UNESP UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP THALES STEWART AVELAR O RETORNO: IDENTIDADES À DERIVA NO ROMANCE PORTUGUÊS CONTEMPORÂNEO ARARAQUARA-SP 2013 8 O RETORNO: IDENTIDADES À DERIVA NO ROMANCE PORTUGUÊS CONTEMPORÂNEO Monografia de Conclusão de Curso apresentada ao Departamento de Literatura, da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Bacharel em Letras. Orientadora: Profª. Drª. Márcia Valéria Zamboni Gobbi ARARAQUARA 2013 9 AGRADECIMENTOS À minha orientadora, Profª. Drª. Márcia Gobbi, pela orientação precisa e exigente, pelo trabalho rico e esclarecedor, e principalmente pela amizade e confiança. À minha família, que desde muitos anos me apoiou incondicionalmente em todos os projetos intelectuais e pessoais, pela educação que me deram e pela visão de mundo segura e esperançosa que me proporcionaram. À Profª. Drª. Elfriede Engelmayer, por seus métodos e excelente trabalho com culturas e línguas, por sua fé na liberdade que proporciona o conhecimento. Ao professor Dr. José Pires Laranjeira, cuja reflexão sobre o Homem e sua cultura será sempre lembrada. À amiga Rita Parzewski, a quem coube mostrar-me o universo da Literatura e quem me ensinou um pouco do mundo. Agradeço especialmente a todos os amigos e professores da UNESP-FCLAr e a todos os companheiros e professores da Universidade de Coimbra. 10 “O meu objetivo é a busca do que ficou no esquecimento pela História” José Saramago 11 RESUMO O presente trabalho concentra-se na análise das maneiras como se manifesta a típica revisão das vozes da História, empreendida pela estética da narrativa portuguesa contemporânea, ao mesmo passo em que esta procura a reflexão e a reformulação do imaginário cultural lusitano no percurso do romance O retorno, de Dulce Maria Cardoso; a hipótese que se põe é a de que a trajetória da experiência individual de Rui e de outros personagens “retornados” à procura de uma identidade é paralela à proposta de revisitar o imaginário cultural coletivo da nação portuguesa, no contexto da descolonização e do pós-25 de Abril. Trata-se ainda de verificar como os processos históricos ligados aos conceitos de exílio e desenraizamento, deslocamento e pertencimento (BAUMAN, 2005) são ficcionalizados no romance, enquanto motes para a busca de Rui e para a ressignificação do tema do destino português. PALAVRAS-CHAVE: Identidade. Romance português contemporâneo. Imaginário. Exílio. Descolonização. 12 ABSTRACT This paper concentrates on the analysis of how the typical voices of History are manifested, which is achieved by the aesthetics of the contemporary Portuguese narrative, as it aims at the same time the reflexion and the reformulation of the Lusitanian cultural imaginary in the course of O retorno, a novel by Dulce Maria Cardoso. The hypothesis that arises is that the trajectory of Rui’s individual experience, as wells as the other’s characters “retornados” looking for identity, is parallel to the proposed revision of the Portuguese nation collective cultural imaginary in the decolonization context, after the 25 th April Revolution. It is its objective to investigate how the historical processes concerned to the concepts of exile and uprooting, displacement and belonging (BAUMAN, 2005) are fictionalized in the novel, seen as motes for Rui’s pursuit for identity and for the revision of the Portuguese Destiny theme. Keywords: Identity. Portuguese contemporary novel. Imaginary. Exile. Decolonization. 13 SUMÁRIO INTRODUÇÃO.............................................................................................................14 1 - A História e a fábula………………………………………………………….…..17 1.1 - A colonização de Angola: dos diamantes aos Cravos………………………….19 1.2 - Portugal de volta à Europa: os últimos dias do Império e a descolonização…………………………………………………………….…………...25 2 - O romance português contemporâneo – d’O retorno e outros retornos da ficção literária………………………………………………………………………………...26 3 - Colono, emigrante e retornado – o devir identitário e a expansão portuguesa……………………………………………………………………………..34 4 - Identidades à deriva – deslocamento e pertencimento em O retorno…..……..39 CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................................46 REFERÊNCIAS............................................................................................................48 14 INTRODUÇÃO Este trabalho procura fazer uma apreciação crítica de determinados elementos presentes na construção do romance O retorno, de Dulce Maria Cardoso, tais como: os temas ligados ao imaginário cultural português, a problematização do conceito de identidade e os recursos estético-ideológicos presente no romance em causa e que compõem também a Literatura Portuguesa contemporânea. Iniciamos a análise a partir dos pressupostos teóricos focados nas relações entre discurso narrativo e discurso histórico (GOBBI, 2011), enquanto fontes semelhantes e válidas na construção do conhecimento e registro da experiência humana; dessa forma, voltamos atenção aos acontecimentos narrados pelo protagonista Rui no âmbito da sua experiência individual, como possibilidade de (uma) voz constituinte da experiência coletiva. Devemos salientar que a escolha desse romance, dentre outras razões, se deve ao fato da existência de inúmeras e amplas possibilidades de estudo: a começar pelas presentes e já citadas relações entre história e narrativa literária, cuja temática estruturante é igualmente rica: os dias finais do Império Português, o declínio da política colonial, o período pós-revolucionário em Portugal, e, finalmente, o “retorno” da população branca das antigas possessões portuguesas em outros continentes. Parte daí, portanto, a dupla ênfase dada neste trabalho: a investigação, pelo romance, da proposta de reflexão e revisão da mitologia portuguesa – especialmente dos temas ligados à expansão colonial do país ibérico –, e, a de uma incessante busca e invenção de identidade cultural que se impõe nos tempos atuais. Dizemos, aliás, dupla ênfase, também no sentido de que os caminhos dessa proposta de revisão e (re)invenção de uma identidade, quer nos parecer, dá-se, no plano diegético, de forma plurissignificativa, ou seja, o protagonista Rui, ao mesmo passo em que lembra e relata o que se passa em seus últimos dias em Luanda e a nova realidade de retornado na metrópole, procura se construir, adolescente que é, como homem, e, conseguir, enfim, alcançar o seu novo estar no mundo, uma identidade, por assim dizer. Busca e reinvenção de identidade, que, por sua vez, será colocada em pauta no romance de maneira semelhante, enquanto procura e reflexão de um (novo) destino português 15 dissociado do tradicional caráter imperial e triunfante; em suma, um novo estar no mundo também para Portugal, proposto pelos novos agentes históricos. Dessa maneira, como propõe Candido (1965), procuraremos estudar o texto narrativo por duas dimensões essenciais e inerentes a ele: os fatores internos da obra ou suas qualidades estéticas e formais e os fatores externos (sociais e culturais que se apresentam de algum modo plasmados no texto), na tentativa de […] entender, fundindo texto e contexto numa interpretação íntegra, em que tanto o ponto de vista que explicava pelos fatores externos, quanto o outro, norteado pela convicção de que a estrutura é independente, se combinam como maneiras válidas do processo de interpretação. Sabemos também que o fator externo (no caso, o social) importa como elemento que desempenha um papel na constituição da estrutura, tornando-se assim interno. (CANDIDO, 1965, p. 13) Assim, esta proposta de análise tenta abordar os fatores externos como componentes internos do texto, precisamente por não se tratar apenas de matéria ou paisagem para a narrativa, mas por se constituírem como veículo condutor na criação do romance e que, de maneira clara, são essenciais e determinantes como valor estético, enquanto elo das relações entre experiência e memória, e, naturalmente, entre literatura e história. A partir dessa leitura, objetivamos também uma reflexão e diálogo com a cultura e sociedade portuguesa atual, assim como, uma tentativa de exame geral do frágil conceito de identidade e seus valores culturais aí implicados. Para tal proposta de investigação, propusemos, assim, alguns eixos teóricos principais como metodologia de análise, com o objetivo de estabelecer um diálogo coerente entre esses conceitos. Assim, pensando nos eventos históricos ligados a Portugal e Angola no tempo do romance, propusemos no capítulo inicial e em suas subdivisões - A História e a Fábula - uma contextualização dos percursos antecedentes à descolonização dos territórios portugueses, assim como, a relação entre negros e brancos, assentes em dados e estudos sociológicos, seguido ainda de uma introdução sobre que conta a narrativa. Num segundo momento, buscamos estabelecer as relações entre história e narrativa literária presentes no romance em estudo, a partir de A ficcionalização da História, de Márcia Gobbi (2011), cujos conceitos propostos e sintetizados foram norteadores para a análise, de forma geral. Em sequência, no capítulo Colono, emigrante e retornado – o devir identitário e a expansão portuguesa, procuramos estudar a ressonância da imagem do 16 ser português no romance, enquanto construto da mitologia nacional, do mesmo modo que a maneira como se plasmam as identidades e imagens das personagens como figuras simbólicas do projeto imperial português, para tal, tendo nos auxiliado os ensaios de Eduardo Lourenço (2004), em A Nau de Ícaro seguido de Imagem e Miragem da Lusofonia, além de contribuições da filosofia e dos estudos pós-coloniais. Finalmente, no quarto capítulo, Identidades à deriva, partimos da conceptualização de Zygmund Bauman (2005) a respeito da identidade – em suas diversas concepções –, e dos conceitos de pertencimento e desenraizamento, para a abordagem dos caminhos empreendidos pelo protagonista, e, simbolicamente, pela nação portuguesa a (re)invenção de uma identidade. Em suma, contribuíram para este trabalho também tanto os estudos literários, como a sociologia, os estudos do imaginário, a literatura comparada, assim como alguns teóricos contemporâneos da filosofia e psicologia social. 17 1 - A História e a fábula – Portugal após 25 de Abril Consideramos inicialmente que o nosso método de análise de determinada obra literária não se sobrepõe, de maneira alguma, à experiência de fruir os predicados estéticos do texto, ou seja, a leitura e apreciação crítica de uma obra não subjugam a construção individual de sentidos do texto como objeto estético; por outro lado, não poderíamos deixar ao largo, particularmente neste trabalho, considerações como a de que a obra literária, enquanto objeto artístico, de expressão e criação humana, deverá ser vista e compreendida também como expressão simbólica que estabelece relações com um tempo histórico tal, com um determinado grupo ou cultura, através de determinada língua e que, dentro desta visão, propõe sentidos para além do próprio texto; dessa maneira, o objeto artístico é também fruto de uma vontade de expressão estética que traz consigo marcas temporais e sociais que comumente resumimos por contexto. Este contexto deverá ser amplo, no caso da literatura: ele inclui um autor, seu tempo, sua formação e experiências, suas ideologias, leituras e escolhas estéticas, um estilo, enfim; inclui o que se quer dizer ou sugerir numa obra ao escrevê-la – não se pretende aqui afirmar ou não a intencionalidade do autor ao escrever, mas indicar que, em geral, há um tema e um caminho imaginado ao se iniciar um texto literário – e, por fim, há um pressuposto público de leitores e críticos (portando igualmente especificidades, seu momento e lugar histórico marcados), a quem, por sua vez, caberá também a fruição, decodificação, interpretação e análise do texto literário, segundo a construção de sentidos possíveis. Trata-se também, em outras palavras e lembrando Bakhtin, de um ato de comunicação dialógica constituído em vários níveis, entre autor, obra e leitor, afinal a enunciação é produto de interação entre indivíduos socialmente organizados, não existindo fora de um contexto sócio-ideológico; enfim, qualquer enunciação propõe, nesse sentido, uma réplica. Observações como estas devem ser levadas em conta quando nos propomos a pensar uma obra literária que, escrita em Portugal, é lida por brasileiros. E se trata justamente do corpus em estudo neste trabalho: o romance da autora portuguesa, Dulce Maria Cardoso, O retorno, que foi lançado inicialmente em Portugal, em 2011, e, em 2012, no Brasil. Naturalmente, a familiaridade e o conhecimento dos fatos históricos, 18 pano de fundo e mote para o romance, são mais próximos aos leitores portugueses do que a nós, brasileiros, por razões históricas, políticas e culturais específicas do século XX, momento culminante de distanciamento entre a cultura dos dois países, ainda que vivessem realidades políticas comparáveis à época. Afirmamos isto, aliás, no sentido em que ambos os países passavam por realidades políticas determinantes, no contexto da segunda metade do século XX. É este contexto de efervescência cultural e política, de Guerra Fria, de lutas de independência nacional, que ajudarão a construir o zeitgeist da narrativa de O Retorno. A história é narrada e protagonizada por Rui, adolescente português que vive em Angola e que, no momento inicial do romance, já indica através de seu relato e memórias que grandes mudanças estavam prestes a ocorrer. E ocorrem: tratava-se da descolonização, já muito adiada, da população branca de Angola, na conjuntura do pós 25 de Abril e das lutas de independência do país africano. O menino Rui narra, assim, o retorno para uma terra em que nunca esteve: a metrópole, Lisboa, onde permanece hospedado com a sua mãe e irmã, junto a muitas outras famílias, num dos hotéis que recebiam os milhares de portugueses do “ultramar” – hotéis que, oportunamente, em momento de revolução, foram salvos financeiramente pelo Estado, causando ainda mais mal estar entre retornados e metropolitanos. Como a de Rui, estavam ali, muitas outras famílias desterradas de lugares dantes considerados seus e que, agora, em uma nova situação política, era obrigatório que fossem deixados. Rui empreende, assim, uma busca, ao longo da narrativa, de um novo estar no mundo, para ele e para os outros “retornados” – salvas as diferenças substanciais que existiam entre as pessoas que compunham este grupo -, e, em certa medida, falando de si, como indivíduo, para fazer história ou constituir-se como parte dela, num sentido mais amplo e coletivo. Trata-se, afinal, de um romance de quem deixou a África, sobre o fim de um império, momento histórico traumático e de grande importância para a sociedade e cultura portuguesa atual. Nesse contexto, o enredo do romance se passa entre os poucos dias anteriores à partida caótica e definitiva de Luanda, até um curto e doloroso período de “hospedagem” emergencial na metrópole. Eventos que incluem a perda de patrimônio material, laços sociais, sonhos, planos, hábitos e raízes com uma terra que, para muitos, era de fato sua, para, afinal, verem-se deslocados, refugiados ou, ainda, retornados, para 19 uma metrópole que só existia nos mapas da escola e no discurso do regime salazarista. Fundamentalmente, o enredo de O retorno, para além de abordar questões sensíveis e traumáticas para a cultura e história portuguesas, questiona, em essência, a aventura colonial lusitana e suas consequências, assim como, a formação identitária do povo ibérico, seus mitos e seu imaginário enquanto povo “escolhido” e, finalmente, tenciona propor a emblemática e complexa questão do lugar do Homem ou, de um povo, no mundo. Para este estudo, portanto, e para compreendermos o Portugal que recebeu ou “recolheu” seus cidadãos retornados de Angola, Moçambique e de outros países a alguns passos da independência política do império que se desfazia, precisamos apontar um quadro geral que possa emoldurar melhor a visão dos acontecimentos históricos representados, reapresentados e ficcionalizados em O retorno. 1.1 - A colonização de Angola: dos diamantes aos Cravos Em 1961, Portugal era ainda, ao seu modo, e veremos o porquê desta especificidade, um império colonial: possuía territórios ultramarinos – designados “províncias ultramarinas” pela propaganda do Estado Novo – que se estendiam da África ocidental ao Timor-Leste, na Ásia meridional. Em comparação, no entanto, do que era considerada a joia da coroa para o Império Britânico, a Índia, era também, ao seu modo, Angola para Portugal. A data de 1961 é também de grande importância para a compreensão do contexto histórico-político do vacilante império: ela traz aos olhos que algo corria mal. É, pois, a data de início das lutas de independência nacional nas ditas províncias ultramarinas, contrapondo e refutando, dessa maneira, décadas de forte propaganda ideológica salazarista acerca do caráter civilizador e brando da presença do colonizador europeu e do próprio Estado Novo por lá, além da frágil ideia do estatuto igualitário que, supostamente, desfrutavam as províncias e a população nativa. Embora mais ou menos antigas que o Brasil, as possessões portuguesas no continente africano tiveram inicialmente um tipo de colonização diverso da ex-colônia na América do Sul; não oposto, mas complementar, dentro do sistema colonial português. Angola, nos séculos anteriores ao XIX, experimentou um tipo de exploração quase 20 exclusivamente realizada no litoral, dentro de feitorias e fortalezas, nos portos de Luanda e Benguela, sem grande expansão pelo interior (embora diversos planos o pretendessem e outros o houvessem tentado parcialmente), cuja exploração econômica era assente no tráfico de escravos para o Brasil, até então, a colônia mais próspera, assim como, em recursos naturais típicos e imediatos da região. Tais características impuseram limites e dificuldades para que a língua, a religião e a cultura portuguesa - assim como, ao restante do aparato colonial repressivo - adentrassem forte e ostensivamente o território, não formando instituições e quadros locais que questionassem (efetiva e eficazmente) o poder imperial, como ocorrido no Brasil, por exemplo, salvos os contextos e limites possíveis da comparação. Entretanto, as revoltas assim mesmo aconteciam, por iniciativa dos sobas e de reinos tribais, como resposta à invasão colonial europeia; muitas vezes, os reinos e tribos negociavam alianças entre si, particularmente nos séculos XVI e XVII, muito embora tenham sido logo sufocadas e outras, de fato, apagadas da história pelo poder colonial, que, é importante lembrar, contava com forças do aparato colonial seguramente desestabilizadoras: a evangelização, o tribalismo e a espionagem. Outro fator importante é o de ter sido também diminuta a miscigenação, e, por consequência destas e outras características, podem-se ter atrasado, ou não se criado, as condições favoráveis a uma emancipação, à concepção de Estado/nação e povo aos moldes ocidentais ou mesmo de modo análogo aos processos latino-americanos – devemos lembrar que a não exploração efetiva do interior favoreceu relativamente a manutenção das tribos autóctones do território, o que ainda se pode verificar no quadro sociológico angolano atual. No século XIX, entretanto, a situação política e, por consequência, social e econômica se modificaria rapidamente: com o expansionismo industrial do ocidente, a procura por matérias-primas, por mercados e mão de obra fácil chamou a atenção das grandes potências imperialistas da Europa para a África, ainda relativamente não explorada em seu potencial econômico. Dessa maneira, na Conferência de Berlim, em 1885, o Império Português […] sofreu um duro golpe, nomeadamente com o estabelecimento de um novo direito público colonial que vinha enterrar definitivamente os velhos padrões manuelinos ao substituir o critério do direito histórico pelo critério da ocupação efetiva. Este fato esteve na origem da aceleração do ritmo da corrida a África por parte das potências europeias melhor posicionadas econômica e demograficamente, 21 colocando Portugal numa posição de arranque francamente negativa. (CIRNE, 1998, p. 498) Devido à corrida pela expansão mercantil e industrial, Portugal se encontrou na difícil posição de ocupar Angola e as outras colônias do ultramar efetivamente para não perdê- las, uma vez que, dentre as potências europeias, sua situação econômica e militar não era das mais poderosas. Advogando que tal passo expansionista se converteria em fortalecimento econômico para a metrópole, o projeto liberal do Estado enfrenta resistência da burguesia local, consciente de não haver revolução industrial em Portugal; consequentemente, a tentativa de ocupação e colonização dos territórios africanos, a princípio, deu-se de forma parca e isolada, baseada em empreendimentos agrícolas modestos, exploração do trabalho local e cobrança de impostos dos indígenas, a despeito da existência de diversos planos e iniciativas para a colonização gradual e a ocupação efetiva dos territórios posteriormente, como o de Narciso Feyo, no último quarto do século XIX. Com essas perspectivas e atento aos poucos recursos militares disponíveis, o Estado português ainda lança mão da tentativa de unificar o território angolano ao moçambicano, uma expansão de território que, por sua vez, teria proporções continentais, servindo de imposição de um suposto poderio às outras potências europeias; era o chamado mapa cor-de-rosa, pretensão que desmoralizaria Portugal perante as outras nações, mais à frente, uma vez que iria de encontro às ambições britânicas – maior império à época – que, por seu turno, pretendia também ligar seus territórios, da Cidade do Cabo ao Cairo, no Egito. O passo imediato da “despromoção” de Portugal como potência foi o Ultimato Britânico de 1890, ao qual Lisboa teve de ceder, causando graves danos à imagem da monarquia e engatilhando períodos políticos conturbados nos anos seguintes. Esse acontecimento histórico, a despromoção de Portugal como potência, já em finais do século XIX, endossa o que o sociólogo Boaventura Santos afirma sobre o caráter intermediário que a nação portuguesa assume no sistema capitalista mundial desde então e até hoje, salvas as mudanças de diversas ordens ocorridas no país e no mundo: No caso de Portugal, a função de intermediação assentou durante cinco séculos no império colonial. Portugal era o centro em relação às suas colônias e a periferia em relação à Inglaterra. Em sentido menos técnico, pode dizer-se que durante muito tempo foi um país simultaneamente colonizador e colonizado. Em 25 de Abril de 1974 Portugal era o país menos desenvolvido da Europa e ao mesmo tempo o detentor único do maior e mais duradouro império colonial europeu. O fim do 22 império colonial não determinou o fim do caráter intermédio da sociedade portuguesa, pois este estava inscrito na matriz das estruturas e das práticas sociais dotadas de forte resistência e inércia. (SANTOS, 1997, p.63) A derrota sofrida por Portugal devido ao Ultimato Britânico e os sinais claros deste protagonismo de intermédio no sistema capitalista mundial, entretanto, não inibe ou impede o Estado português de levar adiante a ocupação e a exploração econômica dos territórios ultramarinos. O citado plano de Narciso Feyo, por exemplo, ilustra uma nova etapa de expansão colonial nos territórios africanos, o que será de suma importância para as discussões posteriores neste trabalho. O plano de Feyo propunha a colonização por iniciativa individual, em vez do amplo e improvável investimento estatal, visando assim, ocupar as possessões africanas. A proposta, vivamente repercutida e debatida nos meios políticos, intelectuais e jornalísticos, já em 1884, contava com muitos voluntários, principalmente da cidade do Porto, solteiros, das classes pobres e agrícolas, e do sexo masculino, que pretendiam “civilizar” e construir uma vida mais próspera em terras africanas. Essa intenção individual em migrar incita a discussão relativa à concepção a ser abordada sobre esses portugueses que rumavam à África, pois, afinal, dever-se-á analisar se eram eles colonos ou emigrantes; se o pressuposto papel de economia e potência intermediária nos permite definir com alguma precisão o caráter dessa colonização ou emigração para os territórios africanos, assim como, suas implicações sociológicas e identitárias no contexto de Angola e da posterior evacuação da população europeia e ‘assimilada’ em 1975. É preciso reforçar ainda a predominância do caráter agrário ou agroindustrial do desenvolvimento econômico de Angola (café, algodão e sisal), além da exploração dos recursos naturais que se deu em seguida com os diamantes e o petróleo, no contexto da primeira metade do século XX. Portanto, o país (província à época) não contava com um setor industrial forte e diversificado, algo que afinal não se verificava nem mesmo na metrópole, naquela época. O caráter agrícola e primário da economia angolana justifica-se principalmente como desdobramento do Ato Colonial de 1930, que vedava às colônias a constituição de indústrias que concorressem com as da metrópole, reforçando o estatuto colonial para o fornecimento de matéria-prima. Na realidade, Angola só se desenvolveria melhor economicamente após a Primeira Guerra Mundial, devido às consequências do conflito e às mudanças econômicas de escala mundial no sistema capitalista, desenvolvimento este que se estendeu e se 23 acentuou bastante nos anos 50 e 70 do século XX (com as diretrizes do “Espaço Colonial Português” em substituição ao Ato Colonial), superando, muitas vezes, indicadores econômicos da própria metrópole, Portugal. Como acompanhante dessas consequências e do desenvolvimento econômico que se via na então província do ultramar, aumentavam os números da emigração: novamente, portugueses pobres que saíam desde o norte do país ao Alentejo, buscando fugir à desigualdade e às dificuldades econômicas - e até políticas, que já surgiam a essa altura, ou, mais precisamente, desde que se instaurara o Estado Novo. O sistema desenvolveu-se, então, a partir dos embriões pré-existentes, um sistema eco-cultural colonial integrado, cada vez mais vasto e complexo, baseado nas cidades, nas concentrações agrícolas e pecuárias, nas empresas de extração de minérios, etc. O centro deste sistema foi constituído por uma imigração portuguesa cada vez mais acentuada. Houve uma integração, muitas vezes precária, neste núcleo. (RELAS, 1992, p.26) É provavelmente em metades do século XX que n’O Retorno, o pai de Rui chegará a Luanda, fugindo da miséria da aldeia e trabalhando junto aos “pretos” na colônia; também será em 1958 que chegará a mãe, com um “saco com queijo terrincho, pão e castanhas piladas, para comer na viagem” (CARDOSO, 2011, p.23), fugindo igualmente à pequenez da aldeia portuguesa, pela promessa de casamento. O mesmo pai de Rui, Mário, enriquecerá, e, como muitos outros portugueses, será proprietário de alguma empresa ligada ao setor comercial, agroindustrial, de armazenagem ou serviços locais; sua posição de branco na colônia traz consigo papeis já estruturados no contexto colonial que permitirão a ele enriquecer, mesmo tendo fugido da pobreza na metrópole. E isto se dá pela razão racial e de relações de poder no contexto colonial: Na periferia do sistema colonial, numa posição agregada e marginal, encontrou-se um número crescente de africanos que constituíram a mão de obra não qualificada (ou pouco qualificada), de quem o sistema precisava para o seu funcionamento. Por outras palavras: a implantação efetiva do sistema colonial encontrava a sua lógica interna quer no crescimento da disponibilidade de matérias-primas para exportação, quer no aumento da capacidade de absorção de bens de consumo, em grande parte importados; a forma de alcançar estes objetivos exigia a participação, mesmo que marginal, de um número sempre crescente de produtores/consumidores e a sua adesão, traduzida em dois aspectos concretos: o assalariamento e/ou a monetarização. Na ênfase de tais objetivos, a metrópole acabou construindo mecanismos de dominação colonial que garantiram o funcionamento e o 24 desenvolvimento de uma cultura colonial que, mesmo após a independência do país, ainda se reflete em muitos aspectos da cultura angolana. (VALÊNCIO, 2013, p.16) Uma dessas estruturas coloniais que permitiam ao português branco emigrante enriquecer e desfrutar de uma posição social de destaque era o sistema de organização do trabalho na província, o chamado “recrutamento”, que mais tarde desencadearia graves distúrbios sociais e que seria também uma das muitas causas dos movimentos de independência e até mesmo da guerra civil posterior. Este recrutamento consistia na seleção de trabalhadores locais, negros, muitas vezes pela sua subdivisão étnica, baseada em escalas de valores hierárquicos entre negros assimilados e não-assimilados. Os primeiros usufruíam de um status simbólico que implicava a troca de seus traços culturais pelos de uma minoria branca, a eles cabiam tarefas de baixa expressividade que os brancos, por sua vez, não exerciam, como a colheita do café, no norte de Angola, por exemplo. Aos considerados não-assimilados, cabia uma política de segregação, eram indígenas ou “rústicos” que não tinham nem o direito de andar pelas cidades ou exercer outro direito de cidadania. As consequências desse regime de contratação foram graves: o contato com aldeias e grupos não assimilados alterou substancialmente seus modos tradicionais de vida e interação, ocupou economicamente territórios indígenas, esvaziou comunidades e desenraizou homens e mulheres negros das terras de seus antepassados, levados a outras partes, para as plantações, incitando conflitos étnicos. A frequente falta de pagamento, os maus tratos, os abusos às mulheres configuravam, igualmente, um anacrônico escravismo, já na segunda metade do século XX. Por outro lado, à população branca era destinado o papel de “civilizador” como função prioritária, voltada na prática para a máxima exploração do território, fortalecendo adversidades locais no campo étnico e dificultando a aglutinação de forças políticas de contestação local. Mais à frente, esse conjunto de práticas estruturais de organização colonial se revelaria como um dos principais motivos da hostilidade e posterior expulsão da população europeia. 25 1.2 - Portugal de volta à Europa: os últimos dias do Império e a descolonização Tendo em vista esse contexto, como observado, anacrônico, para o efervescente momento político e cultural do século XX, movimentos de contestação e revolta começam a se formar no início de 1960, influenciados pelos movimentos de independência já ocorridos nas antigas colônias francesas e inglesas da África negra, mas principalmente pela independência do antigo Congo belga, no mesmo ano, com quem os angolanos tinham relações mais estreitas. Constitui-se, assim, grupos nacionalistas e contestadores bem organizados, particularmente ao norte, como a UPA (União dos Povos de Angola), cujo objetivo era estender a luta de libertação por todo o território. Este movimento, em especial, foi responsável, em 1961, pela Revolta da Baixa do Cassange e, mais adiante, por um ataque ainda maior aos colonos brancos. A UPA, pretendendo atrair a atenção internacional, com o auxílio de Franzt Fanon e outros nacionalistas, prepara essa sublevação geral de grande parte da região norte de Angola, em março de 1961; na sequência, os rebeldes e os seus seguidores destroem tudo o que encontraram pela frente: fazendas, postos administrativos, destacamentos policiais; atacaram brancos e negros, crianças e mulheres, numa onda de assassinatos nunca vistos, com um número de mortos entre cerca de mil brancos e de seis mil negros. Esta atuação da UPA não só contribuiu para um profundo movimento de revolta e fuga dos colonos brancos, como deu ao governo português o argumento final de que necessitava para envolver o país numa desgastante guerra, por mais de uma década, contra qualquer movimento ou expressão nacionalista. Além disso, despertou nos angolanos certa consciência política em prol da liberdade. Entretanto, será apenas em 1974, com a Revolução de Abril, em Portugal, e após os difíceis anos do prolongado conflito que, vista a insustentabilidade da guerra colonial, surgirão acordos entre o governo provisório, em Lisboa, e os diversos movimentos de libertação nacional, em Angola. No final do mesmo ano, os movimentos se reúnem para negociar com Portugal e, finalmente, estabelece-se a 11 de novembro de 1975, a Independência de Angola, com a assinatura do Acordo de Alvor. Este acordo previa um governo de transição, composto por seus membros assinantes, inclusive militares portugueses. 26 Dessa maneira, entre o início de 1975, data do acordo, e novembro do mesmo ano, independência e transição de soberania para Angola, os colonos brancos, cerca de duzentos mil, tiveram de ser evacuados, num processo de descolonização que deveria ser feito rapidamente e às condições materiais possíveis, afinal, começava agora a disputa interna pelo poder do novo país. Com o auxilio de aviões emprestados de outros países, caravanas de automóveis para África do Sul e, até mesmo, barcos, os colonos brancos levaram os “restos do império” de volta à metrópole, em caixotes de madeira e, em bagagens individuais; levavam, em suma, um Portugal imperial que não existiria mais, senão nas lembranças individuais e no imaginário de um povo que por cinco séculos se expandiu por todos os continentes. Será, portanto, a partir deste contexto problemático que se construirá o romance O retorno, pela voz do adolescente Rui, que poderá recuperar muitas vozes deixadas ao largo, nessa interessante e traumática experiência histórica revisitada, que questiona pontos fundamentais da cultura portuguesa. Restará, ainda, a reflexão a respeito da imagem que tinham esses colonos portugueses de si já na metade do século XX, considerando também o conturbado momento histórico do pós 25 de Abril e a conflitante pluralidade de ideologias políticas em questão; compreender ainda se se enxergavam como portugueses, portugueses emigrados, cidadãos angolanos ou colonialistas. Tentaremos examinar possíveis traços de construções identitárias, laços de pertencimento e imagens opostas a partir do discurso oficial do Estado, em seus diferentes períodos políticos, e a visão daqueles brancos que viviam em Angola, além de pensarmos em o que era, de fato, para os vários grupos sociais em pauta, ser ‘retornado’, na metrópole. Para tal, a narrativa que nos propomos a analisar vem a ser um tipo de obra fundamental como expressão artística contemporânea que procura (re)fazer história, nos mais variados e significativos sentidos da expressão. 2 - O romance português contemporâneo – d’O retorno e outros retornos da ficção literária No capítulo anterior, tentamos compor um quadro panorâmico acerca dos percursos políticos e sociais que abarcam desde a expansão do Império português, o Ultimato 27 Britânico, o declínio imperial e do regime salazarista, a revolução de 25 de Abril e a descolonização de Angola, até a sua posterior independência política; em suma, dos antecedentes e reflexos que acompanharam o momento histórico, que simultaneamente serve de tessitura ao romance O Retorno enquanto é, por sua vez, reconfigurado pela narrativa literária, tendo em vista os conceitos de experiência individual e experiência coletiva como agentes da escrita histórica. É, aliás, partindo da palavra ‘experiência’ que tentaremos propor a análise do romance O retorno em suas características constitutivas e de participação estética no quadro da Literatura Portuguesa contemporânea. Um desses aspectos incide em problematizar a própria inserção do romance como objeto de estudo paralelo à contextualização histórica do primeiro capítulo; ou seja, discutir as relações entre História e narrativa literária. De maneira análoga, problematizar a diferenciação de experiência individual e experiência coletiva enquanto vozes inscritas na esfera de criação não apenas literária, mas histórico-política. Em primeira análise, referimo-nos anteriormente ao fato de que O Retorno tem como pano de fundo acontecimentos históricos relativos à descolonização de Angola e ao pós 25 de Abril, em Portugal, e que tal período não serve apenas de palco como também de pretexto ou mote para a construção do romance por meio da voz de um narrador; essa especificidade, aliás, adiantamos, não é exclusiva à obra de Dulce Maria Cardoso, antes, apresenta-se como uma proposta estética forte e recorrente na literatura contemporânea. Podemos assim dizer que autores como José Saramago, Antonio Lobo Antunes, José Cardoso Pires, Mario de Carvalho, Herberto Helder e tantos outros criam, retomam e abordam variados níveis de relação entre narrativa literária e História. Como diz Martin: Assim, ainda conforme a argumentação do crítico, a época em que vivemos – marcada justamente pelo desafio à estética modernista, com suas formas narrativas e procedimentos linguísticos característicos – parece ser propícia para o surgimento de um novo tipo de romance histórico, capaz de apresentar uma abordagem inovadora do problema da referência histórica. Essa inovação repousaria fundamentalmente na habilidade com que os autores contemporâneos são capazes de ficcionalizar eventos históricos que fazem a mediação entre os tempos individuais simultâneos e o tempo histórico do mundo público. Ou, em outras palavras, a habilidade com que tais autores recriariam um evento axial, de modo que nós – leitores – poderíamos situar nossa própria experiência no quadro da história coletiva. Na perspectiva do crítico inglês, o romance histórico contemporâneo articular-se-ia, desse modo, a partir da oposição entre um plano público ou histórico (definido seja pelos costumes, acontecimentos, crises ou líderes) e um plano existencial ou individual, denotado pela categoria narrativa que denominamos personagens. (MARTIN, 2011, p.193) 28 Segundo esta visão, o (re)aparecimento do romance histórico (como o de outras narrativas) na era pós-moderna surge como uma forma recorrente da literatura atual revisitar e abordar a História de uma outra maneira, ou non nova, sed nove (ARNAUT, 2011). Podemos afirmar, como pode se verificar, que é o romance o gênero prototípico dessa proposta atual que busca trazer, através da criação artística, o problema da referência histórica e das várias vozes que a compõem. O romance parece ser então a forma literária que se lança melhor ao duplo desafio de compreensão da experiência humana no mundo: A ficção contemporânea, dessa perspectiva, parece confrontar-se com uma dupla forma, pelo menos, de dissolução do sentido; a primeira, já elaborada pela clássica reflexão de Lukács ([196-]) (e recolocada por Bakhtin (1988) em termos exemplares) enquanto traço distintivo do gênero: o romance – a forma épica da modernidade, por excelência -, nos termos propostos pelo pensador marxista, empreenderia uma busca do sentido que nasce justamente da perda da compreensão totalizadora, da perda da imanência do sentido. Essas propriedades ( a compreensão totalizadora e a imanência do sentido) constituem os fundamentos da épica clássica – o universo do mito -, que assim explicava o mundo e a experiência do homem no mundo […] (GOBBI, 2011, p. 14) A autora enfatiza que, na modernidade, a cisão entre a compreensão totalizadora do mundo antigo e a nossa experiência no mundo (atual), de que resultaria a necessidade continua da busca por sentido. Resta como segundo desafio à literatura contemporânea, portanto, a tentativa de alcançar os fios da História e da nossa experiência como agentes que a compõem, neste nosso tempo de rápidas mudanças e de “reconhecida agudização da dissonância homem/mundo”; ou seja, continuar a busca de sentido sobre a vida à nossa volta e sobre o mundo, num período em que até mesmo certezas como a da “identidade” parecem escapar pelos acontecimentos que se sobrepõem. Em suma, a literatura contemporânea e o romance histórico atual questionam o que se construiu como ‘identidade’ no sentido coletivo da cultura de um dado povo, e se coloca como o outro dentro desse grupo e tradição. Como resposta a essa busca, a literatura contemporânea promove a recolocação do homem na e da história através da criação artística de maneira inovadora; esta inovação que a forma atual traz ao gênero é a capacidade dos escritores de ficcionalizar eventos históricos de alcance público ao mesmo passo em que o fazem com acontecimentos individuais criados no entorno das personagens, situando assim a experiência do leitor dentro da experiência coletiva; dando voz a outros que não figuram oficialmente no 29 discurso da História, ou ainda, sugerindo a importância da participação do leitor na criação de sentidos no plano da leitura da obra, como também na posição de agente histórico no plano do real. Para lembrar Jameson: […] “sua arte [do novo romance histórico] consistiria na desenvoltura com que essa intersecção [entre os planos da história coletiva e o individual das personagens] é configurada e expressa em uma invenção singular que se produz de modo imprevisto em cada caso.” (JAMESON 2007, p. 8 apud MARTIN, 2011, p. 193). No entanto, a forma atual do romance histórico não poderá ser comparada ao subgênero surgido no século XIX, pois: […] Lukács, na mesma Teoria do Romance ([196-]), já entrevia que essa busca do sentido só se poderia dar de forma irônica, entendida aqui – e até paradoxalmente – em sua dimensão mais trágica: um movimento tenso e ambivalente em que o homem, por um lado, quer impregnar o mundo de sentido, enquanto este resiste e recusa tal impregnação, e, por outro lado, dá-se conta, esse mesmo homem, do caráter limitado dos mundos alheios um ao outro – o do sujeito (o seu, interior, próprio) e o do objeto (o outro, exterior, diverso) -, o que resultará, enfim, na percepção da dissonância já apontada (GOBBI, 2011, p. 14) À ironia, que se dá pela retomada, pela paródia e reconfiguração (assim como, pela proposta de ressignificação) dos fatos da história em que se baseia também o imaginário cultural e coletivo, acrescentamos, particularmente no romance O retorno, a dupla busca de sentido, e, por assim dizer, de identidade, observada na construção da narrativa: verifica-se, por um lado, a proposição de dar voz, revisitar e atribuir uma nova ressignificação aos acontecimentos históricos, por meio da experiência individual de um personagem – e, por extensão, veremos, a componentes do imaginário cultural coletivo –, configurando-se isto como um exercício constante de recriação ou reflexão sobre esta identidade, em meio a tempos de rápidas mudanças sociais e políticas no mundo (no tempo do romance e no atual, a partir do qual se escreve). Portanto, se assim pensarmos, caberia a uma certa identidade nacional e aos seus interlocutores a exigência de buscar o seu papel e sentido nesse sistema e nesse mundo em mutação. O segundo plano referido na busca de identidade diz respeito a uma procura de outro tipo: na construção do romance, o narrador-protagonista está à procura da sua própria, sendo Rui um adolescente de quinze anos que, comparavelmente àquele país de 1975, e, se calhar, ao Portugal de hoje, buscava seu lugar no mundo, novos sentidos ou, um destino. Em 30 suma, uma busca para entender e ser parte ativa dos acontecimentos históricos, uma vez que a imagem mitológica imperial e triunfante parecia já estar em fragmentação. Tendo enfatizado as características temáticas e de filiação do romance em estudo dentro da proposta estética na Literatura Portuguesa contemporânea, deveremos apontar, ainda que o modo de projeção da voz e das experiências do protagonista e narrador Rui aproxima a narrativa da tradição do gênero Bildungsroman (romance de formação), gênero caracterizado pelo foco no crescimento moral e psicológico do protagonista através de certo período de tempo (e experiências que procura compreender), em que mudanças importantes são operadas. No entanto, essa aproximação do gênero Bildungsroman se dá parcialmente, pois na sua caracterização típica, neste gênero: O protagonista deve ter uma consciência de certa forma explícita de que ele próprio não percorre uma sequência de aventuras mais ou menos aleatórias, mas sim um processo de autodescobrimento e de orientação no mundo. Com isso, via de regra, a imagem que o protagonista tem da meta de sua trajetória de vida é determinada por enganos e avaliações equivocadas, devendo ser corrigidas apenas no transcorrer de seu desenvolvimento. (JACOBS & KRAUSE, 1989, p. 37) Veremos que, no romance em estudo, o protagonista não terá clara consciência de que nos fala o teórico, a respeito dos caminhos e provas por que passa, ao contrário, por se tratar de um adolescente, a reflexão sobre os acontecimentos torna-se tentativa de compreendê-los: […] A mãe fala como se hoje à noite não fôssemos apanhar o avião para a metrópole, como se amanhã pudéssemos comer as sobras da carne assada dentro do pão, no intervalo grande do liceu. (CARDOSO, 2012, p. 7) […] nem sei para que me ponho a pensar nisso, por que perco tempo com coisas que não têm interesse algum, quando tenho tantas coisas importantes em que devia pensar. Mas não consigo mandar naquilo em que penso. Talvez a minha cabeça não seja muito diferente da cabeça fraca da mãe. (CARDOSO, 2012, p. 10) Como se observa, em O retorno, Rui, enquanto representante do homem moderno, escreve para compreender o que se passa (ao mesmo tempo em que tenta atribuir sentidos), ou, como referido, empreende o esforço de “agarrar os fios da história”, construindo também, assim, a sua identidade, num movimento bidirecional, em que se lembra do que está a perder (ao sair de Angola) e reflete sobre os acontecimentos que se sucedem ao longo do romance. Aliás, essa sucessão de fatos que parece se configurar 31 num “presente estendido” pela narrativa, vista a escolha da forma discursiva, em fluxo de consciência e pelo discurso indireto livre, além de outras características estilísticas que criam e reforçam o efeito de simultaneidade dos fatos narrados. Dessa maneira, portanto, o protagonista, diferentemente do modelo goethiano, parece não ter a consciência de que passa por um processo de autodescobrimento e de orientação no mundo, não estando explícito também o ponto final de sua trajetória; ao contrário – e, talvez, por se tratar de um adolescente –, a narrativa traz-nos reflexões e dúvidas do protagonista – de toda a ordem - que vêm a calhar de forma interessante como discurso que pretende rever, questionar e incluir outras vozes na História, pela sugestão do processo de construção identitária como contínuo e sem objetivo final demarcado. Tais reflexões, destacamos, podem-se aplicar tanto à trajetória de Rui como à de Portugal, se nos atentarmos ao caráter de plurissignificação que o texto literário alcança. Além do mais, são as reflexões de Rui a respeito dos acontecimentos que os faziam sair de Angola que sugerem a revisão histórica e, consequentemente, promovem certo abalo do imaginário cultural do “ser português”, provocando igualmente o seu questionamento, esse imaginário poderá ser entendido como acontecimentos amparados na história e reverberados na tradição oral e escrita, formando um modo peculiar e coeso de uma nação se pensar ao longo do tempo ou, uma imagem. Em outras palavras, o imaginário é: “em seu mais amplo sentido, como um dos maiores depositários das vivências privadas ou coletivas, das tensões, contradições, aspirações, frustrações e das tendências mais profundas de uma sociedade” (GOBBI, 2011, p. 38). Ora, as dúvidas e meditações pueris e, por vezes, ingênuas, de Rui voltam-se para temas importantes desse construto cultural a que chamamos “imaginário” do ser português; um dos seus temas destacáveis é a expansão colonial do Império lusitano, ou, nesse contexto mais especificamente, a questão ultramarina e o tratamento dispensado às colônias de então – renomeadas oportunamente de províncias -, num jogo de lá e cá que se explicita bastante ao longo da narrativa: Raparigas bonitas como só as da metrópole podem ser. As raparigas daqui não sabem como são as cerejas, dizem que são como as pitangas. Ainda que sejam, 32 nunca as vi com brincos de pitangas a rirem-se umas com as outras como as raparigas da metrópole fazem nas fotografias. (CARDOSO, 2012, p. 7) Não apenas a dualidade “lá e cá” é expressa pela voz de Rui, como também, a reconstituição da pluralidade ideológica presente no momento histórico em causa, através da voz de personagens opostas: A Pirata podia ficar com o tio Zé que não vai embora porque quer ajudar os pretos a formar uma nação. O pai ri-se sempre que o tio Zé fala na grandiosa nação que se erguerá pela vontade de um povo oprimido durante séculos. (CARDOSO, 2012, p. 8) Para o pai os soldados portugueses são uns traidores reles mas para o tio Zé, são heróis antifascistas e anticolonialistas. (CARDOSO, 2012, p. 11) Como se nota, o personagem tio Zé, universitário e soldado (forçado), participante no combate à Guerra de Independência (e desertor), provavelmente compartilha de alguma das várias posições ideológicas socialistas que deram impulso à Revolução de 25 de Abril e aos movimentos de independência das antigas colônias, o que, por seu turno, não acontece com Mário, pai de Rui, cuja vida material se fez em Angola, a partir do contexto da política de ocupação, colonização e exploração do território africano. As duas cenas, entretanto, reforçam a apreciação feita das características dessa tipologia de romance histórico contemporâneo, dentre elas, a inclusão de uma pluralidade de vozes reconstituídas como outras fontes históricas dentro do plano fictício e pela experiência individual. Resta-nos ainda enfatizar, nos trechos citados, o abalo na concepção cristalizada do português colonizador e “civilizador”, conseguido através da inclusão das vozes em oposição, mas complementares a uma visão mais global – e almejada pela proposta do tipo de romance em análise. Temos, em suma, um tipo de revisão histórica inexequível para o momento de 1975 - afinal, para tal tarefa, a distância temporal dos fatos se faz fundamental; nesse sentido ainda, somente o distanciamento crítico dos matizes ideológicos hegemônicos no Portugal do pós 25 de Abril permitiria o surgimento e a apreciação de um tipo de literatura que coloca em palco múltiplas vozes e perspectivas, sem correr os riscos, presumíveis, em momentos políticos conturbados como foram aqueles. 33 É destacável também que, embora no romance O retorno não se verifique a clara intenção ridicularizadora, de deboche ou de desmonte dos mitos que compõem o imaginário cultural português, a presença ostensiva das muitas vozes – e consequentemente de posições ideológicas – traz consigo no texto a retomada de discursos em embate na época, que, ao lume da proposta do romance histórico contemporâneo, propõe a reflexão crítica através de traços paródicos percebidos nas relações de intertexto a que remetem essas vozes. O que acontece então são a apropriação e a repetição de discursos que se anulam ao longo da narrativa, por meio da ironia, como supõe, de fato, a paródia; e é, afinal, o que se verifica, por exemplo, quanto à imagem da metrópole imaginada por Rui antes de lá chegar (imagem advinda do discurso oficial, da propaganda política estadonovista) em oposição ao que encontra, já na situação de retornado. Como define Gobbi: A paródia seria, assim, uma forma alternativa de chegar a um acordo com os textos desse “rico e temível legado do passado” (HUTCHEON, 1985, p.15) […] a paródia é uma repetição alargada com diferença crítica, que permite uma abordagem igualmente crítica e produtiva da tradição, fundada no jogo irônico com as múltiplas convenções que a definem […] a reversibilidade irônica – com toda gama de ambiguidades fatalmente inscritas nesse jogo – é uma característica de toda paródia. (ibidem, p. 48) Ao continuarmos a abordagem dessas vozes que compõem a proposta de revisão da história e, consequentemente, de determinados mitos da cultura portuguesa, observaremos, no romance, como aqui e ali a consciência de Rui projeta realidades questionadoras dos discursos que legitimavam não apenas o regime salazarista e a anacrônica colonização dos territórios africanos, mas também a ideologia hegemônica que amparava a presença dos portugueses por lá e reforçava seu caráter benéfico aos povos subalternos daquelas regiões; uma das ideias que compõem esse construto dominante assentava-se no luso-tropicalismo, ou na convivência pacífica, equilibrada socialmente, entre negros e brancos, que tendia à mistura de costumes, vivamente questionada em passagens como: Os pretos corriam atrás do carro, abriam a boca para engolir a névoa que matava o paludismo, mas os brancos não, as vizinhas sabiam que aquele fumo fazia mal e proibiam os filhos como os proibiam de chapinhar na água da chuva por causa da filária. D. Glória, os pretos têm outra constituição e não há neste inferno nada que lhes faça mal, temos de ter cuidado com os nossos, avisam as vizinhas. (CARDOSO, 2012, p. 10-11) 34 O pai nunca mais se vai sentar no banco de madeira para que o barbeiro lhe apare o cabelo e lhe faça a barba, um barbeiro branco, que só um doido deixava que um preto lhe pusesse a navalha no pescoço. (CARDOSO, 2012, p. 18) Não fica cá nada […] eles não merecem nada. Eles são os pretos. Todos. Os que não conhecemos e não têm nome e os que conhecemos e têm nomes da metrópole que não sabem pronunciar, Málátia, Ádárbeto, é preciso ser-se bem matumbo para nem o próprio nome se saber dizer. (CARDOSO, 2012, p. 21) Nenhum colono pode destruir os bens que a sua ganância amealhou, se o pai for apanhado a deitar fogo à casa e aos camiões matam-no. […] ainda a semana passada apareceu na estrada de Catete a cabeça de um branco espetada num pau […] (CARDOSO, 2012, p. 22) Nos trechos citados, faz-se notável a diferenciação étnico-social entre brancos e negros e a posição subalterna dos últimos dentro da lógica colonial do regime, além, obviamente, do racismo, o que, por sua vez, põe em causa a já referida ideia de convivência pacífica e multirracial apregoada nos últimos anos de governo, com Marcello Caetano, em resposta às pressões internacionais e a deflagração dos movimentos de revolta nas colônias; põe em causa, enfim, as justificativas acessórias à própria colonização desde séculos anteriores: a ‘civilização’ dos povos menos desenvolvidos, a sua evangelização e o progresso material; revelando no processo de colonização seu caráter real de expansão mercantilista e de submissão dos povos nativos com sistemas cultural e econômico mais frágeis. Por fim, atinge e problematiza um tema caro à mitologia lusitana: os descobrimentos, a expansão marítima e colonial empreendidas por um povo referido como voltado para o mar por vocação. 3 - Colono, emigrante e retornado – o devir identitário e a expansão portuguesa Procuramos, no capítulo anterior, investigar a proposta estética do romance O retorno enquanto representante da produção literária portuguesa contemporânea. Tal proposta destaca-se pela revisão do discurso histórico, ao mesmo passo que insere a narrativa literária como fonte paralela de conhecimento, estabelecendo relações entre as experiências coletiva e individual, por meio também da problematização das fontes e vozes históricas, além da revisão do imaginário cultural de um povo. Em suma, trata-se de um subgênero romanesco que, ao rastro do empreendimento humano, através do tempo, procura a compreensão dos fatos e seus desdobramentos enquanto componentes 35 privilegiados do construto identitário de uma cultura. A ficção contemporânea procura, assim, […] desestabilizar essa “fixidez” [do discurso histórico], […] toma sua matéria da história, mostrando-a também como discurso que, por suas estratégias constitutivas, é capaz de criar verdades, como os próprios mitos que sustentam uma imagem da nação. (GOBBI, 2011, p. 29) Mais especificamente, a ficção portuguesa contemporânea recoloca o tema do que é “ser português” e, acrescentamos, tendo em vista O retorno: o que é ser português depois do 25 de Abril, ou o que é ser português retornado? Em outras palavras, é característica própria da contemporaneidade por em causa concepções fixas e indissolúveis de identidade – seja ela de qualquer nível, e, de maior interesse para nós, a concepção de identidade nacional, que se amplia sobre todas as outras formas, - junto a outros pressupostos caros à modernidade, como o Estado e seu aparato cultural, por exemplo. Será, pois, a construção, a afirmação e/ou a negação de identidade(s) nosso objeto de análise neste capítulo, nomeadamente a percepção de determinados traços identitários – no sentido coletivo e individual – que o romance O Retorno permite considerar por meio das múltiplas vozes em afluência na narrativa, tendo sempre em vista o imaginário constituído do “ser português”. De maneira mais simplificada, quem eram, afinal, os retornados, personagens na narrativa e na história? Não obstante a clara e constante divisão entre nós-brancos/eles-pretos, vista nos trechos anteriormente citados, ainda no período antecedente à viagem à metrópole - o que nos levaria a pensar uma presumível e automática auto-identificação dos brancos de Angola com os portugueses metropolitanos sem ressalvas, a partir da ótica ideológica do regime anterior ao 25 de Abril –, deparamo-nos no texto com elementos incertos dessa hipotética e automática identificação, mesmo antes de as personagens serem consideradas “retornados” em Lisboa. Observamos, dessa maneira, que os retornados, como grupo de portugueses à parte dos outros, constituem uma comunidade específica dentro da cultura lusitana naquele período. E para compreendermos essa comunidade, é necessário investigar especialmente o caráter de povoação portuguesa branca em Angola (e o próprio romance nos oferece fontes para tal), propondo atribuir a essa população dois papeis distintos, mas não opostos, enquanto agentes históricos: colono e emigrante. 36 Propomos essas duas dimensões, como condição inicial de identificação e construção de uma autoimagem de um status social e político, a partir do qual, constituir-se-á a presença portuguesa no território africano. Vimos anteriormente como o discurso da propaganda política salazarista procurava consolidar a imagem de um Império Português pluricontinental e multirracial, já em meados de 1946, atribuindo às colônias o estatuto de províncias, à procura de evitar pendências internacionais relativas à exploração colonial; discurso, no entanto, que não se verificava na realidade. Neste contexto de afirmação da posse dos territórios ultramarinos, portanto, a presença de portugueses – brancos - era fundamental como política colonizadora. A maneira como se faz essa presença portuguesa, especialmente em Angola, vemos em O Retorno de maneira complexa: Quando vim ter com vosso pai trouxe a mala amarela cheia de enxoval feito por mim, a pressa que tinha em vir para cá, trabalhava no campo durante o dia e bordava aos serões, a pressa que tinha em vir para cá nem deixava ter sono, não queria acreditar que ia ter uma casa com torneiras, parecia impossível […] nunca mais teria de acartar água da fonte para casa […] na aldeia não havia uma casa que tivesse torneiras de onde saísse água […] (CARDOSO, 2012, p.19) Era outono quando veio para cá no Vera Cruz com laços nas pontas das tranças como no retrato que está pendurado na parede da sala. […] os meus pais despediram-se de mim, nem um abraço, não havia o hábito, deram-me um saco com queijo terrincho, pão e castanhas piladas para comer na viagem […] nos nove dias de viagem de barco, da chegada, estava tanto vento que o pó se levantava como se o diabo o soprasse, pó encarnado, nunca tinha visto nada parecido. (CARDOSO, 2012, p.23) Nos trechos de fala de D. Glória, mãe de Rui, o protagonista, evidencia-se o caráter de emigração em sua mudança de Portugal para Angola, fenômeno já evidente na cultura portuguesa desde o século XIX, embora à margem da tradição artística e do imaginário triunfante do “ser português”. É evidente também a contraditória situação econômica e estrutural da metrópole em relação à próspera colônia; tal desequilíbrio se verificará até depois da chegada da família de Rui a Lisboa, acentuada pelos gastos dos anos de guerra colonial. O pai de Rui, por sua vez, havia feito o mesmo caminho anos antes, fugindo à pobreza, e se estabelecendo economicamente em Luanda. Essa contradição estrutural entre colônia e metrópole, bastante específica de Portugal à época, ajuda-nos a pensar melhor os papéis de colono e emigrante de que falamos, como fator de constituição da identidade, seja ela social, de um grupo específico ou de auto- identificação. Diz-nos Eduardo Lourenço: 37 A emigração supõe que alguma coisa de melhor do que o que se deixa nos espera para nos dar a oportunidade de mudarmos de estado ou de funções. […] A procura de uma melhor sorte fica assinalada pelo desejo de um regresso a casa, como a busca, mítica, de Ulisses. Nos séculos XV e XVI, os Portugueses não emigram verdadeiramente: colonizam, no sentido antigo deste termo, característico dos Gregos e Romanos. (LOURENÇO, 2004, p.44-45) Podemos ainda explicar essa condição estrutural contraditória entre metrópole-colônia como dado peculiar e específico da história portuguesa recente, e que, nos diz Boaventura Santos (1999), tem a ver com o modo como a nação portuguesa se encaixou no sistema político e econômico mundial, na tentativa de encontrar seu espaço frente às potências europeias, ou seja, a tese da nação de desenvolvimento intermédio, cujas particularidades sociológicas e culturais amparam dentro do seu contexto os percursos históricos de Portugal de maneira coerente. Dessa maneira, fica claro que tanto na História quanto no tempo diegético do romance as personagens de fato emigram, buscam algo melhor do que o que deixam. Entretanto, aparece aí uma nova contradição: por definição, a emigração dá-se em virtude de razões econômicas e sociais, o emigrante parte para ser outro em uma nova terra, mesmo não obtendo êxito, por vezes, e parte sem volta, como se verificou historicamente com as grandes massas de povos que ajudaram a formar a população das Américas no século XIX. E os nossos personagens não partem para uma outra nação, partem para um território que consideram seu: “ Quando se parte como senhor não se veste a pele dolorosa do emigrante” (LOURENÇO, 2004, p. 45). Partem como senhores, no papel de colonos, mas são efetivamente emigrantes: não há, a princípio, a perspectiva de retorno à metrópole, ainda que enriquecidos, como se pressupõe quando na posição de colono, este, que, por sua vez, presta um serviço ou é obrigatoriamente incumbido pelo Estado de tal tarefa. Considerando o território seu, amparados no discurso do regime em seus últimos anos, esses portugueses apenas mudam de província, sentem-se portugueses e são portugueses num território em que nada se assemelha aos campos e montes de Portugal, e cuja paisagem e interação sociológica, em tácito e sutil conflito étnico-racial, não permitiria a esses portugueses serem tais e quais os que ficaram em Lisboa, constituindo, assim, uma verdadeira comunidade em suas características, portando dificuldades de integração à nova realidade, na metrópole, como se verifica na narrativa. 38 Em outras palavras, a contradição exposta explica-se pela ambiguidade de ser-se politicamente senhor de um território, portanto, colono, ao mesmo passo em que “coloniza-se” e emigra-se por necessidade econômica, sem perspectiva de retorno, caracterizando-se assim um fenômeno de emigração, de fato. Enfatizando o fator contraditório, o colono não corta o “cordão-umbilical com a pátria mãe” (LOURENÇO, 2004, p.46), como se observa naturalmente nas personagens do romance; e o emigrante se adapta e, por vezes, cria uma nova identidade a partir das novas referências geográficas e sociais. É nesta dupla imagem, pois, que deveremos pensar a constituição identitária dos portugueses em Angola; e essa configuração dupla se estenderá aos limites quando se tornam “retornados”, como parece nos mostrar o romance. Parte-se então de um discurso e contexto político em que essas populações brancas nos territórios ultramarinos eram portuguesas, como quaisquer outros a priori, diferentemente, porém, no plano social das vivências, como o próprio Rui nos revela no seu percurso de adolescente na procura e construção de sua identidade, e, do que revela ele também das diferentes identificações ou sensações de pertencimento, para citar o conceito de Bauman, que dividem Mário e Glória, seus pais: A culpada de a mãe ser assim é esta terra. Sempre houve duas terras para a mãe, esta que a adoeceu e a metrópole, onde tudo e diferente e onde a mãe também era diferente. O pai nunca fala da metrópole, a mãe tem duas terras mas o pai não. Um homem pertence ao sítio que lhe dá de comer a não ser que tenha um coração ingrato, era assim que o pai respondia quando lhe perguntava se tinha saudades da metrópole. (CARDOSO, 2012, p.11) Verificamos, nas vozes de Glória e Mário, configurações opostas da sensação de exílio; a percepção da mãe de Rui se expressa no conceito tradicional: ter-se deixado a terra natal, cortado laços, implicando nostalgia e tentativa de reconstrução de uma certa identidade. Mário, por sua vez, poderá ser representante de um tipo de exílio nostálgico e inverso: o que foi desterrado do que considerava seu (sem o ser), cujos laços de identificação ou pertencimento eram rompidos à força, como ocorrerá também, de certo modo, a Rui, adolescente nascido e ‘desterrado’ de Angola. Sobre o exílio, aponta muito precisamente Said, que: […] é um estado fundamentalmente de ser descontínuo. Os exilados estão separados das raízes, da terra natal, do passado […] sentem uma necessidade urgente de reconstituir suas vidas rompidas e preferem ver a si mesmos como parte de uma ideologia triunfante ou de um povo restaurado. O páthos do exílio está na perda do contato com a solidez e a satisfação da terra: voltar para o lar está fora de questão. (SAID, 2003, p. 48) 39 Acrescentem-se a esse quadro, como aponta Eduardo Lourenço, características peculiares ao modo de expansão portuguesa: E os menos emigrantes de todos são os portugueses, que não sentem necessidade de rebaptizar as terras que colonizam, como se nunca tivessem saído de casa… Mais tarde pagarão esta vocação “migratória sem invenção de identidade”, por assim dizer, com um suplemento de nostalgia. (LOURENÇO, 2004, p.46) O suplemento de nostalgia apontado por Lourenço é particularmente importante se pensarmos nos temas que compõem o imaginário português, no qual a nostalgia, ou a saudade, tem papel privilegiado. É também a nostalgia que ampara a atitude de rever a história, de se avaliar o que foi um povo em cinco séculos de aventura por todos os continentes do planeta; e é também a nostalgia marca fundamental do exilado, do emigrado, do refugiado e do “retornado”, afinal: O fenômeno de emigração […] não se presta à glosa edificante – no bom sentido do termo – senão no fim, no momento em que se esgota na sua própria negação, quando o emigrante regressa para ser glorificado como filho pródigo (ou prodígio) […] [A emigração] Todos sabem que se trata de uma perda de substância do seu ser, uma hemorragia, a meio caminho entre a sangria salvadora e a sangria mortal [de uma nação]. (LOURENÇO, 2004, p.48) É, portanto, amparados no caráter peculiar da expansão portuguesa em sua trajetória enquanto nação colonizadora e nos percursos históricos específicos do último século - que podemos reafirmar o caráter duplo da presença portuguesa em Angola, e, provavelmente, nos outros territórios, cuja definição e identificação de seus status localiza-se entre os planos do colono e do emigrado: sendo portugueses no ultramar, já não eram portugueses ou, ao menos, já se constituíam como comunidades portuguesas em contato com outros matizes e práticas culturais (apesar da forte divisão étnica), responsáveis, inclusive no plano do romance, pelos traços da nostalgia, fosse ela consequência do exílio ou consequência do se sentir desterrado, após a descolonização, além do posterior não-pertencimento, enquanto retornados na metrópole, configurando- se assim um movimento constante de devir identitário, de contínua reinvenção e reformulação do seu local enquanto indivíduo (personagem) e grupo em uma cultura. 4 - Identidades à deriva – deslocamento e pertencimento em O Retorno Não obstante essa ausência de “invenção de identidade” de que nos fala Lourenço a respeito dos portugueses emigrados, ou de um “não tomar posse efetiva do que é seu”, 40 não poderíamos deixar de reafirmar a concepção de processo de construção da identidade como um continuum, em mutação e aglutinação de imagens, de si e do outro – afinal, o processo de construção do eu dá-se também em oposição ao outro -, e, como aponta Bauman em Identidade, não há uma identidade em-si sólida e fixa, mas caminhos ou direções mais ou menos determinadas e a serem percorridos, de acordo com as nossas experiências e interações dentro de um grupo, de uma comunidade, de uma cultura e seus componentes internos. No mesmo sentido, entendendo a identidade como movência, Ammin Maalouf afirma: “A identidade não é dada de uma vez por todas, constrói-se e transforma-se ao longo da existência” (MAALOUF, 1998, p.28). A identidade, dessa forma, constitui-se sempre em “devir”, especialmente nos tempos atuais, com o enfraquecimento das comunidades e do aparato da “cultura nacional”, também registrado por Bauman (2003, p. 14). A partir dessas observações e reafirmando a importância do outro na construção da identidade é que analisamos o percurso de Rui, enquanto adolescente, de nacionalidade portuguesa, sem nunca ter estado em Portugal, e cuja vida e experiência passa-se em Angola, ou seja, ele, como outros nascidos em Luanda ou para lá emigrados, a despeito da não “invenção de identidade” apontada por Lourenço, aglutina experiências, modos de ver e compreender o mundo, de ver a si próprio e o outro, o que se tornará bastante evidente ao longo da narrativa, e particularmente quando Rui e sua família se veem como os “de lá”, ou portugueses de outro tipo. Acrescenta ainda Maria João Simões: O curso das mudanças identitárias faz-se no confronto com o “outro”. Ora, mais uma vez se salienta a importância da literatura, pois a complexidade compositiva de muitos romances contemporâneos, diz, expressa e plasma a conflitualidade, o diálogo de vozes, mais intersticial ainda, o “hibridismo” das vozes, há décadas apontado por Bakhtin […] (SIMÕES, 2011, P.30) Compreendendo o romance como projeto artístico fundamental de criação e representação da experiência humana enquanto partilha e conflito com o outro, enquanto processo de auto-constituição, de formulação de sentido para a existência, em suma, espaço e tempo primordial de pensamento sobre a(s) identidade(s) poderemos afirmar que o personagem Rui, n’O retorno, empreende a busca de sua identidade e seu espaço no mundo, mas também pelo espaço e lugar de sua geração e das próximas gerações de um Portugal que entrava em novos tempos, afinal, uma nação é formada por pessoas que compartilham mais ou menos hábitos e características semelhantes, além de um imaginário comum, como já o dissemos. 41 Entretanto, devido aos percursos históricos já expostos, essa mesma identidade nacional - construto típico da modernidade e das ideologias dominantes de uma cultura, e, a qual, no tempo do romance, apenas começava a ser contestada e a passar pela fragmentação vistas nas épocas atuais - é negada a certa parcela de povo português; parcela essa constituída de colonos-emigrantes, como procuramos esclarecer; população que se via e era vista como portuguesa, mas de outros portugueses, colonialistas, emigrados, e, finalmente, retornados: de uma maneira ou de outra, à margem. Será o romance O retorno que, por sua vez e pela sua proposta, poderá enriquecer nossa compreensão sobre o processo de constituição de identidade(s) a partir das noções de pertencimento e deslocamento teorizadas por Zygmund Bauman (2004), e que dizem respeito à percepção do indivíduo alocado em determinada cultura, sua ou de outro, além de sua interação social dentro dela. O exemplo do protagonista e narrador Rui faz- se ainda mais interessante se atentarmos ao fato de não ser ele um “retornado”, como sugere a palavra, mas propriamente um refugiado. Semelhante a Bauman, Edward Said reflete sobre a posição do homem deslocado em uma cultura – ainda que seja ou pareça a sua: Os exilados olham para os não-exilados com ressentimentos. Sentem que eles pertencem a seu meio, ao passo que um exilado está sempre deslocado. […] É possível fazer algumas distinções entre exilados, refugiados, expatriados e emigrados. O exílio tem origem na velha prática do banimento. Uma vez banido, o exilado leva uma vida anômala e infeliz, com o estigma de ser um forasteiro. Por outro lado, os refugiados são uma criação do Estado do século XX. A palavra ‘refugiado’ tornou-se política: ela sugere grandes rebanhos de gente inocente e desnorteada que precisa de ajuda internacional urgente, ao passo que o termo ‘exilado’, creio eu, traz consigo um toque de solidão e espiritualidade. (SAID, 2003, p. 56) Acrescentamos aqui que a sensação do exilado é a mesma que sente o refugiado, pois ambos, banidos, sentem-se forasteiros, desconectados e alheios aos outros, ou “não pertencentes” àquilo. Rui é um refugiado, assim como os muitos outros, embora a tal inocência que afirma Said sobre os refugiados políticos possa ser vista mais ou menos aplicável no caso dos colonos portugueses. Nesse mesmo sentido, voltamos aos conceitos de pertencimento e deslocamento de Bauman: Estar total ou parcialmente “deslocado” em toda parte, não estar totalmente à vontade em lugar algum (ou seja, sem restrições e embargos, sem que alguns aspectos da pessoa “se sobressaiam” e sejam vistos por outras como estranhos), pode ser uma experiência desconfortável, por vezes perturbadora. Sempre há alguma coisa a explicar, desculpar, esconder ou, pelo contrário, corajosamente ostentar, negociar, oferecer e barganhar. (BAUMAN, 2005, p.19) 42 E é o que sucederá a Rui a partir do momento em que começa a descobrir e interagir na metrópole, sendo ele português ma non troppo ou, nas palavras de Mário, seu pai, um português de segunda; pertencente àquela leva que abandona a nação, segundo alguns nacionalistas, ou àquela gente que vai explorar os pretos em África, segundo outros. Na verdade, o deslocamento, a não identificação inicia-se logo pela chegada e pelas primeiras impressões da metrópole, o que, por sua vez, dá voz também à desconstrução do discurso imperial: Foi esquisito pisar na metrópole, era como se estivéssemos a entrar no mapa que estava pendurado na sala de aula […] Quando estávamos no aeroporto a mãe quis comprar uma gasosa com o dinheiro de lá mas a vendedora disse-lhe, não aceitamos esse dinheiro. Não percebo. São escudos na mesma, Angola é Portugal, a independência só é em novembro. A vendedora disse que o dinheiro de lá nunca serviu cá. (CARDOSO, 2012, p.78-79) Finalmente, Rui, sua família e os outros hóspedes do hotel passam a se reconhecer ou, serem reconhecidos, como retornados, e, a percebem a grande contradição entre o discurso colonial e metrópole real, expressa pelos recursos paródicos no discurso de Rui, ao longo da narrativa; o que dará, por sua vez, o tom de incompreensão, revolta e estranhamento em relação à nova realidade, marcando o trauma do desenraizamento: A metrópole tem de ser toda como este hotel, o que hoje vimos antes de aqui chegar só pode ser um engano. A metrópole tem de ser como este hotel que até no elevador tem uma banqueta forrada de veludo. Portugal não é um país pequeno, era o que estava escrito no mapa da escola, Portugal não é um país pequeno, é um império do Minho ao Timor. A metrópole não pode ser como hoje a vimos no caminho que o táxi fez, ninguém nos ia obrigar a cantar hinos aos sábados de manhã se a metrópole fosse tão acanhada e suja, com ruas tão estreitas onde parece que nem cabemos. O taxista tratava-nos por camaradas. (CARDOSO, 2012, p.83) […] um império tão grande como daqui até a Rússia não pode ter uma metrópole com ruas onde mal cabe um carro, não pode ter pessoas tristes e feias, nem velhos desdentados nas janelas tão sem serventia que nem para a morte têm interesse. Lá os velhos tinham dentes postiços e chapéu na cabeça e os fatos dos trópicos engomados. (CARDOSO, 2012, p.84) [No IARN] estavam lá retornados de todos os cantos do império, o império estava ali, naquela sala, um império cansado, a precisar de casa e de comida, um império derrotado e humilhado, um império de que ninguém queria saber. (CARDOSO, 2012, p.86) Assim, se pudéssemos formular em forma pergunta tal irônica contradição expressa no texto, dir-se-ia: como pôde afinal um país tão pequeno ter tido um destino tão glorioso? Como se nota, a realidade da emigração (para Angola) se revela seguramente e se acentua ao mesmo passo em que as comparações adolescentes e lúcidas de Rui traçam um retrato do derrotado e cansado Portugal à época, no plano da experiência individual, ajudando a compor as vozes do coletivo. Dessa maneira, a narrativa se desenvolve e as 43 comparações de Rui deixam explícita a constante divisão entre lá e cá, entre nós e eles, os retornados e os da terra e, as diferenças existentes mesmo entre os retornados: Há muita gente de Moçambique aqui no hotel mas os de Angola quase não se dão com os de Moçambique. Os de Moçambique têm a mania que viviam na Pérola do Índico e usam palavras em inglês, chamam boys aos miúdos pretos e dizem que moravam em flats, falam de monhês e de chinas. (CARDOSO, 2012, p.88) Lá não haviam destes comboios, só os de carga onde os pretos iam pendurados nas portas dos vagões. Gostamos de ir ver os comboios e de armar estrilho. Os de cá ficam furiosos connosco mas não queremos saber, de qualquer maneira os de cá não gostam de nós. (CARDOSO, 2012, p.102) Não é preciso nada disso porque basta olhar para as roupas que tem, os de cá não mandam banga como nós e têm a pele branca como o leite ou cinzenta-esverdeada, uma pele de cor estragada. Os de cá são gente esquisita que nos topa à légua. (CARDOSO, 2012, p.109) Junto à crescente oposição e a não identificação entre os de lá e os de cá, destacam-se ainda, na narrativa, elementos ilustrativos do estranhamento na convivência dos retornados, como o vocabulário e o sotaque da comunidade vinda de Angola. O fato de Rui chamar aos “de cá” de “tugas” (como se não fosse ele um também), o uso de palavras como machimbombo (ônibus), candengue (criança), matumbo (caipira), matabicho (café-da-manhã), por exemplo, que os marginalizava como selvagens, na imagem cambiante junto a de colonos imperialistas, segundo a visão dos portugueses metropolitanos. No curso da narrativa, a ideia de deslocamento e o estranhamento atingem um crescente nos primeiros tempos na metrópole, como uma exigência inicial que convoca a reformulação de uma identidade cultural específica que era rejeitada pelos metropolitanos e uma exigência por outra, que era negada (a do ser português) aos que voltavam das colônias, auto-imagem, inclusive que estava em abalo e desconstrução, mesmo na metrópole, conforme os princípios da Revolução de caráter socialista. Todo esse conturbado contexto dificultava a compreensão adolescente de Rui (e não só a dele), retardando uma possível integração e provocando o mal-estar do ser estranho. Os de cá deviam tratar-nos ainda pior, quem não luta pela sua terra não merece respeito algum. […] Os de cá chamam-nos entornados para gozar connosco, foram entornados cá, devem pensar que têm graça. (CARDOSO, 2012, p.128) Como mostra o discurso histórico e o da narrativa, os retornados – usamos o termo apenas por coerência ao romance – perderam o que tinham de material e de experiência comunitária enquanto habitantes das colônias, mas não apenas isto: a eles foi atribuído um exílio em sua própria identidade, foi-lhes negada posteriormente a identidade de 44 portugueses em essência; eles eram os outros, colonialistas, fascistas que vieram expulsos de África para “tomar-nos o trabalho e o pão”, numa voz metropolitana mais conservadora. É este o contexto social e político conturbado de 1975, cuja gama de ideologias, disputas e embates entre grupos, que deveria apressar a fragmentação e o questionamento do ser português de maneira aguda, deixando pelo caminho identidades à deriva, sem voz e com sobressaltada dose de nostalgia, para recordar Lourenço (2004). O que, por sua vez, só poderia ser repensado no contexto pós-revolucionário, no período de democratização, em que as vozes deixadas para trás teriam a possibilidade de aparecer. Diz-nos Said, aliás, que “grande parte da vida de um exilado é ocupada em compensar a perda desorientadora, criando um novo mundo para governar. Não surpreende que tantos exilados sejam romancistas” […] (SAID, 2003, p. 58). Portanto, parece-nos interessante que a autora do romance em estudo o escreva, tendo ela mesma a experiência do “retorno” – sem a intenção de relacionarmos simploriamente a literatura a uma experiência autobiográfica -; o exílio, mesmo em contextos menos traumáticos como o da descolonização portuguesa, é uma amputação de identidade, um desenraizar entre o indivíduo e seu chez-soir comum, que poderá ter ainda a sensação acentuada pelo esfacelamento de certezas, pertencimentos e identidades típicos da nossa era. Afirmamos o exemplo em estudo como menos traumático por se tratar, aliás, de portugueses e outros portugueses, ou seja, ainda assim, semelhantes, cujo tempo e os acontecimentos históricos tratariam de conciliar, adaptar e integrar progressivamente, se por oposição observarmos comunidades estrangeiras inseridas em outra cultura, cuja língua, religião e costumes frequentemente são motivos de grande hostilidade. Entretanto, naturalmente não minimizamos o caráter traumático da amputação de identidade que confere esse tipo peculiar de exílio em si e de si mesmo, ou esse deslocamento. Dessa maneira, portanto, são o deslocamento e o pertencimento uma das linhas temáticas mais ricas para pensarmos o percurso de Rui e dos retornados no romance; como, por exemplo, quando a professora divide as fileiras da sala entre os da terra e os retornados, conferindo-lhes tratamento inferior; quando Rui compara os males do inverno mediterrânico e as queixas que faziam da matacanha (bicho-de-pé) e da filária dos trópicos angolanos, em suma, toda uma dualidade entre lá e cá, exprimindo a 45 procura por equilíbrio e segurança dentro das extremidades e de dois grupos em conflito. Ou, como cita Said: “Simone Weil expôs o dilema do exilado do modo mais conciso possível: ‘Ter raízes é talvez a necessidade mais importante menos reconhecida da alma humana.’ (SAID, 2003, p. 59)”. 46 CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste trabalho, procuramos analisar aspectos temáticos caros à cultura e ao imaginário do ser português através da literatura, estudando para isto, as relações entre narrativa literária e discurso histórico, ambos, como fontes válidas da construção da memória e do conhecimento humano. Procuramos também, dessa forma, compreender as propostas estéticas e as formas da literatura portuguesa contemporânea, na medida em que esta nos permite, para além de fruir a leitura do texto, entender processos históricos e culturais que compõem a cultura lusitana, servindo, obviamente, de contraponto ou imagem refletida para que possamos, de alguma forma, compreender também a nossa própria, enquanto povo brasileiro, cujos laços se misturam vez ou outra aos de Portugal. Mais do que entender culturas, usufruir e analisar o objeto artístico, este trabalho se propõe a compreender o nosso tempo, revisitado e refundado pela linguagem e pela criação artística – qualidades profundamente humanas, em tempos tão tecnológicos e de automatismos sem sentidos alcançáveis, aparentemente. Propõe-se, afinal, junto ao romance, a pensarmos trajetórias que poderiam ser as nossas, enquanto agentes históricos, levados de um lado para o outro, seja como retornados, desterrados ou exilados; objetos de movimentações políticas e econômicas que, sem ilusões, não são coisas apenas de momentos decisivos de séculos passados. Este romance, ao propor o questionamento da imagem de um personagem e a sua construção identitária – da mesma maneira que poderá propor a ressignificação de uma identidade portuguesa – convida-nos a examinarmos os nossos papeis ativamente, as nossas vozes silenciadas pela distração, pelos dias e anos – cada vez mais curtos - e a nossa passagem pelo tempo, em suma, na aguda e angustiante percepção que temos dele, atualmente. Nossa leitura, como brasileiros, torna-se enriquecida, à medida que os percursos históricos sugeridos e expostos em O retorno (como neste trabalho) se cruzam irremediável e seguramente com os nossos, incitando-nos novamente a pensar a(s) história(s) e a atualidade de uma nação não tão nova como Angola, mas profundamente necessitada de compreensão, como é também o Brasil, em seus ricos movimentos e relações culturais. 47 Finalmente, e como não poderia deixar de ser, exaltamos a leitura do romance como portador do prazer estético e de encontro com o outro, neste caso, com muitos outros, como ponto de partida de humanização e reflexão. Ele nos lembra das nossas ligações com os lugares e hábitos, nossa formação como pessoas e, o que mais caracteristicamente humano, o conflito com o outro. Em suma, essa obra que procuramos estudar e, tantas outras da literatura, trazem-nos algo da já citada fonte de conhecimento, não científico ou histórico, mas de um conhecimento sutil e igualmente válido para a nossa aventura em busca de sentidos. 48 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARNAUT, Ana Paula. Post-Modernismo: O futuro do passado no romance português contemporânea: Revista Via Atlântica, nº 17, pp. 129-140, junho de 2010. BAUMAN, Zygmund. Identidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. BAUMAN, Zygmund. Comunidade: A busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. CANDIDO, A. Literatura e Sociedade. 3º Ed. São Paulo: Ed. Nacional, 1965. CARDOSO, Dulce Maria. O Retorno. Rio de Janeiro: Tinta da China, 2013 CIRNE, Maria Teresa. Filipe. Um projeto de colonização portuguesa em Angola nos finais do século XIX (1884): Revista da Faculdade de Letras do Porto, 1997 CUNHA, M. F Carlos. A questão da “especificidade” do pós-colonialismo português. 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