de que no contexto atual, em que a categoria profissional docente está subjugada à uma condição de trabalho que inviabiliza o estudo e a busca autônoma de respostas fundamentadas e aprofundadas dos problemas pedagógicos emergentes em sala de aula, tais “receituários” didáticos são rapidamente adotados, muitas vezes com a honesta intenção de atender às dificuldades de aprendizagem do aluno. Feitas estas considerações, e na tentativa de atingir o espaço escolar de forma propositiva, crítica e qualificada, reelaboraremos respostas à alguns destes questionamentos cotidianos da prática do alfabetizador à luz da Pedagogia Histórico-Crítica. Começaremos por aclarar os conceitos de alfabetização e letramento, visto que a confusão da especificidade destes conceitos se traduz em práticas que prescindem do ensino sistematizado de um conhecimento caro à este momento da escolarização: a relação grafema-fonema. Magda Soares (1999), em obra intitulada Letramento: um tema em três gêneros, aponta que alfabetização constitui o processo inicial de ensino da tecnologia de ler e escrever cuja aprendizagem tem um tempo definido: os dois primeiros anos de escolarização. Tornar o outro alfabetizado, isto é, alfabetizar, é, então, possibilitar ao indivíduo a apropriação do sistema alfabético da língua e da capacidade de decodificar os sinais e símbolos gráficos deste sistema. Em outras palavras, a internalização da habilidade de expressar-se através da língua escrita, codificando suas ideias em signos linguísticos e decodificando-a no processo de leitura, torna um indivíduo alfabetizado. Problematizando esta noção de alfabetizado, vejamos os seguintes aportes de cada um destes processos, tal como definido pela autora: Ler é um conjunto de habilidades e comportamentos que se estendem desde simplesmente decodificar sílabas ou palavras até ler Grande Sertão Veredas de Guimarães Rosa... uma pessoa pode ser capaz de ler um bilhete, ou uma história em quadrinhos, e não ser capaz de ler um romance, um editorial de jornal... Assim: ler é um conjunto de habilidades, comportamentos, conhecimentos que compõem um longo e complexo continuum: em que ponto desse continuum uma pessoa deve estar, para ser considerada 47 alfabetizada, no que se refere à leitura? A partir de que ponto desse continuum uma pessoa pode ser considerada letrada, no que se refere à leitura? Escrever é também um conjunto de habilidades e comportamentos que se estendem desde simplesmente escrever o próprio nome até escrever uma tese de doutorado... uma pessoa pode ser capaz de escrever um bilhete, uma carta, mas não ser capaz de escrever uma argumentação defendendo um ponto de vista, escrever um ensaio sobre determinado assunto... Assim: escrever é também um conjunto de habilidades, comportamentos, conhecimentos que compõem um longo e complexo continuum: em que ponto desse continuum uma pessoa deve estar, para ser considerada alfabetizada, no que se refere à escrita? A partir de que ponto desse continuum uma pessoa pode ser considerada letrada, no que se refere à escrita? (SOARES, 2006, p.48-49 – grifos nossos). Reflitamos sobre as duas questões destacadas acima: sabendo que o processo de leitura e escrita são complexos e de difícil mensuração, como afirma a autora, nos parece que a resposta à estas questões está no estabelecimento de objetivos para cada ano do período da alfabetização. Pessoas podem ler e escrever gêneros textuais diferenciados e ter desenvoltura diferenciada com cada gênero, entretanto o processo de alfabetização deve ser desenvolvido sobre princípios e objetivos claros tanto ao conjunto de professores alfabetizadores e à escola quanto aos alunos. Não esperamos que a criança leia Guimarães Rosa no primeiro ano de alfabetização, e dificilmente uma criança o conseguirá mesmo que tenha sido alfabetizada antes do ingresso na escola, portanto, embora a leitura seja “um conjunto de habilidades, comportamentos, conhecimentos que compõem um longo e complexo continuum” a criança deve atingir os objetivos de domínio da leitura e da escrita estabelecidos pelo professor e pela escola para o período específico da alfabetização. Pensamos que o enfoque precisa ser claro e objetivo: quais os objetivos da alfabetização para o primeiro e o segundo ano escolar, já que dois anos são estabelecidos como adequados para a consolidação deste processo? Tanto é positivo o enfoque sobre os objetivos da alfabetização que seu estabelecimento facilita o planejamento da disciplina pelo professor, a seleção de material adequado para alfabetizar e a avaliação do que está sendo produtivo ou não no dia a dia escolar. É muito comum o alfabetizador desconhecer o que o aluno precisa saber ao final do primeiro ano escolar e realizar as atividades que propõem os materiais disponíveis, sendo o ponto de chegada aquele que cada aluno alcança. Desse modo, o avanço na compreensão do processo de ensino da leitura e escrita nos anos iniciais da escolarização também se relaciona com outro dilema vivido pelos alfabetizadores: o da definição do conteúdo específico da alfabetização. A dificuldade de 48 estabelecimento de objetivos para o primeiro e segundo anos de alfabetização vincula-se ao discurso negativo do construtivismo em relação aos saberes sistematizados necessários à apropriação dos escolares e, consequentemente, ao ensino sistemático desses saberes. Se ensinar deliberada e organizadamente conteúdos é autoritarismo, então passa-se o tempo lendo histórias até que a escrita desabroche. Se ensinar conteúdos é a essência do trabalho educativo, então há que se definir quais são esses conteúdos próprios a quem está em fase de alfabetização e encontrar as melhores formas de ensiná-lo. Talvez aqui a confusão entre letramento e alfabetização evidencie sua consequência mais perniciosa: não tendo clareza dos conteúdos específicos a serem trabalhados em cada ano escolar e, por conseguinte, dos seus objetivos, o alfabetizador tende a ceder ao apelo incessante do discurso hegemônico no campo da alfabetização, cujo lema é o de que o aluno não apenas codifique e decodifique a língua escrita, mas que tenha contato com o maior número de textos possíveis, o que lhe possibilitará o uso adequado da escrita e da leitura nas práticas sociais em que se apresentam. Já vimos que essa compreensão cinde a relação entre a fonética e semântica da língua no processo de alfabetização, e reiteramos que letramento não é alfabetização e nem a substitui, e tampouco se trata de ser mais do que alfabetização. Do nosso ponto de vista, o discurso que aponta para o letramento como processo que englobaria a alfabetização equivoca-se. O discurso que afirma que não basta alfabetizar, mas letrar, equivoca-se. E equivoca-se o discurso que identifica alfabetização com processo mecanizado e sem sentido de aprendizagem da língua escrita. Por quê? Exatamente porque está implícito nesses posicionamentos a visão de que a linguagem escrita possui um momento que é apenas fonético (alfabetização) e outro que é semântico (letramento) e que apenas a união dos dois processos garantiria o uso da escrita e da leitura adequado à prática social em que se desenvolvem. Tendemos a ver neste posicionamento uma interpretação ainda insuficiente da linguagem escrita, pois se atribui a ela o equívoco daqueles que buscaram materializá-la nos métodos de ensino, cartilhas, livros didáticos ao longo história da alfabetização no Brasil (Mortatti, 2010). Este equívoco, sim, tem-se constituído da fragmentação do ensino da leitura e da escrita em dois momentos, o da aprendizagem da relação grafofonêmica e, por outro, da significação dessa relação através de textos muitas vezes artificiais. Mas a linguagem escrita só é apropriada em suas formas mais elaboradas no momento que sua significação é apreendida junto com sua fonetização, no momento em que o significado da palavra é 49 generalizado e passa a ser ato de pensamento da criança, enfim, passa a fazer parte de sua consciência como conceito e atuar em seu pensamento discursivo (Vigotski, 2001). O critério do qual partimos para a definição da relação entre grafema e fonema como conteúdo específico da alfabetização nos dois primeiros anos do ensino fundamental, não é outro senão o critério de seleção dos saberes universais, já defendido por Saviani (2013), qual seja, a noção de clássico. Este critério é proposto por Saviani em sua obra Pedagogia Histórico-Crítica (2013), quando trata da seleção dos elementos da cultura que precisam ser assimilados pelos indivíduos da espécie humana. [...] Assim, o objeto da educação diz res