UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação Programa de Pós-Graduação em Comunicação Mestrado em Comunicação MAICON JOSÉ DE FARIA MILANEZI “Elegemos um meme?!”: Política e experiência estética nos memes de ação popular das Eleições 2018 Bauru 2019 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação Programa de Pós-Graduação em Comunicação Mestrado em Comunicação MAICON JOSÉ DE FARIA MILANEZI “Elegemos um meme?!”: Política e experiência estética nos memes de ação popular das Eleições 2018 Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação - Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP, câmpus de Bauru, como requisito para a obtenção do título de Mestre em Comunicação. Área de concentração: Comunicação Midiática. Linha de pesquisa: Linha 2: Produção de sentido na comunicação midiática. Orientador: Prof. Dr. Laan Mendes de Barros. Bauru 2019 Milanezi, Maicon José de Faria "Elegemos um meme?!": Política e experiência estética nos memes de ação popular das Eleições 2018 / Maicon José de Faria Milanezi, 2019. 141 f. Orientador: Laan Mendes de Barros. Dissertação (Mestrado em Comunicação) -- Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (Unesp), Bauru, 2019. 1. memes políticos. 2. ação popular. 3. mensagem fotográfica. 4. experiência estética. 5. comunicação política. I. Barros, Laan Mendes de. II. Título. 5 “O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.” “This study was financed in part by the Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Finance Code 001.” 6 A todas as pessoas que, a despeito dos diversos entraves físicos e psicológicos que tentam se impor sobre nós constantemente, permanecem a sonhar, de diversas maneiras, uma sociedade plural na qual as incertezas não se limitem a tornarem-se ansiedades, mas sejam capazes de transbordarem-se em novas formas de vivermos mais felizes juntos. 7 Agradecimentos Qualquer trabalho, finalizado ou em construção, mesmo que fruto de lavra individual, nunca é realizado sem a ajuda, o apoio e a orientação de um sem número de pessoas. Quando falamos de uma pesquisa, então, esse número parece tremendamente maior quando se pretende prestar gratidão às diversas pessoas importantes neste processo. Todas e cada uma das pessoas aqui citadas — e as muitas que possam ter ficado de fora — me ajudaram não só a ter condições de concluir esta empreitada, mas a continuar acreditando em mim mesmo. Elas fizeram isso porque me ensinam a ver que as barreiras que às vezes me paralisam são, frequentemente, apenas fruto de lentes turvas que impendem de as coisas boas serem vistas, e, por ter o privilégio de tê-las em minha vida, conseguir clarear minha visão se torna muito mais fácil. Primeiramente, e acima de qualquer um, agradeço a minha mãe, Ana Flávia, a pessoa que mais me ajudou durante esse tempo, já que sem ela não teria conseguido segurar as pontas, contornar as angústias e a viabilizar a forca necessária para me dedicar à pesquisa. Sou também grato ao meu pai, Olival, por sempre acreditar em mim, confiar nas minhas escolhas e, sobretudo, contribuir na logística de me fazer presente em Bauru. Minha irmã, Tânia, foi outra fonte de compreensão, distrações e bate-papos, imprescindíveis nestes últimos anos. Toda minha família tem sido essencial nessa trajetória, sempre perguntando, curiosos, sobre mim, esse tal de mestrado e essa coisa de pesquisa. A vocês todo o meu amor! Para superar quaisquer barreiras e me tornar a cada dia um pesquisador melhor, contei com um importante guia sem o qual o jovem recém-graduado que pulou para a pós- graduação ainda tropeçando no TCC (que fui) não poderia crescer e aprender tanto: um muito obrigado ao Prof. Dr. Laan Mendes de Barros pela paciência, a honestidade e as orientações tão agregadoras. Sem sua abertura e compreensão certamente não teria chegado até a conclusão desta pesquisa. Agradeço imensamente por ter me recebido lá atrás e ter compartilhado comigo tantos conhecimentos e sabedoria que hoje me fazem uma pessoa muito melhor que aquela que participou do processo seletivo em 2016. Minha experiência pôde ser mais agregadora, também, graças à estrutura do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da FAAC-Unesp que, por meio de suas servidoras e servidores técnico-administrativos, me deu o suporte que precisava em todos os momentos. Todas as pessoas ligadas ao programa com as quais me relacionei fazem um trabalho excelente apesar das circunstâncias e implicações causadas pelo fato de vivermos um período no qual a pesquisa e a educação sofrem desinvestimento e são alvos de conspirações 8 alucinadas bem como preconceito dos demagogos. Para além das tantas professoras e professores e dessas servidoras e servidores ligados ao programa, a quem agradeço no nome do Silvio Decimone, foram tremendamente fundamentais as amizades que construí nesses anos. Trocar figurinhas, indicações e experiências tornou tudo mais leve e, de certo modo, mais fácil. Agradeço, especialmente, à Marina Darcie, minha amiga e parceira nesta montanha-russa acadêmica desde a graduação; e ao Beto Biernath e à Kelly Godoy, amigos de eventos e longas conversas sobre nossos descaminhos políticos. Também preciso agradecer à Carol Molina, por me acomodar em Bauru e sempre ser uma companhia boa para conversas, gulodices e sessões de cinema; e à dupla de apoio acadêmico de Aguaí, a Beatriz Silva e o Phelipe Ruiz, amizades de longa data que também se embrenharam nessa loucura de fazer pós-graduação e em quem encontrei amparo todas as vezes que precisei. O Phelipe, especialmente, foi imprescindível ao me ajudar no cálculo da amostra aqui apresentada e me mostrar como o Excel pode ser meu maior aliado na hora de sistematizar meus dados. Grande parte desta pesquisa, no que diz respeito aos dados, aos gráficos e formatações, eu devo à sua ajuda — sem a qual não sei se ela conseguiria ter sido concluída. Foi igualmente importante, neste processo, o financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), fundamental para me livrar das frustrações empregatícias e financeiras, ao menos durante o período crucial para a estruturação e execução desta pesquisa. Espero que sua atuação continue a permitir a pesquisadoras e pesquisadores de diversas áreas a dedicação exclusiva em suas pesquisas e que este tipo de menção não se torne uma raridade nos futuros anos. Agradeço, enfim, à banca avaliadora, por se disponibilizar a ler este trabalho e me ajudar a aprimorá-lo com suas contribuições nas ocasiões da banca de qualificação e defesa. À Profa. Dra. Ângela Cristina Salgueiro Marques e ao Prof. Dr. Arlindo Rebechi Jr. devo um imensurável agradecimento pelas dicas, recomendações e mesmo críticas que me ajudaram a aprimorar este trabalho dentro das minhas capacidades e prazos disponível a fazê-lo. Fui muito privilegiado por ser avaliado por tão notáveis e queridos avaliadora e avaliador. 9 “[Vocês] Não podem comprar a Revolução, não podem fazer a Revolução. Vocês só podem ser a Revolução. Ela está no seu espírito, ou não está em lugar nenhum.” — URSULA K. LE GUIN, Os Despossuídos “Talvez os livros possam nos tirar um pouco dessas trevas. Ao menos poderiam nos impedir de cometer os mesmos malditos erros malucos!” — RAY BRADBURY, Fahrenheit 451 “A vontade de rir é grande, mas a de chorar é maior.” — JOÃO PAULO, Um meme… 10 MILANEZI, M. J. F. “Elegemos um meme?!”: Política e experiência estética nos memes de ação popular das Eleições 2018. 140 f. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), Bauru, 2019. Resumo Esta pesquisa busca analisar os memes políticos a partir da ótica da inserção das pessoas militantes em comportamentos coletivos e compartilhados de apoio ou oposição a candidaturas, tendo em vista o segundo turno das Eleições Presidenciais de 2018. Para tanto, constrói-se uma exploração teórica que leva em conta as transformações da sociedade em vias de midiatização, onde os processos de interação tecidos em redes são híbridos e as lógicas sociais, altamente baseadas no midiático, pois passam a levar em conta dinâmicas desse campo social sobretudo quando se observa as instituições e mobilizações políticas. O trabalho se baseia no pensamento político de Jacques Rancière (1996, 2009, 2012, 2016), para quem a política é a contestação da ordem policial que estabelece hierarquicamente lugares definidos a serem ocupados pelos indivíduos e uma partilha do sensível consensual, não se restringindo à estrutura jurídico- política de gestão dos interesses coletivos. São apresentados, então, partindo de Dawkins (2018 [1976]) e Shifman (2014), os desdobramentos investigativos que enquadram os memes como elementos dotados de sentidos que encontram nos sites de redes sociais um ambiente fecundo para se multiplicarem e serem capazes de conformar ação política. Com base, especificamente, nos memes de ação popular, caracterizados por ações coletivas performáticas com teor comportamental apropriados por essas militâncias para pautar discussões, visa-se compreender se eles instituem o que Braga (2012, 2018) chama de arranjos disposicionais, ou dispositivos de relações através dos quais são possíveis a produção de cenas de dissenso que possibilitem pensar novas maneiras de dizer e ver o mundo, construindo novos lugares, nomes e funções a serem ocupadas na vida social. Pretende-se, ainda, observar como esse fenômeno enunciativo dos memes ajuda a construir sentidos e disputas durante um pleito eleitoral, levando-se em conta as transformações observadas na sociedade em midiatização que promove aos indivíduos novas maneiras de conexão, expressão e criatividade na hora de se colocarem no debate por meio das redes sociais digitais. Para a realização da análise, são empreendidos dois principais movimentos: a sistematização dos memes coletados no Twitter com elementos que identificassem os candidatos, segundo a taxonomia de memes desenvolvida por Chagas et al. (2017), uma análise com base nos processos estruturais de conotação da mensagem fotográfica de Roland Barthes (1990a) e uma incursão analítico-interpretativa que toma por base esses elementos para observar os memes à luz da experiência estética e das reflexões de Rancière. Enfim, visa-se traçar relações mais amplas sobre a participação política midiatizada através da ação conectiva dos memes e a centralidade que podem encontrar no período eleitoral. Nesse trajeto, conclui-se que, de maneiras diferentes, os apoiadores dos candidatos Jair Bolsonaro (PSL) e Fernando Haddad (PT) constroem uma performatividade política possibilitada por essa experiência estética de inscrição nos memes, nesse contexto polissêmico e híbrido de mobilização política. Palavras-chave: memes políticos, ação popular, mensagem fotográfica, experiência estética, comunicação política, eleições. 11 MILANEZI, M. J. F. “T he election of a meme?!”: Politics and aesthetic experience in the memes of grassroots action from the 2018 Brazilian Presidential Election. 140 f. Dissertation (Master on Media Communication) – Graduate Program in Communication, São Paulo State University (Unesp), Bauru, 2019. Abstract This research seeks to analyze the political memes from the perspective of the insertion of the militants into collective and shared behaviors of support or opposition to candidacies, in consideration of the second round of the 2018 Brazilian Presidential Election. For this, a theoretical exploration is constructed to take into account the transformations of the society in the process of mediatization, where the processes of interaction that woven into networks are hybrids and the social logics are highly based on the media since they adopt dynamics of this social field which is noted especially when observing the political institutions and mobilizations. This work is based on the political thinking of Jacques Rancière (1996, 2009, 2012, 2016), for whom politics is the contestation of the police order that establishes hierarchically defined places to be occupied by people and a consensual distribution of the sensible, not restricting itself to the juridical-political structure of management of the collective interests. Then, are presented, starting from Dawkins (2018 [1976]) and Shifman (2014), the investigative unfoldings that frame the memes as meaningful elements that find in social networking sites a fruitful environment to multiply and be able to conform political action. Based specifically on the memes grassroots action, characterized by collective performatic actions with behavioral content appropriated by these militants to guide discussions, it is sought to understand if they institute what Braga (2012, 2018) calls dispositional arrangements, or apparatus of relations through which are possible to create dissensual scenes that make it possible to think of new ways of saying and seeing the world, building new places, names and functions to be occupied in social life. It is also intends to observe how this enunciative phenomenon of memes helps to construct meanings and disputes during an electoral process, taking into account the transformations observed in the society in mediatization that promotes to individuals new ways of connection, expression and creativity when it comes to insert themselves in the political debate through digital social networks. To accomplish the analysis, two main movements are undertaken: the systematization of the memes collected on Twitter using elements that identified the candidates, according to the taxonomy of memes developed by Chagas et al. (2017), and an analysis based on the structural processes of connotation of the photographic message by Roland Barthes (1990a), and an analytic-interpretative foray based on those elements to observe memes in light of aesthetic experience and Rancière's reflections. Finally, it aims at drawing broader relations about mediatized political participation through the connective action of the memes and the centrality that they can find in the electoral cycle. In this way, it is concluded that, in different ways, the supporters of the candidates Jair Bolsonaro (PSL) and Fernando Haddad (PT) construct a political performativity made possible by this aesthetic experience of inscribing themselves in memes, in this polysemic and hybrid context of political mobilization. Keywords: political memes, grassroots action, photographic message, aesthetic experience, political communication, elections. 12 LISTA DE FIGURAS Figura 1 - Fotografia inserida em seu contexto memético ....................................................... 69 Figura 2 - a) Tuíte com elementos textuais; b) Imagem considerada individualmente. ......... 103 Figura 3 - Memes de larga escala e escala reduzida com sujeitos em sincronia .................... 104 Figura 4 - Constelação de memes de Bolsonaro..................................................................... 112 Figura 5 - Constelação de memes Haddad ............................................................................. 114 13 LISTA DE QUADROS Quadro 1 - Modelo teórico para a classificação de memes ...................................................... 74 Quadro 2 - Tipos de memes políticos ....................................................................................... 75 Quadro 3 - Modelo de classificação quanto a ação dos sujeitos .............................................. 82 Quadro 4 - Recortes temáticos de cada candidato .................................................................... 84 Quadro 5 - Tipologia de memes aplicados à amostra dos dois candidatos .............................. 90 Quadro 6 - Memes de acordo com o posicionamento .............................................................. 95 Quadro 7 - Subcategorias de memes de ação popular .............................................................. 96 14 LISTA DE TABELAS Tabela 1 - Distribuição dos tipos de memes no total da amostra ............................................. 89 Tabela 2 - Distribuição tipos de memes nos indicadores de Bolsonaro ................................... 91 Tabela 3 - Distribuição tipos de memes nos indicadores de Haddad ....................................... 91 15 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS PSL - Partido Social Liberal PT - Partido dos Trabalhadores PV - Partido Verde 16 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................................................ 17 CAPÍTULO 1: POLÍTICA NA SOCIEDADE MIDIATIZADA: MANEIRAS DE AÇÃO DOS SUJEITOS .. 23 1.1 Sociedade em midiatização: mudanças institucionais, impactos sociais .................. 24 1.2 Comunicação e política, midiatização e polarização ................................................ 30 1.2.1 Redes sociais da internet e um novo enquadramento de discursos ...................... 31 1.2.2 Perspectiva histórica: de efeitos e visibilidade ..................................................... 35 1.2.3 Realidade contemporânea: redes sociais digitais em ação ................................... 39 1.3 A política como dissenso na partilha do sensível ..................................................... 44 CAPÍTULO 2: MEMES: DE REPLICADORES DA CULTURA À VIRALIZAÇÃO DA POLÍTICA ........ 50 2.1 Dos estudos da transmissão cultural aos memes de internet .................................... 51 2.2 Meme, interação e mobilização política ................................................................... 56 2.3 Novas lógicas de combinação simbólica na propaganda política ............................. 65 CAPÍTULO 3: A POÉTICA POLÍTICA DOS MEMES: PRINCÍPIOS DA ANÁLISE ............................ 71 3.1 Taxonomia dos memes e suas categorias de conteúdo ............................................. 72 3.2 Imagens políticas de ação e disputa simbólica ......................................................... 76 3.3 Formação do corpus ................................................................................................. 83 3.4 Cálculo das amostras ................................................................................................ 85 CAPÍTULO 4: SENTIDOS E SUJEITOS NOS MEMES DE AÇÃO POPULAR: DEFESA DA ORDEM POLICIAL E RECLAMAÇÃO DE NOVOS LUGARES DE SER .......................................................... 87 4.1 Memes em categorias e números .............................................................................. 88 4.2 Conotação e comunidades nos memes de ação popular ......................................... 102 4.3 Irrupção criativa no processo eleitoral midiatizado ................................................ 117 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................................ 120 REFERÊNCIAS ......................................................................................................................... 122 APÊNDICES ............................................................................................................................. 127 ANEXOS .................................................................................................................................. 129 17 INTRODUÇÃO Inserir-se no universo das redes sociais digitais, seja em sites de relacionamentos, aplicativos de troca de mensagens e formação de grupos dos smatphones, ou mesmo em acontecimentos que extrapolam a dimensão digital e concretizam-se no espaço público, é familiarizar-se com novas dimensões simbólicas que têm constituído um novo léxico de expressão e produção de sentidos nestes ambientes. Nesse contexto, a comunicação midiática atual se estabelece segundo uma intensa troca de informações e sentidos, que vai muito além de uma oposição produtor x receptor e enseja novos gêneros e mídias, que se constroem a partir da fragmentação desses processos, como é o caso dos memes. Esse novo cenário levanta novas questões, sendo uma delas a que indaga sobre como se dá a produção de sentidos nesse contexto de hibridação. A aisthesis, que se dá no âmbito da recepção, se confunde com poiesis, que envolve a produção de narrativas, e articula intensos processos de interação capazes de redefinir a política por meio da experiência estética dos indivíduos no contexto coletivo da polis. Responder a tais questões só se faz possível ao observar os modos de expressão, interação e representação destes sujeitos, pensando as comunidades criadas com base nas maneiras de eles inscrevem-se a si mesmos nessas trocas simbólicas e nos contextos em que se dão os fenômenos. É isso que este trabalho se propõe fazer a partir dos memes políticos do segundo turno das Eleições 2018. Os memes, desde muito antes de a internet se transformar no amálgama que representa hoje e de eles se estabelecerem no lato sensu como um dos elementos facilmente identificáveis como próprios desse amplo e complexo sistema de interconexão, representaram uma discussão vasta quanto à constituição e transmissão cultural. Segundo a pesquisadora israelense Limor Shifman (2013, 2014), antes mesmo do seminal trabalho do biólogo britânico Richard Dawkins (2018), O gene egoísta, a partir do qual originou-se teórica e etimologicamente a base para o que hoje apresenta-se como meme, estudos buscavam entender como essas partículas representadas por dizeres, gestos e conhecimentos, entre outros, observáveis através das gerações com mais ou menos estabilidade, dariam estrutura para a cultura de maneira ampla. Eles tomam, contudo, no decorrer dos anos, novas interpretações e no ciberespaço, onde as instituições mesclam-se com os indivíduos e os jogos de poder dentro das ferramentas tentam subverter as antigas regras, vão caracterizar-se, ademais, como dispositivos de relações capazes de conformar a ação das pessoas e lhes possibilitar formas ímpares de mobilização política na rede e fora dela. 18 Isso se veria, em particular, em relação aos memes de ação popular, aqueles memes nos quais, segundo a classificação desenvolvida por Chagas et al. (2017) com base em Shifman (2014) e outros autores, os indivíduos se inscrevem diretamente, seja a partir da utilização, nos sites redes sociais, de sobreposição de material de campanha dos candidatos nas suas fotos, seja por ações mais dificilmente identificadas fora do contexto, mas que apresentam como característica um comportamento individual ou coletivo que, registrado em imagens, é compartilhado on-line. Tal seria, portanto, um modo experimental de utilizar-se de uma gama de recursos sociotécnicos para a construção de novos paradigmas não só de ação política, mas de definição do político. Por conta disso, é possível construir esta hipótese de que os memes políticos de ação popular, sobretudo, configuram o que o pesquisador da comunicação José Luiz Braga (2012, 2018) chama de arranjos disposicionais, ou dispositivos de relações, capazes de construir cenas de dissenso através das quais, segundo o pensamento do filósofo francês Jacques Rancière (1996), os sujeitos criam novos espaços a serem ocupados, novos nomes e possibilidades de vivências que confrontam a ordem policial (consensual) caracterizada pela definição dos lugares, das regras, na qual não há espaço para a criatividade. Desta forma, esses memes apresentam-se como um objeto característico da sociedade em midiatização, cenário desses processos tentativos ainda não institucionalizados que, por isso mesmo, exigem atenção e justifica a sua escolha como objeto desta pesquisa. O pensamento de Jacques Rancière (1996, 2009, 2012, 2016), por considerar em seus conceitos de partilha do sensível, cenas de dissenso, a divisão de ordens policial e política, e, especialmente, literaridade, a dimensão criativa e estética dos sujeitos nas relações de tensão em que se inserem, se mostra uma ótica importante a ser considerada frente a este que é um objeto híbrido e múltiplo em sentidos. A escolha do período eleitoral como demarcação temporal para esta pesquisa não foi feita com a intenção de investigar os antagonismos ou tampouco as discussões ideológicas inflamadas, pois, para Rancière, as tensões devem ser consideradas na sua dimensão de construção de eventos nos quais os indivíduos testam sua igualdade na forma da capacidade de dizerem e serem ouvidos, algo impossibilitado pela polarização extrema. Portanto, explorar esse período é tentar observar nele aquilo que a cientista política belga Chantal Mouffe (2013) chama de “luta agonística”, uma articulação plural que não se estabelece como luta entre inimigos, mas luta entre adversários. O uso da internet, mais especificamente dos sites de redes sociais, para campanhas, passou a ser permitido e visto com bons olhos apenas recentemente (AGGIO, 2010, 2015). No entanto, no que se diz respeito aos memes, seu uso para o debate eleitoral pelas usuárias e usuários das redes não enfrentou resistência mesmo antes de a produção desses conteúdos 19 virarem um trunfo para as campanhas. Desde 2010, sobretudo durante as eleições de âmbito nacional, o humor, a replicação e criação de memes foi se tornando cada vez mais evidente conforme foram sendo desenvolvidas novas funcionalidades tecnológicas e ampliado o acesso a gadgets com conexão à internet. Isso fez das Eleições 2014 as “eleições da zoeira” (FREIRE, 2016; INOCÊNCIO, 2014) e das Eleições 2018 as eleições nas quais os memes e a influência e importância dos conteúdos em circulação diferida e difusa foram fortemente discutidos. Pensar esse cruzamento entre política, comunicação e ação dos sujeitos favorece, além disto, uma compreensão que toma os processos da sociedade em vias de midiatização com certa centralidade. O pesquisador dinamarquês Stig Hjarvard (2012, 2014a) apresenta a gênese das pesquisas sobre midiatização tendo essa perspectiva. Até que ponto os meios de comunicação vão, através do tempo, reordenando as práticas políticas se apresenta como a principal pergunta a ser respondida por essas investigações, segundo o autor. Assim, quando é observado o histórico dos enfoques de pesquisa nesse campo, como apresenta Wilson Gomes (2004), por exemplo, preocupa-se comumente com esse recorte institucional pensando a mídia como um campo que empresta — quando não impõe — lógicas para o fazer político ao ponto de transformá-lo completamente, seja na maneira de seus atores se apresentarem no espaço público, na organização dos processos eleitorais e na cobrança de ações e accountability de governos, casas legislativas e parlamentares. O desdobramento mais marcante seria, pois, um estado de campanha eleitoral constante (HJARVARD, 2014a; GOMES, 2004) no qual o campo político não teria outra saída senão “midiatizar” seus processos — nesse sentido de adotar as lógicas da mídia — ou ser obliterado por ela. Dessa forma, a política midiatizada é compreendida pela institucionalização, na política, de ações propriamente midiáticas, ou seja, o poder das mídias subjugaria o outro campo que contra isso nada poderia fazer. No entanto, o fenômeno dos memes aqui observado leva em conta a midiatização como fenômeno de experimentações interacionais, como processos tentativos ainda pouco institucionalizados que, ao contrário de ser reflexo da influência da mídia, apenas, possibilita uma invenção social ainda em desenvolvimento e, por isso, com caráter dissensual. Quando postos em circulação, esses memes vão logo imbuindo-se de sentidos para além do campo da política. Por essa mesma razão que, para esta pesquisa, os memes constroem seus arranjos de relações até mesmo entre indivíduos que estão por fora do debate que motiva seu conteúdo, gerando uma penetração do assunto que ultrapassa a bolha e conquista outros públicos (FREIRE, 2016). E é nessa ideia de circuito produtivo sempre em frente, nesse fluxo adiante não limitado a emissão → recepção, que se coloca o “espectador emancipado” 20 observado em Rancière (2012) e se mostra pertinente ao debate da midiatização porque, agora, mais que nunca, os sujeitos se veem em grande medida libertos de preestabelecidos que determinam lugares a serem ocupados no processo de fruição, assegurando não só um novo espaço de dizer, mas de ver. A dinâmica híbrida e as mais diversas ações colaborativas emergentes faz com que se acelere e intensifique os desdobramentos sociais da midiatização (BARROS, 2012), segundo novas lógicas construídas na tentativa-e-erro. Para apresentar as discussões referentes a essas transformações que encetam novas dinâmicas na construção de sentidos e na conformação dos campos sociais, exploramos, no Capítulo 1, os processos híbridos do ciberespaço, da cultura da convergência e da sociedade em redes com base em Jenkins (2013; JENKINS; GREEN; FORD, 2015), Martino (2014) e Castells (2003, 2011, 2017). Esta discussão é feita a partir de um alicerce erigido nas discussões sobre a sociedade em vias de midiatização de Hjarvard (2012, 2014a, 2014b) e Braga (2006, 2012) e redes sociais de Recuero (2009a, 2009b). Gomes (2004, 2018), por sua vez, auxilia nessa trajetória quanto aos imbricamentos e os percursos na relação entre política institucional e comunicação, para, a seguir, serem explorados os aspectos do pensamento político de Rancière (1996, 2009, 2012, 2016) com base em obras suas e leituras feitas por outros autores (MARQUES, 2013a, 2013b, 2014; MARQUES; PRADO, 2018a). No Capítulo 2 é traçado um histórico sobre o conceito de meme de Dawkins (2018) a algumas definições mais recentes que pensam os memes políticos, conteúdos que se veem cada vez mais presentes nos períodos eleitorais e que demandam um visão ampla sobre o que se pode dizer sobre o fenômeno. Autores como Shifman (2013, 2014) e as discussões de Chagas (2015, 2018; CHAGAS et al., 2017) pensam enquadramentos a serem considerados na conceitualização do objeto desta pesquisa e a compreender como ele enseja a ação política, a qual é fundamental para as relações traçadas no desenvolvimento deste trabalho. A partir daí, são observadas as possibilidade interacionais e de sentidos ensejadas por meio dos memes e como eles, como imagens, asseguram camadas conotativas que superam um aspecto fotográfico de “analogon” do real, afastando-os de serem meras fotografias denotativas de acontecimentos, o que é explorado com base em Roland Barthes (1990a, 1990b). É apresentada, no Capítulo 3, a construção metodológica para a análise proposta. Primeiro, é detalhada a taxonomia para a classificação de memes políticos desenvolvida por Chagas et al. (2017) que considera os memes em três grandes tipos: memes persuasivos, memes de ação popular e memes de discussão pública, que por sua vez, subdividem-se em subcategorias quanto ao seu conteúdo. Então, a partir disso, é explorada a definição sobre imagens políticas e como a performatividade das mobilizações sociais contemporâneas 21 representam novas maneiras de inscrição dos sujeitos, que exigem não só direitos, mas também visibilidade para um vida possível de ser vivida, como observa a filósofa estadunidense Judith Butler (2018). Essas mobilizações se instituem como um confronto plural de ideias e não a tentativa de obliterar o outro como inimigo (MOUFFE, 2013) e, uma vez registradas em imagens, empreendem a construção de povos e comunidades sensíveis que permanecem para além do tempo enquadrado, de acordo com Georges Didi-Huberman (2014), e requisita nossa atenção quanto à dimensão, a disposição e abordagem dos sujeitos inscritos nelas. Assim, parte- se para a formação do corpus segundo a utilização de dois critérios principais: o recorte por tempo — qual seja o período entre os dois turnos das Eleições 2018, de 8 a 28 de outubro — e o recorte por tema — nesta pesquisa instituído na forma de hashtags que representassem os dois candidatos que disputavam essa segunda volta, Jair Bolsonaro (PSL) e Fernando Haddad (PT), e delimitassem a coleta dos memes realizada no site de redes sociais Twitter. Depois de coletadas, manualmente, 21.320 imagens para o candidato de extrema-direita Bolsonaro e 20.327 imagens para o candidato de centro-esquerda Haddad, calculou-se uma amostra representativa de cada uma dessas populações que resultou no conjunto de dois grupos de 378 imagens cada para cada um deles. Essas imagens foram classificadas em um banco de dados a partir das categorias estabelecidas, o que possibilitou a demarcação de quais delas representavam memes de ação popular, sobretudo aqueles de escala coletiva nos quais as pessoas realizam ações e gestos imitativos e/ou sincronizados. No Capítulo 4 são apresentadas as análises quantitativas e interpretativas buscando demostrar a qualidade dos memes como materiais que permitem a reconstituição de eventos a partir de sua leitura e, especialmente, como dispositivos de ação capazes de enquadrar cenas políticas dissensuais, ou seja, um enunciado novo, que não existia antes, com semântica de resistência, através de suas mensagens conotadas. Os memes relacionados a Jair Bolsonaro (PSL) apresentam, em grande medida, uma valorização da ordem e da força representando os sujeitos neles inscritos em afirmação de sua capacidade de dizer, menos negada que àquelas e àqueles que buscam o reconhecimento de serem quem são e de estabelecerem novos mundos possíveis como se vê nos memes de apoiadores de Fernando Haddad (PT). No entanto, como faz-se explorar, ambos os conjuntos se imbuem de características políticas. Essa nossa observação pretendeu compreender como se dá o acionamento dos sites de redes sociais e suas funcionalidades para a experimentação de novas formas de se relacionar com as instituições políticas e a política como a própria construção de novas possibilidades sensíveis. Considerou-se, para este fim, os memes para além de suas características de interação despropositada sem, contudo, sobrevalorizar sua capacidade na conformação da ação política 22 ainda que julguemos substancial sua força como objeto polissêmico de análise, já que permitem aos indivíduos uma maneira de inscreverem-se no acontecimento eleitoral que escapa uma determinação regida pelas instituições midiáticas tradicionais ao menos, e baseiam-se, essencialmente, na dimensão interacional fruto da contingência de (re)construir a realidade por meio do comunicacional. 23 Capítulo 1: Política na sociedade midiatizada: maneiras de ação dos sujeitos 24 1 POLÍTICA NA SOCIEDADE MIDIATIZADA: MANEIRAS DE AÇÃO DOS SUJEITOS 1.1 Sociedade em midiatização: mudanças institucionais, impactos sociais Viver em sociedade hodiernamente não é apenas uma relação com conteúdos, ideias, valores e sentidos constantemente em fluxo através do ciberespaço e das mídias. É, também estar imerso em instituições que, igualmente elas, passam a construírem-se em relação mútua com a instituição da comunicação. Não é só no caráter individual que os novos arranjos que as mudanças tecnológicas midiáticas demandam adaptações e redisposição dos papéis e processos. Neste capítulo, serão repassadas as discussões sobre a sociedade em vias de midiatização, contexto de nosso objeto de análise, bem como o referencial teórico sobre o qual se assenta a reflexão que leva em conta essas mudanças nos processos comunicacionais fruto da convergência midiática e cultural. Essas mudanças, conforme será visto aqui, permitem aos indivíduos uma gama de possibilidades sociotécnicas na hora de construírem sentidos a partir da interação, transformando as maneiras do fazer político e também da relação com a política. A preocupação com os avanços e impactos que a comunicação de massa representou em termos de modulações das ações em sociedade sempre se viu presente nos estudos das ciências humanas aplicadas na busca de se observar como isso se deu no âmbito da cultura, das instituições e dos processos sociais. Entre os quadros teóricos que se estabeleceram nesse processo, a midiatização apresenta-se como fundamental, segundo o dinamarquês Stig Hjarvard (2012), para a observação dessa antiga indagação sobre a influência da mídia nas transformações da sociedade. Central para essa perspectiva, segundo o autor dinamarquês, está o entendimento de que a mídia não se separa das instituições culturais e sociais, uma vez que ela se entremeia difundida e confundida com esses campos e instituições, sendo importante, então, entender como sua onipresença muda os processos característicos destes. O que faz com que possa ser observada uma dualidade: a mídia como parte do tecido da sociedade e da cultura e, ao mesmo tempo, como instituição independente entre outras instituições culturais e sociais, capaz, entretanto, de coordenar a interação entre elas. Hjarvard (2012) ressalta que o termo midiatização aparece em diferentes contextos, mesmo que se pense nele, na maioria das vezes, para caracterizar a influência da mídia em uma série de fenômenos. Será possível ver, no decorrer das próximas páginas, que são levantados 25 diferentes fundamentos para embasar as diferentes perspectivas para explicar ou mesmo enxergar as dinâmicas que ele abarcaria. Segundo este autor, Por midiatização da sociedade, entendemos o processo pelo qual a sociedade, em um grau cada vez maior, está submetida a ou torna-se dependente da mídia e de sua lógica. […] Como consequência, a interação social — dentro das respectivas instituições, entre instituições e na sociedade em geral — acontece através dos meios de comunicação. O termo lógica da mídia refere-se ao modus operandi institucional, estético e tecnológico dos meios, incluindo as maneiras pelas quais eles distribuem recursos materiais e simbólicos e funcionam com a ajuda de regras formais e informais. A lógica da mídia influencia a forma que a comunicação adquire, como, por exemplo, a maneira da política ser descrita nos textos dos veículos de comunicação; a lógica da mídia também influencia a natureza e a função das relações sociais, bem como os emissores, o conteúdo e os receptores da comunicação. O grau de dependência aos meios de comunicação varia entre as instituições e os campos da sociedade (HJARVARD, 2012, p. 53-54). Os aspectos mais institucionais sobre a midiatização apresentados por Hjarvard (2012) aparecem para descrever um processo que, segundo ele, não se refere a todos aqueles pelos quais os meios de comunicação exercem influência sobre a sociedade e a cultura. Na verdade, serviria para caracterizar um momento histórico, não universal pelo qual passa uma sociedade. É preciso estar atento para o fato de que a midiatização não deve ser confundida com a mediação. Mediação pode ser caracterizada tanto como um processo no qual a escolha de um meio define as formas de encaminhar uma mensagem e como se estabelece a relação emissor/receptor (HJARVARD, 2012), como também se relacionar ao que Martín-Barbero (1997) apresenta como Teoria das Mediações, processos complexos de negociação de sentidos nos quais os sujeitos receptores submetem as mensagens, a partir de certas categorias subjetivas como gênero, classe social etc. que se instituem verdadeiras lentes através das quais articulam seu quotidiano e a mídia, afastando-se de um sentido de manipulação, já que são agentes ativos, capazes de resistir, contestar os significados em circulação (MARTINO, 2014). Braga (2012) também segue por este caminho, uma vez que vê a mediação como um processo no qual um elemento se intercala entre os sujeitos e organiza suas ações: “O ser humano vê o mundo pelas lentes de sua inserção histórico-cultural, por seu ‘momento’.” (BRAGA, 2012, p. 32). O próprio Hjarvard (2012) destaca que a midiatização é um processo de logo prazo e não deve ser confundido com nenhum desses dois processos apresentados. Segundo o autor dinamarquês, a midiatização agiria a partir de duas formas de influências sobre os processos midiáticos e sociais: midiatização direta (forte), as pessoas passariam a executar uma atividade através e em interação com o meio que antes era “não- mediada” sem, no entanto, modificar completamente sua experiência, dando o exemplo de um 26 jogo de xadrez jogado no computador em oposição ao tabuleiro; midiatização indireta (fraca), a própria atividade passa a sofrer uma influência da mídia a um ponto de não se poder realizá- la de outra maneira a não ser sob seus signos “no que diz respeito à forma, ao conteúdo ou à organização, pelos símbolos ou mecanismos midiáticos” (HJARVARD, 2012, p. 67), apresentando como exemplo a ida a uma lanchonete para comer um hambúrguer, o papel de parede, as telas transmitindo o menu mais o brinde que acompanha o lanche levam a experiência para muito além da nutrição. As duas formas estão quase sempre combinadas, a primeira por alterar a forma que uma atividade é realizada pode-se estabelecer um antes e depois, já a segunda, onde a forma de se executar uma atividade não é alterada, fica mais difícil de fazer o mesmo. O que deve ser ressaltado quanto a essa gama de transformações que podem ser observadas através dos processos de midiatização é que ela favorece e pode facilitar tendências muito diferentes da sociedade tanto em nível micro quanto macro. Estas incluem globalização, individualização, nacionalização e localização. Qual tendência predomina dependerá do contexto específico, isto é, da instituição ou atividade social em questão. As consequências mais precisas da intervenção dos meios de comunicação, no entanto, terão que ser exploradas empiricamente através da investigação da interação das instituições e meios de comunicação em um contexto histórico e cultural (HJARVARD, 2012, p. 85). Para além de uma compreensão voltada para a mídia como instituição e no seu estabelecimento como tal impactada nas diversas outras instituições, alguns autores vão enxergar a midiatização como um processo mais amplo. Verón (1997) vai enxergá-la dessa maneira, uma vez que mídias, instituições sociais e os atores individuais se relacionam mutuamente, tensionando as formas como os discursos e produtos simbólicos circulam em sociedade, provocando transformações em diversos fenômenos sociais e culturais. As sociedades em vias de midiatização são aquelas nas quais os dispositivos para a produção e veiculação dos produtos simbólicos não estão apenas restringidos aos especialistas, mas estão fora do circuito midiático tradicional também, as pessoas tem acessos aos meios de realizar suas inscrições, mesmo que tecnicamente menos aprimoradas, mas com grande capacidade para tornar mais plural os discursos que circulam em sociedade (MAIA, 2014). Igualmente vemos a instância da recepção complexificada, pois o indivíduo atua a partir do que recebe para ocupar outros lugares no espaço comunicativo. Ele passa adiante o conteúdo de diversas formas, não necessariamente nas formas exploradas por Jenkins (2013) — e os formatos tipos de recriação de fãs que o autor trabalha e apresentamos à frente —, mas 27 segundo Braga (2012): através do compartilhamento, da inscrição de comentários, estimulando debates em meio à circulação das redes sociais. Braga (2012), ao considerar esses meandros, vai falar que a sua perspectiva se aproxima ao conceito de Martín-Barbero de “mediações comunicativas da cultura” para o qual não se deve levar-se em conta uma prioridade dos meios, mas ter em mente que o comunicativo é que assume um papel central. Esse reconhecimento de Braga também se dá ao evidenciar dois processos que Martín-Barbero elenca como capazes de reduzirem o estranhamento da mídia. O primeiro, na forma de um processo tecnológico: se veem disponíveis ações comunicativas midiatizadas para grandes conjuntos da população, proporcionando uma mudança de eixo na comunicação massiva; o segundo um processo social, uma vez que os participantes sociais são inseridos em ações que anteriormente apenas diziam respeito à indústria cultural, seja mesmo por meio de críticas, pedidos por regulação, e apropriações “em desvio” dos sentidos intendidos no processo de emissão. “Ao mesmo tempo em que a questão comunicacional se torna presente e fundante para a sociedade, os processos sociais se midiatizam — no sentido de que tomam diretamente iniciativas midiatizadoras” (BRAGA, 2012, p. 34). Sob tal circunstância, segundo Braga (2012), Fausto Neto observa uma passagem da “sociedade dos meios”, na qual as mídias são dotada de autonomia frente aos demais campos sociais, para uma “sociedade de midiatização”, na qual a cultura midiática se apresenta como referência a partir da qual a estrutura sócio-técnica-discursiva se institui, o que afeta tanto a organização quanto a dinâmica da própria sociedade. É nesse ponto que as tecnologias transformam-se em meios de comunicação que permitem sentidos, que asseguram a construção de sentidos críticos no processo de produção dos significados, alterando as relações entre produtores e receptores de mensagens. Sempre é necessário, nesse ponto, termos em vista que não se trata apenas da penetração da tecnologia, como temos ressaltado, porque sempre se deve ter em mente um componente social, uma vez que a mídia não é um “corpo estranho” na sociedade (BRAGA, 2012). Segundo Sodré (2010, p. 7), “[n]este momento propriamente tecnocultural, as imagens estetizantes disseminam-se por toda parte, sem se definirem a partir de uma zona especial a que possamos dar o nome de ‘indústria’, nem a partir de um público dito ‘de massa’”. Com as transformações dos processos sociais, podemos notar uma maior gama de maneiras pelas quais a sociedade interage com a própria sociedade, maneiras que se apresentam acelerando esses processos de contato. Segundo Braga (2012), entre os principais processos interacionais estavam a oralidade presencial e a escrita, as quais, neste cenário de midiatização, se veem ainda como definidoras de padrões de comunicação, só que, agora, passam a assumir 28 modos mais complexos e diversos por conta dela. Uma vez que não se tem em vista que a midiatização se caracteriza por um predomínio da indústria cultural, é notável o desenvolvimento de novas possibilidades que a própria sociedade passa a ter para criticar, apreender seus processos e, sobretudo, para que setores que em relação aos meios tradicionais não possuíam qualquer oportunidade de ação, passam a agir nas e pelas mídias, demandando por meio dos mecanismos de resposta social representados antes pela “coluna do leitor”, hoje expandido para mobilizações em blogs, redes sociais, formando espaços de enfrentamento concebidos como um “sistema de resposta social” (BRAGA, 2006). Esta configuração nos permite conceber, logo, que a indústria cultural não possui um caráter homogeneizador, como tanto destacou-se por uma perspectiva crítica que não via nos sujeitos ferramentais e capacidades para enfrentar sua soberania. Braga (2006, 2012) destaca que as tecnologias engendram invenções sociais que as levam para um direcionamento interacional es a partir dessa prática social nelas estabelecidas, as próprias formas de dispor-se de determinada tecnologia pode alterar os usos para os quais elas foram anteriormente concebidas. O autor assinala como exemplo desde o rádio que foi pensado para a comunicação ponto a ponto ao YouTube, pensado inicialmente como repositório de vídeos domésticos, mas passaram a ser utilizados para ações interacionais diferentes a partir da conformação social e suas invenções. Segundo o autor, “na sociedade em midiatização, não são ‘os meios’, ou ‘as tecnologias’, ou ‘as indústrias culturais’ que produzem os processos — mas sim todos os participantes sociais, grupos ad-hoc, sujeitos e instituições que acionam tais processos e conforme os acionam” (BRAGA, 2012, p. 50). O mais importante para nós, nessa visada de compreensão, são os processos de circulação dos sentidos que se dão em meio a esse imbricamento de ações, caracterizado pela forma que acontece a circulação do que parte da mídia e mobiliza compreensões posteriormente à recepção. A circulação é apresentada a partir da diferença entre a produção e a recepção, tendo em vista que os receptores são ativos e por isso nela se estabelece um espaço em que são reconhecidos os desvios da apropriação dos indivíduos (BRAGA, 2012). A ambiência da midiatização afeta a lógica nesses dois pontos, estabelecendo uma circulação diferida e difusa de seus processos de interação: “Os sentidos midiaticamente produzidos chegam à sociedade e passam a circular nesta, entre as pessoas, grupos e instituições, impregnando e parcialmente direcionando a cultura” (BRAGA, 2006, p. 27). Assim, os sentidos não são produzidos apenas diretamente, mas, também, e sobretudo, de maneira muito mais fluida, sendo fruto não só dos meios, bem como dos produtos circulantes que vão sendo retomados continuamente. 29 Esse “fluxo adiante” acontece em variadíssimas formas — desde a reposição do próprio produto para outros usuários (modificado ou não); à elaboração de comentários — que podem resultar em textos publicados ou em simples “conversa de bar” sobre um filme recém visto; a uma retomada de ideias para gerar outros produtos (em sintonia ou contraposição); a uma estimulação de debates, análises, polêmicas — em processo agonístico; […]; passando ainda por outras e outras possibilidades, incluindo aí, naturalmente a circulação que se manifesta nas redes sociais” (BRAGA, 2012, p. 39-40). Embora essa concepção assegura ainda mais aos indivíduos receptores um coprotagonismo ao executar seu papel, “na sociedade em midiatização o esforço produtivo para circular se faz na conformação da escuta prevista ou pretendida” (BRAGA, 2012, p. 40). Ou seja, se constitui por um “contrafluxo” que tenta produzir as “falas” segundo o que se deseja ver circulando, para se evitar, desta forma, desvios ou, especialmente, para fazer com que as respostas pretendidas sejam realmente as alcançadas. Este aspecto de fluxo contínuo, sempre adiante, e de uma escuta prevista é, segundo Braga (2012), um dos pontos mais pregnantes da midiatização. Ao se colocarem assim, as interfaces sociais em crescimento deixam para trás o modelo conversacional (ida-e-volta) para esse fluxo contínuo, sempre adiante e, por isso, “já não é tão simples distinguir ‘pontos iniciais’ e ‘pontos de chegada’, produção e recepção como instâncias separadas” (BRAGA, 2012, p. 40). O autor vai colocar que essa circulação em fluxo contínuo constitui circuitos complexos, por duas razões principais: pelas variedades dos ambientes que são atravessados por ele; e pela diversidade dos processos, que junto aos meios e seus produtos que se ligam em circuitos. Os circuitos mais marcados pela midiatização da sociedade atravessam os campos sociais estabelecidos, abalando sua capacidade de refração e o desenho de sua esfera de legitimidade. Em tais circuitos, aparece frequentemente um foco no polo receptor, produzindo o que chamamos de “contrafluxo de escuta” (BRAGA, 2012, p. 48). Desse modo, os campos sociais, especializados em suas complexidades e anteriormente segmentados no interior de suas fronteiras, são inseridos, também, nesses circuitos, sendo atravessados e atravessando campos diversos. Antes essa interação se dava segundo a lógica de cada um deles e, hoje, como coloca Braga (2012), se articulam dessa forma pouco habitual. Nesse ponto, podemos ligar essa sua compreensão à análise de uma midiatização pensada a partir de instituições sociais de Hjarvard (2012, 2014a, 2014b). Ao experimentarem práticas mediáticas, ao se inscreverem, para seus objetivos interacionais próprios, em circuitos midiatizados, ao darem sentidos específicos ao que recebem e transformam e repõem em circulação — os campos sociais agem sobre os processos, inventam, redirecionam ou participam da estabilização de 30 procedimentos da midiatização. Essa processualidade interacional inevitavelmente repercute sobre o próprio perfil do campo — por exemplo, incidindo sobre o equilíbrio das forças que o desenham em dado momento, abrindo possibilidades para determinadas linhas de ação e fechando outros, exigindo diferentes tipos de ajuste ao contexto. Mas isso também requer invenção social (BRAGA, 2012, p. 44). Nesse ambiente complexo de circulação de sentidos, mudanças das dinâmicas sociais em que instituições, campos sociais e indivíduos reestabelecem suas ações e, sobretudo, se reinserem perante a mídia e a própria sociedade, uma nova ordem se estabelece. As novas formas de se organizarem e se colocarem levam as cidadãs e cidadãos a constituírem novas maneiras de visibilidade, de inscrição no comum e atuação política, assim como os agentes políticos e a política — neste momento vista como um arranjo institucional que se apresenta como um jogo com regras e representações — a alterarem seus processos. No próximo item, nós exploramos os impactos da midiatização sobre a política e como esta vai modificar sua conformação em aliança com a comunicação. 1.2 Comunicação e política, midiatização e polarização Através do percurso teórico que percorremos até aqui tentamos descortinar o palco e algumas das cores com as quais se pintam aquilo que, para nós, será de importante compreensão na sequência empreendida por este trabalho. A sociedade para a qual olhamos é uma sociedade tão intensamente interligada, em circuitos de sentidos que se formam a partir da rede sociotécnica, que engendra tanto um novo ambiente para essas trocas em rede — o ciberespaço — quanto uma compreensão sociocultural que se ilustra com a cibercultura e suas possibilidades de ação e reinvenção, mas se ancora, sobretudo, de forma mais intensa, através da midiatização da sociedade e seus processos. E uma vez que este cenário se torna mais claro, agora vamos empreender a observação sobre como isso impacta uma importante instância da sociedade: a política institucional. Aqui entendemos a política como sendo aquela classificada dentro dos parâmetros tradicionais da democracia liberal, com suas instituições de governo e suas instituições legislativas para as quais os agentes políticos, dentro de suas especificações, se elegem, organizam políticas públicas e sociais e, a partir da qual, realizam-se as ações comumente relacionadas à política numa perspectiva institucional de representantes eleitos em oposição a eleitores que por eles são representados (GOMES, 2004, 2018). Desde a consolidação da imprensa, o mundo político, como esse apresentado, tem importante papel dentro dos veículos e meios de comunicação seja por se fundarem no interior de suas bases de ação, através da imprensa de partido, ou mesmo como objeto de seu escrutínio. Por esta razão, uma breve revisão 31 histórica é necessária para se discutir a relação entre comunicação e política, o que faremos nas próximas páginas partindo da ação das usuárias e usuários nas redes sociais digitais para apresentar, a seguir, os possíveis conflitos e a simbiose de influências mútuas entre estes dois campos sociais. Em seguida, exploraremos como especialmente as funcionalidades e as possibilidades de interação e ação das pessoas no contexto da midiatização podem fazer com que elas interfiram e se façam presentes mais diretamente na atuação política. Isso seja porque se mostra possível sua presença política on-line ou porque as tecnologias oferecem soluções para o aprimoramento da democracia e para a atuação do governo. 1.2.1 Redes sociais da internet e um novo enquadramento de discursos Curtir, compartilhar, retuitar, postar, transmitir entre outras diversas palavras, em língua portuguesa ou inglesa, vem ganhando espaço, nas últimas décadas, nas conversas, bem como aglutinam múltiplos sentidos quando se fala em comunicação. São termos não mais restritos às conversas dos profissionais da área técnica da comunicação ou dos acadêmicos; produzir conteúdo, alcançar audiências e, acima de tudo, compreender os processos e técnicas necessários para circular informações se veem cada vez mais popularizados. Na era do smatphone e da conexão on-line a partir de dispositivos que podem ser acessados de qualquer lugar pela internet, as barreiras parecem facilmente transponíveis e as formas de ação dos sujeitos passam a ser muito mais diversas, ou pelo menos assim são propagandeadas, já que a conectividade começa a deixar de ser um elemento de divisão social, baseando-se mais como divisória digital a capacidade de utilizar esses dispositivos (CASTELLS, 2011). É como se a perspectiva de uma comunicação que não se prende a uma dimensão dicotômica entre emissor e receptor pudesse, em si mesmo, superar quaisquer outras interferências, físicas, sociais ou simbólicas que imprensa, rádio, cinema e televisão, anteriormente, oferecessem. Agora, as pessoas produzem, discutem e arrumam novas maneiras de tentarem se fazer ouvidas, sendo permitida uma comunicação de muitos com muitos em escala global (CASTELLS, 2003). A passagem desse modelo unilateral de comunicação, para um no qual “os elementos do processo se comunicam contínua e simultaneamente” (CARVALHO, 2016, p. 12) foi possível e tornou-se quotidiano, segundo Martino (2014), a partir da popularização da internet nos anos 1990, tendo sido essencial, sobretudo, a passagem de uma internet de caráter fixo (web 1.0) para uma internet como plataforma mais dinâmica (web 2.0), cheia de transformações constantes que permitisse um alto grau de interatividade e fosse além de páginas a serem acessadas. As formas de produção colaborativa foram, assim, se expandindo em meio 32 ao estabelecimento das mídias digitais nas quais “o receptor perde seu tratamento passivo […] interagindo com o emissor da mensagem” (CARVALHO, 2016, p. 12). […] o que a internet está fazendo é converter-se no coração articulador dos distintos meios, da multimídia. Em outras palavras, transforma-se no sistema operativo que permite interconectar e canalizar a informação sobre o que acontece, onde acontece, o que podemos ver, o que não podemos ver, e torna-se o sistema conector interativo do conjunto do sistema multimídia (CASTELLS, 2011, p. 284). As mídias digitais instituem-se como plataformas nas quais as pessoas podem interagir, criar e compartilhar conteúdo, abrindo-se a elas diversas funcionalidades e opções. Ao se fazerem presentes nelas, conseguem, pois, construir novas representações para as estruturas sociais, em um arranjo no qual as trocas sociais e simbólicas se complexificam: as redes sociais na internet. Segundo Raquel Recuero (2009a, p. 24-25), [u]ma rede social é definida por um conjunto de dois elementos: atores (pessoas, instituições ou grupos; os nós da rede) e suas conexões (interações ou laços sociais). Uma rede, assim, é uma metáfora para observar padrões de conexão de um grupo social, a partir das conexões estabelecidas entre os diversos atores. Ou seja, as redes sociais digitais não são as mídias digitais, umas vez que aquelas são representações na maioria das vezes individualizadas e personalizadas (RECUERO, 2009a) constituídas, por exemplo, por perfis, páginas no Facebook, Twitter etc. Suas conexões são, por sua vez, a estrutura onde se formam essas redes. As conexões possibilitam a difusão amplificada de informações nas redes sociais, por isso, enquanto as redes sociais off-line se estabelecem a partir de conversas entre as pessoas, as redes sociais on-line são mais amplas, geram mais discussão que nelas é possível passar facilmente adiante, dando voz às pessoas (RECUERO, 2009b). Além disso, as redes sociais não devem ser confundidas com os sites que a suportam, os chamados sites de redes sociais (SRS); enquanto as primeiras, como citado acima, são uma metáfora para um grupo social observado, os segundos, relacionam-se aos sistemas nos quais eles se estabelecem, que não são rede social em si, contudo suportam diversas delas. Nesse espaço de constantes trocas, não só os fluxos, por si próprios, mudariam, como também se instauraria um novo ambiente com dinâmicas próprias e possibilidades: o ciberespaço. Nele se encontra “um fluxo contínuo de ideias, práticas, representações, textos e ações que ocorrem entre pessoas conectadas por um computador — ou algum gadget semelhante — a outros computadores” (MARTINO, 2014, p. 24). Porém Lévy (1999), não interpreta esse lugar como separado ou mesmo alheio ao mundo off-line, ele se estabelece com 33 a interação de atores sociais nessas relações híbridas que se dão com os sistemas técnicos das redes sociais digitais e, como vivemos em uma sociedade em midiatização, a coexistência da vida desconectada e conectada assegura ao ciberespaço status de ambiente social. Assim, as configurações sociotécnicas apresentadas pelo ciberespaço ensejam novas possibilidades de cooperação entre os indivíduos para além de proximidades geográficas ou temporais. A partir da difusão do microcomputador, padrão de computadores domésticos que em conjunto à internet se mostrou, segundo Gomes (2018), um dos fenômenos mais importantes e característicos do início do século XXI, é que se estabeleceu a infraestrutura que abriga o ciberespaço como “novo espaço de comunicação, de sociabilidade, de organização e de transação, mas também novo mercado da informação e do conhecimento” (LÉVY, 1999, p. 32), tendo como característica fundamental seu aspecto colaborativo. Nessa conjunção intensa entre técnica e sociabilidades, se apresenta uma composição cultural que se conforma dentro dessas novas possibilidades de criar, imaginar e compartilhar em conjunto. A cibercultura, que nasce desse fluxo de trocas, não é um marco que altera as relações humanas ou sintetiza suas produções simbólicas em uma nova conformação que diferenciaria de outros processos culturais, pensado de forma abrangente como a produção humana de sentido. Isso porque, segundo Martino (2014), na cibercultura não vemos a tecnologia como o que determina a ação humana, ela, através da leitura que o autor faz de Lévy, ela apenas apresenta possibilidades de práticas. A diferença entre o que seria a “cultura” e a “cibercultura” deve-se à disponibilização desse aparato técnico-operacional que podemos enxergar na última, esta sendo não o produto da ação das pessoas em meio ao ciberespaço, mas suas práticas em transformação “caracterizada pela multiplicidade, pela fragmentação e desorganização” (MARTINO, 2014, p. 25). Com essa interconexão digital, que existem entre os computadores — e outros dispositivos — criam-se vínculos entre usuárias e usuários que colocam-se em convergência nesse “mundo virtual” — que não deixa de ser “mundo real” apesar de não ser físico, apenas diferencia-se dele por ser composto de dados que se conformam naquilo que deve ser visível — uma imagem, texto, vídeo — quando é acessado; as informações, os dados existem nos servidores e tudo mais, mas só se fazem como representação quando acessados por alguém (MARTINO, 2014). Essa convergência representa-se como um processo cultural no qual há uma nova forma de ser e estar no mundo, onde a partir das interações produzidas no ciberespaço entre as pessoas e, sobretudo, em contato direto com os produtos da mídia. Nesse híbrido, no qual as usuárias e usuários podem participar de diversos papéis, de emissores, compartilhadores e recriadores, o espaço público não se vê alheio a isso. 34 A convergência cultural acontece na interação entre indivíduos que, ao compartilharem mensagens, ideias, valores e mensagens, acrescentam suas próprias contribuições a isso, transformando-os e lançando-os de volta nas redes. Não é porque um telefone tem dezenas de funções além de fazer chamadas que se poderia falar em “convergência”: ela acontece, de fato, no momento em que referências culturais de origens diversas, às vezes contraditórias, se reúnem por conta de uma pessoa ou de um grupo social (MARTINO, 2014), p. 34-35). O conceito de convergência foi desenvolvido por Jenkins, e uma vez que, segundo o autor, seus principais acionamentos se dão no cérebro dos indivíduos, os quais constituem-se nesse amálgama de referências fragmentadas, faz com que seja protagonista de nossas conversações a própria mídia que consumimos (JENKINS, 2013). Consumir mídia, mais especificamente seus produtos virou algo coletivo e aqui o autor parte, também, de uma leitura de Lévy, que propôs a ideia de uma “inteligência coletiva”, lançando mão de uma compreensão dela como fundante desse processo que se mostra como uma fonte alternativa de poder midiático. Aprender a usar esse poder faz parte de um processo que se dá dentro da cultura da convergência, e segundo o autor, esse poder tem sido usado em grande parte para ações voltadas para fins recreativos, mas ele coloca a possibilidade de ser utilizado para fins “sérios” e, assim, alterar o funcionamento de outras instituições, como a política. Essa compreensão tem em vista um entendimento que supera a visada que entendia a “revolução digital” e as mudanças sociotécnicas das quais estamos falando como o fim de “velhas mídias” e o estabelecimento de “novas”, mas um cenário de interação complexa entre elas, não pensando na determinação de um tecnologia atual ou futura, própria da falácia da caixa-preta, por onde fluiriam todos os conteúdos (JENKINS, 2013). A convergência, portanto, não é algo que está no futuro, não é algo que depende de acesso a tecnologias, é um processo que já está acontecendo e mudando a indústria midiática — as formas de financiamento, negócio, produção, acesso e a própria compreensão do papel do receptor que, agora, é alguém produtivo também, capaz de elaborar/reelaborar mensagens e disponibilizá-las através das mídias digitais (MARTINO, 2014) —, mudando, principalmente, como os consumidores processam as informações e os produtos do entretenimento. Há uma tamanha proliferação que a mídia está em todos os lugares. O foco do autor se dá em tratar o lado das ações das usuárias e usuários nesse processo de convergência, listando como fundamentais a atuação de fãs dos conteúdos midiáticos, na forma de fanzines, fanfictions, fanarts etc., que são criações de fãs a partir destes materiais e circulam nas redes sociais. Nessa criação de relações por meio do entretenimento, o autor considera possível pensar que até para superar entraves ideológicos as discussões da cultura popular serviriam já que mesmo em meio 35 à polarização os indivíduos seriam capazes de encontrar atributos comuns de interesse, por isso que essa configuração da cultura popular seria tão importante na sua perspectiva. É pensando nessa complexa configuração sociotécnica de uma “sociedade em rede” (CASTELLS, 2011) que enxergamos que as ações dos indivíduos proporcionam constantes transformações. As influências mútuas entre pessoas e mídias e vice-versa, transformam as dinâmicas institucionais, o ordenamento criativo e, sobretudo, a circulação de sentidos. No próximo item, nós apresentaremos as discussões sobre como esses processos de contato transformam a interface entre comunicação e política. 1.2.2 Perspectiva histórica: de efeitos e visibilidade Antes que as preocupações levantadas sobre a interface entre comunicação e política fosse a respeito de um sistema híbrido, como a internet, que permite um sem-número de ações de usuárias e usuários e onde proliferam-se os memes políticos, através dos quais as e os últimos realizam participação determinante — como tentamos explorar neste trabalho — as pesquisas sobre as interposições entre os dois percorreram um longo caminho. Segundo Gomes (2004), entre os anos 20 e 40 do século XX, o que as pesquisas buscavam investigar eram os efeitos dos mass media na propaganda, na opinião pública e, especialmente, na decisão de voto. As análises se davam pensando duas categorias apartadas de sociedade e política, onde as instituições da comunicação apareciam por uma ótica instrumental de “meios entre dois polos”, sempre, segundo o autor, exagerando-se na capacidade de os meios causarem efeitos sobre as pessoas. A partir dos anos 60, há uma mudança que passa a tentar pensá-las para além dos efeitos nos fatos da política, observando, agora, a relação entre essas duas grandezas comunicação e política. A comunicação é vista de maneira mais ampla, pois parte-se da compreensão de que ela aparece de diversas formas na base da política como atividade. Nos anos 60 ainda, e para além deles, nos 70, há a visada que enxerga a comunicação de massas e a indústria cultural no centro das instituições sociais; os meios estão à disposição dos agentes sociais e a literatura passa a vê-los como um campo social “que impõe suas estratégias e linguagens à política e suas opiniões, imagens e agendas ao público” (GOMES, 2004, p. 21). Essa fase, para o autor, estaria encontrando seu encerramento no início da primeira década do século XXI, mas ainda se herdaria dela uma desconfiança em relação à comunicação de massa e seu lugar na vida social. A partir dos anos 70 aos anos 80, os modelos de análise focam-se nas estruturas de sentido e os mecanismos deles de operação na comunicação e cultura de massas. O ponto de vista negativo passa a ser deixado de lado, e de uma posição de julgamento dos fenômenos 36 parte-se para um em que se tenta entendê-los. Após isso, no intervalo até os anos 90, tem-se uma surpresa na constatação de a comunicação e a cultura de massa ter ocupado tamanho papel central na cena social, em tal velocidade que, conforme coloca Gomes (2004), é notável uma preocupação quanto a isso. Dando sequência a esse período, as pesquisas ganham volume abrangendo um escopo igualmente amplo, com grande diversidade nos aspectos considerados, consolidando-se, na comunicação política, a reflexão, em particular, sobre a interface entre a política e os fenômenos, recursos e linguagens da comunicação de massa. Quando se consolida o modelo que pensa essa interface entre as esferas da comunicação de massa e da política, há um destaque, conforme elenca Gomes (2004), para os seguintes aspectos: 1) a ação política se dá em relação à comunicação, que se constrói como esfera de visibilidade, que altera a própria atividade política interna, em um processo de midiatização que exploramos anteriormente e continuará a ser explorado a seguir; 2) as estratégias eleitorais baseiam-se no consumo de imagens públicas sobre os atores políticos como “um complexo de informações, noções, conceitos, partilhados por uma coletividade qualquer, e que o caracterizam” (GOMES, 2004, p. 254); 3) estabelecimento de um universo de serviços políticos essenciais baseados no marketing, sondagem de opinião, consultorias etc.; 4) os discursos devem ser organizados segundo a gramática dos meios em que devem circular, para produzir afetos e emoções, tratando os acontecimentos e fatos como narrativas que ganham tons espetaculares e escandalosos; 5) as estratégias buscam uma audiência, já prevendo uma escuta pretendida. Algumas propriedades políticas inerentes à atividade política deixam de ter relevância ou veem reduzida sua importância, segundo o autor. Assim, os valores ideológicos, fruto de um debate complexo e fundamentado deixam de ser o que representa as ideias e posições em disputa. Discutir ideias, conceitos não seria mais interessante, pelo menos não para além do ponto do que for suficiente para produzir o voto. Gomes (2004) aponta para o fato de que o debate público feito para a apreciação das cidadãs e cidadãos perde espaço para os “formadores de opinião”, nesse momento colocado pelo autor representado pelos comentaristas políticos e outros profissionais da imprensa, atualizados contemporaneamente para a figura do influenciador digital, a personalidade da internet que, seja por seu blog, perfil em site de redes sociais, configura-se como comentador político e formador de opinião — fenômeno que caracterizou as eleições de 2018 na qual alguns deles foram até mesmo eleitos para exercer cargos públicos (OLIVEIRA, 2018;CARVALHO, 2018). Tudo isso levaria a uma perda de autenticidade para o campo político, que tão necessitado da técnica, da profissionalização, não abriria espaço para a improvisação e espontaneidade, perdendo espaço também os partidos 37 políticos, uma vez que a personalização para a aprovação ou reprovação direta do público se furtaria da necessidade de partidos como representantes dos interesses e vontades das cidadãs e cidadãos. O próprio espaço da cidadania no jogo político seria, então, na revisão das perspectivas sobre o campo feita por Gomes (2004), posterior, passiva e, de certa maneira, privada. Pensar os fenômenos de influência mútua entre os dois campos representa pensar em como a política, aqui o arranjo institucional e social de gestão dos interesses, foi se midiatizando. Os próprios primeiros estudos de midiatização, segundo Hjarvard (2012), utilizavam-na para descrever o impacto dos meios na comunicação política, pensando em vários desses pontos que enumera Gomes (2004), nos quais o sistema político teria se ajustado às demandas dos meios de comunicação. Isso acontece porque de certa forma, “os atores de diferentes setores têm que adaptar seu comportamento para acomodar as valorações, os formatos e as rotinas dos meios de comunicação” (HJARVARD, 2012, p. 50, grifo do autor) tendo, por exemplo, que aprender a se expressar por sound bites, declarações curtas de impacto a serem dadas a repórteres ou serem compartilhadas em perfis em redes sociais. Essas acomodações vieram com o tempo e através das mudanças nessa interdependência. A própria constituição da imprensa se deu a partir de uma imprensa de partido seja produzida por políticos, acadêmicos ou outros indivíduos mais diretamente ligados aos partidos políticos. Essa forma de imprensa foi até mesmo a responsável pela solidificação da noção de liberdade de expressão e imprensa, uma vez que ao se demandar por essa liberdade também se demandava por uma liberdade de confronto partidário já que havia essa ligação entre imprensa e partido. Então ter uma imprensa livre era a garantia, também, de diversidade partidária (Gomes, 2004). Na experiência europeia, sobretudo na escandinava, segundo Hjarvard (2014b), passou-se, na Europa, dessa imprensa de partido para uma configuração voltada para princípios educacionais que, portanto, apresentava-se de maneira mais neutra em relação à política sendo diferente em contexto de mídia comercial, na qual a sua proximidade com as questões políticas são muito mais intensas, especialmente por também ela se estabelecer como definidora da política, não como instituição política mas como importante para pautar as questões políticas assim também podendo enquadrar os fatos políticos e negociar o consenso em torno de certas decisões políticas. Em alguns casos, meios de comunicação utilizam-se de um paralelismo político colocando-se a favor ou contra partidos ou posições políticas de determinados grupos o que, segundo o autor, é possível notar sobretudo na ordem estadunidense onde uma certa independência entre a mídia e a política se estabeleceu, mas na qual as mídias se apresentam como forças capazes de expressar ou defender posições também político- 38 partidários (como exemplo podemos citar o apoio da Fox News ao governo de Donald Trump (FERRARI; VARELLA, 2016)). Os vínculos formais entre política e a imprensa foram se dissipando principalmente à medida que o jornalismo se profissionalizou pautado especialmente pela objetividade e a facticidade. “Em geral, os veículos de comunicação não desafiavam ou contestavam os partidos na sua importância no campo da política refletia-se no fato de terem tornado a principal fonte de informações políticas do grande público” (Hjarvard, 2014b, p. 85). Esse período em que a mídia e os meios de comunicação passaram de instituições culturais para instituições midiáticas submetidas à lógica comercial mais ampla, a própria política passou também a ter uma lógica submetida à orientação do mercado. Assim as cidadãs e o cidadãos passaram cada vez mais a serem vistos como consumidores de política, e o agentes da política como produtores desses fatos e conteúdos; o que exige da política, como campo, instrução no domínio de técnicas, como já falamos, e outras habilidades próprias da comunicação midiática para construir sua visibilidade. O papel do jornalista na construção dessa visibilidade e da imagem pública foi central porque, além de pautar e enquadrar os fatos, o jornalista, segundo Gomes (2004) trabalha como um selecionador, um editor de imagem que é responsável pelas maneiras em que elas serão projetadas, já que durante muito tempo seu papel projetou-se pela cobrança, pela denúncia e a vigilância sobre as instâncias políticas. Dessa maneira, parte da disputa política vai se dar em relação à imposição da imagem pública dos atores políticos que querem ter domínio sobre essa percepção que é projetada sobre si, buscando visibilidade positiva. Isso porque “a imagem pública contemporânea deixa de ser politicamente acessória para ser central, deixa de ser um fato típico da vivência comunitária para se constituir em fenômeno decisivo no contexto da experiência produzida e conduzida pela comunicação de massa” (p. 264). Em um contexto mais contemporâneo, a figura do jornalista perde importância pois disputa com outros atores, sobretudo com os próprios agentes políticos, pois utilizando das mídias digitais podem por si mesmo projetarem fatores que constituirão sua imagem pública e construírem um espaço de visibilidade que, no entanto, não deixa de ter na mídia tradicional, na figura do jornalismo, um espaço de confirmação. Em relação à visibilidade e imagem pública, a midiatização da política vai, segundo Hjarvard (2014b), apresentar dois processos fundamentais: a personalização na política, na qual o foco na personalidade e na trajetória individual do sujeito político sobrepõe as filiações partidárias, “o papel social do político normalmente é minimizado em favor de uma representação que mistura trajetória política com trajetória de vida” (HJARVARD, 2014b, p. 39 112); e a conversacionalização da política, representada pelo “uso crescente da linguagem informal em todas as situações sociais, inclusive naquelas formais e públicas, e no uso mais frequente de formas orais na comunicação escrita” (HJARVARD, 2014b, p. 116), o que acontece especialmente na presença nos sites de redes sociais. Assim podemos notar que a midiatização da política, nesta perspectiva de mudanças históricas tanto na forma de pensar e analisar os processos políticos institucionais quanto as suas práticas, possibilita uma nova ordenação em que se estabelecem as forças não tanto em uma sequência hierárquica, mas em uma disposição de trocas constantes tendo, sobremaneira, impactado nisso a projeção dos sites de redes sociais e a formação de redes sociais digitais capazes de constituírem novos fenômenos políticos e midiáticos que mobilizam os acontecimentos políticos. Essa projeção ganha importância não só nas maneiras de construção da imagem pública projetada por um agente político, mas sobretudo nas próprias mudanças empreendidas nas sociedades na última década, mobilizando afetos, narrativas, rearranjos parlamentares e conduções eleitorais, o que exploraremos no próximo item. 1.2.3 Realidade contemporânea: redes sociais digitais em ação A última década tem testemunhado uma série de acontecimentos que se mostram não só como exemplos, mas, especialmente, como processos que cristalizam a midiatização política. Se a busca pela visibilidade e uma visão favorável de jornalistas mobilizava os agentes políticos e implementou um ambiente de campanha eleitoral permanente (GOMES, 2004; HJARVARD, 2014b), as mídias digitais acentuam ainda mais essa concepção. Além de arregimentar um novo espaço onde qualquer pessoa com conexão à internet pode adentrar, apresentam-se a elas possibilidades de contato direito com seu representante, bem como oportunidades de expor suas ideias e reivindicar. Desde junho de 2013, quando ocorreram aquelas tidas como as maiores manifestações de rua desde o final da ditadura militar nos anos 80 (SINGER, 2013), nossa história recente testemunhou uma onda de protestos e demandas políticas que surgem justamente a partir das redes sociais digitais e transportam-se para as ruas. No primeiro momento demandando melhores serviços públicos, mas, logo em seguida, impulsionados pela pauta anticorrupção, elas seguem por outros caminhos que direta ou indiretamente criam uma movimento que nos levará ao impeachment de Dilma Rousseff e, sobretudo, ao ambiente no qual se deram as Eleições 2018 e seu resultado testemunhado. Esse amálgama de demandas e sujeitos, se estabelecem a partir de formas de disputas simbólicas que ocupam um novo limiar representado por essa indissociação entre 40 espaço off-line e on-line. Nesse estado de hiperconexão, segundo Gomes (2018), “está-se em contato com o próprio ambiente digital sem que se precise sair ou ‘desconectar’ dos ambientes sociais tradicionais em que estamos inseridos — família, amigos, colegas, membros da religião ou do partido etc.” (p. 1523). E, por essa razão, podemos notar que as mídias sociais se tornam arenas singulares para a construção, disseminação e debate de temas da atualidade em canais interligados que representam instituições diversas como órgãos de imprensa, governo, partidos e movimentos sociais; além de em blogs de jornalistas, de colunistas e de ativistas políticos (SANTOS JUNIOR, 2016, p. 26). Essas arenas se veem possíveis porque os sites de redes sociais apresentam funcionalidades que diminuem as dificuldades de aprender as técnicas para a produção de conteúdo amador, além de serem lugares em que se vê ampliado o alcance até mesmo para instituições ligadas a outros meios de comunicação (SANTOS JUNIOR, 2016). Munidos dessa capacidade técnica e da possibilidade de formar uma audiência de maneira direta, sempre com base nas características da política midiatizada que tenta configurar uma conversacionalização, projetando uma horizontalidade discursiva entre os atores e, sobretudo, construir essa audiência através da exibição de sua imagem pessoal, novos sujeitos lançam-se nesse palco para construir posicionamentos e liderar esse novo modo de fazer política baseada no curtir e compartilhar. […] a internet altera a prática da comunicação política porque inclui no ambiente político — tradicionalmente comandado pelos media e pelos políticos — os cidadãos de uma forma até então não vista; estendendo a possibilidade de participar (em seu sentido mais amplo) da política de forma mais próxima, frequente e atuante através dos instrumentos de comunicação que oferece (ROSSETTO, 2014, p. 40). Um dos principais sites de redes sociais que se mostra como plataforma para essas ações é o Twitter. Apesar de não ser o site que apresenta o maior número de usuárias e usuários no Brasil 1, ele se instituiu como um local de difusão de pautas que passam, inclusive, a repercutir para além das redes sociais que nele se constroem (ROSSETTO, 2014). No Twitter, as questões políticas vão repercutindo, ganhando desdobramentos imprevisíveis, permitindo às pessoas atuarem de diversas formas uma vez que sua estrutura é baseada em conteúdo gerado pelas usuárias e usuários. Conforme elenca Rossetto (2014), três são as razões principais para que o Twitter seja utilizado na vida política: (1) com ele é possível ter acesso de forma rápida e sem necessitar do filtro de outras mídias ou indivíduos para conseguir informação política diretamente com os 1 O Facebook ocupa o primeiro lugar dos sites de redes sociais mais usados no Brasil (OLIVEIRA, 2018a), segundo dados mais antigos o Twitter estaria entre os seis mais acessados (AGRELA, 2013). 41 agentes e instituições políticas; (2) permite às usuárias e usuários sanar o desejo de fazerem parte do processo político, pois podem cobrar, mobilizar-se nele e não apenas serem recebedores de informação; e (3) também é uma ferramenta para os negócios porque a partir dele quem trabalha com a política, seja como um agente inerente dela ou mesmo na cobertura das notícias políticas pode utilizá-lo para seu trabalho. É nesse boca a boca digital de informações que se concentra o poder de ação das redes sociais digitais. Através dos sites de redes sociais a comunicação política se vê inserida “em um contexto no qual o relacionamento entre os indivíduos passa a ser fundamental. Não interessa mais somente o que vêm dos jornais ou da TV, nem do próprio campo político ou dos sites de notícias e blogs de jornalistas, mas também as relações sociais on-line e quem faz parte do convívio social em rede de cada um” (ROSSETTO, 2014, p. 43). A partir disso nota-se que “parte do público se comporta como fãs de política nas mídias sociais, a partir de comunidades interpretativas com forte engajamento afetivo na formação de identidades políticas e da renegociação de sentido dos textos” (SANTOS JUNIOR, 2016, p. 170). Contudo, por conta disso, nem tudo nessa conjuntura representa traços positivos a serem observados. Segundo cita Jenkins (2013), Lévy imaginava que desse ambiente de compartilhamento de conhecimento poderia se restaurar a cidadania democrática e, na sua própria compreensão, para ele seria possível interpretar que mesmo as comunidades fãs, nesses seus processos, apontariam para novas formas de cidadania e colaboração: Os efeitos políticos dessas comunidades de fãs surgem não apenas da produção e circulação de novas ideias (a leitura crítica de textos favoritos), mas também pelo acesso a novas estruturas sociais (inteligência coletiva) e novos modelos de produção cultural (cultura participativa) (JENKINS, 2013, p. 424). Através dessas novas estruturas sociais se pensariam novas formas de participação e deliberação, agora mais facilmente alcançada com equilíbrio a partir de uma facilidade de argumentação. No entanto, não podemos negar, e o autor encaminha-se nesse sentido, que as configurações da conexão permitem uma maior difusão dos assuntos, mas também tenciona a polarização: À medida que as pessoas integram a política à vida cotidiana, torna-se mais difícil para elas se comunicarem com familiares e vizinhos, com outros na escola, na igreja e no local de trabalho. […] À medida que a “política do ataque” evolui no nível popular, ou entramos em desacordo com as pessoas à nossa volta, difamando-as por suas escolhas políticas, ou nos recusamos a compartilhar nossas visões políticas, com receio de, ao expressá-las, prejudicarmos relações que nos são valiosas. Votamos nus não no sentido de que temos um envolvimento íntimo com a política, mas no sentido de que estamos expostos e vulneráveis (JENKINS, 2013, p. 412). 42 Jenkins implementa nesse sentido a discussão sobre a polarização como uma consequência da grande oferta de canais e conteúdos midiáticos, ancorados nas mídias tradicionais ou nas mídias digitais, fruto de um mundo no qual as pessoas escolhem os canais dos quais tirar suas informações segundo suas convicções e concepções políticas o que acaba por “criar uma imagem menos complexa e com menos nuances sobre as convicções alheias” (JENKINS, 2013, p. 413). Hoje em dia, podemos notar, ainda, o agravante de se verem disponíveis não apenas canais ou espaços pautados em paralelismo ideológico, como também pautados na fabricação de notícias e informações mentirosas ou repletas de falácias, “fatos alternativos”, para formar, mobilizar e confirmar convicções. Não se deve, então, acreditar que os sites de redes sociais não tenham um lado sombrio, que vemos fortemente explorado nos últimos anos, mas não podemos, tampouco, ver isso como critério que os desclassificam como ambientes de luta por emancipação e contestação política, onde entram em embate novas maneiras de dizer e ser na partilha do comum, já que “os espectadores não são meros joguetes para os interesses comerciais ou para as elites políticas, pois suas identidades compartilhadas e a capacidade de comunicação coletiva permitem que se manifestem sobre seus interesses percebidos” (JENKINS; GREEN; FORD, 2015, p. 3438) É nesse elo da comunicação coletiva que se darão não só a consolidação dos entraves diretos da polarização e, para além dela, de uma luta agonística que não considera apenas a destruição de quem pensa diferente, como a constituição de um formato fundamental para a construção de sentido nos discursos propagados nesse espaço. A mídia cívica, como denomina Jenkins e seus colegas (2015), “é o conteúdo destinado a aumentar o engajamento cívico ou motivar a participação política” (p. 4499), originada tanto dos atores mais institucionais como candidatas e candidatos políticos como das organizações de movimentos populares. Este tipo de conteúdo é produzido para fazer circular e gerar convencimento junto ao público que, inserido na estrutura de um site de redes sociais como o Twitter, é parceria fundamental para a propagação da mensagem. Com elas sempre se imagina uma resposta pretendida, contudo nem sempre o apelo intendido pelos produtores se veem alcançados, por se verem descontextualizadas, mas às vezes até isso pode contribuir, segundo os autores, para sua propagação, já que “os produtores contam com a controvérsia em torno dessas táticas inesperadas para inspirar a propagação adicional e a discussão de sua mídia” (JENKINS; GREEN; FORD, 2015, p. 4518). A forma de construir esses conteúdos em formatos de fácil compartilhamento tem a ver com a propagabilidade que eles possam apresentar. A propagabilidade 43 se refere aos recursos técnicos que tornam mais fácil a circulação de algum tipo de conteúdo em comparação com outros, às estruturas econômicas que sustentam ou restringem a circulação, aos atributos de um texto de mídia que podem despertar a motivação de uma comunidade para compartilhar material e às redes sociais que ligam as pessoas por meio da troca de bytes significativos (JENKINS; GREEN; FORD, 2015, p. 278). Portanto, deve-se levar em conta a mobilização de afetos e emoções para que esse conteúdo de viés político não apenas propague, como solidifique ideias compartilhadas entre aquelas e aqueles que participam com o compartilhamento, mas dos quais se deseja, também, o apoio à causa ou, sobretudo, à posição política defendida. Isso se mostrou fundamental nos eventos citados anteriormente porque além de uma mobilização continuada através do conteúdo midiatizado, a propagabilidade diminuiu os custos do discurso político. Como resultado, grupos ativistas acham mais fácil conceber e circular conteúdos de mídia convincentes, construindo afiliações mais fortes com um público que desempenha um papel muito mais ativo na propagação de sua mensagem. Essas táticas funcionam porque criam mídia (como os vídeos do YouTube) que é de fácil circulação, prestam atenção às motivações sociais que estimulam os adeptos e os visitantes mais casuais a compartilharem esse conteúdo com seus amigos (JENKINS; GREEN; FORD, 2015, p. 4512). A produção desse tipo de conteúdo da “mídia cívica” mais propagável traz do entretenimento muito de sua linguagem, o que serve para se atinja adeptos imprevistos ao discurso e assim, possivelmente, estreitar os laços com esse público com o tempo. Outra característica fundamental — e que é, para nós, o cerne para pensarmos as redes sociais digitais e os processos políticos midiatizados inseridos nelas — é a capacidade de esse material propagado de ser refeito. Isso acontece, segundo Jenkins et al. (2015), tanto através de remixagem e sampleamento, quanto através da sua inserção em conversas em andamento, em outras redes, ou seja, de ser realocado, reconstruindo seu sentido, direta ou indiretamente. É nesse ponto que acreditamos que a propagação de conteúdos gerados pelas usuárias e usuários, pensando especificamente no Twitter, pode ser compreendida como uma forma de reconfiguração dos espaços a serem ocupados e, ademais, dos discursos em circulação. Um formato que congrega tanto a propagabilidade como também uma criatividade transgressora são os memes políticos. Estes tomaram as redes — e as ruas — e têm sido fundamental forma de disputas simbólicas entre correntes políticas e até mesmo para levar o assunto político para aqueles que comumente não se interessam pelo tema. E mais, na perspectiva que pretendemos construir neste trabalho, são capazes de serem usados para a 44 promoção de cenas de dissenso, as quais contestam desigualdades, as noções de visível e dizível, bem como as identidades sociais impostas, conforme será melhor exposto a seguir. 1.3 A política como dissenso na partilha do sensível Entender este momento histórico que vivemos, onde os sentidos estão sempre em disputa e as pessoas parecem ter em mãos cada vez mais novas formas e mecanismos para produzir esses sentidos e agir, exige de nós uma atenção ao caráter estético dessas possibilidades que são dadas. Sobretudo quando se fala em política, não são deixados de lado os meandros estéticos que compõe as ações dos sujeitos nesse âmbito, por isso nos é tão caro e importante para este trabalho apresentar, agora, os conceitos do pensamento político de Rancière, os quais servirão como fundamento para enquadramos nosso olhar sobre a política e as disputas que, segundo o autor, são a própria base para que ela exista. Depois de passarmos pelas discussões sobre a sociedade em vias de midiatização, cenário no qual se apresenta o objeto de nossa análise, é necessário descortinar aquilo que é elementar nesse nosso desenvolvimento compreensivo. O pensamento político do filósofo francês Jacques Rancière (1996, 2009, 2012, 2016), dentro de seu cerne, tem como princípio que os indivíduos estabelecem suas relações a partir de um dano, uma distorção no modo de se apresentarem e se reconhecerem como parte de um comum dos sem qualidade; como parte dos “sem-parte” é que se constituem como comunidade política, que forma um “nós” modelado nesse “comum”, não relacionado ao que é próprio desse grupo, mas àquilo que os impulsiona a estarem juntos enquanto, ao mesmo tempo, os separa. É, pois, o lugar de exposição dos sujeitos que possibilitam a eles, a partir do que têm de diferente, a encontrarem formas de linguagem para ação comum e seu aparecer na esfera da visibilidade pública, seja como interlocutores que possuem reconhecimento, seja como sujeitos poéticos (MARQUES; PRADO, 2018a). A configuração dessa comunidade política se dá no contraponto entre duas ordens: a ordem consensual, que procura estabelecer nomes, lugares e ocupações sociais delimitados para cada coisa e sujeito; e a ordem dissensual: que contesta esses nomes e lugares preestabelecidos em busca de conceber novas formas de partilhar o comum, considerando novas maneiras de dizer e ver, que faça dele o espaço da criatividade, do fabular novas formas de existir e expressar. A primeira ordem é chamada por Rancière de polícia, no entanto ela não se refere ao aparato institucional da violência e da vigilância; a segunda, por sua vez, é a política, vista como esta experiência estética e poética de criar e expressar um outro mundo possível. A 45 política, contudo, não visa superar ou suplantar a polícia, já que sua própria constituição a toma como base. Própria da partilha política do sensível, a ocupação de um novo espaço de ação e existência baseada tanto na experiência sensória quanto na interpretação de sentidos conferidos a ela, é a literaridade. Rancière apresenta a literaridade como o excesso de palavras, mas sua questão política não se relaciona propriamente à escrita ou mesmo à fala, mas à disponibilidade de todas e todos executarem essas ações e, assim, disputar um lugar que confronta a hierarquia dos lugares de cada um. A falta de controle sobre a palavra faz com que indivíduos sem a legitimidade atribuída para a manejar a utilize para ocupar outros lugares. Esse excesso de palavras pode não servir para a mudar, mas perturba a ordem consensual e é com essa operação fabuladora que são construídas novas maneiras de ser (MARQUES; PRADO, 2018a). [A] literaridade não é só o excesso que configura uma potência que permite uma recombinação de signos capaz de desestabilizar as evidências dos registros discursivos dominantes: ela é o exercício mesmo do trabalho com a linguagem, da bricolagem e justaposição com signos e enunciados heterogêneos, proporcionando outras formas de apreender o visível e sua significação. Os falantes, em condição de igualdade (não está em jogo seu status), utilizam experimentalmente a escrita para criar “um certo espaço comum, um modo de circulação da linguagem e do pensamento que não possui nem uma emissor legítimo e nem um receptor específico, nem tampouco um modo de transmissão regulado” (MARQUES; PRADO, 2018b, p. 25). Para dentro da perspectiva desta dissertação, relacionamos a literaridade ao fato de a midiatização e os sites de redes sociais darem acesso aos indivíduos a novas formas de inscreverem-se, sobretudo através dos memes de ação popular, criando um excesso de sentidos que desafia o sistema sobre como se deve construir e receber textos e imagens, especialmente em um contexto eleitoral de papéis pretensamente determinados. Assim, as questões sensíveis se afloram, valendo-se em grande parte a apelos emocionais e utilizando desses formatos para construção da política com base na dimensão subjetiva, para além da relação candidato-eleitor- urna. Uma experiência estética que tem as palavras abertas a serem usadas