UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Programa de Pós-Graduação em História Vitor Lacerda O UDENISMO E MINAS GERAIS: SUJEITOS, PROCESSOS E CULTURAS POLÍTICAS (1943-1966) FRANCA 2017 Vitor Lacerda O UDENISMO E MINAS GERAIS: SUJEITOS, PROCESSOS E CULTURAS POLÍTICAS (1943-1966) Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da UNESP/Franca, sob orientação da Prof.ª Dr.ª Teresa Maria Malatian, como requisito para obtenção do título de mestre. Área de Concentração: História e Cultura Linha de Pesquisa: História e Cultura Política FRANCA 2017 Lacerda, Vitor. O udenismo e Minas Gerais : sujeitos, processos e culturas políticas (1943-1966) / Vitor Lacerda. – Franca : [s.n.], 2017. 133 f. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências Humanas e Sociais. Orientadora: Teresa Maria Malatian 1. Cultura politica. 2. União Democratica Nacional (Brasil). 3. Minas Gerais. I. Título. CDD –981.51 Vitor Lacerda O UDENISMO E MINAS GERAIS: SUJEITOS, PROCESSOS E CULTURAS POLÍTICAS (1943-1966) Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da UNESP/Franca, sob orientação da Prof.ª Dr.ª Teresa Maria Malatian, como requisito para obtenção do título de mestre. Área de Concentração: História e Cultura Linha de Pesquisa: História e Cultura Política BANCA EXAMINADORA Presidente: ___________________________________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Teresa Maria Malatian (UNESP/FCHS) 1º Examinador(a): ___________________________________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Karina Anhezini de Araújo (UNESP/FCHS) 2º Examinador(a): ___________________________________________________________________________ Prof. Dr. Júlio César Bentivoglio (UFES) Franca, _____ de _______________________ de 2017. AGRADECIMENTOS Tomando para mim as palavras de Santo Agostinho, “Graças a ti, minha doçura, minha esperança e meu Deus, graças a ti por teus dons; que eles fiquem, porém, sob tua guarda. Assim me guardarás também a mim, e se aumentarão e aperfeiçoarão os dons que me deste, e eu estarei contigo, porque também me deste a existência” (Confissões, livro I, cap. XX). À Prof.ª Teresa Maria Malatian pelas discussões proporcionadas na disciplina que ministrou e pela orientação precisa e paciente. Em sua pessoa estendo meus agradecimentos aos professores da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” que me provocaram positivamente de muitas formas. À CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal Superior) pelo financiamento da pesquisa, de extrema importância para a realização desta. Ao Prof. Wagner da Silva Teixeira por ter instigado o gosto por este objeto, por ter me incentivado a prosseguir em sua investigação e pelo exemplo sempre coerente de professor- historiador. Em sua pessoa estendo meus agradecimentos aos professores da Universidade Federal do Triângulo Mineiro. A primeira parte dessa pesquisa foi feita em simultâneo com minha atividade docente em escolas de ensino fundamental e médio, portanto agradeço a inspiração e o ânimo que me proporcionaram os alunos com os quais ensinei e aprendi. A segunda parte, todavia, foi feita no Seminário Arquidiocesano de Uberaba, de forma que agradeço ao sr. reitor, Pe. Vanderlei Izaumi, e àquele que me incentivou incansavelmente na persecução desse trabalho, meu amigo Pe. Marcelo Lázaro. Estendo também esses agradecimentos aos meus irmãos, pelo convívio fraterno e suporte humano. Finalmente, à minha família: meus pais Pedro e Marilda e meu irmão Artur, sem os quais nada faria sentido. LACERDA, Vitor. O Udenismo e Minas Gerais: sujeitos, processos e culturas políticas (1943- 1966). 2017. 133 f. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2017. RESUMO O presente trabalho pretende compreender o processo de constituição e consolidação da cultura política udenista através de Minas Gerais, de seus sujeitos políticos e dos processos históricos vivenciados no país e neste estado da federação entre os anos de 1943 e 1966, marcos que representam respectivamente o ano de publicação do Manifesto dos Mineiros e da aplicação do Ato Institucional nº. 2 que pôs fim aos partidos políticos até então vigentes, dentre os quais a própria União Democrática Nacional (UDN). Para tanto, foram analisados os Diários da Assembleia e os Diários do Executivo, respectivamente os anais do Poder Legislativo mineiro e do governo estadual bem como entrevistas e memórias de parlamentares do partido situados no recorte temporal estabelecido. Esta proposta foi motivada pela indicação bibliográfica que aponta a centralidade de Minas Gerais na história do partido e pelas referências cruzadas que indicavam a participação de udenistas na realização do Golpe Civil-Militar de 1964 e no fato deste movimento ter sido deflagrado em Minas Gerais. Finalizada a pesquisa, foi possível constatar as relações entre o udenismo e a mineiridade, que teria lhe servido como espécie de vetor e fator de identificação para um setor dentro do partido, denominado de liberais históricos; estabelecer as inter-relações entre o processo histórico nacional e regional a partir de seus sujeitos e suas práticas políticas; e entender o envolvimento de Minas, e, especialmente, dos udenistas, no contexto político imediatamente anterior e posterior ao Golpe Civil-Militar de 1964. Palavras-chave: Cultura política. Udenismo. Mineiridade. LACERDA, Vitor. The udenism and Minas Gerais: subjects, processes and political cultures (1943-1966). 2017. 133 f. Dissertation (MA History) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2017. ABSTRACT The present work intends to understand the process of constitution and consolidation of the udenism as a political culture through Minas Gerais, its political subjects and the historical processes experienced in the country and in this state of the federation between the years of 1943 and 1966, milestones representing respectively the year of the publication os the Manifesto dos Mineiros and of the application of the Institutional Act no. 2 that put an end to the political parties, among them the União Democrática Nacional (UDN). For this purpose, the Diaries of the Assembly and the Executive Diaries were analyzed, respectively the annals of the Legislative Power of Minas Gerais and of the state government, as well as interviews and memoirs of the party's parliamentarians located within the established time frame. This proposal was motivated by the bibliographical indication that points to the centrality of Minas Gerais in the history of the party and by the cross references that indicated the participation of udenistas in the accomplishment of the Civil-Military Coup of 1964 and in the fact that this movement was set off in Minas Gerais. After the research, it was possible to verify the relations between the udenism and the mineirity, which would have served as a kind of vector and identification factor for a sector within the party, called “historical liberals”; to establish the interrelations between the national and regional historical process from its subjects and their political practices; and to understand the involvement of Minas, and especially the udenistas, in the political context immediately before and after the Civil-Military Coup of 1964. Keywords: Political culture. Udenism. Mineirity. LISTA DE TABELAS TABELA 1 – Distribuição dos Constituintes (por partido e região) ..................................... 47 TABELA 2 – Representação Partidária na Assembleia Legislativa de Minas durante a Terceira República (1947-1967) ............................................................................................................ 49 TABELA 3 – Poder Executivo Mineiro durante a Terceira República (1947-1967) ............... 50 TABELA 4 – 1ª Legislatura da ALMG (1947-1951) ............................................................... 53 TABELA 5 – Mesa Diretora da 1ª Legislatura (1947-1951) .................................................... 57 TABELA 6 – Mesa Diretora da 2ª Legislatura (1951-1955) .................................................... 57 TABELA 7 – Mesa Diretora da 3ª Legislatura (1955-1959) .................................................... 58 TABELA 8 – Mesa Diretora da 4ª Legislatura (1959-1963) .................................................... 58 TABELA 9 – Mesa Diretora da 5ª Legislatura (1963-1967) .....................................................58 TABELA 10 – Presidência das Comissões Permanentes da Assembleia de Minas ................. 60 TABELA 11 - 2ª Legislatura da ALMG (1951-1955) .............................................................. 69 TABELA 12 – Eleições Mineiras em 1955 .............................................................................. 86 TABELA 13 - 3ª Legislatura da ALMG (1955-1959) .............................................................. 87 TABELA 14 – 4ª Legislatura da ALMG (1959-1963) ............................................................. 88 TABELA 15 – Proporção Partidária de candidatos beneficiados por recursos da ADEP nas eleições parlamentares (deputados federais e estaduais) de 1962 em Minas ............................ 98 TABELA 16 – 5ª Legislatura da ALMG (1963-1967) ............................................................. 99 TABELA 17 – Relação Partidária dos membros da Ação Democrática Parlamentar (ADP) na Assembleia Legislativa de Minas ........................................................................................... 101 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 10 1. O MANIFESTO DOS MINEIROS: ANTEVISÃO DO UDENISMO ................................ 15 1.2. O udenismo como cultura política ................................................................................. 22 1.3. O Manifesto dos Mineiros: apontamentos historiográficos ........................................... 28 1.4. O Manifesto da Mineiridade: cultura e política ............................................................. 33 2. ENTRECORTES ENTRE MINEIRIDADE E UDENISMO: AÇÕES PARLAMENTARES UDENISTAS NA ASSEMBLEIA DE MINAS ....................................................................... 45 2.1. Reinício das atividades parlamentares: a redemocratização .......................................... 45 2.2. Funcionamento da Assembleia de Minas ...................................................................... 55 2.3. O udenismo nas ações parlamentares estaduais ............................................................. 64 2.4. Da oposição silenciada às vitórias na década de 1960 ................................................... 85 3. DESCE DAS MONTANHAS O GOLPE: A RUPTURA DEMOCRÁTICA ..................... 90 3.1. Projeto de classe da burguesia mineira: o IPES-MG e os “Novos Inconfidentes” ........ 90 3.2. As conspirações para o golpe: Magalhães e IPES-MG ............................................... 102 3.3. Da passividade forçada ao fim: o Ato Institucional n. 2 .............................................. 112 CONCLUSÃO ........................................................................................................................ 124 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................... 127 10 INTRODUÇÃO Esta dissertação tem por objetivo desvelar as relações políticas encontradas nas práticas de sujeitos históricos inseridos na União Democrática Nacional (UDN) durante o período em que vigorou este partido na história nacional buscando suas origens ainda durante o Estado Novo com a publicação do Manifesto dos Mineiros em 1943 até a extinção do sistema partidário então vigente pelo Ato Institucional n. 2 em 1966. Apesar de ora retornar ao Estado Novo e ora avançar nos primeiros anos da Ditadura Militar, o centro da ação política do partido se deu durante o que se denomina Terceira República (1945-1964). Essa nomenclatura parece ser mais adequada por não atribuir juízos imediatos ao período republicano que se pretende definir. Ainda que daí se deduza um critério cronológico que estabelece um determinado juízo sobre fatos da história nacional que teriam sinalizado o começo ou o fim de um novo período, acredita-se que a própria produção historiográfica se encarrega de convencionar essas balizas que lhe guiam o percurso da pesquisa. De forma que, se é possível estabelecer como a Primeira República o período compreendido entre a proclamação da República em 1889 até a Revolução de 1930 e de Segunda República o período imediatamente posterior compreendido entre 1930 e 1945, situa-se a seguir o espaço temporal no qual se localiza o objeto. Esses critérios cronológicos, evidentemente, se pautam pela tentativa de estabelecer algo que confira homogeneidade ao período recortado em relação aos demais, podendo, inclusive, confluir diversos aspectos convergentes. Neste sentido, algumas características da Terceira República são indicativas no esforço de contextualizar o udenismo: a) a vigência do pluripartidarismo nacional, ainda que se possa identificar traços das antigas disputas regionais sobretudo na política estadual e municipal; b) a disputa entre dois projetos políticos antagônicos, isto é, um de caráter liberal-conservador defendido pela UDN e sua expressão como cultura política, o udenismo, e outro de caráter nacional-estatista, hegemônico durante o Estado Novo, e, apesar de confrontado pela experiência democrática iniciada em 1945, ainda capaz de exercer inegável influência nas massas alçadas à categoria de eleitorado; c) as tensões provocadas do cruzamento entre uma experiência democrática que se tentava estabelecer através de um ordenamento jurídico inédito no Estado brasileiro (a Constituição de 1946) conjugada com a progressiva mobilização popular e uma tradição política autoritária identificada, por exemplo, nas tentativas de interrupção institucional em 1950, 1954, 1955, 1961 e definitivamente em 1964; d) e o processo de urbanização e industrialização inserido ora simultaneamente e ora prioritariamente no modelo 11 de substituição de importações ou no desenvolvimento associado com abertura ao capital internacional mediante um cenário que se manteve majoritariamente agrícola ao longo de todo o período – a população urbana somente ultrapassa a rural no Brasil a partir da década de 1970 – através do modelo econômico agrário-exportador1. Nesses termos, busca-se compreender o fenômeno do udenismo como um conjunto de práticas e representações daqueles que compunham, votavam ou simpatizavam com o partido. Estabelece-se igualmente a premissa que o udenismo, mediante a análise bibliográfica sobre o tema e o produto da análise documental, poderia ser entendido como uma cultura política – conceito que possui trajetória histórica própria. Surgido nas ciências políticas norte-americanas nas décadas de 1950 e 1960 e apropriado pela historiografia nas décadas de 1980 e 1990 na academia francesa, diante do fenômeno do “retorno do político” (após a primazia do enfoque cultural, por exemplo), produto de reflexão e mesmo de refinamentos pela historiografia brasileira possibilitando, assim, novos olhares sobre o político. Poder-se-ia definir o conceito de cultura política como: “conjunto de valores, tradições, práticas e representações políticas partilhado por determinado grupo humano, que expressa uma identidade coletiva e fornece leituras comuns do passado, assim como fornece inspiração para projetos políticos direcionados ao futuro2”. Ao se localizar o udenismo em Minas Gerais, é possível estabelecer logo no início da pesquisa a centralidade dos políticos do estado na condução nacional do partido e a existência de algo em sua imagem pública que os destacava no conjunto da classe política e que, segundo se pressupõe, poderia ter sido incorporado à própria imagem do partido. Ao se perceber essa influência da identidade regional na formação da autoimagem do político mineiro, o que se convencionou denominar de mineiridade, estabelece-se um entrecruzamento que fez ser privilegiado como recorte os deputados estaduais mineiros componentes da bancada da UDN na Assembleia de Minas, através da análise de sua produção discursiva e de suas ações parlamentares contidas nos Diários da Assembleia, acervo documental localizado no arquivo histórico da Assembleia Legislativa de Minas, em Belo Horizonte. De forma complementar, recorreu-se também às publicações da Coleção Memória Política de Minas, organizada na década de 1990 pela Assembleia de Minas, com especial enfoque às entrevistas realizadas com ex-parlamentares mineiros da UDN – fossem deputados federais ou estaduais – e a publicações 1 IANNI, Octavio. Estado e Planejamento Econômico no Brasil (1930 – 1970). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. 2 MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Culturas Políticas na História: Novos Estudos. Belo Horizonte: Fino Traço, 2014, p. 21. 12 de membros do partido associados a Minas, sobretudo memórias, biografias e livros de análise política. No primeiro capítulo discutiu-se o processo de crise do Estado Novo a partir dos primeiros anos da década de 1940 buscando identificar os fatores externos e internos que confluíram para o seu fim. Se a 2ª Guerra Mundial e a vitória dos Aliados, com o apoio logístico e militar do Brasil, representou importante fator externo na consolidação da democracia liberal como um paradigma para o Ocidente, internamente uma série de eventos sinalizavam o desgaste do regime inaugurado por Getúlio Vargas em 1937. Desses eventos deu-se particular atenção à publicação, em 1943, do Manifesto dos Mineiros, um documento produzido no seio das elites políticas mineiras, contrárias àquela organização política e clamando pelo que entendiam como democracia. Estabelecido o cenário de crise – fértil contexto para o estabelecimento de novas culturas políticas – se fez mister apresentar e discutir este conceito e sua aplicabilidade ao udenismo. Para tal, a partir do suporte bibliográfico, mostrou-se imprescindível estabelecer os grupos que existiam no interior do partido (os “liberais históricos”, os “realistas” e os “lacerdistas”) e os vetores materiais e simbólicos que permitiram sua sedimentação política. Finalmente, diante da premissa de que uma cultura política não se estabelece isolada de outras culturas políticas, mas que se fundamenta justamente em referência e oposição a outras, se identificou como sendo as subculturas políticas do udenismo o liberalismo, o bacharelismo, o moralismo e o antigetulismo gradualmente agregando a si o anticomunismo. Sobre o Manifesto dos Mineiros, documento central para a compreensão do protagonismo dos mineiros no processo de construção institucional e simbólico do partido, visto que muitos de seus signatários se tornariam fundadores e membros ativos da UDN, buscou-se apresentar um conjunto de produções historiográficas que o apresentasse sobre diferentes pontos de vista. Trata-se do livro de Orlando Cavalcanti denominado Os Insurretos de 1943, cuja publicação se deu em 1945; da transcrição do depoimento de alguns signatários do Manifesto realizado pelo núcleo de História Oral da Fundação Getúlio Vargas / CPDOC realizada em 1981; do verbete escrito por Maria Victoria Benevides para o Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro pós-1930 e publicado em 1984; e finalmente um artigo acadêmico publicado em 2006 por Otávio Dulci denominado O Manifesto dos Mineiros. Esta primeira parte se encerra com a análise do Manifesto dos Mineiros, a partir de apontamentos sobre sua natureza, isto é, o contexto específico de sua produção, o perfil de seus 13 autores e signatários e os objetivos implícitos e explícitos que nele se pode identificar. De seu conteúdo também se procurou entender sua relação com o surgimento do udenismo como cultura política pelo cruzamento com a mineiridade. Inicia-se o segundo capítulo na análise da legislação eleitoral que conduziu o processo político na Terceira República oriunda de um decreto-lei emitido pelo ministro da Justiça do Estado Novo, Agamenon Magalhães, que configurou o sistema partidário em bases nacionais e, pelo sistema de sobras, permitiu que o Partido Social Democrático, organizado a partir dos quadros políticos-burocráticos do Estado Novo e de parcelas significativas das oligarquias regionais, se beneficiasse sobremaneira na sua representação parlamentar na Assembleia Nacional Constituinte. Os trabalhos legislativos que conduziram a confecção da Constituição de 1946 também é objeto de reflexão, com duplo enfoque: as inferências que se pode fazer do perfil dos deputados constituintes considerados por partido e por estado bem como a participação dos deputados udenistas na Constituinte diante da limitação de sua bancada, que convertia a tribuna da Congresso em júri do Estado Novo na medida em que se frustrava com sua incapacidade de pautar por seu “ímpeto liberal” aquela legislação magna. Precede a discussão sobre as eleições estaduais de 1947 e a formação da Primeira Legislatura da Assembleia de Minas a tentativa de estabelecer, ainda durante a Segunda República, as origens dos principais partidos que se formaram em Minas após a redemocratização, a saber: o Partido Social Democrático (PSD), a União Democrática Nacional (UDN), o Partido Republicano (PR) e o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). A vitória de Milton Campos para o governo do estado e a identificação de uma prática político-eleitoral e, posteriormente, na organização de uma maioria parlamentar são indícios importantes dos elementos que caracterizaram o udenismo. Segue-se a apresentação da organização administrativa da Assembleia de Minas, isto é, de seu funcionamento interno bem como a introdução de dois elementos próprios do poder legislativo: a Mesa Diretora, da qual se destaca a Presidência da Assembleia, e as comissões permanentes, importante veículo legislativo que produz os pareceres técnicos para os projetos de lei em tramitação na Assembleia. Demonstrou-se a representatividade partidária nesses espaços e das conclusões advindos foi possível agregar outro fator que ajuda a entender, por exemplo, o bacharelismo e o moralismo udenistas. 14 Aliás, o segundo capítulo se encerra reiterando as subculturas políticas do udenismo e demonstrando, pelas ações parlamentares dos deputados udenistas mineiros, como elas estavam conjugadas em sua ação. Sobre o liberalismo udenista se retoma o trabalho de Benevides (1981) que ilumina suas contradições. Sobre o bacharelismo, aspecto a nosso ver importante na imagem da UDN e de seus membros, se pode distingui-lo na origem – os muitos bacharéis que compunham o partido – e na ação – através de uma retórica emplumada e jurídica. Quanto ao moralismo, foi possível localizar em Minas a sagacidade dos udenistas pela caça dos escândalos de corrupção e a relação deste aspecto com a condição de oposição deferida a UDN pelas sucessivas derrotas eleitorais e pela marca de ter sido repetidamente uma segunda força “impotente” no Congresso Nacional e na Assembleia de Minas. O terceiro e último capítulo, por sua vez, surge do fato do golpe civil-militar de 1964 ter sido deflagrado em Minas, do protagonismo creditado ao então governador udenista do estado, Magalhães Pinto, em sua consecução, e da legitimidade parlamentar que teria sido conferida ao golpe, se não só, sobretudo por parlamentares udenistas dentro e fora de Minas Gerais. Foi incorporada aos sujeitos históricos que influíram neste evento que pôs fim à Terceira República a burguesia nacional e estrangeira com enfoque sobre a insipiente burguesia mineira. Para tal foi indispensável a contribuição da pesquisa realizada por Starling (1986) que indica precisamente a atuação do Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (IPES) na arregimentação do empresariado mineiro e gradualmente sua organização de modo a influir no processo de desgaste e derrubada do presidente João Goulart. Procurou-se confrontar os principais grupos que compõem o que se entende pelo “civil” componente no termo golpe civil-militar, isto é, o capital multinacional-associado e seus interesses de classe para a estrutura econômica do país, a classe político-partidária, motivada por paixões e ambições que lhe são próprias e várias, e setores da sociedade civil, provocados até as últimas consequências em seu anticomunismo. Finalmente segue-se a reorganização do estado nacional após a vitória do golpe e a progressiva frustração dos udenistas que se sentiriam “traídos” pela “Revolução” por conta dos excessos, sobretudo aqueles de natureza jurídico-formal, que caracterizaram este período. Na medida que a euforia se convertia em frustração, levada ao auge com a decretação do fim do sistema pluripartidário pelo Ato Institucional n. 2, alguns udenistas formulam uma autocrítica que pode indicar sua compreensão regressiva dos acontecimentos anteriores e posteriores ao golpe. 15 1. O MANIFESTO DOS MINEIROS: ANTEVISÃO DO UDENISMO A outra mulher, aquela que é tão cara ao Brasil e aos troncos históricos das famílias que construíram a glória e o exemplo dessas montanhas: Minas Gerais. Quando Minas se enfraquece, o Brasil definha. Minas é a união, é a liga inquebrantável que une as fissuras dos Brasis: o do Norte, sertão agreste, e o do Sul. Minas não tem mar, porque o mar é salgado. Minas é doce. Suas águas são as águas da unidade nacional. (José Sarney, discurso de recepção a Affonso Arinos de Melo Franco (filho) na Academia Brasileira de Letras, em 26 nov. 1999). 1.1. A Crise do Estado Novo: o contexto do Manifesto O processo histórico que culminou no fim do Estado Novo e levou o Brasil a partir de 1945 a uma experiência democrática tem sido interpretado de diferentes formas pela historiografia brasileira. Inserido neste processo, interessa especialmente a publicação em 1943 do Manifesto dos Mineiros, que será o ponto de partida para compreender as relações entre o udenismo e a mineiridade. Para tanto, se partirá daquilo que se encontra na bibliografia sobre o período, a conjuntura do processo de redemocratização no qual se inseriu o Manifesto dos Mineiros e a fundação da União Democrática Nacional e nos quais se julga ser possível detectar alguns elementos que se agregariam à cultura política udenista. Parece ser comum indicar que o sinal tomado como ponto de partida para se afirmar o desgaste do Estado Novo – a ditadura instituída pelo presidente Getúlio Vargas desde 1937 com a anuência do Exército – está relacionado à entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial ao lado dos Aliados em 1942. A participação dos soldados brasileiros no conflito que se arrastava na Europa foi ampla e euforicamente noticiada pelos jornais brasileiros, ainda sob a censura do Departamento de Imprensa e Propaganda. De forma que o apoio brasileiro a países com tradição democrática como os Estados Unidos, a França e a Grã-Bretanha justamente contra países assumidamente fascistas como a Alemanha e a Itália instituiu o argumento-comum na bibliografia sobre o período – e mesmo nos livros didáticos em geral – de que esta contradição aparente teria sido o elemento catalisador do desgaste do regime ditatorial. Sobre esse tema 16 afirma Skidmore que “os brasileiros tinham-se dado conta da anomalia de lutar pela democracia no exterior, enquanto persistia uma ditadura em seu próprio país3”. A valorização deste fator externo também aparece em Casalecchi quando este faz parecer inevitável o advento da democracia no Brasil por ocasião da vitória dos Aliados na Segunda Guerra: “Getúlio procura ampliar as suas bases de sustentação e preparar-se para a ‘abertura democrática’, presente a partir do momento em que o Brasil passa a participar da Segunda Guerra contra o fascismo4”. Considera-se impreciso caracterizar conceitualmente o Estado Novo como fascista – nos moldes do fenômeno surgido na Europa – sendo antes este sistema político inaugurado no Brasil em 1937 uma forma de autoritarismo nos termos apresentados por Bobbio: Na tipologia dos sistemas políticos, são chamados de autoritários os regimes que privilegiam a autoridade governamental e diminuem de forma mais ou menos radical o consenso, concentrando o poder político nas mãos de uma só pessoa ou de um só órgão e colocando em posição secundária as instituições representativas. (...) Mas o Autoritarismo não é o totalitarismo fascista; e quando para ele conflui ou dele se torna um simples componente, perde sua natureza mais íntima. Na ideologia fascista, o princípio hierárquico já não é instrumento de ordem, mas instrumento de mobilização total da nação para desenvolver uma luta sem limite contra as outras nações. Neste sentido, no fascismo, a ideologia autoritária cessa e torna-se outra coisa5. Assim, por mais que se possa indicar que era o Estado Novo um regime autoritário sobre o qual o fascismo europeu exerceu certo fascínio, tratavam-se de experiências políticas distintas. Isso, todavia, não impediu que a oposição liberal, procurando descredibilizar o governo de Getúlio Vargas, na medida que a Segunda Guerra caminhava no sentido de uma vitória dos Aliados, se esforçassem para associar o fascismo externamente derrotada com o Estado Novo que pretendiam internamente derrotar. A entrada brasileira no conflito relacionou-se ademais à barganha feita com os norte- americanos que culminou no financiamento por parte destes da Companhia Siderúrgica Nacional e também com a indignação popular causada pelo afundamento de navios mercantes brasileiros por submarinos alemães em 1942. Essa aparente contradição de se lutar contra o fascismo na Europa enquanto se vivia por aqui uma experiência autoritária está aparente tanto na obra de Skidmore, que como americanista possui a tendência de relacionar os 3 SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Getúlio a Castelo. São Paulo: Paz e Terra, 1982, p. 72. 4 CASALECCHI, José Ênio. O Brasil de 1945 ao Golpe Militar. São Paulo: Contexto, 2015, p. 14. 5 BOBBIO, Norberto; MATEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco (orgs.). Dicionário de Política. Coordenação de tradução de João Ferreira. 11 ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998, p. 94 e p. 97. 17 acontecimentos no Brasil àqueles próprios do cenário norte-americano6, como na obra de Arinos, que repete a narrativa já presente no Manifesto dos Mineiros (1943) da inevitabilidade da democracia como advento da vitória aliada na guerra. Como também escreveu Carone: “Pouco a pouco a contradição externa rompe esta estrutura institucional-repressiva. (...) Da neutralidade à participação ativa na guerra o caminho é curto: neste momento é que uma corrente liberal e os comunistas – marginalizados pelo sistema ditatorial – forçam para que a nova opção se torne um fator concreto7”. E Macedo afirma que “apesar das indefinições, uma certeza se confirmava: a ditadura não mais se sustentava. Na conjuntura internacional de derrota do nazismo na Segunda Guerra Mundial, as ideias liberal-democráticas voltaram a ser valorizadas, fato que interferiu diretamente no alinhamento das correntes políticas brasileiras8”. Do ponto de vista global Bobbio diz que “depois da Segunda Guerra Mundial e das consequências que dela derivaram, a ideologia autoritária acha-se frente a um mundo hoje muito estranho para poder lançar raízes profundas. Não faltam regimes autoritários de tipo conservador; mas é difícil que eles encontrem sua justificação numa ideologia autoritária explícita e decisiva9”. É importante destacar que as vitórias das tropas brasileiras na Europa e mesmo dos Aliados em geral não eram apresentadas nos jornais brasileiros sob uma chave de leitura que confrontava a democracia ao fascismo. E não parece que o choque gerado pela participação brasileira no conflito tenha se dado na relação do Estado Novo com as massas. Antes, repercutiu muito mais entre as elites liberais destronadas em 1930 (ou em 1937) no sentido de animá-las ao combate – o que aconteceria por meio do Manifesto dos Mineiros – e nos quadros burocráticos do regime varguista. Sobre o enfraquecimento do pensamento liberal após 1930, Campello Souza diz que “a timidez, portanto, do liberalismo dos anos 30, especialmente o campo que cedeu ao pensamento autoritário na questão dos partidos políticos, é entendida perfeitamente se atentarmos para o fato de viver ele, no contexto brasileiro, as tensões da 6 O autor destaca em várias ocasiões as reações tanto da Secretaria de Estado dos EUA como dos embaixadores norte-americanos em relação aos eventos ocorridos no Brasil. No contexto de decadência do Estado Novo, ele destaca um discurso proferido pelo Embaixador Adolph Berle Jr. sobre sua expectativa de que as eleições marcadas para dezembro de 1945 se concretizassem. Este fato é raramente citado na historiografia brasileira sobre o período. 7 CARONE, Edgard. A Terceira República (1937-1945). São Paulo: Difel, 1976, p. 64. 8 MACEDO, Michelle Reis de. “Trabalhadores sob suspeita: os liberais brasileiros, o movimento queremista e a transição democrática de 1945”. In: FERREIRA, Jorge (org.). As Repúblicas no Brasil: política, sociedade e cultura. Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense, 2010, p. 112. 9 Ibid, p. 97. 18 passagem da política de ‘notáveis’ para a política de massas, da evolução dos partidos meramente representativos de seções da classe dominante e dos estratos altos da sociedade para as grandes organizações partidárias fundadas em interesses socioeconômicos10”. Quanto aos quadros burocráticos estado-novistas, esclarece-nos Capelato que haviam muitos importantes funcionários de tendência germanófila e que “quando o Brasil declarou guerra ao Eixo, os favoráveis ao Eixo foram substituídos do poder 11 ”. As consequências paralelas de uma animação do ideário liberal até então em declínio nas elites opositoras ao regime e de uma mudança incisiva nos quadros governamentais, sobretudo daqueles mais autoritários, permite esclarecer qual foi, de fato, a influência da participação brasileira naquele grande conflito armado. Os fatores internos também parecem obedecer certa homogeneidade na bibliografia existente. Dentre estes, o Manifesto dos Mineiros, publicado em outubro de 1943, destaca-se pelo seu caráter vanguardista. O documento, todavia, é interpretado pela historiografia muito mais em função de seus autores e de sua repercussão do que propriamente de seu conteúdo, cuja análise sistemática não parece ter sido objeto primeiro da análise historiográfica12. De forma que a interpretação geralmente encontrada na historiografia sobre o período é aquela que afirma que o Manifesto dos Mineiros foi o primeiro sinal do desgaste do Estado Novo. Entretanto, é preciso relativizar pontuando que o documento não foi divulgado nem noticiado pela imprensa – ainda sob censura – e que muitos de seus signatários, produtos da “inteligência” mineira, nas palavras de Arinos, foram aposentados ou demitidos como consequência deste sutil enfrentamento. Sua consagração como as “Teses de Abril 13 ” do processo de redemocratização brasileiro parece ter sido antes uma produção propriamente historiográfica. Casalecchi neste sentido é categórico: “A transição do autoritarismo para a democracia tem o seu primeiro grande momento no Manifesto dos Mineiros de outubro de 194314”. Neste mesmo sentido Barros afirma que: “O Manifesto dos Mineiros, por isso mesmo, 10 SOUZA, Maria do Carmo Campello. Estado e Partidos Políticos no Brasil (1930 a 1964). São Paulo: Editora Alfa-Ômega, 1976, p. 65. 11 CAPELATO, Maria Helena. “O Estado Novo: o que trouxe de novo?”. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucília de Almeida Neves (orgs.). O Brasil Republicano, vol.2: O tempo do nacional-estatismo: do início da década de 1930 ao apogeu do Estado Novo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 135. 12 Mais adiante dedicaremos maior atenção aos autores e projetos que escreveram sobre o Manifesto dos Mineiros como objeto de pesquisa. 13 As Teses de Abril foram uma série de diretivas publicadas pelo líder revolucionário russo Vladimir Illitch Lenin em abril de 1917 após seu exílio na Suíça e que é comumente interpretado como instruções programáticas aos bolcheviques e um documento que haveria de influenciar a Revolução Russa em outubro de 1917. Comparativamente, o Manifesto dos Mineiros também é interpretado pela historiografia apresentada como um documento decisivo para o processo de (re)democratização do Brasil em novembro de 1945. 14 Ibid, p. 13. 19 tem sido visto como o primeiro ato efetivo de oposição, ainda que, como tal, relativamente brando15”. A partir do Manifesto a narrativa obedece uma sequência semelhante a um jogo de dominó onde uma peça causa noutra uma reação que se prolonga em cadeia. Em janeiro de 1945 ocorreu o 1º Congresso Brasileiro de Escritores com manifestações de ilustres nomes da literatura brasileira como Manuel Bandeira e Oswald de Andrade contrários à ditatura em que se vivia. Em fevereiro, o candidato derrotado por Getúlio nas eleições indiretas de 1934, José Américo, teve sua entrevista com diversas críticas ao regime publicadas no jornal carioca Correio da Manhã demonstrando um aparente desgaste na capacidade do regime de censura à imprensa. Ao final daquele mesmo mês, Getúlio decretou um Ato Adicional à Carta de 1937 convocando eleições para dezembro daquele mesmo ano. Logo em março, anunciou-se a candidatura do Brigadeiro Eduardo Gomes, líder tenentista na Revolução de 1930 e considerado herói nacional pelo mesmo grupo – agora proporcionalmente maior não só em quantidade, mas também mais regionalmente disperso e com componentes políticos diversos – que em 1943 publicara o Manifesto dos Mineiros. Março também foi marcado pela repressão de manifestações estudantis organizadas principalmente pela União Nacional dos Estudantes favoráveis à redemocratização em várias grandes cidades do país. Em abril de 1945 aconteceram: a) a fundação da União Democrática Nacional16 e o lançamento da candidatura presidencial do Brigadeiro Eduardo Gomes pelo mesmo partido; b) o lançamento da candidatura presidencial do Ministro da Guerra do Estado Novo, General Eurico Gaspar Dutra; c) e a concessão de anistia a todos os presos políticos, dentre os quais o conhecido líder comunista Luís Carlos Prestes. Em maio se deu a fundação do Partido Social Democrático congregando em seu núcleo elementos políticos e administrativos da estrutura ditatorial e também poderosas oligarquias estaduais. Também se realizou neste mês o grandioso comício do Partido Comunista Brasileiro endossando a necessidade do estabelecimento de instituições democráticas no país. 15 BARROS, Orlando de. “O Manifesto dos Mineiros”. In: PENNA, Lincoln de Abreu (org.). Manifestos Políticos do Brasil Contemporâneo. Rio de Janeiro: E-papers, 2008, p. 163. 16 Segundo Benevides (1981) a escolha do nome União Democrática Nacional teria sido sugerida por Caio Prado Júnior, que insistia na escolha do termo “democrática”. Apesar disso, nunca teria feito parte do partido, se restringido a algumas conversas conspiratórias contra o regime ditatorial. 20 Em agosto, a candidatura udenista do Brigadeiro permaneceu dando mostras de vigor e otimismo, bem como uma clara denotação de articulação política anterior ao decreto que convocava eleições, ao publicar sua plataforma de governo – um rascunho do projeto liberal- conservador que estaria incorporado na ação político-parlamentar da UDN. Neste mesmo mês surgiu também, de forma comprovadamente espontânea conforme demonstrada pela historiografia recente17, o movimento popular chamado “queremista” devido ao seu slogan “Queremos Getúlio!”. Tratado pela imprensa favorável à candidatura do Brigadeiro primeiramente como manobra política encenada pelo aparato ditatorial e, após crescer em proporção, como sinal da efetividade da propaganda sobre as classes trabalhadoras, o movimento sofreu todo tipo de descrédito e foi explicado até recentemente sob o signo do populismo18. Em 3 de outubro ocorreu o maior comício queremista, que passara a receber da parte do presidente cessante reação dúbia que incomodava as elites liberais: Getúlio não estimulava diretamente o movimento, mas também não se esforçava em fazê-lo terminar. Os acontecimentos que se seguiram ao 3 de outubro são interpretados pela bibliografia mais ortodoxa, corroborado sobretudo por testemunhos das elites liberais, como uma possível tentativa do ditador de aplicar o mesmo golpe que dera em 1937 em reverso, isto é, de agora conduzir ele próprio o processo de redemocratização por cima de seus opositores. Em 10 de outubro publicou um decreto adiantando as eleições municipais e estaduais para o mesmo dia das eleições presidenciais. Esse gesto ousado foi interpretado pela oposição como uma tentativa de manipular o resultado eleitoral a favor dos candidatos do Presidente que, por contarem com a máquina pública, estariam em vantagem. A gota d’água, todavia, seria a nomeação de Benjamin Vargas, irmão de Getúlio, como Chefe de Polícia do Distrito Federal. Tratava-se, na visão das elites, claramente de uma tentativa de Vargas de forçar seu controle sobre o processo eleitoral corrente. O que se seguiu daí foi a comprovação da tese de Campello Souza de que o Exército substituiria o papel que no Império fora do Poder Moderador e que na Primeira República coubera aos grandes estados da federação, isto é, de árbitro político nos 17 FERREIRA, Jorge. “A democratização de 1945 e o movimento queremista”. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucília de Almeida Neves (orgs.). O Brasil Republicano, vol.3: O tempo da experiência democrática: da democratização de 1945 ao golpe civil-militar de 1964. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. 18 Enquanto uma considerável parte da historiografia utilizou-se do conceito de populismo para explicar as relações políticas do período a bibliografia marxista compreendeu o queremismo e o apoio da classe trabalhadora ao Ditador como uma incompletude da formação da consciência de classe pelos trabalhadores naquele momento histórico. Outro grupo encabeçado dentre outros por Jorge Ferreira procurou delinear as relações de reciprocidade simbólicas e materiais estabelecidas entre o trabalhismo estado-novista personalizado em Vargas e a classe trabalhadora de forma a entender esse fenômeno e consequentemente o evento denominado “queremismo”. 21 momentos de crise institucional. Em 29 de outubro de 1945 o Presidente Getúlio Vargas foi deposto pelo Exército e o governo foi, conforme defendia a UDN, entregue ao Poder Judiciário na pessoa do Presidente do Supremo Tribunal Federal, José Linhares – que formou, em seu curto governo de um mês, um ministério majoritariamente udenista. Menos de um ano depois, a Assembleia Nacional Constituinte aprovaria a Constituição de 1946. Curiosamente, é frequente um vácuo de acontecimentos entre a publicação do Manifesto dos Mineiros em 1943 e o Congresso Brasileiro de Escritores em janeiro de 1945 nesta cronologia sobre a transição democrática. Uma exceção notória a essa constatação é a obra de Arinos que demonstra a movimentação que vinha sendo feita nos bastidores no sentido de articular um grupo político de oposição à ditadura. Referindo-se ao ano de 1944 diz que “Em carta a Nelson de Melo, participante da luta na Itália, Virgílio [de Melo Franco, irmão mais velho do autor] informa: ‘O Juarez, o Prado Kelly e eu, aqui no Rio, e o Juraci e o Ari Parreiras no Norte, depois de repetidas investidas, acabamos vencendo a resistência do Eduardo [Gomes], o qual nos permitiu lançar a sua candidatura, nos domínios do nosso underground19”. Esta narrativa compõe o que se poderia chamar de ortodoxia sobre o processo de redemocratização no Brasil. Evidentemente que variam alguns detalhes20, mas se pode apontar que estes fatos são uma constante na bibliografia consultada que, por sua vez, destaca-se pelo protagonismo que confere às elites liberais que ao final aparentam surgir vencedoras contra todas as artimanhas de que dispusera Getúlio. Em oposição a esta vertente temos outra que procura relativizar esse constructo narrativo e centralizar a interpretação num processo que foi pautado pela disputa entre dois projetos políticos: o liberal, capitaneado pela UDN, e o trabalhista, ainda sob o protótipo do movimento queremista. Macedo pronuncia-se afirmando que “ para elas [as elites], a transição para a democracia deveria ser negociada pelo alto, com a saída da elite do Estado Novo e a entrada de uma outra, a da UDN, no controle do Estado. O novo sistema a ser implantado deveria se basear nos preceitos do liberalismo clássico, sobretudo no tocante aos direitos civis e políticos, com as devidas limitações à participação popular. Mas o queremismo impediu que a transição democrática fosse um mero acordo entre elites. Em pleno momento de crise da 19 QUADROS, Jânio; ARINSO, Afonso (org.). História do Povo Brasileiro vol. 6. São Paulo: J. Quadros Editores Culturais S. A., 1968, p. 89. 20 Dentre esses detalhes que surgem ocasionalmente nesta bibliografia, mas não constitui elemento comum, destacamos a ação da Sociedade Amigos da América e a visita de um enviado diplomático pelo Estados Unidos pressionando o retorno do Brasil à normalidade democrática após a Conferência de Ialta em fevereiro de 1945. 22 ditadura, trabalhadores e populares reivindicavam a permanência do ditador no poder21. Finalmente, buscou-se apresentar o processo de redemocratização a partir da leitura de uma parcela da historiografia de forma a estreitar dois acontecimentos que estiveram diretamente relacionados e que serão analisados ainda neste capítulo: a publicação do Manifesto dos Mineiros (1943) e a fundação da União Democrática Nacional (1945). 1.2. O udenismo como cultura política Se fosse considerado que a história dita científica foi um fruto do século XIX, pelo desenvolvimento de um arcabouço teórico-metodológico e pelo próprio espírito científico que marcou aquele século, destaca notar que se tornou científica tendo como objeto privilegiado o Estado-Nação, substituto imediato de uma história régia que até então gozava desta posição. De forma que se convencionou chamar de história política todo um conjunto de produção historiográfica que foi marcada direta ou indiretamente pelo Estado que se pretendia explicar. Este protagonismo foi colocado em cheque a partir do que Burke22 sacramentou, não sem certo exagero, como sendo a “Revolução Francesa” da historiografia, isto é, o advento da École des Annales no pós-guerra. Nas últimas décadas, entretanto, a história política tem passado por intenso processo de revigoramento de seus instrumentais após este período de descrédito imposto pela forte inserção da história cultural, social e econômica na escrita da história. Todo este processo foi analisado na obra organizada pelo historiador francês René Rémond (publicada na França em 1988 e traduzida para o português em 1996). Ele afirma que “era provavelmente inevitável que o desenvolvimento da história econômica ou social se fizesse às custas do declínio da história dos fatos políticos, daí em diante lançada num descrédito aparentemente definitivo23”. Mas isso haveria de mudar também, em certa medida, com a rediscussão por uma parte da historiografia francesa do conceito de cultura política, tornando-o mais plausível enquanto referencial teórico e reforçando a crítica aos seus principais pontos fracos, percebidos em sua elaboração original 21 Ibid, p. 128. 22 BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929-1989): a Revolução Francesa da Historiografia. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997. 23 RÉMOND, René. Por uma História Política. Rio de Janeiro: FGV Editora, 1996, p. 14. 23 pelas ciências sociais norte-americanas, e apontados por Berstein como sendo “a ideia de que existiria uma cultura política nacional de cada povo” e “o pressuposto de uma hierarquia destas culturas políticas nacionais24”. Mas tudo leva a crer que a crise da história política passou. Isto porque se dispôs a rediscutir sua metodologia e seus objetos de modo a atender uma demanda acadêmica e social diferente daquela na qual esteve mergulhada anteriormente. A academia francesa teve importante destaque na missão de repensar os desígnios do político na história, ao reforçar o diálogo com as outras áreas do conhecimento, tomando-lhes de empréstimo métodos, conceitos, vocabulários, problemáticas, fontes, etc. O refinamento conceitual do que seria o conceito da cultura política e de suas utilidades para a ciência histórica insere-se neste processo. O historiador francês Serge Berstein foi um dos responsáveis pela apresentação teórica e introdução às possibilidades historiográficas advindas do estudo de culturas políticas. Afirma que “se a cultura política responde melhor à sua expectativa é porque ela é, precisamente, não uma chave universal que abre todas as portas, mas um fenômeno de múltiplos parâmetros, que não leva a uma explicação unívoca, mas permite adaptar-se à complexidade dos comportamentos humanos25”. Parte-se inicialmente da concepção de que o udenismo se apresenta como uma cultura política nos moldes referidos por Berstein, isto é, de algo que “se inscreve no quadro das normas e dos valores que determinam a representação que uma sociedade faz de si mesma, do seu passado, do seu futuro26”. Preocupando em fazer a caracterização dessa representação, recorre- se a Benevides e seu trabalho referencial sobre a União Democrática Nacional e sua trajetória política, que contribuiu ao enumerar através de sua análise empírica aspectos variados do que constituiria os elementos centrais do udenismo. Na progenitura do partido ela percebe os diversos grupos políticos – liberais autênticos, oligarquias destronadas em 30, dissidentes do Estado Novo, esquerdas – que se alinharam ao final do Estado Novo formando uma frente ampla, determinada a pôr fim ao governo autoritário de Vargas e que, depois de alcançado o objetivo comum, daria origem até mesmo a antagonismos políticos, como foi o caso da Esquerda Democrática, primeira dissidência deste grupo amplo e heterogêneo que formou a espinha dorsal da União Democrática Nacional. 24 BERSTEIN, Serge. “A Cultura Política” In: RIOUX, Jean-Pierre; SIRINELLI, Jean-François (org.). Para uma História Cultural. Lisboa: Editorial Estampa, 1998, p. 353. 25 Ibid, p. 350. 26 Ibid, p. 353. 24 Enquanto força política institucionalizada na forma de um partido que congrega sujeitos distintos e cria subgrupos internos com prioridades e formas de atuação próprias, a autora também foi capaz de listar com propriedade os diversos subgrupos que coexistiam (não necessariamente todos num mesmo período histórico) dentro do partido: 1) a “Banda de Música” e sua raivosa bancada no Congresso, disposta sempre a fazer oposição através de seus ensaiados discursos, na obstrução de votações e por meio de denúncias sobre supostas corrupções governamentais (este grupo surgiu a partir de 1950, por meio da oposição ao governo eleito de Getúlio); 2) a “Bossa Nova”, caracterizada por uma maior simpatia a algumas pautas à esquerda, e que congregava tanto membros de uma geração mais jovem dentro do partido que não viveram a Primeira República quanto aqueles que admitiam bandeiras mais progressistas (este grupo ganhou força a partir da década de 1960); 3) os “Chapas Brancas” que representavam o grupo mais fisiológico; 4) o “Clube da Lanterna” que se confunde com o próprio “lacerdismo” pela liderança exercida por Carlos Lacerda, deputado e governador da Guanabara pela UDN e proprietário do periódico “A Tribuna da Imprensa, e que pretendia a aproximação de autoridades udenistas, proprietários de grandes veículos de comunicação reunidos na Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e militares vinculados sobretudo à Aeronáutica; e 5) os “liberais históricos”, ilustres fundadores do partido tais como Milton Campos, Afonso Arinos e Virgílio de Melo Franco – conjunto que contava com uma presença numerosa de mineiros alguns dos quais signatários do Manifesto e que, portanto, merece um enfoque especial. Quanto ao udenismo em Minas Gerais, é preciso compreender a força do Manifesto dos Mineiros (1943) enquanto instrumentalização de uma cultura política insipiente e que ainda não passara por um processo de apropriação pela sociedade, mas que surgia num momento de crise institucional do Estado Novo, o que segundo Berstein trata-se da conjuntura mais fértil para o surgimento de uma nova cultura política, isto é, a crise. Este autor afirma: “O nascimento das culturas políticas não se deve ao acaso nem à contingência. Elas surgem em resposta aos problemas fundamentais enfrentados pela sociedade em que elas emergem e para os quais apresentam soluções globais. Assim é que as vemos surgir durante as grandes crises que afetam o grupo27”. Para além disso, o udenismo dispôs de variados vetores que puderam catalisar o processo de difusão dessa cultura política em formação no espírito dos indivíduos e grupos da 27 BERSTEIN, Serge. “Culturas Políticas e Historiografia”. In: AZEVEDO, Cecília et. alli, (orgs.). Cultura política, memória e historiografia. Rio de Janeiro: FGV, 2009, p. 38. 25 sociedade: dispunha do apoio de amplos setores das Forças Armadas (principalmente da Aeronáutica por conta da figura heroica do Brigadeiro Eduardo Gomes) sobretudo por seu apelo ao resgate dos valores tenentistas da “Revolução de 1930”, de amplos setores da imprensa (como o Estado de S. Paulo28, em São Paulo, a Tribuna da Imprensa, no Rio, ou o Correio do Dia em Minas), e de grupos importantes da sociedade civil que se identificavam tanto com a imagem quanto com o projeto liberal-conservador que o partido inspirava – principalmente setores conservadores nas classes médias e no campo29. Quanto à espinha dorsal do que constituía a prática política do udenismo, elenca-se o liberalismo, o bacharelismo, o moralismo e o antigetulismo. Entende-se o liberalismo como um de seus componentes principais e que, segundo Benevides, se tratava de um “liberalismo econômico professado no antiestatismo, paralelo ao liberalismo político negado na exclusão da participação popular e traído no golpismo de inspiração elitista e militarista30”. Assim, ao invés de se preocupar com o estudo do liberalismo em si, a autora se propôs muito mais a entender o liberalismo da UDN, de modo a evitar, ainda segundo ela, um “purismo estéril”. O antiestatismo, isto é, a crença de que a solução para os problemas estaria, por via de regra, naquilo que os liberais chamam de mercado ou de setor privado, marcou a política econômica udenista com traços claros desde o Manifesto dos Mineiros. Neste ponto, o confronto com o projeto varguista de desenvolvimento econômico tendo por principal agente o Estado, aconteceria durante toda a Terceira República. Exemplo disso são os embates no Congresso sobre como deveria se dar a exploração do petróleo brasileiro, o que dividiu opiniões e culminou na Campanha do Petróleo é Nosso e na criação de uma empresa estatal – a Petrobrás – com monopólio sobre esta exploração. Assim, ainda que Benevides defenda que não se pode dizer com clareza qual era o projeto econômico da UDN, ela concorda em dizer que, por conta da ação política dos udenistas mais atuantes, e pela oposição quase natural a praticamente tudo que estava vinculado a Vargas, criou-se uma clara concepção antiestatista dentro da UDN. Dando prosseguimento, o bacharelismo e o moralismo foram práticas políticas permanentemente reelaboradas no decorrer da Terceira República por conta dos anos sucessivos em que o partido esteve condicionado à oposição parlamentar como também pelo estigma de ser um dos três maiores partidos representados no Poder Legislativo mas incapaz de 28 Conforme aponta Benevides (1981, p. 229) “segundo a revista Visão (9/8/76), ‘pouco antes da Revolução (de 64), Herbert Levy defendia o lançamento de um jornal do partido e era combatido pelos que diziam que a UDN já tinha um jornal, o Estado. ‘Essa opinião é errada’, argumentou Herbert Levy, ‘o Estado é que tem um partido, a UDN”. 29 “O partido com a cabeça na cidade e o corpo no campo”. Afonso Arinos de Melo Franco. 30 Ibid., p. 149. 26 legislar sozinho, seja por conta das sucessivas coligações PSD-PTB, seja por suas posições intransigentes. A formulação de discursos longos e bem construídos retoricamente seria o modo encontrado por parte dos deputados e vereadores udenistas no Brasil para, mesmo diante de bancadas majoritárias às suas, tentarem emplacar uma vitória numa votação importante ou numa moção polêmica. A alcunha recebida pela UDN pela opinião pública – o “Partido da Eterna Vigilância” – por ter como mote que “o preço da liberdade é a eterna vigilância”, também serve de indício para sua postura moralista, que para além de ter sido formada pela trajetória na oposição (a quem sempre coube denunciar escândalos de corrupção e de desonestidade na administração pública), também servia como mecanismo eleitoral ao desqualificar os adversários e associar-se a uma espécie de puritanismo administrativo. Assim, é possível indicar a convicção de que, ainda que o bacharelismo e o moralismo compusessem, ao lado do liberalismo, “a vulgata ideológica, tal como é expressa através da cultura política, (...) o núcleo duro da coesão das formações políticas, aquele que garante solidamente, para além dos acontecimentos conjunturais e dos acasos do quotidiano, a perenidade dos partidos31”, como afirma Berstein, essas subculturas políticas se distinguiam em seu processo de incorporação e automatização política por parte dos sujeitos que as punham em prática através do exercício do poder. O termo “subculturas políticas” aparece primeiramente nos cientistas políticos norte- americanos Almond e Verba32 como artifício para enquadrar casos em que mais de uma cultura política coexistiam no mesmo espaço nacional; isso porque pensavam o conceito circunscrito na nação (alemão, inglês, francês, etc). Apesar de contestados, como discutido anteriormente, pela parcela da historiografia francesa que rediscutiu o conceito a partir da teoria-metodologia da História, o termo “subculturas políticas” subsiste se não como agente de hierarquização certamente pela sua capacidade de categorização. Assim, quando se faz a referência às subculturas políticas do udenismo, não se entende que estejam condicionadas ou subordinadas ao udenismo mas, de outra forma, que participam e agregam-se nele. O liberalismo serviu para o udenismo como um norteador e um formador de posições nos temas mais variados, ainda que muitas vezes fugissem do interesse direto do agente político que detinha o poder ou dos interesses que ele representava. O liberalismo, para muitos desses sujeitos, enquanto discurso que numa relação dialética se converte em ação, foi automatizado 31 Ibid., p. 91. 32 ALMOND, Gabriel; VERBA, Sidney. The Civic Culture. Political attitudes and democracy in five nations. Princeton: Princeton University Press, 1963. 27 em sua práxis política a partir da UDN. Os limites desse liberalismo seriam sua permanente postura golpista, contestatória e de receios quanto à participação popular, o que nos leva a crer que se tratava, portanto, de um liberalismo restrito. O bacharelismo, por sua vez, já compunha, mesmo antes do udenismo, a cultura política desses sujeitos que a partir da redemocratização se voltaram ao udenismo, por representar, tradicionalmente, uma cultura política vinculada a um grupo de notáveis e/ou das elites. E o moralismo foi quase que uma postura sintomática à condição de partido relegado à oposição e que via as novas formas de enriquecimento, como já discutimos, com desconfiança e excessivo pudor. Quanto ao conceito de cultura política, é preciso cuidado com as categorizações ou associações simplistas entre práticas percebidas e os mais diversos “ismos”. Partiu-se da concepção de que qualquer cultura política é fruto de seu próprio tempo histórico e que se constitui a partir da congregação de velhas culturas e de novas propostas e que, por isso mesmo, não pode ser percebida enquanto prática como uma faceta única para se entender o comportamento político. Quando Berstein discute a necessidade de que se deflagre, num determinado contexto histórico, uma crise para que a partir das reações a ela possa se criar certa cultura política, logo se percebe que toda cultura política surge marcada por limites históricos que a caracterizam profundamente. Uma vez surgida perante o confronto com o Estado Novo e aquele que o personalizava, Getúlio Vargas, a UDN se marcou por ser profundamente anti- getulista e anticomunista – por conta da própria conjuntura externa marcada pela Guerra Fria, mas também graças à crescente radicalização política que se pode verificar no decorrer da Terceira República. Para a UDN, talvez mais do que para qualquer outro partido que tenha existido naquele período, assumir uma postura “anti” possuía múltiplos significados visto que tendo se “especializado” em fazer oposição, parte de sua própria afirmação e identidade como partido dependia diretamente daquilo a que se opunha. Acredita-se que o desaparecimento do partido e do que seria uma cultura política udenista, em grande medida se deu, não apenas porque o fim do regime de constitucionalidade democrática impôs obstáculos intransponíveis para sua existência, mas igualmente pelo fato de que a “Revolução Redentora de 1964” enfrentou definitivamente, e por meios violentos, a ameaça daquilo que a UDN mais combatia no momento: o comunismo. Se se compara a UDN a uma banda, aquilo a que ela se opunha era sua outra parte constitutiva e formadora, o público. O golpe de 1964 esvaziara todas as plateias de modo que a banda foi paulatinamente perdendo sua razão de ser. 28 1.3. O Manifesto dos Mineiros: apontamentos historiográficos O Manifesto dos Mineiros, documento produzido no seio das elites políticas mineiras e publicado em outubro de 1943, teve uma repercussão limitada a um círculo bacharelesco por conta da perseguição perpetrada pelo Estado Novo o que acabou por contribuir com sua divulgação e que possibilitou um discurso no qual muitos de seus signatários se converteram em “mártires da liberdade” ou em “novos inconfidentes”. Sua importância é citada indiretamente em muitas obras que tratam deste período histórico e, conforme apresentou-se anteriormente, seu locus na narrativa historiográfica do período encontra certa uniformidade. Assim, se pode destacar algumas publicações que tem o Manifesto dos Mineiros como objeto central e buscar compreender em cada uma delas especificidades que auxiliam esta análise. Trata-se do livro de Orlando Cavalcanti33 denominado Os Insurretos de 1943, cuja publicação se deu em 1945; da transcrição do depoimento de alguns signatários do Manifesto realizado pelo núcleo de História Oral da Fundação Getúlio Vargas / CPDOC34 realizada em 1981; do verbete escrito por Maria Victoria Benevides 35 para o Dicionário Histórico- Biográfico Brasileiro pós-1930 e publicado em 1984; e finalmente um artigo acadêmico publicado em 2006 por Otávio Dulci36 denominado O Manifesto dos Mineiros. Buscar-se-á uma análise pormenorizada de cada um destes textos seguido de uma síntese que possa introduzir outra discussão posterior sobre o Manifesto em si. O momento de publicação d’Os Insurretos de 1943 é categórico: 1945. Em meio ao turbilhão dos acontecimentos políticos que desencadeariam nas eleições de dezembro daquele mesmo ano, o jornalista Orlando Cavalcanti escreveu este memorial sobre o Manifesto dos Mineiros com objetivos abertamente eleitorais. O texto é muito mais parecido com uma ode à bravura daqueles que enfrentaram tão “perversa” Ditadura do que propriamente uma análise “neutra” como parecem acreditar ser possível os jornalistas. De forma que sua estrutura narrativa é cautelosamente construída: partindo da exaltação da inteligência e bravura dos signatários, muitos dos quais já se apresentavam como candidatos à Câmara dos Deputados naquele ano, e consequentemente da Assembleia Nacional Constituinte; passando pelos 33 CAVALCANTI, Orlando. Os Insurretos de 1943. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. 34 MANIFESTO DOS MINEIROS. Transcrição do depoimento de seus signatários. Rio de Janeiro: FGV/CPDOC-História Oral, 1981. 35 BENEVIDES, Maria Victória de Mesquita. “Manifesto dos Mineiros”. In: ABREU, Alzira Alves De, e outros (coord.). Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro pós-1930. Rio de Janeiro: CPDOC/FGV, 1984. 36 DULCI, Otávio Soares. “O Manifesto dos Mineiros”. In: Revista Nossa História. Ano 3, n. 30, abril 2006, Ed. Vera Cruz. 29 argumentos contra o “regime discricionário” de Vargas, nenhum dos quais posto sob contestação, mas devidamente corroborados na medida em que a própria narrativa os automatizava como naturais; compondo, dentre todos os autores analisados que tratam direta ou indiretamente do Manifesto e seus signatários, a mais criteriosa descrição das perseguições sofridas por aqueles que enfrentaram o Estado Novo, discorrendo sobre as demissões dos que trabalhavam em empresas privadas com contratos com o governo e das aposentadorias sumárias para os que eram funcionários públicos; conclui finalmente tão elegante prosa com arremate certeiro, isto é, de que a vitória do Brigadeiro Eduardo Gomes seria a consagração daqueles “insurretos” de 1943. Para isso, conclamava seus leitores: Digamos, pois, no limiar da campanha redentora, em meio à claridade que começa, como o depositário de nossas esperanças de hoje, como o vanguardeiro de nossos anseios republicanos, aquele bravo Tenente do Forte, ao tombar ferido na tarde histórica de 1922: PARA A FRENTE! PARA A FRENTE! PARA A FRENTE! 37 Este primeiro relato dos acontecimentos relativos à publicação do Manifesto dos Mineiros tem, evidentemente, valor muito mais por seu caráter informativo-descritivo do que propriamente por uma análise teórico-metodológica do documento. Todavia, para além de informar a respeito de vários detalhes factuais, como as perseguições sofridas por muitos signatários, o que não poderia ser encontrado em documentos oficiais do Estado Novo, também corrobora o argumento comum na historiografia do período a respeito do apoio generalizado que a campanha udenista de Eduardo Gomes recebeu de jornalistas e da imprensa, o que criava, em todos, uma clara – e depois comprovadamente falsa – expectativa de vitória. As entrevistas realizadas pelo Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas (FGV) se inserem no contexto da pesquisa "Trajetória e Desempenho das Elites Políticas Brasileiras", parte integrante do projeto institucional do Programa de História Oral, em vigência desde sua criação, em 1975. Faz parte de uma série de entrevistas com os signatários do Manifesto dos Mineiros, realizadas em 1977 sob a coordenação da pesquisadora Lúcia Hippolito. Por ocasião deste projeto foram entrevistados dezessete signatários do Manifesto. Foram eles: Afonso Arinos de Melo e Franco, Alberto Deodato, Aluisio Ferreira de Sales, Antônio Carlos Vieira Christo, Antônio Neder, Augusto Couto, Caio Mário da Silva Pereira, Carlos Horta Pereira, Dario Almeida Magalhães, 37 Ibid, p. 68. 30 Francisco de Assis Magalhães Gomes, João Evangelista do Amaral Castro, João Frazen de Lima, José Bonifácio Lafayette de Andrada, José de Magalhães Pinto, Paulo Pinheiro Chagas, Pedro da Silva Nava e Sílvio Barbosa. Como é próprio das transcrições de entrevistas num direcionamento metodológico voltado para a utilização de relatos orais, elementos pessoais estão presentes na maioria das entrevistas, como as lembranças da cidade natal e o início na vida pública. Todavia, foi possível captar, para além das particularidades de cada um dos entrevistados, alguns elementos que parecem comuns dentro de uma análise do conjunto das entrevistas. Neste sentido, pareceu interessante que aqueles mineiros, trinta e quatro anos após a publicação do Manifesto, em plena Ditadura Militar, fizessem questão de reforçar a ausência de militares no conjunto dos noventa e dois signatários. Compreende-se que isso poderia indicar, como afirmam os próprios entrevistados, a preocupação que muitos tinham na época de redação e publicação do documento de garantir-lhe caráter legalista, pois interpretavam que o envolvimento de oficiais das Forças Armadas poderia comprometer seu caráter democrático. Para além disso, e como indicam os manuais sobre a utilização de fontes orais, o produtor de uma narrativa memorialística por mais que se esforce em recriar elementos do passado, tem como ponto principal de referência o presente de onde profere tal enunciação. Desta forma, parece também que a insistência de vários entrevistados em apontar o não-envolvimento dos militares no lançamento do Manifesto – ou mesmo de tornar este detalhe um elemento comum – indicaria uma resistência desses “udenistas históricos” duplamente traídos pela Revolução de 1930 e pela “Revolução de 1964” em macular “a vocação democrática e liberal dos mineiros” (outra opinião que se faz constante) com a participação de setores militares. Para isso, julga-se que em 1977 já se realizara um processo de reelaboração da imagem desses setores no seio dessas elites políticas mineiras do passado. Outro fator comum na fala dos entrevistados foi aquele que reforçava seus vínculos identitários regionais ao afirmarem que o Manifesto teria sido um produto de uma vocação histórica do liberalismo mineiro. O sociólogo Otávio Dulci ao refletir sobre a identidade mineira – também apresentada como mineiridade – em sua relação com a prática política que lhe estaria conjugada, diz que “mais importante é salientar que essa imagem é cultivada, em primeiro lugar, pela própria elite política de Minas. Esta se vê como portadora de tais atributos, difunde 31 sua autoimagem e elabora formulações a respeito38”. A força dessa identidade regional tantos anos após a publicação do documento revela simultaneamente o valor desse elemento regional na sua composição original, visto ter sido destacado por seus signatários mesmo tantos anos passados de sua publicação, e também qual era a representação que essas elites faziam de si mesmas tanto no momento em que o Manifesto foi escrito como posteriormente no momento de realização das entrevistas. Essa autoimagem parece ser exatamente aquela que reforçava o papel histórico que tiveram na condução do Brasil rumo a uma democracia liberal – ainda que posteriormente este esforço teria sido confrontado com o trabalhismo a tal ponto que a ruptura democrática se tornou a saída possível compreendida por aquelas elites para ascender ao poder. Uma informação valiosa que os depoimentos indiretamente permitem deduzir infere que teria sido Virgílio de Melo Franco o grande entusiasta e possível redator de ao menos uma parte do documento. A entrevista de Pedro Nava39, médico e escritor, para além de mostrar esse protagonismo de Virgílio que ora se encontrava no Rio e ora em Belo Horizonte angariando assinaturas para o Manifesto e fazendo sua divulgação, permite também entender o porquê de ter sido compreendido pela historiografia do período muito em função de quem e quando foi escrito do que propriamente do que é dito no texto: Pedro da Silva Nava: Não tive nenhum conhecimento de negociação para a elaboração do Manifesto dos Mineiros. Quando tive conhecimento, ele já estava pronto na sua versão definitiva, e o conhecimento veio por intermédio de Virgílio de Melo Franco, que me chamou ao Banco Alemão Transatlântico dizendo que precisava falar comigo. Eu era extremamente ligado a ele, muito amigo, e fui imediatamente. Ele disse: “Tenho um papel para você ler”. Li mal-e-mal e assinei imediatamente. A leitura razoável, bem-feita e detalhada que fiz do Manifesto foi depois de tê-lo assinado40. O verbete de Benevides, por sua vez, realiza uma análise metodológica do Manifesto por meio do estudo de seus antecedentes, de suas motivações, de suas consequências, da trajetória política de seus signatários e finalmente de seu conteúdo ideológico. Dentro desses 38 DULCI, Otavio Soares. “As elites mineiras e a conciliação: a mineiridade como ideologia”. In: Ciências Sociais Hoje (1984). São Paulo: Cortez, 1984, p. 13. 39 “Trabalhou na secretaria de saúde e assistência do estado de Minas Gerais (1921); membro da Academia Brasileira de História das Ciências; membro do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais; membro honorário e membro correspondente de diversas associações médicas francesas e portuguesas; membro titular da Academia Nacional de Medicina (1957); estagiário no Instituto Português de Reumatologia (1958);membro honorário da Societé Nationale Française de Médicine Physique; estagiário nos hospitais Lariboisière, Ténon, Pitiè de Paris (1958); membro honorário da Sociedade Chilena de Reumatologia; chefe de clínica médica da Policlínica Geral do Rio de Janeiro (1961).” (Cf. CPDOC / FGV) 40 MANIFESTO DOS MINEIROS. Transcrição do depoimento de seus signatários. Rio de Janeiro: FGV/CPDOC-História Oral, 1981, p. 239 32 princípios, reconhece que a despeito do teor brando do documento, sua importância se dá naquele contexto histórico por conta de quatro pontos: 1) por ter sido a primeira manifestação coletiva e organizada de uma parcela das elites brasileiras contra o Estado Novo; 2) pelo seu caráter regional, por ser um documento produzido exclusivamente por mineiros, o que segundo a autora reforçaria a tese de que os regionalismos ainda perduravam no Brasil (aqui acrescenta- se também o caráter regional do próprio teor do texto, que reproduz em seu corpo a própria mineiridade); 3) a repercussão gerada pelas perseguições do governo ditatorial a muitos signatários, contribuindo para o desgaste do Estado Novo; e 4) sobretudo na articulação dos sujeitos políticos que participariam do movimento de redemocratização em 1945 e na fundação da União Democrática Nacional. O artigo produzido por Dulci contribui à literatura sobre o Manifesto na medida em que o compreende como uma antevisão do projeto liberal de democracia que se imporia a partir da deposição de Vargas e sobretudo com a promulgação da Constituição de 1946. Com esta chave de leitura, isto é, de projetos de democracia que entrariam em disputa a partir de 1945, o autor relembra as disputas em torno da celebração do centenário em 1942: deveria celebrar-se a vitória de Caxias sobre a Revolta Liberal de 1842 – como propôs o Estado Novo – ou a revolta em si, como pretendiam as elites liberais mineiras que haveriam de relembrar este evento e seus personagens no decorrer do próprio Manifesto? Se a conquista da democracia liberal significava a legitimação da vocação política dessas elites rumo a um direcionamento político-econômico para o Brasil em que estariam asseguradas as liberdades individuais e no qual o Estado seria um coadjuvante da condução econômica; o trabalhismo varguista cada vez mais se impunha como um contraponto que incluía as massas através de amplas políticas públicas e concessões simbólicas (como a carteira de trabalho e as celebrações do 1º de maio). Pode-se concluir afirmando que, nos aspectos gerais, portanto, uma parte da bibliografia específica sobre o Manifesto dos Mineiros corrobora a visão também presente em produções historiográficas mais amplas quanto ao papel histórico do documento no processo de redemocratização. Todavia, não se questiona, por exemplo, ter se tratado de um documento produzido no âmbito das elites intelectuais e políticas de Minas Gerais ou de sua importância como articulador de um núcleo político de oposição e conspiração ao Estado Novo que culminou em 1945 no lançamento da campanha presidencial do Brigadeiro Eduardo Gomes e na articulação da União Democrática Nacional. Não se questiona que o conteúdo do Manifesto possui por características: o aspecto histórico que constantemente se utilizava de fatos e personagens para legitimar demandas políticas e inserir os signatários numa tradição que lhes 33 conferia identidade e coesão; o aspecto regional – a mineiridade, que apresentava como naturalizados alguns elementos da identidade mineira que estariam por sua vez em comunhão com o próprio espírito nacional e ocidental, visto que naquele momento o Brasil se encontrava participante da Segunda Guerra Mundial; e um aspecto liberal, que antecipava em 1943 elementos do que se converteria no projeto político udenista mediante a ação partidária da União Democrática Nacional – ainda que diante de oposições externas (o trabalhismo) e contradições internas (conservadorismo) ao próprio partido no período político subsequente. 1.4. O Manifesto da Mineiridade: cultura e política O documento originalmente batizado de “Carta ao Povo Mineiro” e que posteriormente ficou conhecido como Manifesto dos Mineiros foi publicado em 24 de outubro de 1943 por um conjunto de noventa e dois signatários. A data não fora escolhida por acaso, ao contrário, constituía outro elemento provocante ao regime ditatorial vivido então no Brasil – o Estado Novo – na medida em que lembrava o outro 24 de outubro, que pusera fim à República Oligárquica em 1930, e do qual tomaram parte, não só os mineiros, mas as elites liberais que o documento posterior pretendia fazer eco. Assinaram o documento: Adauto Lúcio Cardoso, Adolfo Bergamini, Achilles Maia, Afonso Arinos de Melo Franco, Afonso Pena Júnior, Alaor Prata, Alberto Deodato, Alfredo Carneiro, Viriato Catão, Alfredo Martins de Lima Castelo Branco, Aloísio Ferreira de Sales, Álvaro Mendes Pimentel, André de Faria Pereira, Antônio Carlos Vieira Cristo, Antônio Neder, Artur Bernardes, Artur Bernardes Filho, Artur Soares de Moura, Astolfo Resende, Augusto Couto, Augusto de Lima Júnior, Belmiro Medeiros da Silva, Bilac Pinto, Bueno Brandão, Caio Mário da Silva Pereira, Caio Nelson de Sena, Cândido Neves, Carlos Campos, Carlos Horta Pereira, Carmelindo Pinto Coelho, Dalmo Pinheiro Chagas, Daniel de Carvalho, Dario da Almeida Magalhães, Darci Bessoni de Oliveira Andrade, Edgar de Oliveira Lima, Edmundo Meneses Dantas, Mendes Pimentel, Fausto Alvim, Feliciano de Oliveira Pena, Flávio Barbosa Melo Santos, Francisco de Assis Magalhães Gomes, Galba Moss Veloso, Geraldo Resende, Gilberto Alves da Silva Dolabela, Gudesteu Pires, Heitor Lima, Sandoval Babo, João do Amaral Castro, João Edmundo Caldeira Brant, João Franzen de Lima, João Romero, Joaquim de Sales, Jonas Barcelos Correia, José de Magalhães Pinto, José Maria Lopes Cançado, José Maria Leão, José do Vale Ferreira, Lincoln Prates, Luís Camilo de Oliveira Neto, Mário Brant, 34 Maurício Limpo de Abreu, Milton Campos, Múcio Continentino, Nelson de Sena, Otávio Murgel de Resende, Odilon Braga, Ovídio de Andrade, Paulo Pinheiro Chagas, Pedro Aleixo, Pedro Batista Martins, Pedro da Silva Nava, Raul de Faria, Ronan Rodrigues Borges, Salomão Vasconcelos, Sílvio Marinho, Tristão da Cunha e Virgílio de Melo Franco. Interessa destacar alguns apontamentos sobre o perfil dos signatários: é possível perceber duas gerações dentre aqueles que assinaram o Manifesto. Primeiro, aqueles que tiveram o auge de suas carreiras políticas durante a Primeira República (1889-1930) e que foram alijados do poder seja em 1930 ou em 1937 – uma geração de homens nascidos no século XIX. A geração mais jovem, por sua vez, filha do século XX, vivenciou e animou-se com a Revolução de 1930 enquanto gozava do vigor da mocidade e indignou-se posteriormente com o advento do Estado Novo. Esta geração formaria os sujeitos políticos que atuariam sobretudo durante a Terceira República (1945-1964). De forma demonstrativa, o signatário mais velho foi o ex-presidente da República Artur Bernardes, então com 68 anos; dentre os mais jovens, aproximadamente um terço dos signatários tinha entre 30 e 35 anos, sendo os mais jovens Carlos Horta Pereira e Caio Mário da Silva Pereira, ambos com 30 anos. Como aponta Berstein “estabelecida a importância explicativa da noção de geração (que reconduz às considerações históricas), é claro que um partido político vê coexistirem em seu interior gerações diferentes, cujas experiências são múltiplas e, por conseguinte, cujos polos de referência são diversos41”. Ainda que também seja possível localizar vários dos que assinaram o Manifesto nas mais diversas sub-regiões do estado de Minas, parece-nos que Belo Horizonte era o ponto de convergência entre eles, isto é, onde se conheceram, se encontravam e debatiam suas ideias. Da Zona da Mata ao Triângulo, uma parcela das elites mineiras parecia convergir ao que o Manifesto lhes representava, seja por laços ideológicos, familiares, políticos ou mesmo de amizade. Isto porque os cursos de Medicina, Engenharia e sobretudo Direito da Universidade Federal de Minas Gerais converteram-se no ponto de encontro da geração mais jovem de signatários. Para dar mostras a essa diversidade geográfica, citamos Belmiro Medeiros da Silva, de Juiz de Fora, na Zona da Mata; Darci Bessoni de Oliveira Andrade, de Montes Claros, no Norte de Minas; Paulo Pinheiro Chagas, de Oliveira, no Oeste de Minas; Alaor Prata, de Uberaba, no Triângulo Mineiro; e uma destacada maioria de signatários provenientes ou radicados na capital mineira, Belo Horizonte. A figura de Virgílio de Melo Franco parece neste caso como central para o desenvolvimento do que acabaria sendo o Manifesto. Um dos 41 Ibid, p. 73. 35 possíveis redatores, conforme já avaliamos anteriormente, também surge como mediador das duas gerações presentes dentre os signatários, por ser ponto comum nas entrevistas de vários signatários para o projeto de História Oral da FGC / CPDOC. Sobre a redação do documento Barros 42 consta ter havido pelo menos três versões, cabendo a Afonso Arinos a redação definitiva. Impresso em Barbacena, com uma tiragem de 50 mil exemplares, logo começou a coleta de assinaturas em Minas e no Rio de Janeiro. Haviam também dentre aqueles que assinaram o Manifesto dos Mineiros muitos dos que viriam a se tornar fundadores da União Democrática Nacional em agosto de 1945. Uma vez que a Lei Agamenon43 estipulava que os partidos políticos tivessem como pré-requisito uma base nacional, o registro da UDN contou com assinaturas provenientes de vários estados federativos. Ainda assim, dos setenta e três fundadores, seis haviam sido signatários do Manifesto, a saber: Belmiro Medeiros, Tristão da Cunha, Luiz Camillo de Oliveira Neto, Joaquim de Salles, Nelson de Sena e Virgílio de Melo Franco. Os futuros governadores de Minas pela UDN, Milton Campos e Magalhães Pinto, também foram signatários. Destacamos também futuros deputados e senadores udenistas que assinaram o documento: Adauto Lúcio Cardoso, Afonso Arinos de Melo Franco, Alberto Deodato, José Maria Lopes Cançado, Mário Brant, Pedro Aleixo, dentre outros. Quanto aos espaços que instigaram uma rede de sociabilidades a partir da qual foi possível a interlocução dos sujeitos políticos que protagonizaram a confecção do Manifesto, Barros destaca: a solenidade de abertura da Sociedade Amigos da América em 1º de janeiro de 1943 no Teatro Municipal do Rio de Janeiro “integrada por profissionais liberais, jornalistas, empresários e alguns militares (...). A Sociedade tinha como objetivo principal incentivar as boas relações com os Estados Unidos, e cooperar com tudo o que interessasse às Nações Unidas na situação da guerra44”; e a realização no começo de agosto de 1943 no Rio de Janeiro do I Congresso Jurídico Nacional, convocado pelo Instituto dos Advogados Brasileiros no qual “Pedro Aleixo, chefe da delegação mineira, propôs uma moção pela restauração das liberdades públicas, com apoio das delegações do Rio e da Bahia, em aberto conflito com outras 42 BARROS, Orlando de. “O Manifesto dos Mineiros”. In: PENNA, Lincoln de Abreu (org.). Manifestos Políticos do Brasil Contemporâneo. Rio de Janeiro: E-papers, 2008, p. 165. 43 Decreto-Lei nº 7.586, de 28 de maio de 1945 organizado pelo Ministro da Justiça Agamenon Magalhães que estabeleceu a base da legislação eleitoral porvir: seus pontos principais são a estipulação de que os partidos políticos só poderiam ser registrados a nível nacional, de modo a evitar a repetição do sistema partidário da Primeira República; a possibilidade de candidatura múltipla, isto é, um mesmo candidato apresentar-se a cargos diferentes em estados federativos diferentes; e eleições presidenciais quinquenais nas quais o vice-presidente era eleito à parte, ao contrário do sistema de chapas, atualmente vigente. 44 Ibid, p. 164. 36 delegações que eram favoráveis à ditadura” tendo sido “das discussões advindas da participação dos mineiros no I Congresso Jurídico que partiu a proposta de redigir um manifesto reivindicando a normalização política do país45”. Outra característica observada que não poderia passar desapercebida relaciona-se com a relativa maioria de advogados e juristas dentre o conjunto daqueles que emprestaram seu nome para publicação do documento em questão. Deste grupo existem aqueles que cursaram a Faculdade de Direito mas se enveredaram para a política partidário-eleitoral – udenista – como o caso de José Maria Lopes Cançado, Pedro Aleixo, Afonso Arinos, João Franzen de Lima e outros; aqueles que estiveram à disposição da máquina partidária udenista como técnicos na área jurídica como Darci Bessone de Oliveira Andrade que foi Advogado-Geral de Minas Gerais no Governo de Milton Campos e Procurador-Geral de Belo Horizonte no Governo de Américo Renné Gianetti; aqueles que acabaram por seguir carreira jurídica como juízes, desembargadores e ministros de Tribunais Superiores, como o caso de André de Faria Pereira (juiz), Antônio Carlos Vieira Christo (juiz), Lincoln Prates (desembargador MG), Octávio Murgel de Resende (ministro STM) e Antônio Nedes (ministro STF); e finalmente os que se mantiveram na qualidade de pesquisadores e docentes no ambiente acadêmico mineiro, como o caso do jurista Caio Mário da Silva Pereira. Para além de influenciar no conteúdo jurídico com o qual o Manifesto seria redigido e dar uma pista sobre ser a Faculdade de Direito em Belo Horizonte o ponto de encontro de muitos dos signatários, esse elemento também provoca no sentido de reforçar o argumento que compreende o Manifesto dos Mineiros como uma antevisão do udenismo enquanto conjunto de práticas políticas próprias a uma parcela específica de sujeitos vinculados direta ou indiretamente à União Democrática Nacional. Ao se dedicar ao propósito de enumerar quais seriam as características que comporiam tais práticas políticas do udenismo, Benevides salienta que “a UDN foi, também, entre denominações várias, ‘o partido dos bacharéis’, frequentemente congelada no formalismo pelo qual o princípio da legalidade surge como a inspiração primeira46”. Complementa ao afirmar também que este bacharelismo que se constituiu na prática política de seus membros, sobretudo na esfera parlamentar, “significa, também, o gosto excessivo pelo beletrismo político, pela retórica – a palavra, o discurso, a metáfora, como dotados de significado mais importante do 45 Ibid, p. 164. 46 Ibid, pp. 258-259. 37 que os fatos, ou conhecimento científico, sobretudo econômico 47 ”. Carvalho ao analisar estatisticamente a estrutura ocupacional dos políticos mineiros no processo de redemocratização aponta que 86% da bancada estadual udenista era formada de advogados e que este número aumentava para 91% quando se tratava da bancada federal48. O ex-governador mineiro Tancredo Neves, que no interstício da publicação do Manifesto até a redemocratização gozava de pouco mais de trinta anos, em entrevista realizada a posteriori também deu mostras dos efeitos que o udenismo tinha sobre a classe jurídica em Minas: “A UDN, logo na sua formação, exerceu sobre todos os espíritos da intelectualidade mineira, mas sobretudo nos espíritos dos advogados uma grande fascinação. A UDN encarnou a bandeira da resistência à ditadura. (...) Sobretudo porque, aqui em Minas, era formada por homens de grande autoridade intelectual, de grande projeção moral49”. Esse conjunto de informações permite compreender com maior clareza a qual tipo de elite se refere a bibliografia de maneira geral quando denomina os signatários ora como elites políticas ora como elites liberais. Não se tratava de uma elite econômica, ou classe dominante, no sentido estrito do termo dentro de uma compreensão marxista, isto é, detentoras dos meios de produção. O que não implica que o projeto político a ser desenvolvido a partir do Manifesto dos Mineiros não atendia sobretudo os interesses dessas elites econômicas. O oposto também não se aplica na medida em que não são classe trabalhadora e nem pretendem representa-la como grupo específico – neste sentido vale apontar que os termos “trabalhadores” ou “classe” sequer compõem o vocabulário do Manifesto. A prevalência de profissionais liberais entre os signatários permitiria que fossem situados, a partir de uma definição sociológica despretensiosa, como classe média, ainda que não se possa afirmar que eles se identificassem assim. Por isso o termo elites políticas, a despeito de ser propício, precisa também ser relativizado: apesar dos signatários se reconhecerem como sujeitos políticos e muitos já terem até mesmo ocupado posições políticas importantes, se encontravam num período de disputa pelo poder. Em outras palavras, nenhum tipo de hegemonia se tinha estabelecido. Essas elites políticas inscritas em Minas Gerais publicaram o referido Manifesto dentro de um contexto já analisado no qual o Brasil inseria-se a nível global contra países fascistas como Alemanha e Itália na Segunda Guerra Mundial e objetivava apresentar a crítica ao regime 47 Ibid, p. 259. 48 CARVALHO, Orlando de. “A estrutura ocupacional da política mineira”. In: Sociologia, vol. XV, n. 4. São Paulo: outubro de 1953. 49 DELGADO, Lucília de Almeida Neves; SILVA, Vera Alice Cardoso. Tancredo Neves: a Trajetória de um Liberal. Petrópolis: Vozes, 1985, p. 125. 38 autoritário vigente no país e congregar os interlocutores do documento – as próprias elites – dentro de um mesmo projeto. Essa limitação da interlocução estabelecida pelo Manifesto pode ser compreendida, para além da censura ainda em vigor, da própria visão que seus produtores tinham do processo histórico no qual estavam inseridos. Nesse sentido Arinos afirma: “Era natural que a inteligência tomasse a iniciativa do movimento, visto que as reivindicações concernentes às liberdades políticas interessam sempre mais às classes cultas que às massas populares, preocupadas especialmente com as dificuldades do dia a dia50”. Sobre a recepção do Manifesto, Tancredo diz que “teve pouca repercussão porque a primeira circulação do Manifesto foi praticamente clandestina. Eu me lembro que eu via referências do Manifesto. Levei quase um ano para obter um exemplar. O Manifesto foi importante depois. Durante o período que ele foi lançado, ele teve circulação muito restrita51”. A análise sobre o conteúdo do texto pode ser dividida em quatro partes: a) a presença de elementos de política externa; b) elementos históricos com destaque aos personagens, documentos e fatos citados; c) elementos da mineiridade como identidade regional; e d) elementos do que se converteria posteriormente no projeto liberal-conservador durante a Terceira República (1945-1964). A interpretação que as elites políticas mineiras que assinaram o Manifesto faziam da participação brasileira na Segunda Guerra Mundial e que parecia distinta da visão transmitida pelos órgãos de imprensa sob controle ditatorial se dava dentro de um contexto global de luta entre a democracia liberal – representadas pelos Estados Unidos e Grã-Bretanha – contra o fascismo ítalo-alemão. Desta forma, são desferidos diversos ataques ao fascismo como forma de governo, o que indiretamente também servia para atacar o Estado Novo no Brasil sem em nenhum momento dirigir-se textualmente ao regime em que aqui se vivia ou mesmo à pessoa do presidente Vargas. O fascismo é associado às palavras “totalitário”, “aberração política”, “despotismo”, “mal”, “absolutismo” e “inimigo”. Referindo-se a democracia, por outro lado, afirmam categoricamente que “fora da democracia não há salvação possível, para a paz e para as liberdades que enobrecem e exaltam a espécie humana”. Associam-se igualmente a toda uma tradição liberal ocidental ao referirem-se diretamente à virtude como princípio dos regimes democráticos conforme apresentado por Montesquieu e afirmam ter sido a Revolução Francesa “um imenso acontecimento”. 50 QUADROS, Jânio; ARINSO, Afonso (org.). História do Povo Brasileiro vol. 1. São Paulo: J. Quadros Editores Culturais S. A., 1968, p. 86. 51 Ibid, p. 108. 39 Compreendem que os modelos britânicos e norte-americanos – os que logo consagrar- se-iam vencedores do grande conflito mundial – são paradigmáticos e que deviam ser almejados pelo Brasil. O fato de se basearem, para isso, na Carta do Atlântico, documento assinado em agosto de 1941 pelo presidente norte-americano Franklin Roosevelt e pelo primeiro-ministro britânico Winston Churchill e nas Recomendações Preliminares para os Problemas Pós-Guerra, formuladas pela Comissão Jurídica Interamericana da Organização dos Estados Americanos (OEA) fornecem pistas sobre o peso da conjuntura externa no sentido de pressionar o presidente Vargas rumo a uma democracia. O que restava saber era qual forma de democracia se configuraria. Aquela proposta no Manifesto, inspirada nos países anglo-saxões, de cunho liberal? Ou outra surgida do trabalhismo varguista, que tinha como característica a condução do desenvolvimento econômico por um Estado nacionalista e a criação de um aparato de políticas públicas protetivas? Evidentemente que esses projetos em disputa se confrontariam durante o processo de redemocratização e se estenderiam durante a experiência democrático- eleitoral subsequente. O conteúdo do texto é igualmente repleto de referenciais históricos tomados dentro de um processo de hermenêutica que logicamente reforça a linguagem discursiva na qual todos os personagens e eventos citados constituiriam uma importante tradição da qual os signatários seriam herdeiros e continuadores. Sobre a função discursiva desses elementos históricos no texto, Arruda indica que “as condições históricas de Minas, geradoras de um ritmo lento do tempo e criadoras de todo um universo social que tende para a preservação de laços societários imediatos, podem gerar, do ponto de vista dos agentes, certa tendência à valorização do passado, uma vez que não surgem novas situações históricas capazes de absorvê-los e integrá-los em outro tecido social52”. Propõe-se também que os elementos históricos que compõem o Manifesto dos Mineiros permitem de certa forma compreender a representação inicial ideal que aquele grupo que se tornaria a base para o udenismo fazia de si mesmo, ainda em 1943, e do próprio passado diante de um futuro aberto a possibilidades. É igualmente notável o posicionamento em relação aos valores políticos e morais que os signatários acreditavam terem se perdido sob o governo de Getúlio, mas que tinham suas raízes, muito claras e por eles lembradas, num passado mais distante: nos monarquistas liberais do Império como Teófilo Ottoni e Tavares Bastos, nos republicanos históricos como Benjamin Constant e Aristides Lobo e até nomes oriundos da 52 ARRUDA, Maria Armínia do Nascimento. Mitologia da Mineiridade. São Paulo: Editora Brasiliense, 1989, p. 207. 40 Primeira República como Rui Barbosa e Campos Sales. O Manifesto dos Mineiros não propõe uma revolução nos moldes clássicos e deixa-o claro logo de início: “Este não é