RELAÇÕES DE COMPLEMENTAÇÃO NO PORTUGUÊS BRASILEIRO LILIANE SANTANA UMA PERSPECTIVA DISCURSIVO-FUNCIONAL RELAÇÕES DE COMPLEMENTAÇÃO NO PORTUGUÊS BRASILEIRO CONSELHO EDITORIAL ACADÊMICO Responsável pela publicação desta obra José Horta Nunes (coordenador) Claudia Zavaglia Erotilde Goreti Pezatti Sanderléia R. Longhin-Thomazi RELAÇÕES DE COMPLEMENTAÇÃO NO PORTUGUÊS BRASILEIRO UMA PERSPECTIVA DISCURSIVO-FUNCIONAL LILIANE SANTANA Editora afiliada: CIP – Brasil. Catalogação na fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ S223r Santana, Liliane Relações de complementação no português brasileiro: uma perspectiva discursivo-funcional / Liliane Santana. – São Paulo : Cultura Acadêmica, 2010. Inclui bibliografi a ISBN 978-85-7983-116-4 1. Língua portuguesa – Gramática. 2. Língua portuguesa – Sujeito e predi- cado. 3. Funcionalismo (Linguística). 4. Língua portuguesa – Brasil – Uso. I. Título 11-0099. CDD: 469.5 CDU: 811.134.3'367.33 Este livro é publicado pelo Programa de Publicações Digitais da Pró-Reitoria de Pós-Graduação da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) © 2010 Editora UNESP Cultura Acadêmica Praça da Sé, 108 01001-900 – São Paulo – SP Tel.: (0xx11) 3242-7171 Fax: (0xx11) 3242-7172 www.editoraunesp.com.br feu@editora.unesp.br LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS 1: primeira pessoa 2: segunda pessoa 3: terceira pessoa A: actor ACC: acusativo AUX: auxiliar COND: condicional CONJ: conjunção DEF: definido DIR: direção FAM: familiar FUT: futuro GDF: gramática discursivo-funcional GF: gramática funcional IMPF: imperfectivo INCH: incoativo IND: completiva finita no indicativo INDC: modo indicativo INF IMPES: completiva não finita com infinitivo impessoal como núcleo INF PES: completiva não finita com um infinitivo pessoal como núcleo INV: inverso LOG: logofórico M: masculino NOM: completiva não finita com uma nominalização como núcleo NOMT: nominativo OBV: obviativo PFV: perfectivo PL: plural POL: polido PROX: proximativo PRS: tempo presente PTCP: particípio SG: singular SUBJ: completiva finita no subjuntivo TAM: tempo, aspecto e modo TNS: tempo U: undergoer SUMÁRIO Introdução 9 Parte I A complementação na perspectiva discursivo-funcional 1 A noção de complementação em diferentes perspectivas 17 2 A complementação na perspectiva funcional 45 3 A gramática discursivo-funcional 93 Parte II Análise da complementação no português falado 4 Universo de pesquisa e procedimentos metodológicos 129 5 Descrição funcional dos tipos de construções encaixadas nominais e verbais 147 Parte III Generalizações e implicações teóricas 6 Motivações funcionais da gradação entre construções encaixadas nominais e verbais 231 Referências bibliográficas 253 INTRODUÇÃO Neste livro, investigam-se os tipos de orações completivas, distri- buídas numa hierarquia entre mais ou menos verbal/nominal, tendo como suporte dados reais de conversação.1 Trata-se de um trabalho sobre a gramática da complementação do português brasileiro, mais especificamente sobre construções gramaticalmente disponíveis, com base em determinados tipos de predicados encaixadores verbais, em relação ao papel que essas construções exercem nas estruturas completivas do português. As línguas podem ter mais de uma expressão morfossintática disponível para a expressão de orações completivas e produzir uma variedade de tipos de construções encaixadas intra e interlinguisti- camente (Dik, 1997b). O estudo que proponho aqui tem como base a escala de variação entre construções encaixadas que figuram como complemento de orações hierarquicamente superiores, isto é, orações 1 Neste livro, o termo completiva compreende as orações tradicionalmente de- nominadas orações substantivas objetivas diretas e indiretas, que, por definição, são introduzidas por predicado encaixador de natureza verbal. De acordo com Neves (2000), as orações substantivas são orações que equivalem a um sintagma nominal, isto é, têm as características de um elemento nominal. As orações que interessam para este trabalho são as que funcionam como argumento objeto da oração principal. 10 LILIANE SANTANA completivas finitas plenamente desenvolvidas e orações completivas não finitas com um verbo infinitivo ou com uma nominalização como núcleo. Essa escala de variação fornece um conjunto de construções alternativas, cuja seleção pode depender de fatores funcionais, em- bora não seja uma possibilidade aberta a todos os tipos de predicados encaixadores. O predicado encaixador volitivo querer, por exemplo, pode ter como complemento construções mais verbais, como (1a), e construções mais nominais, como (1b-c); entretanto, para que uma oração não finita com infinitivo como núcleo ocorra com um predi- cado como querer, por exemplo, como em (1b), é necessário que os participantes das orações matriz e subordinada sejam correferentes. Isso significa que as restrições possíveis ultrapassam a simples ca- racterização semântica do predicado encaixador. (1) a. Alfredo queria que Alexandre brigasse com Ana. b. Alfredo queria brigar com Ana. c. Alfredo queria a briga de Alexandre com Ana. No português, num extremo da escala gradativa verbo/nome, é possível dispor de construções encaixadas verbais e, noutro extremo, de construções equivalentes a um membro prototípico dos nomes, uma nominalização;2 nesse continuum entre construções plenamente verbais e construções plenamente nominais, há também construções que oscilam entre as mais verbais e as mais nominais. Diante disso, uma questão importante que se coloca é a do modo como se dá a 2 Ao tratar do caráter +/– prototípico da nominalização, Camacho (2009, p.38) considera que “o membro prototípico de uma categoria deve exibir todos os atributos que a representam e nenhum que represente outra categoria”. Uma consequência disso é, segundo o autor, que um membro prototípico da classe dos nomes deve ser maximamente distinto de um membro prototípico da classe dos verbos. As nominalizações têm um caráter híbrido, a meio caminho entre a referência a uma entidade de primeira ordem, como os nomes comuns concretos, e a referência a um estado de coisas, como entidades de ordem su- perior. Na escala gradativa verbo/nome, quanto mais a construção encaixada se aproxima do polo do nome, mais o comportamento dela se aproxima de um membro prototípico da classe dos nomes. RELAÇÕES DE COMPLEMENTAÇÃO NO PORTUGUÊS BRASILEIRO 11 seleção entre as diferentes expressões morfossintáticas quando o predicado encaixador fornece pelo menos duas alternativas possí- veis. Outra questão igualmente relevante é saber em que condições a semântica do predicado encaixador impõe um padrão determinado para a expressão formal da complementação. Se diferentes construções da escala gradual entre verbo e nome podem ocupar a posição de argumento na predicação de nível su- perior, é relevante verificar que motivações semânticas movem o indivíduo falante a fazer determinado tipo de predicação encaixada em detrimento de outro. Há, além disso, situações em que o estado de coisas da oração independente é dotado de suficiência formal e semântica para que a oração encaixada seja, por exemplo, obrigato- riamente uma nominalização ou obrigatoriamente uma oração finita. Nesse caso específico, é igualmente relevante verificar a natureza das motivações que regem esse tipo de construção complexa. O que procuro investigar neste livro é a variação entre cons- truções completivas mais nominais e construções mais verbais e as consequências dela decorrentes. Meu interesse recai, dessa forma, nas possíveis motivações que governam, por um lado, as formas de construções completivas que se alternam na escala gradiente entre verbo/nome em português e, por outro, na seleção obrigatória de uma única construção encaixada. O fenômeno da complementação sentencial é, de um modo geral, entendido como um mecanismo sintático em que uma oração é estru- turada como argumento de um predicado (cf. Givón, 1980; Noonan, 1985; Langacker, 1991; Dik, 1997b). De acordo com um critério funcional-cognitivo, desenvolvido por Cristofaro (2003), com base em Langacker (1991), a subordinação completiva será tratada aqui como um modo de construir uma relação cognitiva entre dois estados de coisas.3 A um dos estados de coisas, o estado de coisas dependente, 3 Estados de coisas são entidades de segunda ordem (cf. Lyons, 1977); ocorrem no mundo real ou podem ser criados no mundo mental do emissor e do desti- natário; localizam-se no tempo e no espaço; podem ter certa duração; podem ser vistos, ouvidos ou percebidos de alguma forma (cf. Dik, 1997a; Hengeveld & Mackenzie, 2008). 12 LILIANE SANTANA falta um perfil autônomo, sendo, por isso, construído a partir da perspectiva do outro estado de coisas, o estado de coisas principal.4 Os estudos sobre a subordinação completiva conferem atenção especial ao modo como as propriedades do predicado encaixador e da completiva interagem para determinar as possibilidades de um constituinte figurar como matriz ou como complemento de outro constituinte. Para Faber & Usón (1999), as diferentes concepções teóricas acerca do tema são determinadas pelo ponto de vista a res- peito da relação que se estabelece entre o predicado encaixador e a oração completiva. Este trabalho, que adota uma perspectiva funcionalista para a análise de fenômenos linguísticos, traz uma concepção semântica das relações de complementação. A base teó- rica é a gramática discursivo-funcional (Hengeveld & Mackenzie, 2008), muito embora outros suportes de orientação funcionalista, tais como Givón (1980, 1995), Noonan (1985), Lehmann (1988), Koptjevskaja-Tamm (1993), Cristofaro (2003), Malchukov (2004) e Dixon (2006), também sirvam como base para as hipóteses e in- terpretações aqui apresentadas. Um dos postulados fundamentais da teoria da gramática funcio- nal (Dik, 1997a, 1997b) e, agora, da gramática discursivo-funcional (GDF) é a necessidade de ajustar-se aos requisitos do princípio de adequação (i) tipológica, que está na formalização e na representação em camadas, (ii) psicológica, contido na própria formulação top-down do modelo recente, e (iii) pragmática, que parte de uma concepção do modelo no que diz respeito às propriedades da expressão linguística e aos princípios e às regras que governam a interação verbal. Assim, este trabalho encontra justificativa, por um lado, na necessidade empírica em si de descrever e explicar a língua falada a partir da de- 4 Cristofaro (2003) apresenta um estudo tipológico dos sistemas de subordinação, atribuindo os três tipos de relação de subordinação – completiva, adverbial e relativa – aos mesmos princípios funcionais. Ao tratar das subordinadas completivas, a autora se restringe às tradicionalmente denominadas orações objetivas diretas. Mesmo se restringindo somente a essas completivas, o critério funcional-cognitivo de Cristofaro (2003) é suficiente para os propósitos deste trabalho. RELAÇÕES DE COMPLEMENTAÇÃO NO PORTUGUÊS BRASILEIRO 13 finição de um fenômeno particular da estrutura do português, e, por outro, na necessidade teórica de testar os fundamentos metodológicos da GDF, na generalização dos fenômenos descritivos em direção a generalizações teoricamente produtivas sobre a complementação. A hipótese mais geral que dirige este trabalho é a de que quanto mais baixa a camada de representação do complemento, tanto maior o grau de integração semântica entre o predicado da oração encaixadora e o predicado da oração completiva. Um aspecto recorrente em alguns estudos que tratam do fenô- meno da complementação diz respeito às propriedades semânticas do predicado encaixador em relação à oração completiva. Givón (1980), por exemplo, considera que a natureza semântica do predi- cado encaixador pode ser vista como um fator indicativo do grau de integração da oração subordinada à oração matriz. Hengeveld (1989, 1998) e Hengeveld & Mackenzie (2008) postulam que diferentes predicados encaixadores requerem diferentes tipos de complementos, cuja classificação depende da camada em que estejam contidos. Numa perspectiva tipológica, Cristofaro (2003) entende que as relações completivas são identificadas com base no predicado que codifica o estado de coisas principal e sua configuração semântica estabelece que tipo de especificação será requerido. A semântica do predicado encaixador de completivas parece ser altamente relevante para predicações dependentes nucleadas em torno de uma construção nominal, de modo que a gradação entre construções nominais com verbo finito e construções nominais com grau máximo de nominalidade está correlacionada à categoria semân- tica do predicado encaixador. Embora não haja necessariamente uma relação biunívoca entre a semântica e o tipo de construção, a categoria semântica do predicado encaixador é, ainda assim, um fator impor- tante para a seleção da forma de expressão das orações subordinadas. Outros fatores semânticos ligados aos princípios de economia e de iconicidade (Givón, 1980; Haiman, 1983; Cristofaro, 2003), como o compartilhamento de participantes e referência a tempo, modo e aspecto, também podem influenciar o comportamento das orações completivas, determinando sua codificação morfossintática. 14 LILIANE SANTANA Além de considerar o significado do predicado encaixador para a seleção da completiva, podem-se também observar as orações com- pletivas do ponto de vista do valor que elas expressam e analisá-las segundo o tipo de categoria para, assim, averiguar se o seu significado tem alguma influência sobre a forma que assumem. No âmbito da linguística funcional, em trabalhos como os de Dik (1997b), Dik & Hengeveld (1991) e Hengeveld (1990a, 1990b), essa proposição aparece desenvolvida, já que, nesses estudos, as orações completivas são tratadas como diferentes unidades semântico-funcionais. De qualquer modo, ainda que se analise o tipo de entidade representado pela completiva, isso pode ser feito somente a partir do significado do predicado encaixador. Assumo aqui que as estruturas sintáticas são o reflexo formal da disposição de certos valores semânticos da construção complexa. De maneira ainda bastante simplificada, pode-se dizer que a oração completiva requerida depende da natureza semântica do predicado encaixador, bem como do tipo de entidade por ela representada – de primeira, de segunda, de terceira ou de quarta ordem –, que está diretamente relacionado à gradação mais ou menos verbal/nominal do complemento.5 5 Lyons (1977) apresenta uma tipologia de entidades (três formas) que aprimora a tradicional distinção entre nomes concretos e abstratos. Nomes comuns, que têm um referente concreto, representam entidades de primeira ordem, enquanto os que se referem a estados de coisas e proposições representam entidades de segunda e de terceira ordem, respectivamente. A gramática funcional (Dik, 1997a) acrescenta a essa tipologia entidades de quarta ordem que se localizam no tempo e no espaço e podem ser avaliadas em termos de suas condições de felicidade. PARTE I A COMPLEMENTAÇÃO NA PERSPECTIVA DISCURSIVO-FUNCIONAL 1 A NOÇÃO DE COMPLEMENTAÇÃO EM DIFERENTES PERSPECTIVAS A completiva nos compêndios de gramática normativa e descritiva Na tradição gramatical, os estudos sobre subordinação apresen- tam, em sua maioria, tratamentos semelhantes, seguem uma ten- dência mais formal, isto é, em sua descrição, predominam critérios formais, baseados na dependência/independência sintática. A visão geral defendida pelos gramáticos, no que se refere à complementa- ção, é a de que a oração subordinada funciona como termo de outra oração. De um modo geral, pode-se dizer que a gramática tradicional identifica as subordinadas como orações encaixadas que represen- tam uma função sintática da oração considerada principal, por isso esse encaixamento é considerado obrigatório para as substantivas e adjetivas restritivas ou facultativo, na função de aposto, para as orações adjetivas não restritivas ou adjunto nas relações adverbiais. Nos termos de Cunha & Cintra (2008, p.612), “as orações su- bordinadas funcionam sempre como termos essenciais, integrantes ou acessórios de outra oração”. Para os autores, a subordinação é, na essência, equivalente a um período simples, distinguindo-se apenas pelo fato de ter o seu termo representado por uma oração. Seguindo esse raciocínio, Cunha & Cintra (2008, p.613) consideram que, no 18 LILIANE SANTANA exemplo em (1-1a), o complemento de esperar é um substantivo; no entanto, em vez de uma construção nominal, seria possível a ocorrência de “um termo integrante representado por uma oração”, como em (1-1b): (1-1) a. Ninguém esperava a tua vinda. b. Ninguém esperava que você viesse. Com o verbo na forma finita, as orações subordinadas são en- cabeçadas pelo conector que, que marca a subordinação oracional. Além do tipo introduzido por que, os autores apresentam também um outro tipo de oração subordinada, a reduzida, que é a oração de- pendente cujo verbo se apresenta no infinitivo. Com isso, os autores distinguem, então, dois tipos de completivas: as finitas (indicativo e subjuntivo) e as com infinitivo. Cegalla (2009) não foge à regra. A oração subordinada é vista como aquela que depende da oração matriz, servindo-lhe de termo, em termos de função sintática, e completando-lhe o sentido. Da mesma forma que Cunha & Cintra (2008), o autor considera dois tipos de completivas: a oração substantiva objetiva direta e indireta, quando desenvolvida, e a reduzida com infinitivo. Como as nomi- nalizações aparecem, nas duas gramáticas, como exemplo de termos simples, elas não são consideradas um tipo de construção completiva oracional, a despeito de representarem, semanticamente, entidades de segunda ordem, já que o tratamento é formal. Respeitando o “peso da tradição”, Bechara (2009) vê a com- pletiva, primeiramente, como uma unidade de caráter oracional, uma oração complexa, para, posteriormente, analisar como oração subordinada o complexo unitário correspondente à função sintá- tica exercida pelo substantivo. A marca de que uma oração passa por um processo de subordinação, funcionando como membro de outra oração, é a presença de que. Segundo Bechara (2009, p.464), a conjunção integrante não tem a função de juntar duas orações, mas de “marcar o processo por que se transpôs uma unidade de camada superior (uma oração independente) para funcionar numa camada RELAÇÕES DE COMPLEMENTAÇÃO NO PORTUGUÊS BRASILEIRO 19 inferior, como membro de outra oração”. Daí preferir a expressão orações complexas à denominação tradicional orações compostas ou período composto, isto é, orações que têm termos determinantes ou argumentais complexos, representáveis sob forma de outra oração, reservando orações ou períodos compostos para a coordenação. O autor ressalta que as orações reduzidas são também subordinadas e quase sempre podem ser desdobradas em desenvolvidas, apresentando exemplos em que há equivalência semântica, como em “declarei estar ocupado” e “declarei que estava ocupado”. Tanto Bechara (2009) quanto Vilela (1999) e Said Ali (2001) tratam da relação entre hipotaxe e subordinação. Segundo Bechara (2009), a hipotaxe consiste na possibilidade de uma unidade corres- pondente a um estrato superior poder funcionar num estrato inferior: uma oração passar a funcionar como membro de outra oração, e isso é o que se chama subordinação. Para subordinar uma oração, é necessário, primeiramente, marcar a relação, isto é, indicar que uma estrutura oracional de verbo flexionado funciona como membro de uma oração (e não como oração independente) e, posteriormente, indicar a função que essa estrutura exerce na oração complexa. No português, a marca de subordinação é que. Tal como Bechara (2009), Azeredo (2000) também denomina de transpositor a marca de subordinação, cujas características básicas são o fato de pertencerem às unidades que introduzem e servirem de marca formal da classe dessas unidades. A transposição é, desse modo, um processo gramatical “pelo qual se formam sintagmas derivados de outras unidades, as quais podem ser sintagmas básicos ou orações”, permitindo “expandir infinitamente os enunciados, me- diante a utilização de um número limitado de meios – os transposito- res – e de um número limitado de relações semânticas fundamentais” (Azeredo, 2000, p.211). No que tange às conjunções integrantes que transpõem a oração à condição de substantivo, o autor as denomina nominalizadoras. Ainda sobre o subordinador que, Perini (1995) defende a ideia de que ele não faz parte da oração subordinada. Esse elemento não teria função conhecida dentro da oração, além do fato de que uma 20 LILIANE SANTANA sequência introduzida por que não poderia ocorrer sozinha. Argu- menta que, nos casos de oração desenvolvida, constrói-se o comple- mento verbal por meio de um sintagma nominal composto por que + oração. Vilela (1999, p.383) denomina as subordinadas substantivas de frases de complemento: são frases dependentes que “ocupam os lugares vazios dos portadores de valência”. Segundo o autor, “o predicado da frase subordinante tem a capacidade de designar os traços, as propriedades de estados de coisas das frases subordinadas delas dependentes” (ibidem). Mateus et al. (1983) caracterizam as orações completivas como estruturas de encaixe, classificando as orações de acordo com a forma verbal. Em Mateus et al. (2003), as autoras estabelecem algumas distinções e propriedades das completivas finitas, que ocorrem com verbos desenvolvidos no indicativo ou conjuntivo, e não finitas, que ocorrem no infinitivo flexionado ou não flexionado. Mateus et al. (2003) consideram que as completivas finitas são unidades (ou termos) constituintes da oração matriz (frase superior) e confirmam isso por meio de testes de constituência, como a subs- tituição (i) por pronome demonstrativo (pronominalização), como em (1-2a-b), e (ii) por um item de polaridade afirmativa ou nega- tiva, como em (1-3a-b) – método que distingue o complementador introdutor (que constitui o núcleo sintático da completiva finita) e a completiva. (1-2) a. Os críticos disseram [que esse filme ganhou o festival]. b. Os críticos disseram [isso]. (1-3) a. Os críticos disseram que [esse filme ganhou o festival]. b. Os críticos disseram que [sim/não]. As autoras estabelecem também relação entre as propriedades semânticas dos verbos da matriz e a seleção do modo da completiva. Buscando a configuração dos contextos em que ocorre o modo indi- cativo ou o modo subjuntivo, apresentam as seguintes características: RELAÇÕES DE COMPLEMENTAÇÃO NO PORTUGUÊS BRASILEIRO 21 Quadro 1 – Caracterização do modo verbal da completiva. Indicativo Subjuntivo Indica conhecimento, crença Predicados assertivos [+ epistêmico] Completiva [- dependente] Maior valor de verdade Verbos factivos Predicados pseudo-assertivos [- epistêmico] Completiva [+ dependente] Menor valor de verdade Fonte: Mateus et al. (2003, p.609). Os verbos epistêmicos, como acreditar, crer, duvidar, pensar, e avaliativos, como gostar, estão entre os verbos que selecionam com- pletivas com relação de objeto direto. São verbos que selecionam completivas tanto no modo indicativo quanto no subjuntivo (cf. Mateus et al., 2003). No modo indicativo, o sujeito da completiva que aparece lexicalmente realizado é interpretado como não correferencial ao sujeito da matriz, no português europeu. (1-4) Joãoi acredita que elej está à espera de Maria. Ao contrário, se o sujeito da completiva não aparece lexicalmente realizado, mas tem traços de pessoa e número compatíveis com o sujeito da matriz, é entendido preferencialmente como correferencial: (1-5) Joãoi acredita que [i] está à espera de Maria. Com base nessas interpretações, Mateus et al. (2003) propõem que, nas línguas que admitem sujeito nulo nas completivas não finitas, evite-se o pronome sujeito nas completivas finitas quando se pretende correferencialidade entre os sujeitos. Na realidade, o tratamento semântico de Mateus et al. (2003) tem o objetivo claro de fornecer uma especificação para a expressão formal das completivas, seja em termos do modo, seja em termos de expressão de argumentos. As autoras relacionam os predicadores que selecionam comple- tivas oblíquas finitas à subclasse dos verbos de controle de objeto, ou seja, àqueles que selecionam um sintagma nominal objeto direto que funciona como sujeito da completiva finita (como os predicados 22 LILIANE SANTANA aconselhar, convencer, convidar e forçar). Esse tipo de completiva pode ser introduzido pelas preposições a (habituar-se), de (aperceber-se, arrepender-se, convencer-se, envergonhar-se, esquecer-se, lembrar-se, recordar-se), em (concordar, insistir) e por (esforçar-se e interessar-se). Quanto aos predicadores que selecionam completivas oblíquas não finitas, Mateus et al. (2003) postulam que as preposições não funcionam como os complementadores (introduzindo a completiva), já que, nas completivas finitas correspondentes, precedem obrigato- riamente o complementador que. Essas construções são denominadas infinitivas canônicas por não poderem ser substituídas por orações com gerúndio, construindo-se tanto com o verbo no infinitivo não flexionado quanto flexionado. Neves (2002) considera que as orações substantivas constroem- se com verbos no infinitivo ou finitos. Essas construções podem vir introduzidas por uma conjunção integrante – casos em que o verbo apresenta-se em uma forma finita no indicativo ou subjuntivo – e funcionam como complemento de um termo de outra oração, o predi- cado matriz. As orações completivas têm, assim, o papel de argumen- to em relação a um termo valencial da oração principal. De acordo com Neves (2002), como argumento do verbo, as orações completivas podem exercer todas as funções argumentais ligadas ao verbo exer- cidas por um sintagma nominal (sujeito, objeto direto e indireto). As orações completivas verbais (objetivas diretas e indiretas) são tratadas por Neves (2002) em relação aos tipos de predicados matri- zes. A autora apresenta as possibilidades de ocorrência de construções finitas ou não finitas, tendo em vista a correferencialidade (ou a falta de correferencialidade) dos sujeitos da oração matriz e da completiva. Verbos de elocução (como dizer, perguntar etc.), de atividade mental (como achar, acreditar, imaginar etc.), avaliativos factivos (como adorar, gostar, lamentar etc.), volitivos (como desejar, preferir, espe- rar etc.), factitivos (como mandar, deixar, fazer etc.) e de percepção (como ver, ouvir e sentir) introduzem orações completivas diretas.1 1 Neves (2002, p.348) faz menção às construções nominalizadas ao considerar que alguns verbos, como os de atividade mental, assumem complementos não oracionais, e, quando isso ocorre, “o sintagma nominal que o compõe é repre- sentado por uma nominalização”. RELAÇÕES DE COMPLEMENTAÇÃO NO PORTUGUÊS BRASILEIRO 23 As orações completivas indiretas podem ser introduzidas pelas preposições a/de/com/em/para + que com verbo na forma finita, sendo o sujeito da matriz e da completiva não correferencial; quando introduzida pelas preposições a/de/com/em/para como verbo no infinitivo, o sujeito da completiva é entendido, em princípio, como correferencial ao sujeito da oração matriz (cf. Neves, 2002). As com- pletivas indiretas aparecem exemplificadas pela autora com verbos reflexivos, como lembrar-se, esquecer-se, recordar-se, conscientizar-se etc., e com verbos não reflexivos, como obrigar, duvidar, insistir etc. O aparato formalista A abordagem gerativista parte do pressuposto de que uma teoria da complementação tem por objetivo elucidar a estrutura interna do predicado, atribuindo ao núcleo do predicado características específi- cas para explicar a ocorrência ou não de complementos. A subcatego- rização do verbo determina a categoria do complemento e as restrições de seleção explicitam as características semânticas do complemento. A premissa central da abordagem gerativista é a de que a estrutura sintática da frase é projetada a partir das informações lexicais de seus elementos. As regras de estrutura frasal constituem restrições sobre a combinação de informações lexicais invioláveis. Na relação entre léxico e sintaxe, é o léxico que determina a sintaxe. Um problema com essa abordagem é, segundo Dillinger et al. (1996), a redundância de representação. A informação concernente à classe de esquemas de subcatego- rização é, de fato, dada duas vezes na gramática: uma – implicita- mente – no léxico, como uma propriedade da classe de itens lexicais em sua totalidade; e outra – dessa vez diretamente – pelas regras do componente categorial. (Chomsky, 1981, p.31)2 2 Cf. original: “information concerning the class of subcategorization frames is in effect given twice in the grammar: once – implicitly – in the lexicon, as a property of the class of lexical items in its totality; and once – this time directly – by the rules of the categorial component”. 24 LILIANE SANTANA A teoria X-barra procurou reformular as regras de estrutura frasal sem se referir às categorias específicas, de modo a eliminar a redundância de representação: A informação sobre a classe de esquemas de subcategorização, que é dualmente representada, não pode ser eliminada da entrada lexical. Portanto, deveríamos tentar eliminá-la do componente ca- tegorial. O princípio de projeção, de fato, realiza isso, de um modo suficientemente amplo. Dado o princípio de projeção e as proprie- dades gerais da teoria X-barra, o componente categorial para uma gramática particular será muito restrito. (ibidem, p.32)3 A teoria X-barra reduz a estrutura frasal à relação de predicação, que se dá entre o sujeito e o núcleo do predicado, e à relação de com- plementação, que ocorre entre o núcleo do predicado e seus comple- mentos. Outra consequência é, segundo Stowell (1982), a virtual eliminação de especificação categorial da teoria da estrutura frasal, o que proporciona uma harmonia categorial, já que tanto o verbo quanto as outras categorias maiores teriam sujeito e complementos. De acordo com Dillinger et al. (1996), a complementação é de- terminada principalmente por informações lexicais idiossincráticas sujeitas às restrições sistemáticas da teoria X-barra. A inviolabilidade das informações lexicais é garantida pelo princípio de projeção e pelo critério theta. O critério temático estipula quantos argumentos o item permite e que tipo de relação se dá entre esse item e o outro realizado como seu argumento. Ao propor essa abordagem, Chomsky (1986) postula uma relação sistemática entre categorias semânticas e categorias sintáticas. Segundo Chomsky (1986, p.86), “se um verbo (ou outro 3 Cf. original: “The information about the class of subcategorization frames that is thus dually represented cannot be eliminated from lexical entries. Therefore, we should attempt to eliminate it from the categorial component. The projection principle in fact accomplishes this, in a quite sweeping way. Given the projection principle and the general properties of X-bar theory, the categorial component for a particular grammar will be quite meager”. RELAÇÕES DE COMPLEMENTAÇÃO NO PORTUGUÊS BRASILEIRO 25 núcleo) s-seleciona uma categoria semântica C, então ele c-seleciona uma categoria sintática que é a ‘realização estrutural canônica’ de C”.4 As informações categoriais são eliminadas do componente de estru- tura frasal pela adoção da teoria X-barra e são eliminadas do léxico, sendo possível derivá-las das restrições de s-seleção e da especificação das realizações estruturais canônicas. Somente são representadas lexicalmente eventuais características idiossincráticas de c-seleção. Ouhalla (1991) propõe a eliminação da c-seleção dos elementos lexicais das classes maiores, para os quais somente seriam estipuladas as características de s-seleção, e restringe a especificação de c-seleção às categorias funcionais. O critério temático de Chomsky (1981) estipula que as informações temáticas especificadas lexicalmente têm que receber uma manifestação na estrutura frasal que seja não ambígua, isto é, para cada papel temático corresponderá somente um constituinte da frase. Nesse quadro, a complementação não é neces- sariamente determinada pelas características do verbo: a c-seleção é derivada da s-seleção, portanto não é diretamente importante na estrutura frasal. A s-seleção, por sua vez, por se tratar de proprieda- des semânticas, é uma característica da interpretação semântica e não necessariamente da construção da estrutura frasal a ser interpretada. Para Dillinger et al. (1996), o que resta como determinante im- portante da complementação é, na verdade, a teoria X-barra, ou seja, os princípios de estrutura sintática que são independentes das informações lexicais e semânticas. Segundo os autores, partir do pressuposto de que é principalmente a teoria X-barra que determina a natureza da complementação permite chegar à hipótese da existência de uma estrutura sintática padrão, definida pela formulação dessa teoria, que prevê para a frase um sujeito, um verbo, um complemento e um número indeterminado de adjuntos (Jackendoff, 1977). No que tange especificamente à complementação oracional, em seu trabalho, Dillinger et al. (1996) consideram certos fatores que condicionam a complementação verbal que apresenta um dos argu- mentos realizados sob a forma de uma sentença. 4 Cf. original: “if a verb (or other head) s-selects a semantic category C, then it c-selects a syntactic category that is the ‘canonical structural realization’ of C”. 26 LILIANE SANTANA Um primeiro fator analisado pelos autores diz respeito ao tipo de verbo matriz. As sentenças completivas são classificadas segundo sua finitude; assim, os autores tratam das orações finitas com indicativo e com subjuntivo, as infinitivas e as miniorações (small clauses), e as relacionam com o tipo de verbo matriz, em termos da exigência de complementos; como se vê, essa relação é formal, não semântica, pois parte da ideia de que o predicado abre lacunas a serem preenchidas por argumentos – termos simples ou complexos. Na análise dos dados, os autores observam que, com verbos de um complemento, o indicativo é o segundo mais usado, perdendo em frequência apenas para o infinitivo. Em relação aos verbos de dois complementos, há uma tendência para que o complemento seja uma oração finita com indicativo. As miniorações aparecem somente com verbos de um complemento. Esses complementos estão asso- ciados a um tipo de verbo que seleciona um tipo de complemento característico, que é incompatível com outro complemento. O com- plemento infinitivo é, segundo os autores, o mais privilegiado, por perfazer o maior número de ocorrências em relação aos outros tipos de complementos. Os números confirmam, assim, a facilidade com que esse tipo de complemento tende a ser escolhido. O subjuntivo é o tipo menos favorecido, com apenas uma ocorrência para cada tipo de verbo analisado (de um ou de dois complementos). Outro fator analisado diz respeito à ordem dos constituintes no complemento sentencial, mais especificamente a posição do sujeito e do verbo, e do verbo e do objeto. Os autores salientam que a posição, tanto do sujeito quanto do objeto, segue o arranjo distribucional canônico, com sujeito anteposto e objeto posposto ao verbo. Além do tipo de verbo e da ordem dos constituintes no comple- mento sentencial, os autores observam também a relação entre a natureza semântica do verbo matriz e o tipo de complemento, sen- tença no indicativo e no infinitivo – um fator, então, menos formal em relação aos outros. Para os autores, os resultados obtidos deixam claro que a natureza semântica do verbo desempenha um papel no tipo de complemento que ele seleciona, se não por restringir-se a um único complemento, pelo menos por estabelecer condições restritivas quanto ao tipo de complemento que pode ser selecionado. RELAÇÕES DE COMPLEMENTAÇÃO NO PORTUGUÊS BRASILEIRO 27 Mioto & Kato (2002) apresentam uma análise formal das orações subordinadas, complementando o estudo empírico de Dillinger et al. (1996), sobre as completivas de verbos, assim como o de Neves (1996), sobre as completivas de nomes. No trabalho de Mioto & Kato (2002), os autores acrescentam as construções completivas de adjetivo, além de representarem alguns tipos de orações adverbiais. Mioto & Kato (2002) argumentam que, no tratamento da subor- dinação sentencial, devem-se considerar dois aspectos: um aspecto interno, voltado para a estrutura da própria sentença (finita ou não finita), e um aspecto externo, em que se encontram os constituintes responsáveis pelo licenciamento e pela forma da sentença subordi- nada. Em termos de estrutura e função, uma sentença encaixada é uma categoria funcional CP (C = complementizador), que responde pela interface entre o conteúdo proposicional e a estrutura externa. De acordo com Rizzi (1997 apud Mioto & Kato, 2002), o sistema C deve expressar dois tipos de informação, um voltado para o exterior e o outro para o interior. O aparato formalista tem uma concepção puramente sintática das relações de complementação. A relação entre oração matriz e subordi- nada é tratada em termos de configurações sintáticas que são estabe- lecidas para os constituintes de uma língua de acordo com a estrutura formal de seus complementos. No trabalho de Dillinger et al. (1996), é possível observar especificamente motivações semânticas nas rela- ções de complementação; mesmo assim, elas parecem ser determi- nadas, primeiramente, por traços sintáticos, cabendo à informação semântica dos constituintes apenas um papel adicional e secundário. O aparato funcionalista Halliday & Hasan (1979) compreendem a frase complexa a partir dos mecanismos de coesão textual. Para os autores, conjunção é um tipo de relação coesiva que especifica o modo como aquilo que vem depois é sistematicamente conectado com o que vem antes; frase complexa, por sua vez, é a unidade gramatical acima da oração, equi- 28 LILIANE SANTANA valente à sentença. A oração hipotática é definida como uma oração dependente da outra, mas que não está estruturalmente integrada a ela como um constituinte. Enquanto a oração encaixada perde sua identidade funcional como oração, a oração hipotática, ao contrário, não a perde, mantendo-se como elemento da estrutura da oração complexa, e, por isso, serve prontamente de alvo da pressuposição a partir da outra oração complexa (ibidem). Essa é a base da distinção entre hipotaxe e encaixamento, que, segundo esses autores, não fica clara com o uso do termo embedding. Halliday (1985) estabelece a distinção entre encaixamento, de um lado, e relações táticas de parataxe e de hipotaxe, de outro. A parataxe e hipotaxe codificam relações entre orações; o encaixamento, por sua vez, é um sistema lógico-semântico e constitui um mecanismo pelo qual uma oração desempenha uma função na estrutura de uma outra oração. Há, segundo o autor, duas dimensões na interpretação da frase complexa, uma formal e a outra lógico-semântica: • O sistema de interdependência, ou sistema tático, que é formado pela parataxe, que constitui a relação entre dois elementos de igual estatuto (um iniciando e o outro continuando), e pela hi- potaxe, que constitui a relação entre elementos de diferentes es- tatutos, isto é, entre um elemento dependente e seu dominante. • O sistema lógico-semântico de expansão e projeção refere-se a uma relação interoracional, ou melhor, relação entre proces- sos, geralmente expresso na gramática como um complexo de orações. As relações entre orações, interpretadas em termos do compo- nente lógico do sistema linguístico, são identificadas como relações semântico-funcionais que fazem a lógica da linguagem natural (cf. Halliday, 1985). Van Valin (1984) mantém a distinção de Halliday & Hasan (1979), postulando o envolvimento de dois componentes na oposição coorde- nação versus subordinação: a dependência na forma [+/- dependente] e o encaixamento de uma estrutura na outra [+/- encaixado]. O autor estabelece três relações de ligação, conforme o grau de tensão sintática RELAÇÕES DE COMPLEMENTAÇÃO NO PORTUGUÊS BRASILEIRO 29 que resulta da combinação das orações: (i) coordenação: [– depen- dente, – encaixado]; (ii) subordinação: [+ dependente, – encaixado], que corresponderia às orações hipotáticas de Halliday & Hasan (1979); (iii) cossubordinação: [+ dependente, + encaixado], que corresponderia às orações encaixadas de Halliday & Hasan (1979). Lakoff (1984) atribui a dificuldade de se trabalhar com coorde- nação e subordinação ao enfoque dicotômico, em que ser uma coisa não implica não ser outra. Expandindo esse ponto de vista simplifi- cador, essa autora propõe uma classificação gradual das orações, o que permitiria ser uma oração mais ou menos coordenada ou mais ou menos subordinada, conforme as características que apresente. Desse modo, distribui as orações tradicionalmente coordenadas e subordinadas em um continuum que envolve quatro níveis: no pri- meiro nível está a parataxe pura, em que as orações são justapostas sem conector explícito; no segundo nível está a mixotaxe, em que as orações são coordenadas com a presença de conjunção coordenativa, que explicita a existência de relação entre as orações; no terceiro nível, o da quase hipotaxe, há subordinação de uma ideia ou de uma oração a outra, sendo as duas orações sintaticamente autônomas e estando o conector explícito; no quarto nível, o da hipotaxe pura, as orações estão subordinadas tanto sintático quanto semanticamente por causa da perda da identidade sentencial plena de uma das orações. Nessa proposta de Lakoff (1984), a hipotaxe pura corresponde ao encaixamento, e a quase hipotaxe, à hipotaxe, na terminologia de Halliday & Hasan (1979). Matthiessen & Thompson (1988) fornecem um tratamento dis- cursivo para a hipotaxe. Por acreditarem não ser suficiente apenas conhecer o grau de independência das orações, os autores procuram detectar que função discursiva motiva a gramática da hipotaxe. A hipótese levantada é a de que a gramática da combinação de orações reflete a organização do discurso, ou seja, a hipotaxe é uma grama- ticalização da estrutura organizacional do texto. Deixa-se de lado, desse modo, a gramática da combinação da oração para explorar a organização retórica do discurso. A descrição dessa estrutura é dada pelas relações retóricas entre as partes de um texto (relações de 30 LILIANE SANTANA motivação de concessão, de circunstanciação, de condição etc.), que são de dois tipos: relação núcleo-satélite, em que um membro do par relacionado é subordinado ao outro, e relação de listagem, em que nenhum membro do par é subordinado. Há uma analogia explícita entre a organização retórica do discurso e a organização gramatical das orações: ambas têm uma estrutura cujos elementos são interdependentes, correspondendo a distinção entre relações retóricas de listagem e de núcleo-satélite à distinção gramatical entre parataxe e hipotaxe (cf. Matthiessen & Thompson, 1988). Desse modo, a oração encaixada é um argumento que com- põe uma predicação, enquanto as orações hipotáticas têm função de satélite e formam orações combinadas. Lehmann (1988) postula uma classificação gradual da articulação de orações, que, abrangendo dois extremos prototípicos em cada um dos polos do continuum, vai da parataxe ao encaixamento. A parataxe é entendida como a coordenação de orações; a hipotaxe e o encai- xamento são vistos como dois tipos particulares de subordinação: a hipotaxe é a subordinação no sentido estrito, e o encaixamento, a dependência de um sintagma subordinado. O autor se detém no processo de integração da construção subor- dinada à principal, tratando da dessentencialização, ou seja, de um processo de rebaixamento hierárquico em que uma oração perde suas características para tornar-se um constituinte da oração principal. Num extremo do continuum, em que figura a sentencialidade em grau máximo, não há uma relação hierárquica entre duas orações que formam a sentença complexa (processo chamado de parataxe); noutro extremo, em que figura a sentencialidade em grau mínimo, está a típica oração encaixada, governada por um verbo principal (subordinação). sentencialidade nominalidade oração construção não finita nome verbal Fonte: Adaptada de Lehmann (1988, p.200). Figura 1 – Dessentencialização. RELAÇÕES DE COMPLEMENTAÇÃO NO PORTUGUÊS BRASILEIRO 31 Orações subordinadas, normalmente, não têm sua própria força ilocucionária, mas os casos que têm, restritos, em geral, aos predica- dos performativos, vão-se tornando raros¸ segundo Lehmann (1988), na medida em que se aproximam do polo direito do continuum. Uma outra consequência da dessentencialização é a restrição de modo, além das categorias verbais de tempo e aspecto. Como, segundo o autor, em várias línguas, a oração subordinada finita aparece no subjuntivo, a restrição de modo está intimamente ligada à perda de força ilocucionária: na medida em que uma construção finita, gradualmente, passa a não finita, limita-se o modo. Lehmann (1988), respaldando-se em Dik (1985) e Mackenzie (1985), assinala que o processo de dessentencialização afeta a re- lação do predicado verbal com seus argumentos. O sujeito de uma predicação subordinada relativamente “enfraquecida” converte-se em um oblíquo, ou simplesmente se perde a posição estrutural de sujeito. Esse argumento interno é, assim, o primeiro a ser afetado pela dessentencialização. Numa nominalização, os sintagmas nominais correspondentes aos argumentos do verbo finito aparecem no geni- tivo ou em sintagmas adposicionais.5 Um verbo não completamente nominalizado pode ter um objeto direto e um advérbio; já um verbo mais nominalizado é modificado por um adjetivo, como um nome. Quanto mais a construção subordinada se aproxima do polo direito do continuum, mais o comportamento dela se aproxima ao de um membro prototípico dos nomes. Nesse sentido, pode-se falar de um grau crescente de nominalidade quando a oração subordinada é hierarquicamente rebaixada pelo processo de dessentencialização. Segundo Neves (1999), tanto na linha da dependência (indepen- dência – interdependência – dependência) quanto na linha da inte- gração gramatical (coordenação – cossubordinação – subordinação), supõe-se um continuum, que permite investigações como a que está em Lehmann (1988): 5 Lehmann (1988) baseia-se no inglês, cuja gramática codifica um dos argumen- tos como a forma genitivo (’s) e a outra mediante adposição; já a gramática do português usa sempre a adposição para codificar dois argumentos igualmente presentes: a preocupação de Maria com a eleição. 32 LILIANE SANTANA • A expressão morfossintática de cada oração, como resultado dos graus de redução do caráter sentencial: a) oração desenvolvida (conjuncional com verbo finito) > b) orações reduzidas (com verbo não finito – redução da fini- tude) > c) nominalização (dessentencialização) • O partilhamento de categorias, como evidência de entrelaça- mento, ou coparticipação: a) partilhamento de sujeito, de tempos ou modos verbais > b) redução a uma única estrutura de superfície Hopper & Traugott (1993) salientam, por seu lado, que não existem expressões isoladas, visto que as expressões estão atreladas a um contexto discursivo específico, na medida em que são unida- des que se desenvolvem no âmbito de uma atividade linguística. Hopper & Traugott (1993, p.171) argumentam que, como todas as línguas têm mecanismos de ligação oracional, que chamam de orações complexas, é possível postular uma tripartição das orações complexas, apresentando uma caracterização de parataxe, hipotaxe e subordinação com base nos critérios de dependência, integração e tipo de ligação entre as orações: (1-6) Parataxe Hipotaxe Subordinação (independência) (interdependência) (dependência) núcleo margem integração mínima integração máxima ligação explícita máxima ligação explícita mínima Essa tripartição apresenta a seguinte conjunção de propriedades: Quadro 2 – Tripartição de orações complexas. parataxe > hipotaxe > subordinação -dependência +dependência +dependência -encaixamento -encaixamento +encaixamento Fonte: Hopper & Traugott (1993, p.170). RELAÇÕES DE COMPLEMENTAÇÃO NO PORTUGUÊS BRASILEIRO 33 De um modo geral, pode-se dizer que perspectivas como as de Hopper & Traugott (1993), Lehmann (1988) e Halliday (1985) têm a vantagem de romper com a visão tradicional de que a oração coordenada é independente sintática e semanticamente da cláusula a que se encontra adjacente, ao passo que as subordinadas são de- pendentes – sintática e semanticamente – da principal. Todos esses autores propõem uma classificação escalar que permite constatar que as orações têm um maior ou menor grau de coordenação, de subordinação ou de encaixamento. Não há, assim, uma classificação estrita para a subordinação, assim como não há para a coordenação ou para a hipotaxe. Há limites difusos entre essas categorias, com construções se aproximando ou se distanciando dos membros mais representativos de um protótipo. Ainda no âmbito da perspectiva funcional, a complementação é tratada por Givón (1980, 1993) em termos de integração semântica.6 O autor considera que a natureza semântica do predicado comple- mentado pela oração pode ser vista como um fator indicativo do grau de integração da oração subordinada à oração matriz. Givón (1980) estabelece, desse modo, uma relação relevante entre a estrutura semântica do predicado encaixador e a estrutura sintática de seus complementos, que pode variar de construções verbais plenamente desenvolvidas a construções nominalizadas. Na linguística funcional de linha holandesa, Dik (1997b) dis- tingue as orações com função argumental das orações com função de satélite, estabelecendo um paralelo entre as construções simples e complexas. Na versão standard da gramática funcional (GF), as posições de argumentos e satélites podem ser preenchidas por termos na representação subjacente. Termos permitem, ao destina- tário, construir a representação mental de uma entidade qualquer ou identificar/retomar uma entidade já estabelecida em seu mundo mental (Dik, 1997b). O tipo primário de termo é representado em geral por um nomi- nal que se refere a alguma entidade de primeira ordem, e o modelo 6 Esse assunto será tratado com mais detalhes no Capítulo 2. 34 LILIANE SANTANA de expressão prototípico para esse termo inclui constituintes como determinante, quantificador, possuidor, adjetivo, nome. Em refe- rência a entidades de ordem superior, os termos podem ser represen- tados por nomes simples ou por termos complexos operando como restritores, que constituem construções contendo uma predicação ou uma proposição. Ao postular a distinção entre argumentos e satélites, Dik (1997b) distingue termos exigidos pela semântica do predicado (argumentos) e termos que fornecem informações adicionais (satélites). Argu- mentos e satélites são inseridos em diferentes níveis das camadas da estrutura subjacente da oração. Cabe salientar que a noção de encaixamento de Dik (1997b) difere das noções apresentadas até aqui. Para a G(D)F, encaixamento diz respeito à inserção de orações na posição de argumentos ou de satélites. Uma oração pode ocorrer como constituinte de outra oração, encai- xando-se na posição de predicado (oração predicativa), de argumento (oração completiva) ou de modificador (oração adverbial e relativa). O encaixamento de orações que ocupam a posição de segundo argumento de uma oração depende da natureza semântica do predi- cado encaixador, que acaba por determinar o nível a que cada termo se refere. O tratamento da subordinação a partir das camadas de representação também é sustentado por Dik & Hengeveld (1991), Hengeveld (1990a, 1990b) e Bolkestein (1990, 1992). Na versão mais recente da GF, a GDF (Hengeveld & Mackenzie, 2008), essa posição se mantém, isto é, as orações subordinadas são classificadas de acordo com a camada mais alta que as contém. Na GDF, a expressão linguística, a maior unidade de análi- se, é vista como um conjunto de orações, e cada oração, por sua vez, consiste em uma (ou mais) palavra(s), ou em um (ou mais) sintagma(s), ou, ainda, como exemplo de recursividade, em uma (ou mais) oração(ões). Para a GDF, um aspecto relevante do processo de subordinação é a atuação dos fatores interpessoal, representacional e morfossintático, responsáveis pela escolha de um determinado tipo de oração subordi- nada. É igualmente relevante a dependência da oração subordinada à RELAÇÕES DE COMPLEMENTAÇÃO NO PORTUGUÊS BRASILEIRO 35 oração matriz no que diz respeito à expressão de operadores grama- ticais, assim como o alçamento de certos constituintes semânticos da oração subordinada, que passam a se comportar como constituintes pragmáticos ou sintáticos da oração matriz.7 A opção por uma perspectiva funcionalista para o tratamento da complementação Ao longo da seção que observa o enfoque da tradição gramatical de natureza normativa e descritiva, de um modo geral, pode-se notar que os estudiosos do tema não detalham a estrutura das orações com- pletivas. Com exceção da exposição em Mateus et al. (2003) e Neves (2002), que consistem em uma gramática descritiva, a gramática tradicional e alguns estudos descritivos, como os de Perini (1995) e Vilela (1999), não demonstram, por exemplo, que tipos de verbos po- dem selecionar construções finitas ou não finitas como complemento ou que fatores semânticos podem motivar o uso de uma ou de outra estrutura de encaixamento. Ainda, nada mencionam sobre, no caso de ambas as construções serem possíveis, que fatores condicionam a seleção/restrição de determinados tipos de complementos. Além disso, não abordam a questão da tendência da língua ao princípio da economia, no caso, preferência pelas estruturas não finitas. Tal fato gera a falsa impressão sobre a realidade da língua de que maior ênfase é dada às formas finitas. Como bem aponta Decat (1999), no que diz respeito à subordinação, o enfoque tradicional guia-se pela dependência gramatical. A trajetória dos estudos gramaticais tradicionais (lingüísticos) costuma ser marcada pela utilização da dicotomia coordenação/ 7 Em relação aos alçamentos, há casos em que um constituinte pertencente, semanticamente, a uma oração subordinada aparece como um constituinte de uma oração hierarquicamente superior. Tal como acontece com o alinhamento, os “gatilhos” para essa deslocação podem ser de natureza interpessoal, repre- sentacional ou morfossintática (Hengeveld & Mackenzie, 2008). 36 LILIANE SANTANA subordinação na tarefa de descrever e definir os processos de ar- ticulação (ou combinação) de cláusulas. Entretanto, é por demais conhecida a insuficiência dos tratamentos tradicionais para dar conta de casos considerados limítrofes, ou mesmo daqueles que aparentemente não oferecem qualquer problema para a análise. Por um lado, opor as noções de coordenação e subordinação não tem sido uma estratégia promissora, por outro, também não o é definir subordinação simplesmente como dependência – e em termos pura- mente formais. A chamada dependência gramatical norteou, de modo geral, os tratamentos tradicionalistas. (Decat, 1999, p.300 – grifo do autor) O que se observa é que os trabalhos que tratam da complementa- ção em geral, seja de uma perspectiva normativa, seja de uma pers- pectiva descritiva, preocupam-se mais geralmente com os aspectos morfossintáticos, estruturais do processo, restringindo-se, portanto, drasticamente ao postulado de que o nível formal, por si só, deter- mina as relações de complementação. Um enfoque funcional, como o da GDF, dá ênfase especial, no entanto, ao caráter não autônomo da morfossintaxe na explanação teórica dos fenômenos linguísticos. Como a GDF vê o componente gramatical como organizado em níveis e camadas, os níveis pragmático, semântico, morfossintático e fonológico acabam desfrutando de saudável autonomia por con- tarem com categorias próprias, mas também a de interdependência, em virtude de possíveis motivações semânticas e pragmáticas para a codificação morfossintática, que, em grande parte, explicam os fenômenos de alinhamento entre os níveis. Esse postulado de orga- nização gramatical exige um pouco mais de atenção à oposição entre os aparatos formalista e funcionalista. A abordagem formal dos fenômenos linguísticos, especificamente a teoria gerativa, baseia-se na existência de estruturas mentais inde- pendentes, portanto consideradas tipicamente inatas. Nesse caso, as propriedades mais profundas do fenômeno linguístico não podem ser depreendidas diretamente dos dados. Os enunciados de textos reais ou transcritos de fala refletem (imperfeitamente) um sistema RELAÇÕES DE COMPLEMENTAÇÃO NO PORTUGUÊS BRASILEIRO 37 subjacente que é governado por regras que predizem a forma que as- sume a unidade linguística idealizada. Para Hengeveld & Mackenzie (2008), o formalismo radical representa uma manifestação extrema desse ponto de vista, já que limita o estudo linguístico à investigação de um sistema totalmente independente do uso. O funcionalismo, por sua vez, é uma abordagem linguística que se baseia na crença de que as propriedades da expressão linguística adaptam-se às intenções comunicativas do usuário da língua (Dik, 1986). Teorias representativas da abordagem funcional de linha europeia são a gramática funcional de Dik (1997a, 1997b) – bem como sua arquitetura mais recente, identificada como gramática discursivo-funcional (Hengeveld & Mackenzie, 2008) – e a gra- mática sistêmico-funcional de Halliday (Halliday & Matthiessen, 1999, Halliday, 2004). Há, ainda, nos Estados Unidos, outras duas abordagens no campo funcional: a gramática do papel e da referên- cia de Van Valin (Van Valin & Lapolla, 1997, Van Valin, 2005), mais inclinada para o extremo formal do espectro formal/funcional, e o funcionalismo da Costa-Oeste (que tem estudiosos envolvidos no que vem sendo chamada de abordagem com enfoque no uso (usage-based)), que tende para o extremo mais radicalmente funcional da escala. O princípio central do funcionalismo é o de que a língua é, acima de tudo, uma forma de comunicação humana em contextos socio- cultural e psicologicamente determinados, e esse fato pode deter- minar a visão de como a língua pode ser modelada (Butler, 2008). O sistema da língua como um todo e as estruturas formais que ele usa são, em grande parte, motivados por fatores externos, tais como estruturas cognitivas e fatores sociais de grande escala. Há, não obstante, considerável variação no grau em que os fatores explana- tórios sociais e cognitivos são priorizados nas diferentes abordagens funcionais. Qualquer decisão sobre que concepção de gramática assumir equivale a uma tomada de posição metodológica acerca do domínio da sintaxe e de suas relações com outros níveis de análise linguística, particularmente o semântico e o pragmático. Falar de um nível se- 38 LILIANE SANTANA mântico e de um nível pragmático como distinto do morfossintático pressupõe desde já um posicionamento teórico funcional, isto é, não formalista. Não ser um tratamento formalista, entretanto, não implica critérios valorativos, principalmente como os que, até certo grau, nortearam a polêmica movida entre adeptos das duas posições num passado recente (cf. Votre & Naro, 1989; Nascimento, 1990; Dillinger, 1991), que provocou a noção equivocada de que as duas orientações seriam metodologicamente incomensuráveis e, portanto, excludentes, ideia que, certamente, nem mesmo os protagonistas da controvérsia endossam ainda hoje. A adoção de uma posição teórica funcionalista tem a ver com a ideia de que o objeto de estudos constitui um fenômeno mais probabilístico do que determinístico. Como as probabilidades são de natureza pragmática ou semântica, esse modo de ver, de saída, está mais sujeito a um tratamento fun- cional. Uma análise desse tipo oferece um conjunto de resultados coerentes se vistos à luz da hipótese de um fundo morfossintático, que é alterado pela superposição de uma figura discursiva, de natureza probabilística. Do mesmo modo como muitas dicotomias no campo da linguís- tica são válidas, a divisão entre funcional e formal pode também ser, até certo ponto, válida, mas há uma relação um tanto mais complexa entre essas duas abordagens que, segundo Butler (2003), não deve ser ignorada. Há uma escala que vai do modelo de Chomsky até as proposições funcionalistas radicais, como as “gramáticas emergen- tes” de Hopper (1987, 1992). Um modo mais realista de pensar em teorias formais e funcionais é, segundo Butler (2003), em termos de um espectro: num extremo, estão as teorias fundamentalmente formais, como a linguística de Chomsky, e, no outro extremo, as teorias radicalmente funcionais; entre esses dois extremos, há uma variedade significativa de abordagens. Na realidade, o que se tem é uma escala de teorias que (i) podem compartilhar boa parte dos objetivos e hipóteses, e (ii) encontram-se fechadas em um espaço multidimensional definido por um conjunto complexo de caracte- rísticas (cf. Butler, 2003). RELAÇÕES DE COMPLEMENTAÇÃO NO PORTUGUÊS BRASILEIRO 39 (1-7) Escala das teorias: do extremo formal ao extremo funcional (cf. Butler, 2008, p.149): Modelo de Chomsky Gramática do papel e da referência (Van Valin & Lapolla, 1997) Gramática (discursivo) funcional (DIK, 1997a, 1997b; Hengeveld & Mackenzie, 2008) Gramática sistêmico- -funcional (Halliday, 1985, 1994a, 1994b; Halliday & Matthiessen, 1999, 2004) Funcionalismo da Costa-Oeste (Givón, 1989, 1993, 1995, 2001a, 2001b) Gramática emergente (Hopper, 1987, 1992) Como aponta Butler (2003), o termo funcional é frequentemente visto como oposto ao termo formal. No entanto, a ambiguidade no uso do termo formal é uma das razões por que o uso dos termos formal e funcional não pode ser considerado esclarecedor, principalmente quando aplicados aos dois paradigmas alternativos. De acordo com Newmeyer (1998), o termo formal pode referir-se tanto à forma ou estrutura gramatical em oposição ao significado ou uso, quanto à utilização de um sistema notacional para expressar de modo preciso e exato as observações e as generalizações linguísticas. Nuyts (1992) vale-se dessa segunda acepção para afirmar que qualquer intenção de modelar um objeto requer formalização, traço metodológico que não pode ser, assim, restrito às teorias formalistas, já que também os funcionalistas empregam sistemas matemáticos de notação. A polêmica em torno dos termos formal e funcional oculta, por- tanto, o fato de que diferenças de formalização não passam de mera questão de grau. Alguns modelos funcionalistas consistem em teo- rias com um elevado grau de formalismo e explicitude notacional, como é o caso, por exemplo, da gramática (discursivo) funcional e da gramática do papel e da referência – os modelos mais próximos à gramática formal de Chomsky, de acordo com a escala em (1-7). A diferença real não está na utilização de sistemas notacionais, mas no grau de independência ou de autonomia das relações formais ou gramaticais em relação ao significado e ao uso que os falantes fazem 40 LILIANE SANTANA delas no contexto comunicativo. É justamente nesse sentido preciso do termo formal que a diferença entre as gramáticas formais e as funcionais deixa de ser uma questão relativa para ser uma questão absoluta. Hengeveld (1998) defende a ideia de que os termos formalismo e funcionalismo não são inteiramente adequados, já que incorporam dois diferentes tipos de oposição. A primeira oposição consiste na perspectiva básica adotada pelas teorias linguísticas, mediante a qual a gramática pode ser considerada um sistema estrutural autônomo ou um instrumento de interação social. Teorias com cada uma dessas duas orientações podem ser chamadas autônomas e funcionais, res- pectivamente. De acordo com a segunda oposição, algumas teorias linguísticas manifestam o objetivo explícito de construir um sistema de representação formal, enquanto, para outros enfoques, esse ob- jetivo não tem relevância; teorias desse tipo podem ser chamadas de formalizadas e não formalizadas, respectivamente. Essas oposições podem ser combinadas na forma como mostra a Figura 2. Formalizada Não formalizada Autônoma A B Funcional C D Fonte: Hengeveld (1998). Figura 2 – Funcionalismo e formalismo: autonomia e formalização. Na Figura 2, há quatro diferentes tipos de teorias linguísticas que podem ser distinguidos com base em duas oposições. O tipo A de teoria, formalizado e autônomo, caracteriza o modelo gerativo. O tipo oposto, D, funcional e não formalizado, pode ser exemplificado por enfoques como os defendidos por Halliday (1985), Givón (1990) e Hopper (1987, 1992). O tipo B, não formalizado e autônomo, apesar de ser logicamente possível, não parece ter nenhum representante sig- nificativo; conforme afirma Camacho (2009), talvez nele se enquadre o estruturalismo saussureano. O tipo C, formalizado e funcional, é o enfoque representado pela teoria de gramática funcional (Dik, 1997a, RELAÇÕES DE COMPLEMENTAÇÃO NO PORTUGUÊS BRASILEIRO 41 1997b) – bem como pela nova versão do modelo (cf. Hengeveld & Mackenzie, 2008) e pela gramática do papel e da referência (Foley & Van Valin, 1984).8 Essas oposições estão em consonância com a escala de teorias proposta por Butler (2008), tal como mostra (1-7). Um ponto de concordância entre os funcionalistas tem sido a rejeição da alegação formalista de que a sintaxe é autossuficiente e, assim, autônoma em relação à semântica e à pragmática. Croft (1995) reconhece quatro “tipos” de funcionalistas no que diz respeito à posição formalista de sintaxe autossuficiente e autônoma: • Funcionalistas autônomos: aceitam o ponto de vista dos forma- listas de que a sintaxe é arbitrária e autossuficiente, embora reconheçam que algumas restrições na estrutura das sentenças podem derivar do discurso. • Funcionalistas/formalistas mistos: consideram a sintaxe ar- bitrária, mas não autossuficiente, e combinam categorias e características formais e funcionais. • Funcionalistas tipológicos: recusam a ideia de que a sintaxe seja autossuficiente e fazem distinção entre as propriedades univer- sais das gramáticas de base funcional, em termos de hierarquias implicacionais, e a arbitrariedade das características específicas das línguas. • Funcionalistas extremistas: rejeitam tanto a noção de arbitrarie- dade quanto a de sintaxe autossuficiente.9 No que tange especificamente à subordinação, a seção anterior mostrou que o aparato formal, na abordagem de Chomsky (1981, 1986), bem como na de Rosenbaum (1967) e Bresnan (1970, 1979), tem uma concepção puramente sintática das relações de complemen- tação. Desse modo, a relação entre oração matriz e subordinada é tratada em termos de configurações sintáticas que são estabelecidas 8 Segundo Garcia Velasco (2003), um dos maiores êxitos da teoria da gramática funcional é a capacidade de integrar considerações funcionais e comunicativas na própria arquitetura do modelo sem renunciar a um alto grau de formalização. 9 Para Butler (2003), as duas primeiras correntes não são fundamentalmente fun- cionais e não representam, portanto, o que ele concebe como “funcionalismo”. 42 LILIANE SANTANA para os constituintes de uma língua de acordo com a estrutura for- mal de seus complementos. Em uma concepção sintático-semântica (Grimshaw, 1979), as relações de complementação são determina- das, primeiramente, por traços sintáticos, cabendo à informação semântica dos constituintes apenas um papel adicional (cf. Faber & Usón, 1999). Diferentemente do aparato formal, o aparato funcional está mais interessado nos predicados encaixadores por considerar que os fatores determinantes das formas de complementação são de ordem semân- tica e que, a partir dos significados dos constituintes, os contextos de complementação se tornam altamente previsíveis. O tratamento funcionalista da subordinação completiva está em geral mais voltado para as motivações semântico-pragmáticas em torno do predicado do estado de coisas independente do que para as regras puramente estruturais que permitem gerar construções sintaticamente comple- xas a partir da relação entre predicado e complemento. Isso significa que, na determinação do tipo de completiva, a morfossintaxe não atua sozinha. No domínio funcional, o que determina a forma da completiva é a configuração semântica do predicado matriz. Como observado por Givón (1990), a semântica das relações completivas pode ser geralmente expressa em relação à semântica do predicado que co- difica o estado de coisas principal, e, uma vez que predicados cons- tituem o mecanismo prototípico usado para referir-se ao estado de coisas (cf. Hopper & Thompson, 1984), é a semântica do predicado independente que exerce o principal papel no estabelecimento das propriedades semânticas gerais do estado de coisas complexo. Metodologicamente, este trabalho está comprometido com moti- vações da expressão morfossintática que são derivadas da pragmática e da semântica. Tal postura o insere definitivamente no âmbito dos trabalhos funcionalistas. Adotar uma perspectiva funcional é me- todologicamente relevante, já que é comum ver a complementação representada apenas por orações finitas e, quando muito, por orações não finitas nas gramáticas. Essa situação conflita com a posição que se adota aqui de incluir a nominalização no rol de construções RELAÇÕES DE COMPLEMENTAÇÃO NO PORTUGUÊS BRASILEIRO 43 não finitas que podem, similarmente aos verbos correspondentes, representar algumas categorias como possíveis orações subordina- das. É preferível considerar a complementação como um domínio funcional para ver se restrições semânticas motivam a codificação morfossintática final. Adicionalmente, a posição funcionalista adotada requer um ponto de vista empírico, o que significa comprometer-se com a interpreta- ção de dados reais de conversação. Esse tratamento empírico envolve uma análise quantitativa e qualitativa dos dados. 2 A COMPLEMENTAÇÃO NA PERSPECTIVA FUNCIONAL O critério funcional-cognitivo para as relações de complementação Cristofaro (2003) apresenta um estudo tipológico translinguístico dos sistemas de subordinação. Nesse trabalho, a autora segue a mes- ma linha de Givón (1980, 1990), Noonan (1985) e Hengeveld (1998). Entretanto, diferentemente desses outros trabalhos, a perspectiva de Cristofaro (2003) representa a primeira tentativa sistemática de atribuir os três tipos de relação de subordinação – completiva, adver- bial e relativa – aos mesmos princípios funcionais. Como o enfoque de Cristofaro é tipológico, o objetivo de seu estudo é descobrir os mecanismos relacionais subjacentes entre as estruturas morfossin- táticas de que as línguas dispõem e as situações conceituais que elas expressam em seus respectivos domínios funcionais. Para Cristofaro (2003), a subordinação é geralmente definida com base em critérios morfossintáticos, como o de dependência e o de encaixamento de orações. Outro critério morfossintático tradi- cionalmente invocado para definir a subordinação é o uso de formas verbais não finitas, como infinitivos, gerúndios e particípios. Ocorre 46 LILIANE SANTANA que as diferentes línguas podem codificar diferentemente as relações de complementação.1 Conforme repetidamente apontado na tradição tipológica, a re- lação entre o tratamento descritivo, intrassistêmico, e o tratamento tipológico, transsistêmico, mostra que critérios morfossintáticos têm uma aplicabilidade limitada na comparação transsistêmica, uma vez que as mesmas estruturas morfossintáticas não são universalmente compartilhadas. Como nem todas as línguas dispõem, por exemplo, de orações encaixadas ou formas verbais não finitas para expressar uma relação particular entre dois estados de coisas, o estudo tipoló- gico não pode basear-se em critérios morfossintáticos, porque isso significaria excluir todas as línguas que dispuserem de um modo diferente de codificar a noção relevante. Aplicando-se o mesmo princípio ao tratamento intrassistêmi- co, pode-se dizer que o fenômeno sob investigação – as diferentes estratégias para a construção de orações completivas – deve ser definido de um modo estruturalmente independente, isto é, em termos funcionais, ou melhor, em termos nocionais, cognitivos, e se- mântico-pragmáticos. Adotar uma perspectiva tipológico-funcional é metodologicamente relevante, mesmo para um estudo intrassistê- mico, já que, como foi mencionado, é comum ver a complementação representada apenas por orações finitas e, quando muito, por orações não finitas nas gramáticas, fato que é inconciliável com a posição que se adota aqui de incluir a nominalização no rol de construções não finitas que podem representar algumas categorias como possíveis casos de subordinação. De acordo com um critério funcional-cognitivo, desenvolvido por Cristofaro (2003), a partir de Langacker (1991), a subordinação consiste em um modo de construir uma relação cognitiva entre dois estados de coisas, de um modo tal que a um deles, o estado de coisas 1 Cristofaro (2003) menciona que há línguas em que a oração dependente na re- lação de complementação não atua como um argumento do predicado principal e não está encaixada. É o caso, segundo a autora, da língua muna, que expressa relações de complementação por meio da justaposição de orações. RELAÇÕES DE COMPLEMENTAÇÃO NO PORTUGUÊS BRASILEIRO 47 dependente, falta um perfil autônomo, sendo, por isso, construído a partir da perspectiva do outro estado de coisas, o estado de coisas principal. O traço distintivo do enfoque conceitual de Cristofaro (2003) é a tentativa de relacionar a subordinação não a propriedades especí- ficas dos tipos individuais de ligação oracional, mas ao modo como os estados de coisas expressos por orações ligadas são percebidos e conceitualizados e ao estatuto que têm no contexto discursivo, uma vez que esse enfoque funcional estabelece uma nítida distinção entre o nível conceitual em sentido amplo (semântico, pragmático e cognitivo) e o nível morfossintático. A subordinação é encarada como o resultado de situações conceituais particulares em vez de um fenômeno morfossintático. Orações que codificam um estado de coisas dependente são consideradas orações dependentes, e, similar- mente, orações que codificam um estado de coisas independente são consideradas orações independentes ou orações principais. Cristofaro parte do postulado da assimetria, desenvolvido por Langacker (1991), para definir subordinação, mencionando que, ao construir a conexão entre dois estados de coisas, um falante tem duas escolhas: • Os dois estados de coisas podem ser construídos como perfei- tamente simétricos de um ponto de vista cognitivo, de modo tal que ambos têm um perfil autônomo, uma situação em que ocorre com a coordenação perfeitamente simétrica em que nenhum perfil oracional sobrepuja o outro, como em (2-1): (2-1) O Santos venceu e o Corinthians perdeu. • Os dois estados de coisas são construídos como cognitivamen- te assimétricos, quando um dos dois prescinde de um perfil autônomo e é construído com base na perspectiva do outro. Por isso, Langacker (1991) diz que uma sentença como (2-2) designa o processo de conhecimento, não o de ter partido ou deixado de partir. Nesse caso, o estado de coisas subordinado 48 LILIANE SANTANA perde o perfil autônomo, enquanto o estado de coisas principal impõe seu próprio perfil, sobrepondo-se ao conjunto total da sentença. (2-2) Eu sei que ela partiu. A distinção entre subordinação e não subordinação, tal como desenvolvida por Langacker (1991), é paralela à distinção pragmática entre asserção e não asserção, vista não sob uma perspectiva lógico- semântica, mas sob uma perspectiva pragmática. A interpretação pragmática refere-se não a condições de verdade, mas ao que o falante assume em relação ao estatuto informacional das sentenças que ele enuncia (Cristofaro, 2003). Ao enunciar, por exemplo, uma sentença como (2-3a), assume- se que a oração que contém o predicado de enunciação afirmar é a parte asseverada da sentença, enquanto o estado de coisas sobre a legalidade da operação é a parte não afirmada ou pressuposta. (2-3) a. Protógenes afirmou que a operação Satiagraha é legal. É Cristofaro (2003) quem equaciona a noção de subordinação e a de não subordinação, definidas por Langacker (1991), ao critério de assertividade e não assertividade, já que este autor prefere ater- se apenas ao postulado de uma relação cognitiva assimétrica entre dois estados de coisas, tal que um impõe seu próprio perfil a toda a sentença, enquanto o outro é destituído de um perfil autônomo. Relacionar a falta de um perfil autônomo com não assertividade fornece critérios consistentes para a identificação da subordinação. Em outros termos, trata-se de um critério que fornece uma definição absolutamente independente de propriedades estruturais de qual- quer oração particular de uma língua dada. O método para detectar como essa propriedade cognitiva de base pragmática define uma oração dependente pode basear-se nos testes de assertividade disponíveis na literatura, como o de que parte de uma sentença está aberta a polêmica por meio de uma negação RELAÇÕES DE COMPLEMENTAÇÃO NO PORTUGUÊS BRASILEIRO 49 sistemática e da mudança da força ilocucionária da sentença, como no caso de perguntas e das chamadas questions-tags: (2-3) b. Não é verdade que Protógenes afirmou que a operação Satiagraha é legal. c. É verdade que Protógenes afirmou que a operação Satia- graha é legal? d. Protógenes afirmou que a operação Satiagraha é legal, não afirmou? e.* Protógenes afirmou que a operação Satiagraha é legal, não é legal? Segundo Cristofaro (2003), o principal ponto que merece ser en- fatizado é o de que testes de assertividade são operacionais para qual- quer língua, porque não se referem a tipos específicos de estrutura morfossintática, mas ao estatuto pragmático/cognitivo de diferentes partes da sentença. Como eles checam que parte da sentença está sujeita a polêmica, eles são independentes dos traços estruturais e, por conseguinte, o postulado da assimetria acaba tendo uma grande utilidade na análise transistêmica da subordinação completiva e, portanto, é aplicável com igual valor à análise intrassistêmica que se pretende fazer aqui. O trabalho que aqui se apresenta trata especificamente de uma língua, o português falado no Brasil; não se insere, desse modo, no rol de trabalhos tipológicos sobre complementação, tais como os de Koptjevskaja-Tamm (1993), Cristofaro (2003), Malchukov (2004) e Dixon (2006). Entretanto, constitui uma tentativa de, em uma análise intrassistêmica, dar uma explicação semântica plausível para a complementação e, mediante o modo como se apresenta esse subsistema morfossintático, classificar o português em relação aos estudos tipológicos sobre a subordinação completiva em direção a princípios universais. A noção da subordinação completiva a partir de uma perspectiva tipológica como essa pode fornecer um quadro mais abrangente, que permita verificar como enquadrar os resulta- dos obtidos nesta pesquisa em relação a outras pesquisas de caráter 50 LILIANE SANTANA tipológico. Além disso, permite assumir uma perspectiva neutra, mais objetiva, no equacionamento da complementação no português, que, como se viu, tende a assumir um posicionamento formalista. Integração semântica nas relações de complementação As relações completivas podem ser identificadas com base no predicado que codifica o estado de coisas principal. A semântica do estado de coisas principal estabelece que tipo de especificação completiva ele requer, de modo que as bases da ligação entre um predicado encaixador e um tipo particular de complemento é a rela- ção semântica existente entre eles. Givón (1980) considera que a natureza semântica do predicado da matriz pode ser vista como um fator indicativo do grau de integração da oração completiva à oração principal. Em cada classe individual de predicados encaixadores, os diferentes verbos posicionam-se diferentemente, dependendo de seus traços semânticos.2 Há um alto grau de integração semântica se o agente do estado de coisas principal é capaz de controlar a realização do estado de coisas dependente e se o estado de coisas dependente tem origem em um ato de manipulação deliberado por parte do agente do estado de coisas principal (como é o caso de predicados como “fazer”). Também há alto grau de inte- gração semântica se os estados de coisas dependentes compartilham seus referentes e são espacial e temporalmente contíguos. Givón (1990, p.256) sugere que a dimensão da integração se- mântica subjacente é “a integração espaçotemporal de dois eventos em um único esquema de evento”.3 Em estados de coisas temporal 2 Givón (1980, 1990) faz distinção entre três classes de predicados – os verbos manipulativos, os de modalidade (incluindo os volitivos, fasais e implicativos) e os de enunciação-cognitivos (incluindo os de conhecimento, de atitude pro- posicional e os predicados de enunciação). 3 Cf. o original: “(dimension underlying semantic integration is) the spatio-temporal integration of two events into a single event frame”. RELAÇÕES DE COMPLEMENTAÇÃO NO PORTUGUÊS BRASILEIRO 51 e espacialmente contíguos e em estados de coisas com participantes compartilhados, há um grau maior de integração semântica do que em estados de coisas que não são contíguos temporal e espacial- mente. O modo como o grau de integração semântica se reflete na codificação morfossintática está no uso de formas não finitas, com a não especificação de morfema modo-temporal e de argumentos. Os diferentes graus de integração entre orações são explicados pelo princípio de iconicidade diagramática, segundo o qual a inte- gração sintática entre as orações reflete iconicamente a integração semântica entre os eventos codificados (cf. Haiman, 1983). Em outras palavras, se os dois eventos na oração principal e na oração completiva estiverem integrados em um único evento complexo, as orações estarão codificadas em uma única oração complexa. Nenhuma oração é totalmente independente de seu contexto oracional imediato em um discurso coerente conectado. Consequen- temente, se uma oração coordenada é parte de um discurso coerente, algumas ligações – semânticas ou pragmáticas – devem conectá-la ao seu ambiente oracional imediato. E cada ligação de conectividade (coerência) tende a aparecer com dependências gramaticais conco- mitantes. O paralelo entre dependência interoracional semântica e pragmática (“funcional”) e gramatical (“formal”) reflete a mesma tendência icônica que notamos na gramática de complementos ver- bais: iconicidade de integração de eventos e integração de oração: “quanto mais semântica e pragmaticamente dois eventos/estados estão conectados no discurso, mais gramaticalmente integradas estarão as duas orações”. (Givón, 1993, p.286) 4 4 Cf. o original: “No clause is totally independent of its immediate clausal context in connected coherent discourse. Consequently, if a conjoined clause is part of a coherent discourse, some strands – semantic or pragmatic – must connect it to its immediate clausal environment. And such strands of connectivity (‘coherence’) tend to come with concomitant grammatical dependencies. The close parallel be- tween semantic-pragmatic (‘functional’) and grammatical (‘formal’) inter-clausal dependencies reflects the same iconic tendencies we noted in the grammar of verbal complements: Iconicity of event-integration and clause-integration: ‘the more semantically or pragmatically connected two events/states are in the discourse, the more grammatically integrated will the two clauses be’”. 52 LILIANE SANTANA Segundo Cristofaro (2003), é a economia sintagmática que explica a correlação entre a predeterminação de traços semânticos entre dois estados de coisas conectados e os fenômenos morfossintáticos que levam à não especificação de informação correspondente, a que a autora denomina princípio de recuperabilidade de informação. A economia sintagmática é a tendência para reduzir o com- primento ou a complexidade de qualquer enunciado, de modo que as expressões mais frequentes no uso tendem a reduzir-se fono- logicamente e a informação que é redundante e/ou recuperável no contexto comunicativo tende a ser omitida. (Cristofaro, 2003, p.248)5 A economia sintagmática está fortemente correlacionada com a predeterminação de informação semântica em estados de coisas co- nectados e a não manifestação de informação pragmaticamente com- partilhada pelos participantes da interação. O resultado é, segundo Cristofaro (2003), tornar a estrutura linguística o mais transparente possível, em contraposição ao princípio da motivação icônica. Com a hierarquia de ligação e a tipologia de complementos, Givón (1980) estabelece a relação entre a estrutura semântica do predicado encaixador e a estrutura sintática de seus complementos. Segundo esse autor, as categorias semânticas são representadas iconicamente na estrutura da oração completiva. Na escala progressiva de integra- ção semântica, quanto mais as relações entre predicado encaixador e predicado encaixado se dão no polo esquerdo, mais “independente” é a completiva; em direção oposta, quanto mais as relações de comple- mentação se dão no polo direito, mais “lexicalizada” é a completiva, conforme o Quadro 3 mostra. Em termos de estrutura semântica, os complementos são orga- nizados em três diferentes camadas semânticas, que se sobrepõem – 5 Cf. o original: “Syntagmatic economy is the tendency to reduce the length or com- plexity of any utterance, so that the most frequent expressions tend to be reduced phonetically and information that is redundant and/or recoverable from the context tends to be omitted.” RELAÇÕES DE COMPLEMENTAÇÃO NO PORTUGUÊS BRASILEIRO 53 atitude epistêmica, atitude emotiva e implicabilidade. Cada uma dessas camadas se bifurca em categorias mais fracas e mais fortes: atitude epistêmica fraca, atitude epistêmica forte, atitude emotiva fraca, forte tentativa e implicativos. Givón (1980) afirma que as categorias semânticas são representadas iconicamente na estrutu- ra da oração completiva. De acordo com a hierarquia, predicados encaixadores de atitude epistêmica tomam complementos “livres” (isto é, a oração complemento e a oração principal são distinguíveis e independentes uma da outra), enquanto predicados encaixadores implicativos tendem a ocorrer com complementos mais integrados à oração principal, tais como complementos infinitivos e nomina- lizações. A integração semântica envolve quatro graus estruturais: Quadro 3 – Hierarquia da ligação. Fonte: Givón (1980, p.369). 54 LILIANE SANTANA • Colexicalização de dois verbos: relaciona-se ao princípio da pro- ximidade, segundo o qual “quanto maior o grau de proximidade de significado entre duas entidades, tanto maior o grau de proxi- midade temporal no nível do código” (Givón, 1993, p.24).6 Se o verbo da oração matriz pertencer ao nível mais alto da escala de integração de eventos, mais facilmente ele será colexicalizado. • Integração relacional do agente do complemento na oração ma- triz: quanto mais semanticamente incorporada estiver a oração completiva à oração matriz, menos características/marcas de sujeito agente terá a subordinada. • Morfologia – finita /não finita – da completiva: se o verbo estiver em um ponto elevado de integração de evento, mais nominal será seu complemento. O processo sintático de nominalização pode ser visto como adaptações na estrutura gramatical da oração finita. Quando a oração verbal é ajustada para uma frase nominal prototípica via nominalização, torna-se uma oração não finita ou uma oração menos finita.7 Givón (1993) alega que, na conversão de uma oração finita para não finita, o verbo antigo se torna o núcleo da oração nominalizada, perde suas in- flexões verbais (aspecto-modalidade – concordância) e adquire morfologia como nome (determinantes e modificadores). • Separação entre as orações por complementizadores: a presença de um complementizador marca um menor grau de integração entre as orações. Quanto mais baixo o ponto em que estiver o verbo da principal na escala de integração de eventos, tanto maior será a tendência de ele se separar pelo complementizador. O complementizador é utilizado com verbos do alto da escala de integração, quando duas orações estão sob um mesmo contorno de entoação. 6 Cf. o original: “The closer two linguistic entities are in meaning, the more they will exhibit temporal proximity at the code level.” 7 Dik (1997b) considera que, no nome deverbal, os constituintes do predicado input (operadores, predicado, argumentos e satélites) devem ajustar-se ao termo no- minal prototípico, adotando novos tipos de constituintes (operadores de termo – determinante e quantificador –, sintagma de possuidor, adjetivo, nome). RELAÇÕES DE COMPLEMENTAÇÃO NO PORTUGUÊS BRASILEIRO 55 Embora não trate especificamente da relação entre tipo de pre- dicado encaixador e tipo de complemento, a escala de dessenten- cialização proposta por Lehmann (1988), repetida e renumerada a seguir por conveniência, parece refletir, de certa forma, a hierarquia de Givón (1980). sentencialidade nominalidade oração construção não finita nome verbal Fonte: Adaptada de Lehmann (1988, p.189). Figura 3 – Dessentencialização. O que é interessante é que, tal como na hierarquia de Givón (1980), quanto mais a construção subordinada se aproxima do polo direito do continuum, mais o comportamento dela se aproxima ao de um membro prototípico da classe dos nomes.8 Nesse sentido, pode-se falar de um acréscimo progressivo do grau de nominalidade da oração subordinada quando ela é reduzida pelo processo de des- sentencialização. Ao final do processo de redução, a oração torna-se um constituinte nominal de uma oração matriz (Lehmann, 1988). A integração semântica é também um dos três parâmetros que Cristofaro (2003) considera para descrever a semântica dos vários tipos de relações. Essa autora defende a classificação das classes de predicados encaixadores de complemento em termos do grau de integração semântica, isto é, em termos da interconexão entre os estados de coisas ligados. O componente básico da integração semântica é o grau em que as fronteiras entre esses estados de coisas se “deterioram” ou se mantêm intactas. Diferentemente de Givón (1980), Cristofaro (2003, p.119) acredi- ta que a integração semântica é independente da contiguidade espa- 8 Como parece claro na escala de dessentencialização, além da perda de pro- priedades sentenciais no verbo, a nominalidade progressiva dota a construção encaixada de propriedades distribucionais do nome, como a possibilidade de combinar-se com adposições e afixos de caso. 56 LILIANE SANTANA çotemporal, “não depende apenas de dois estados de coisas estarem ligados, mas do grau em que se dá ligação”.9 A interligação resulta de uma variedade de fatores, como do fato de dois estados de coisas serem parte de um mesmo esquema de estado de coisas global. Se dois estados de coisas estão interligados, então, provavelmente, eles serão contíguos espaçotemporalmente, mas a contiguidade espaçotemporal por si só não contribui para a integração semântica. Givón (1990) considera como outro componente da integração semântica o fato de o participante do estado de coisas principal ter um desejo ou interesse na ocorrência do estado de coisas. Para esse autor, predicados que envolvem preferência (tais como querer e ordenar) determinam um alto grau de integração entre os estados de coisas interconectados, enquanto predicados que não envolvem preferência estão relacionados a um baixo grau de integração semân- tica (como os de percepção, conhecimento, atitude proposicional e enunciação). Cristofaro (2003), entretanto, acredita que um estado de coisas ocorre ou não independentemente do desejo das pessoas. O desejo de alguém de que um estado de coisas ocorra não significa, necessariamente, que provocará algum efeito na ocorrência do estado de coisas.10 Além da integração, outros dois parâmetros podem ser estabele- cidos na caracterização semântica das relações de complementação, o nível da estrutura da oração em que se estabelece a relação de complementação e a predeterminação de outros fatores semânticos dos estados de coisas ligados, que, de certo modo, é um indicativo de integração semântica. As diferentes relações de complementação dizem respeito aos diferentes níveis de estrutura da oração. Com base no modelo da 9 Cf. o original: “Semantic integration basically pertains to whether and how much two SoAs are interconnected.” 10 Ao que parece, as considerações de Givón (1990) dizem respeito à preferência ou ao desejo do falante quanto à ocorrência do estado de coisas codificado na oração subordinada e não em relação à ocorrência em si do estado de coisas, tal como contesta Cristofaro (2003). RELAÇÕES DE COMPLEMENTAÇÃO NO PORTUGUÊS BRASILEIRO 57 teoria de gramática funcional standard (Dik, 1997a, 1997b; Henge- veld, 1989, 1990a, 1990b), Cristofaro considera que a configuração de uma oração que representa um ato de fala contém quatro camadas de análise, e cada uma está completamente contida na imediatamente superior. As relações de manipulação e de percepção pertencem à segunda camada, já que elas se referem à possível ocorrência do es- tado de coisas. A terceira camada inclui as relações de conhecimento, atitude proposicional e enunciação; estados de coisas em si não são objetos de conhecimento, de pensamento e de discurso indireto, pelo contrário, os conteúdos proposicionais referidos a estados de coisas é que são (Cristofaro, 2003).11 Um pouco mais complicados são os predicados modais, fasais e volitivos. Cristofaro (2003) acha problemático o modo como a gramática funcional (Dik, 1997a, 1997b) trata esses predicados: são considerados operadores que modificam a estrutura interna do estado de coisas a que eles se referem, atuando, assim, na primeira camada (predicados e termos, na versão standard do modelo). Predi- cados modais e volitivos definem o valor modal do estado de coisas a que eles se referem, enquanto os predicados fasais definem o valor aspectual desse estado de coisas. Cristofaro (2003) considera, por seu lado, que os predicados fasais agem como operadores aspectuais, mas deles diferem, no sentido de que sua referência não é puramente interna ao estado de coisas relevante. A mesma observação vale para os predicados modais e volitivos. Operadores modais, tais como o modo verbal, definem o valor modal do estado de coisas relevante, independentemente de qualquer outro estado de coisas. Predicados modais e volitivos, por sua vez, relatam a ocorrência do estado de coisas como um todo à situação em que essa ocorrência é necessária, possível ou desejada. Consequentemente, sua referência não é puramente interna ao estado de coisas relevante, na medida em que ela estabelece uma conexão 11 A classificação de predicados encaixadores de complementos mencionada por Cristofaro (2003) é tomada de Noonan (1985). 58 LILIANE SANTANA entre dois estados de coisas distintos: o estado de coisas ao qual a condição modal se aplica e as circunstâncias que definem a condição modal por si só. Alguns traços semânticos dos estados de coisas ligados são pre- determinados pela natureza da relação de complementação em si. A predeterminação dos fatores semânticos dos estados de coisas ligados diz respeito à referência a tempo, aspecto ou modo e aos participantes do estado de coisas ligado.12 Diferentes relações de complementação têm diferentes implica- ções sobre a referência de tempo, de aspecto ou de modo e participan- tes do estado de coisas ligado. Os predicados de percepção requerem que os estados de coisas principal e dependente sejam simultâneos; predicados de manipulação, por sua vez, requerem que o estado de coisas dependente seja posterior ao estado de coisas principal; predi- cados fasais predeterminam a referência de tempo e o valor aspectual do estado de coisas dependente – o tempo e o aspecto precedentes ao estado de coisas principal e os posteriores a ele (Givón, 1973). No que diz respeito aos predicados modais e volitivos, Cristofaro (2003) considera que a referência de tempo e o valor aspectual do estado de coisas dependente não são determinantes para a relação de complementação. As relações de complementação predeterminam o valor modal do estado de coisas dependente, ainda que de modo diferente. Com predicados modais e volitivos, por exemplo, o valor modal do esta- do de coisas dependente é irrelevante. Predicados manipulativos, como ordenar, requerem que o estado de coisas dependente não seja 12 A noção de participante de Cristofaro (2003) deve ser entendida como equiva- lente à noção de argumento, tal como proposto pela GF (Dik, 1997a, 1997b) e pela GDF (Hengeveld & Mackenzie, 2008). Na G(D)F, o termo participante é empregado para designar o falante e o ouvinte, isto é, os participantes do processo de interação verbal, que, como tais, são categorias pragmáticas do nível interpessoal e não categorias semânticas do nível representacional, como a noção de Cristofaro sugere. Isso significa que, apesar de utilizar a terminologia de Cristofaro, ao fazer referência aos participantes do estado de coisas principal e do estado de coisas dependente, estou, na verdade, tratando dos argumentos envolvidos na relação que se estabelece entre os dois estados de coisas. RELAÇÕES DE COMPLEMENTAÇÃO NO PORTUGUÊS BRASILEIRO 59 realizado no mesmo ponto temporal em que se localiza o estado de coisas principal. Já os manipulativos, como fazer, requerem que o estado de coisas dependente realize-se como um resultado do ato da manipulação descrita pelo predicado. Por isso, o estado de coisa dependente é conhecido como factual, assim como também o são os predicados de percepção e conhecimento – embora, nesse caso, o valor modal seja definido indiretamente. Predicados de conhecimento requerem que o conteúdo propo- sicional relevante seja apresentado como verdadeiro; consequente- mente, o estado de coisas correspondente ao conteúdo proposicional é apresentado como factual. Com predicados de atitude proposicional, por sua vez, o conteúdo proposicional representando o objeto do pre- dicado encaixador de complemento nunca é apresentado nem como verdadeiro nem como falso; como consequência, o valor modal do estado de coisas correspondente é predeterminado como não factual. O mesmo acontece com os predicados de enunciação. Desse