FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” – UNESP CÂMPUS DE FRANCA DONALDO DE ASSIS BORGES A OPOSIÇÃO DA IGREJA CATÓLICA À ORDEM JURÍDICA REPUBLICANA: O PENSAMENTO TEOLÓGICO-POLÍTICO DE D. ADAUTO AURÉLIO DE MIRANDA HENRIQUES (1894-1935) FRANCA 2016 DONALDO DE ASSIS BORGES A OPOSIÇÃO DA IGREJA CATÓLICA À ORDEM JURÍDICA REPUBLICANA: O PENSAMENTO TEOLÓGICO-POLÍTICO DE D. ADAUTO AURÉLIO DE MIRANDA HENRIQUES (1894-1935) Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em História – Doutorado em História (Linha de Pesquisa: História e Cultura Social - Sub-área: História Eclesiástica), da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais – Universidade Estadual Paulista – UNESP, Câmpus de Franca, para obtenção do título de Doutor em História. Área de concentração: História e Cultura. Orientador: Prof. Dr. Ivan Aparecido Manoel. FRANCA 2016 Borges, Donaldo de Assis. A oposição da Igreja católica à ordem jurídica republicana: o pensamento teológico-político de D. Adauto Aurélio de Miranda Henriques (1894-1935) / Donaldo de Assis Borges. – Franca: [s.n.], 2016. 180 f. Tese (Doutorado em História). Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências Humanas e Sociais. Orientador: Ivan Aparecido Manoel 1. Igreja Católica - Bispos. 2. República. 3. Direito Constitucional - História. I. Título. CDD – 981.05 DONALDO DE ASSIS BORGES A OPOSIÇÃO DA IGREJA CATÓLICA À ORDEM JURÍDICA REPUBLICANA: O PENSAMENTO TEOLÓGICO-POLÍTICO DE D. ADAUTO AURÉLIO DE MIRANDA HENRIQUES (1894-1935) Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em História – Doutorado em História, da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, da Universidade Estadual Paulista – UNESP, Câmpus de Franca, para obtenção do título de Doutor em História. Área de concentração: História e Cultura. Orientador: Prof. Dr. Ivan Aparecido Manoel. Orientador: _____________________________________________ Prof. Dr. Ivan Aparecido Manoel. Universidade Estadual Paulista – UNESP. Examinador(a): __________________________________________ Nome: Bárbara Fadel. Instituição: Universidade Estadual Paulista – UNESP. Examinador(a): __________________________________________ Nome: Henrique Garbellini Carnio. Instituição: Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo – FADISP. Examinador(a): __________________________________________ Nome: Dagoberto José Fonseca. Instituição: Universidade Estadual Paulista – UNESP. Examinador(a): __________________________________________ Nome: José Carlos Garcia de Freitas. Instituição: Universidade Estadual Paulista – UNESP. Franca, 18 /02/ 2016. À minha esposa Leila, ao Leandro e à Lívia, com amor. AGRADECIMENTOS A Deus por tudo. Aos amigos que de outro plano colaboraram nos esforços para elaboração do presente trabalho. Ao prof. Dr. Ivan Aparecido Manoel pela confiança, por suas orientações valiosas e sua amizade sincera. Ao prof. Dr. Marcos Alves de Souza pelo suporte necessário. Aos funcionários da Seção da Pós-Graduação da UNESP - Franca: Maísa, Mauro e Sebastião. Ao amigo Marco Baldin. Nos campos de cultura, como nos campos de batalha, se ferem verdadeiros combates; em ambos se decidem os destinos de uma nação. Cardeal Leme. BORGES, Donaldo de Assis. A oposição da Igreja católica à ordem jurídica republicana: o pensamento teológico-político de D. Adauto Aurélio de Miranda Henriques (1894-1935). 2016. 180 f. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2016. RESUMO O presente trabalho descreve e analisa o pensamento teológico-político de D. Adauto Aurélio de Miranda Henriques (1855-1935), bispo da Paraíba (1894-1935), visando o entendimento da forma como operou o pensamento sociológico- organicista de Louis Gabriel Ambroise, visconde de Bonald, o providencialismo histórico de Joseph de Maistre e o organicismo jurídico de Friedrich Julius Stahl, a fim de fundamentar o seu discurso e a sua ação política no movimento de oposição católica à ordem jurídica instaurada pela Primeira República. A sua ação política teve por objetivo a volta de direitos de interesse da Igreja suprimidos pela Constituição brasileira de 1891 e, foi marcada, em tese, pela obsessão pela lei. A proposta de reformar a Constituição visava o balizamento simbólico da religião na maior referência legislativa da nação. A axiologia católica deveria adentrar ao plano positivo da lei por meio da inscrição do nome de Deus na Carta Magna brasileira. O aspecto simbólico do nome de Deus na Constituição vinculava diretamente o nome de uma Instituição – a Igreja católica –, sobretudo pelo fato da maioria dos brasileiros professarem o catolicismo. A lei constitucional passa a ser a mola mestra do interesse da Igreja, com o propósito de fazer convergir uma hegemonia católica no interior da sociedade brasileira. A hegemonia católica foi historicamente exercida diretamente sobre os governantes, em razão da prevalência do princípio da soberania divina, todavia na modernidade a lei passa a se constituir no limite do poder político, sob o fundamento democrático da soberania popular. A Igreja se arma de pessoas preparadas intelectualmente para enfrentar o desafio de lutar pela lei e mudar a Constituição pela via democrática. A obra teológico-política de D. Adauto tem no seu núcleo uma intensa argumentação de combate à modernidade, a fim de fornecer elementos discursivos para a formação de um capital sócio-político- religioso, no intuito de oferecer subsídios para direcionar o católico e o catolicismo para a luta por direitos constitucionais na Carta Política brasileira. Palavras-chave: Igreja Católica. República. História do Direito. Direito Constitucional. BORGES, Donaldo de Assis. The opposition of the Catholic Church to the republican law: the theological-political thought of D. Adauto Aurelio de Miranda Henriques (1894-1935). 2016. 180 f. Thesis (Doctorate in History) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2016. ABSTRACT This doctoral thesis describes and analyzes the theological-political thought of D. Adauto Aurelio de Miranda Henriques (1855-1935), bishop of Paraíba (1894-1935), aimed at understanding the way it operated the sociological and organismic thought of Louis Gabriel Ambroise, Viscount de Bonald, the historic providentialism of Joseph de Maistre and legal organicism of Friedrich Julius Stahl in order to substantiate his speech and his political action in the movement of Catholic opposition to the law established by the First Republic. Its political action aimed at the return of Church interest rights suppressed by the Brazilian Constitution of 1891, and was marked, in theory, by the obsession by law. The proposal to reform the constitution aimed at the symbolic marking of religion in the nation's largest legislative reference. The Catholic axiology should come into the positive side of the law through the application of God's name in the Brazilian Constitution. The symbolic aspect of God's name in the Constitution directly linked the name of an institution - the Catholic Church - especially because most Brazilians profess Catholicism. The constitutional law becomes the mainspring of the Church's interest in order to converge a Catholic hegemony within the Brazilian society. The Catholic hegemony has historically exerted directly on the rulers because of the prevalence of the principle of divine sovereignty, but in modern times the law shall be constituted on the edge of political power under the democratic basis of popular sovereignty. The Church arming people intellectually prepared to face the challenge of fighting for law and change the constitution through democratic means. The theological-political work of D. Adauto has at its core a strong argument to fight modernity in order to provide discursive elements for the formation of a socio-religious-political capital in order to offer subsidies to target the Catholic and Catholicism in the struggle for constitutional rights in the Charter Brazilian Policy. Key-Words: Catholic Church. Republic. History of Law. Constitutional Right. BORGES, Donaldo de Assis. L'opposizione della Chiesa cattolica alla legge repubblicana: il pensiero teologico-politico del D. Adauto Aurelio de Miranda Henriques ( 1894-1935 ). 2016. 180 f. Tesi (dottorato de ricerca in Storia) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2016. RIASSUNTO Questa tesi descrive e analizza il pensiero teologico-politico del D. Adauto Aurelio de Miranda Henriques (1855-1935), vescovo di Paraíba (1894-1935), volto a comprendere il modo in cui ha operato il pensiero sociologico e organismica di Louis Gabriel Ambroise, Visconte de Bonald, il provvidenzialismo storico di Joseph de Maistre e Friedrich legale organicismo di Julius Stahl per avvalorare la sua parola e la sua azione politica nel movimento di opposizione cattolica alla legge stabilita dalla Prima Repubblica. La sua azione politica finalizzata alla restituzione dei diritti di interesse soppressa chiesa dalla Costituzione brasiliana del 1891, ed è stato caratterizzato, in teoria, dall'ossessione per legge. La proposta di riforma della Costituzione finalizzato alla simbolica marcatura della religione nel più grande di riferimento legislativo della nazione. L'assiologia cattolico deve entrare nel lato positivo della legge attraverso l'applicazione del nome di Dio nella Costituzione brasiliana. L'aspetto simbolico del nome di Dio nella Costituzione direttamente collegato il nome di un'istituzione - la Chiesa cattolica - soprattutto perché la maggior parte dei brasiliani professano cattolicesimo. La legge costituzionale diventa la molla dell'interesse della Chiesa per convergere una egemonia cattolica all'interno della società brasiliana. L'egemonia cattolica ha storicamente esercitato direttamente sui righelli a causa della prevalenza del principio della sovranità divina, ma in tempi moderni la legge deve essere costituito ai margini del potere politico sotto la base democratica della sovranità popolare. Il popolo Chiesa di inserimento intellettualmente preparati ad affrontare la sfida della lotta per il diritto e cambiare la costituzione con mezzi democratici. Il lavoro teologico-politico di D. Adauto ha al suo centro un argomento forte per combattere la modernità al fine di fornire elementi discorsivi per la formazione di un capitale socio-religioso-politico al fine di offrire sussidi per indirizzare la Chiesa cattolica e il cattolicesimo nella lotta per i diritti costituzionali nella politica brasiliana Carta. Parole chiave: Chiesa Cattolica. Repubblica. Storia del Diritto. Diritto Constituzionale. LISTA DE ABREVIATURAS AEAP Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese da Paraíba. FUNDAJ Fundação Joaquim Nabuco – Recife/PE. FCRB Fundação Casa de Rui Barbosa. INDOC Instituto de Documentação da Fundação Joaquim Nabuco. Recife - PE. AEL Arquivo Edgard Leuenroth - UNICAMP. Campinas/SP. FSBH Fundo Sérgio Buarque de Holanda – Biblioteca Central da UNICAMP. Campinas/SP. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ..................................................................................................... .. 15 1 D. ADAUTO: AS PRIMEIRAS INTERVENÇÕES NA ÁREA POLÍTICA . .. 21 1.1 D. ADAUTO: Formação, Docência, Sagração Episcopal e Visita a Leão XIII...................................................................................................... 28 1.2 A CARTA PASTORAL DE SAUDAÇÃO (1894) ...................................... .. 38 2 A CONDENAÇÃO À SOCIEDADE MODERNA ...................................... .. 49 2.1 A CARTA PASTORAL DEUS E PÁTRIA: o Combate aos Vícios da Sociedade Moderna............................................................................ .. 54 2.2 O CHOQUE DE DOUTRINAS: Doutrina Católica versus Doutrina da Sociedade Moderna............................................................................ .. 79 3 A FÉ E O PATRIOTISMO A SERVIÇO DA IGREJA .............................. .. 87 3.1 A SOCIOLOGIA DA ORDEM DE BONALD E A HISTÓRIA PROVIDENCIALISTA DE MAISTRE ..................................... .. 92 3.2 A CARTA PASTORAL “DO DEVER DE GRATIDÃO PARA COM DEUS”: Fé e Patriotismo na Formação de uma Consciência Política ................. . 107 3.3 A CARTA PASTORAL “TUDO PELA PÁTRIA, NADA SEM DEUS”: o Dever Cívico nos Momentos de Crise ................................................. . 112 4 A ESTRATÉGIA POLÍTICA CATÓLICA PÓS-REVOLUÇÃO DE 1930 E A NOVA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1934 ......................... ..120 4.1 O PROTAGONISMO REVOLUCIONÁRIO DA PARAÍBA, O APOIO E AS EXPECTATIVAS DA DIOCESE DA PARAÍBA EM FACE DA REVOLUÇÃO DE 30 ............................................................................... ..121 4.1.1 O artigo “Visões do Brasil”, após a Revolução ........................................ ..127 4.2 AÇÃO POLÍTICA DE D. ADAUTO PÓS-REVOLUÇÃO DE 1930 ............ ..131 4.3 A FORMA MAIS PERFEITA DE PROJEÇÃO DA RELIGIÃO: a Lei e a Constituição ........................................................................................ ..147 CONCLUSÃO ...................................................................................................... ..158 REFERÊNCIAS ................................................................................................... ..160 ANEXOS .............................................................................................................. ..177 ANEXO A – CARTAS PASTORAIS DE D. ADAUTO. A. M. HENRIQUES .......... ..177 ANEXO B – D. ADAUTO A. M. HENRIQUES ...................................................... ..179 ANEXO C – DE LUTO, A PARAÍBA CATÓLICA! ................................................. ..180 15 INTRODUÇÃO O presente trabalho intitulado: “A oposição da Igreja Católica à ordem jurídica republicana: o pensamento teológico-político de D. Adauto Aurélio de Miranda Henriques (1894-1935)” tem por objeto de estudo a obra política do bispo produzida durante o período em que esteve à frente do governo eclesiástico da Diocese da Paraíba e Rio Grande do Norte (1894-1935). A sua vasta produção intelectual e a sua ação de natureza religiosa e política, direcionada para a defesa dos direitos da Igreja perante a nação brasileira, viria a integrar o movimento de oposição católica à ordem jurídica republicana, proclamada pela Constituição de 1891. A Constituição republicana fez a separação da Igreja com o Estado, consolidou a liberdade religiosa e, por consequência direta da nova orientação política liberal, deixou de contemplar direitos do interesse direto dos católicos na Carta Magna brasileira. O principal deles, a não inscrição do nome de Deus no preâmbulo da Constituição, foi, segundo a visão do clero nacional, o mais duro golpe sofrido pela Instituição católica, fato sem precedentes na história do Brasil. A oposição política da Igreja à ordem jurídica republicana, destarte, teve origem na negação dos direitos constitucionais dos católicos na Carta Política da Primeira República. O movimento oposicionista originou-se da alta cúpula da Igreja no Brasil e teve figuras de destaque, entre eles D. Macedo Costa, até 1890, e D. Leme, a partir de 1916. Os direitos constitucionais dos católicos seriam novamente reconhecidos pela Constituição de 1934, finalizando a luta política de mais de 40 anos. O governo eclesiástico de D. Adauto Aurélio de Miranda Henriques (Anexo B) à frente da Diocese da Paraíba e do Rio Grande do Norte (1894-1935) foi, quase todo ele, simultâneo ao período que liga a Constituição de 1891 à Constituição de 1934. A longevidade de D. Adauto à frente de sua Diocese foi plena de ações oposicionistas à liberal democracia republicana, por ter instituído no Brasil, segundo ele, uma constituição ateia, que não representava a tradição católica da nação brasileira. O presente trabalho visa o estudo do pensamento teológico-político oposicionista de D. Adauto Aurélio de Miranda Henriques expresso principalmente 16 nas Cartas Pastorais que o próprio bispo reconheceu ser de natureza política. Entende-se por pensamento teológico-político aquele que visa fundamentar o “sistema de representações através do qual a Igreja elabora uma dada apreensão da realidade, transfigurando-a simbolicamente através da ratio teológica”1. Segundo Teresa Malatian, Esse é um dado fundamental para compreender as posturas que a Igreja adotou perante a sociedade e o Estado, elaborando um discurso original – o discurso teológico-político – com a pretensão de instaurar novas práticas ou reforçar práticas em curso 2 . A análise da obra de D. Adauto Aurélio de Miranda Henriques permite entender a forma na qual o bispo operou o discurso teológico-político3 para levar o católico e o catolicismo a intervir na política nacional, a fim de obter o reconhecimento de um “fundamento religioso para a ordem política”4 e fazer voltar à Constituição os direitos de interesse da Igreja suprimidos pelo governo republicano. O presente trabalho levanta a hipótese de que havia por parte do clero nacional, mas, sobretudo por parte de D. Adauto, uma verdadeira obsessão pela lei, por ter na Constituição e nas leis da República o reconhecimento dos postulados católicos. A medida visava, em tese, o fortalecimento institucional da Igreja perante a sociedade brasileira. A modernidade deu novos contornos à lei, desvinculando-a do princípio da soberania divina. A lei passa a ser a expressão máxima do poder político sob o abrigo do princípio da soberania do povo, originado da Revolução Francesa. Segundo Claude Lefort A Revolução Francesa delineia um percurso no qual fica demarcada uma tensão contínua entre a ideia de religião como horizonte intransponível do homem e uma ideia de direito como fonte única da criação do homem pelo homem, ou, melhor, como princípio de uma ultrapassagem do homem que lhe é interior5. 1 MALATIAN, Teresa Maria. Os cruzados do Império. São Paulo/Brasília: Contexto/CNPq, 1990. p. 11-12. 2 Id. 3 A expressão “teológico-político” também foi utilizada por: ROMANO, Roberto. Brasil: Igreja contra Estado. São Paulo: Kairós, 1979, p. 11-12; e Claude Lefort no capítulo intitulado “Permanência do teológico-político?” In.: LEFORT, Claude. Pensando o político: ensaios sobre democracia, revolução e liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. p. 249-294. 4 LEFORT, Claude. Pensando o político: ensaios sobre democracia, revolução e liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. p. 274. 5 Ibid. p. 275. 17 Na Modernidade, a lei se tornou o parâmetro de conduta da vida social e política. Os destinos de povos e nações do Ocidente não mais seriam decididos por uma religião. A via democrática não mais permitiria a ingerência privada de uma Instituição – a Igreja – nos poderes da nação e nas leis, sem passar pelo crivo do debate político e do voto popular. O campo da religião se tornara distinto do campo da política. No Brasil, a Proclamação da República se encarregou da solução de continuidade da relação entre o campo da religião e o campo da política ao provocar a ruptura jurídica da Igreja com o Estado. Todavia, o fato da separação talvez não tenha causado tanto a indignação do clero quanto à retirada do nome de Deus do preâmbulo da Constituição de 1891. A indignação do clero a essa medida foi verbalizada em vários documentos eclesiásticos na flagrância dos fatos, sobretudo nas Cartas Pastorais dos Bispos do Brasil de 1890 e de 1900. A oposição católica à ordem jurídica republicana se fixou exatamente nesse ponto – a retirada do nome de Deus da Constituição – para erguer o estandarte que iria conduzir a argumentação de que a pátria brasileira se encontrava desprotegida pela ausência da ordem divina na sua Carta Magna. O projeto político da Igreja oferecia à nação a opção de buscar no religioso “a reconstituição de um polo de unidade graças ao qual seriam afastadas as ameaças de [sua] dissolução social”6, originada da República. Nesse sentido, a obra de D. Adauto Aurélio Miranda Henriques composta de 39 (trinta e nove) Cartas Pastorais, além de inúmeros artigos e documentos eclesiásticos publicados no jornal diocesano “A Imprensa”, fornecem importantes subsídios de pesquisa tanto no âmbito religioso quanto no político. Todavia, o presente trabalho faz, por opção metodológica, um recorte que visa analisar os documentos históricos – Cartas Pastorais – que o próprio bispo reconheceu ser de natureza política. O rol das obras de natureza política7, segundo a classificação de D. Adauto, é de 10 (dez) escritos, sendo 8 (oito) Cartas Pastorais, e 2 (dois) manifestos. São eles: 1. Carta Pastoral “Dos males da ignorância religiosa”, de 1905; 2. Carta Pastoral “Deus e Pátria”, de 1909; 3. Carta Pastoral “Do 6 LEFORT, op.cit., 1991. p. 275. 7 AEAP. HENRIQUES, D. Adaucto Aurélio Miranda. Doutrina contra doutrina: Carta Pastoral de D. Adaucto Aurélio de Miranda Henriques, arcebispo da Parahyba do Norte. Parahyba: Typographia da Imprensa, 1928. p. 3. 18 dever de gratidão para com Deus”, de 1917; 4. Carta Pastoral “Tudo pela pátria, nada sem Deus”, também de 1917; 5. Carta Pastoral “O segredo de nossa felicidade”, de 1922; 6. Carta Pastoral “A volta do homem e da sociedade para Deus”, de 1923; 7. Carta Pastoral “Das bases fundamentais da sociedade”, de 1927; 8. Carta Pastoral “Doutrina contra doutrina”, de 1928; 9. Circular condenando o jornal “O Malho”, de 1911; 10. Protesto dirigido aos Poderes Públicos, de 1915. Do ponto de vista metodológico faz-se ainda a opção por descrever e analisar, já no primeiro capítulo, a Carta Pastoral de “Saudação”8, de 1894. Nessa carta, D. Adauto saúda os seus diocesanos quando de sua posse na diocese da Paraíba e Rio Grande do Norte (04/03/1894), após ter sido nomeado e sagrado bispo por Leão XIII, em Roma, na data de 07/01/1894. A Carta de “Saudação” não foi incluída pelo bispo entre as do rol político, todavia ela traz as linhas fundamentais do seu projeto político de oposição à ordem jurídica republicana. Nela, D. Adauto não só saúda os seus diocesanos como, também, dá mostras de sua veia política ao adentrar a discussão de direitos constitucionais na primeira oportunidade que teve ao assumir a sua Diocese. No primeiro capítulo faz-se, também, a análise dos fatos políticos pós- Proclamação da República que diziam respeito à relação Igreja-Estado, visando contextualizar a presença de D. Adauto na vida nacional. Esse capítulo ainda descreve e analisa os fatos da sua formação intelectual na Europa e a conversa que teve com Leão XIII, na qual o Papa se mostrava interessado por questões da política no Brasil. Na sua visão a Igreja deveria aproximar-se da política e adaptar-se aos novos regimes dos Estados originados da Modernidade. A Igreja Católica, destarte, a partir de Leão XIII, orientou-se no sentido de não apenas resistir às mudanças sociais e políticas advindas da Modernidade, mas também no sentido de adaptar-se a elas, utilizando-se inclusive dos elementos da própria modernidade para ajustar-se aos novos tempos. Os novos tempos exigiam, segundo Leão XIII, uma educação eclesiástica diferenciada na formação de seus novos membros, tornando-os capazes de fazer a defesa da Igreja frente aos ataques das doutrinas liberais. 8 A Carta Pastoral de “Saudação” foi o primeiro documento de uma série de 39 (trinta e nove) escritos dessa mesma natureza. D. Adauto foi o autor de 29 (vinte e nove) Cartas Pastorais, e participou efetivamente na elaboração de outras 10 (dez) Cartas Pastorais Coletivas (Anexo A). 19 Gravíssimas razões, comuns a todos os tempos, exigem sacerdotes de grandes e numerosas virtudes, porém a época atual exige ainda mais. Com efeito, a defesa da fé católica que deve ser o empenho principal dos sacerdotes e tão necessária em nossos dias reclama uma instrução, não já comum e medíocre, senão profunda e variada: uma instrução que, abrace não só as ciências sagradas, senão também as ciências filosóficas e que seja enriquecida dos conhecimentos das naturais e históricas. Porquanto se trata de destruir erros numerosíssimos que ofendem a todos os princípios da doutrina cristã; e muitíssimas vezes é mister lutar com adversários bem preparados, extravagantes e contumazes na discussão, e com uma pérfida astúcia procurarão aproveitar-se de argumentos tirados de todos os ramos científicos (Leão XIII, Encíclica Elsi,15 fev., 1882). Essa diretriz de Leão XIII veiculada pela Encíclica Elsi nos, 15 de fevereiro de 1882, foi lembrada por D. Adauto A. de Miranda Henriques na sua Carta de “Saudação”9. A Igreja passou a se preocupar com a formação intelectual de seus novos membros. Entre os 79 bispos que exerceram função de direção no governo eclesiástico no Brasil, durante a Primeira República, 26 prelados concluíram seus estudos no exterior, sendo que 13 deles foram titulados doutores em Roma10. Entre eles estava o bispo da Paraíba, D. Adauto Aurélio de Miranda Henriques. Outros prelados desse período também obtiveram o título de doutor. Contudo, diferem dos demais por não terem exercido as funções de chefes de governo eclesiástico, a exemplo do Monsenhor Arruda Câmara (Doutor em Filosofia e Teologia Dogmática), deputado constituinte na Assembleia Nacional Constituinte de 1933-1934; e, Padre Leonel Franca (1893-1948), doutor em Filosofia e Teologia, fundador da Universidade Católica do Rio de Janeiro. No Império, D. Antonio de Macedo Costa (1830-1891), bispo do Pará e depois Arcebispo Primaz do Brasil, obteve o título de doutor em Direito Canônico pela Pontifícia Universidade 9 AEAP. HENRIQUES, D. Adaucto Aurélio Miranda. Carta Pastoral de D. Adaucto A. de Miranda Henriques, bispo da Parahyba, saudando aos seus diocesanos no dia de sua sagração. Roma: Typographia Polyglotta, 1894. p. 24. 10 São eles: D. José Lourenço da Costa Aguiar (1847-1905) obteve o título de Doutor em Direito Civil e Direito Canônico pela Universidade Santo Apolinário de Roma, enquanto que D. Francisco de Aquino Correa (1885-1956) tornou-se Doutor em Filosofia pela Academia São Tomás de Aquino de Roma. Os demais prelados obtiveram seus títulos de doutores pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma: D. Francisco do Rego Maia (1849-1948), Doutor em Direito Canônico; D. Adauto Aurélio de Miranda Henriques (1855-1935), Doutor em Direito Canônico; D. Santino Maria da Silva Coutinho (1865-1939), Doutor em Teologia e Direito Canônico; D. Manoel Raimundo de Melo (1872-1943), Doutor em Filosofia; D. Benedito Paula Alves de Souza (1873-1946), Doutor em Direito Canônico; D. Helvécio Gomes de Oliveira (1876-1960), Doutor em Filosofia; D. Frederico Benício de Sousa Costa (1876-1948), Doutor em Filosofia; D. Henrique César Fernando Mourão (1877-1945), Doutor em Filosofia; D. Joaquim Domingos de Oliveira (1878-1914), Doutor em Direito Canônico; D. Sebastião Leme da Silveira Cintra (1882-1942), Doutor em Filosofia e Teologia; D. José Tupinambá da Frota (1882-1959), Doutor em Filosofia e Teologia. MICELI, Sérgio. A elite eclesiástica brasileira: 1890-1930. São Paulo: Companhia da Letras, 2009. p. 82-101. 20 Gregoriana de Roma. A formação em Direito era valorizada pela Igreja, a fim de se executar as diretrizes de Roma11, mas, sobretudo pela necessidade de se ter acesso junto aos poderes políticos, à lei e ao direito do Estado. O segundo capítulo analisa as cartas pastorais “Deus e pátria”, de 1909, e “Doutrina contra doutrina”, de 1928, visando compreender a forma que D. Adauto combateu a modernidade, no intuito de superá-la a partir dos fundamentos da religião. O capítulo faz uma análise do conceito de representação de Carl Schmitt e, também, do conceito de secularização de Marramao, Catroga e Willaime visando explicar a forma que D. Adauto operou o seu discurso teológico-político de convencimento e mobilização do fiel à luta política. O terceiro capítulo descreve e analisa as cartas pastorais “Do dever de gratidão para com Deus”, de 1917, e “Tudo pela pátria, nada sem Deus”, também de 1917. O capítulo intitulado “A fé e o patriotismo a serviço da Igreja” defende que o conceito de patriotismo foi utilizado em reforço ao discurso teológico-político para fazer a ligação do indivíduo, da sociedade e da nação a Deus, por meio da ideia de filiação comum ao Criador – Deus. A argumentação adautiana, a nosso ver, vale-se do pensamento sociológico-organicista de Bonald, do providencialismo histórico de Maistre e do organicismo jurídico de Friedrich Julius Stahl, a fim de fundamentar o seu discurso que foi pensado não apenas e tão somente na relação indivíduo- religião, mas na relação sociedade-religião, objetivando abranger o indivíduo, a sociedade e o Estado. O quarto capítulo faz a análise dos fatos políticos ocorridos durante e pós-Revolução de 30 veiculados pelo jornal diocesano “A Imprensa”, nos quais se procura demonstrar não só as expectativas da Diocese da Paraíba em face do movimento revolucionário que levou Getúlio Vargas ao poder, mas também a vocalização imediata por direitos na nova Constituição. A experiência católica de mais de 40 anos convergiria para a luta política sob as insígnias da Liga Eleitoral Católica, a fim de se fazer o deslocamento do católico e do catolicismo ao político, visando, sobretudo influir na escolha dos membros da Assembleia Nacional Constituinte (1933-34) que iria promulgar a nova Constituição brasileira. 11 AZZI, Riolando. A Igreja Católica na formação da sociedade brasileira. Aparecida: Santuário, 2008. p. 75. 21 CAPÍTULO 1 - D. ADAUTO E AS PRIMEIRAS INTERVENÇÕES NA ÁREA POLÍTICA Iter para tutum 12 [Preparar o caminho seguro]. D. Adauto A. M. Henriques. A sabedoria popular é rica em conhecimentos originados da experiência que a vida engendra. A trajetória individual é plena de percalços e atribulações, em princípio comuns à maioria das pessoas. Os fatos e a história repetem-se e, não raro, os problemas novos são solucionados a partir da experiência de velhos problemas. A experiência das pessoas agrega sabedoria à vida, e as suas lições não podem ser desprezadas. Os adágios são uma forma de sabedoria popular, e expressam aquilo que vem sendo repetido por muito tempo e têm sempre uma lição embutida. As mensagens, na forma de provérbio popular, transmitem sínteses de valor moral. Em geral, as lições que as mensagens transmitem são valorizadas pelas pessoas pela aplicabilidade imediata a situações da vida prática. Pois bem, existe um adágio que diz que “o raio não cai duas vezes no mesmo lugar”. A presente argumentação não tem por óbvio nenhum rigor científico por ser de senso comum, todavia ela nos serve para introduzir o sentimento do episcopado brasileiro após a Proclamação da República. O bispo da Paraíba e Rio Grande do Norte, D. Adauto Aurélio de Miranda Henriques, declara que “o Brasil havia sido atingido pela Revolução duas vezes 89”13, a saber, a Revolução Francesa, de 1789, e a República brasileira, de 1889. De fato, dois eventos de naturezas similares haviam atingido a mesma Instituição – a Igreja católica. Embora de origens diferentes (França e Brasil), a mesma descarga ideológica originada na França havia separado também no Brasil República as estruturas do Estado confessional ao meio, isto se considerarmos que havia o equilíbrio de forças entre a Igreja e o Império. A nova realidade política do Estado acabou provocando a instabilidade institucional da Igreja pela quebra de um vínculo histórico que havia se originado em Portugal antes mesmo da chegada dos portuguêses no Brasil. O regime do 12 Lema de D. Adauto Aurélio de Miranda Henriques (1855-1935), bispo e arcebispo da Paraíba e Rio Grande do Norte (1894-1935). 13 AEAP. HENRIQUES, op. cit., 1928. p. 18-19. 22 padroado régio imperial que o Brasil herdara de Portugal, havia chegado ao fim. E com ele, o final de um período de submissão da Igreja aos poderes do Estado. O padroado teve origem na concessão de direitos da Santa Sé à corôa portuguesa, a título de ajuda material de que precisava nas guerras sustentadas para a defesa dos Estados Pontifícios14. Patrícia Ferreira dos Santos explica que Calisto III havia confirmado as antigas concessões de seus antecessores e, por meio da Bula inter cætera, de 13 de março de 1456, conferira novos poderes à corôa portuguêsa: a perpetuidade do direito do infante dom Henrique de reter todos os rendimentos da ordem, os quais deveriam ser aplicados nas conquistas, e, por extensão, o rei passava a ser o administrador de todos os bens, rendimentos e dízimos eclesiásticos da Ordem de Cristo, além de exercer a jurisdição eclesiástica sobre as conquistas15. Dornas Filho via no padroado “um regime de opressão”16 que havia causado angústias à Igreja no Brasil, segundo ele a Instituição católica se tornara “prisioneira de apetites e de ódios contrários à sua missão social”17 e que o Império havia sido “o algoz da Igreja com a pretensão de protegê-la”18. A ingerência do Estado nos negócios espirituais não raro resultava em desinteligências até mesmo do clero com relação às orientações da própria Igreja pela falta de demarcações claras dos vínculos jurídicos que uniam a Igreja ao Estado. O reconhecimento de vulnerabilidades do sistema, embora pareça contraditório, veio de um membro do próprio governo – o ministro da Justiça e regente do Império, Diogo Antonio Feijó, que mais tarde ombraria o projeto de “extinção do celibato clerical”19 no Brasil. Por meio de missiva ao episcopado brasileiro, o ministro denunciava sobre as repetidas queixas do povo contra os párocos que, em geral, vinham desempenhando mal o seu ministério, e atribuía o problema, entre outras causas, à má escolha dos ministros da religião pelo Estado20. Em decorrência, a flagrante negligência dos 14 Esse direito, segundo Dornas Filho, vinha sendo exercido desde 1456, quando o Papa Calisto III, por meio da Bula Inter-cætera, deu poderes aos soberanos portugueses de ingerência na jurisdição eclesiástica. DORNAS, op. cit, 1939. p. 17. 15 SANTOS, Patrícia Ferreira dos. Poder e palavra: discursos, contendas e direito de padroado em Mariana (1748-1764). São Paulo: Hucitec: FAPESP, 2011. p. 29-30. 16 DORNAS, op. cit., 1939. p. 17. 17 Ibid. p. 16. 18 Ibid. p. 19. 19 MONTENEGRO, João Alfredo. Evolução do catolicismo no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1972. p. 60. 20 A Igreja suportou excessiva ingerência do Estado na jurisdição eclesiástica e contou com um clero que atuava mais para garantir a ordem social do que para cuidar de suas tarefas próprias. DIAS, 23 prelados em regular o culto pelas leis da Igreja; a tolerância a festas nos templos até tarde da noite resultando condutas não condizentes com a moral religiosa; e a falta de importância às queixas dos fiéis, vinham dando margem, segundo Feijó, à mágoa dos “verdadeiros crentes”21. No Império, em razão do regime do padroado o clero estava atrelado à máquina administrativa estatal. O regime do padroado determinava a subordinação constitucional dos religiosos ao governo brasileiro22. Nesta condição, o clero integrava a categoria dos servidores públicos da nação: “o sacerdote era funcionário público, servia ao Estado, o qual, por sua vez, deveria contribuir para a manutenção do clero”23. Em razão das normas que ligavam a Igreja ao Estado, a religião não se limitava aos objetivos meramente espirituais. A ligação administrativa obrigava também à realização de objetivos político-institucionais do Estado brasileiro. Além de servir de sala de recepções para os encontros de natureza política, o espaço religioso servia também à realização de eleições, utilizando-se, nas paróquias, do mesmo espaço reservado às missas e cultos. Nesse sentido, Wernet enfatiza que “a paróquia era a célula mais importante no sistema eleitoral brasileiro”24. Nas Igrejas, após missa solene, realizavam-se eleições para a escolha direta de vereadores, juízes de paz, deputados provinciais e deputados gerais. Não havia dentro do espaço da religião a dissociação entre o cristão e o cidadão. Os acontecimentos mais importantes da vida pessoal e política dos indivíduos davam-se nas Igrejas. A realidade pessoal do homem religioso não se separava de sua realidade política. A paróquia havia se tornado, segundo Wernet, “o ponto de convergência da vida civil, política e religiosa”25. Dentre esses acontecimentos, o casamento, exclusivo da Romualdo. Imagens de ordem: a doutrina católica sobre autoridade no Brasil (1922-1933). São Paulo: Universidade Estadual Paulista, 1996. p. 25. 21 A mensagem de Feijó ao episcopado brasileiro foi enviada por meio do Aviso de 12 de março de 1832. DORNAS FILHO, op. cit.,1939. p. 20-22. 22 O art. 102, da Constituição do Império (1824), atribuía ao Imperador o direito de nomear bispos e prover os benefícios eclesiásticos (inciso II); e também o direito de conceder, ou negar o beneplácito aos decretos dos Concílios, e Letras Apostólicas, e quaisquer outras Constituições Eclesiásticas que se não fossem contrárias à Constituição (inciso XIV). BRASIL. Constituição Política do Império do Brasil, de 25 de março 1824. Disponível em: http://goo.gl/uOv33Y. Acesso em: 12. jul. 2014. 23 WERNET, Augustin. A Igreja paulista no século XIX: a reforma de D. Antônio Joaquim de Melo (1851-1861). São Paulo: Ática, 1987. p. 69. 24 Id. 25 Id. 24 Igreja durante o regime imperial26 tinha repercussões não só na vida do cristão, mas também na do cidadão. O matrimônio na condição de sacramento atendia aos imperativos da religião, e na condição de contrato outorgava ao cidadão os direitos civis perante a lei brasileira. A ruptura do regime do padroado e a separação jurídica do Estado com a Igreja pela República teve o efeito de um vazio institucional. A Igreja perdeu, ao mesmo tempo, o monopólio da religião oficial, o domínio da educação, das obras assistenciais, do registro da população (nascimento, batismo, casamento e óbito), entre outros27. A Igreja não via com bons olhos a ingerência do Estado nos negócios religiosos28, todavia ressentia-se da quebra dos vínculos jurídico-institucionais da relação Igreja e Estado. A República oficializou o princípio liberal na política nacional. A liberal- democracia republicana rompeu com o modelo de Estado Imperial, bem como os seus vínculos jurídicos a uma religião oficial29. A Proclamação da República representou a superação de um modelo de Estado, levado a efeito por uma elite política que via a solução nacional no modelo liberal norte-americano e francês. Ao 26 O vínculo jurídico entre normas da religião e normas jurídicas do Império pode ser verificado na seguinte informação: “A forma pela qual se deve celebrar o casamento é, entre nós, determinada pelos cânones do Concílio Tridentino, que, tendo sido aceitos em Portugal pelo Decreto de 12 de novembro de 1564 e Lei de 8 de abril de 1569, foi mandado observar entre nós, na parte somente da sessão 24, cap. 1º, de reformatione matrimonii, por uma disposição especial, o Decreto de 3 de novembro de 1827, sendo que por essa mesma ocasião se deu vigor em todo o Império à Constituição do Arcebispado da Bahia, Livro 1º, título 68, § 291, que, com as disposições do Concílio, regem por conseguinte toda a matéria da celebração dos casamentos” (BANDEIRA FILHO, Antonio Herculano de Souza. Comentário à Lei nº 1.144, de 11 de setembro de 1861 e subsequente legislação sobre casamento de pessoas que não professam a religião do Estado. Rio de Janeiro: Garnier, 1876. p. 11). VIDE MONTEIRO, D. Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (1707). São Paulo: Typhographia Antonio Louzada Antunes, 1853. Disponível em: http://goo.gl/uNx7g5 Acesso em: 4. jul. 2013. 27 ROMANO, Roberto. Brasil: Igreja contra Estado. São Paulo: Kairós, 1979. p. 82. 28 Anos depois, a Igreja restringiu os direitos de padroado no Código Canônico de 1917. Os artigos de 1448 até 1483, do Código Canônico, disciplinaram as novas relações de padroado admitidas pela Igreja. Os comentários do cônego português, Illidio José Vieira da Costa, na obra “Resumo do Código de Direito Canônico”, aprovada pelo bispo do Porto, dão conta de um instituto mais restritivo, muito diferente dos direitos do padroado presentes no Brasil até à proclamação da República. O direito de padroado passou a se referir aos privilégios atribuídos pela Igreja aos fundadores católicos (doadores de igreja, capela ou benefício) e seus sucessores, apenas na condição de patronos ou padroeiros. COSTA, Illidio José Vieira. Resumo do código de direito canônico. Porto: Antonio Pacheco e Joaquim Maria da Costa Limitada, 1918. p. 110-114). Ver tb. DOMÍNGUES, Lorenzo Miguélez. Código de Derecho Canónico y legislación complementaria. Madrid: La Editorial Católica S.A., 1947, p. 542-556; BARBOSA, Manoel. A Igreja no Brasil: notas para a sua história. Rio de Janeiro: Ed. e Obras Gráficas a Noite, 1945. p. 153-169. 29 O artigo 5º da Constituição do Império de 1824 tinha o seguinte enunciado: “Art. 5. A Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a Religião do Imperio. Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto doméstico, ou particular em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior do Templo”. BRASIL. Constituição Política do Império do Brasil. Disponível em: http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm. Acesso em: 5. jul. 2015. 25 que nos parece, e guardadas as devidas proporções, a República afetou a Igreja a ponto de que ela mesma teria de sofrer internamente um processo de mudanças a fim de atualizar-se conforme a nova matriz política. Os primeiros decretos do governo provisório do Mal. Deodoro da Fonseca já davam mostras do que seria o futuro dos direitos da relação Igreja- Estado na Constituição de 1891. O Estado não mais deveria interferir nos negócios religiosos, e, por consequência, o poder público não mais subvencionaria quaisquer instituições de natureza religiosa30. A Constituição da República consolidou a liberdade religiosa. O projeto político republicano ligava-se na ideia de laicização completa do Estado. Segundo Ivan Manoel, a ideia de liberdade, defendida por liberais e positivistas, propunha “o afastamento de qualquer relação entre o Estado e a Igreja Católica e outras religiões como fundamento de uma nova ordem, progressista e esclarecida”31. O Estado republicano instituiu novos direitos e por meio deles afastou a jurisdição da Igreja sobre os direitos civis do matrimônio religioso e proclamou o casamento civil, obrigatório e exclusivo do Estado32; proibiu o ensino religioso nas escolas, prescrevendo que seria leigo o ensino ministrado nos estabelecimentos públicos33; destituiu a Igreja da administração dos cemitérios, consolidando a norma de que os cemitérios teriam caráter secular e seriam administrados pela autoridade municipal, ficando livre a todos os cultos religiosos a prática dos respectivos ritos em relação aos seus crentes, desde que não ofendessem a moral pública das leis34; impediu os religiosos de ordens monásticas, companhias, congregações ou comunidades de qualquer denominação, sujeitas a voto de obediência, regra ou 30 O decreto nº 119 A, de 7 de janeiro de 1890, proibiu a intervenção da autoridade federal e dos Estados federados em matéria religiosa, consagrou a plena liberdade de cultos e extinguiu o padroado. BRASIL. Decreto nº 119 A, de 7 de janeiro de 1890. Disponível em: http://goo.gl/2Ryatx Acesso em: 15. jul. 2014. Esses preceitos foram depois consolidados no art. 72, da Constituição Federal de 1891: proibição de intervenção na religião, cf. § 7º; liberdade religiosa, cf. o § 3º. BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 24 de fevereiro de 1891. Disponível em: http://goo.gl/50ygOf Acesso em: 15. jul. 2014. 31 MANOEL, Ivan Aparecido. D. Antonio de Macedo Costa e Rui Barbosa: a Igreja Católica na ordem republicana brasileira. Pós-História: Revista de Pós-Graduação em História. Universidade Estadual Paulista. v. 5. Assis: 1997. p. 67-81. 32 O decreto nº 181, de 24 de janeiro de 1890, promulgou a lei do casamento civil. BRASIL. Decreto nº 181, de 24 de janeiro de 1891. Disponível em: http://goo.gl/93QEem Acesso em: 15. jul. 2014. A Constituição da República, de 24 de fevereiro de 1891, dispôs sobre o casamento civil, no art. 72, § 4º, nos seguintes termos: “A Republica só reconhece o casamento civil, cuja celebração será gratuita”. BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 24 de fevereiro de 1891. Disponível em: http://goo.gl/50ygOf. Acesso em: 15. jul. 2014. 33 BRASIL. Constituição de 1891, § 6º, art. 72. 34 BRASIL. Constituição de 1891, § 5º, art. 72. 26 estatuto que importasse a renúncia da liberdade individual, de alistar-se como eleitores para as eleições federais ou para a dos Estados35; e extinguiu a cadeira de direito eclesiástico das Faculdades de Direito do Recife e São Paulo36. No entanto, pelo menos dois fatores parecem ter convergido para os interesses católicos – o fim do regime do padroado e o direito sobre seus próprios bens. A Igreja, segundo o Padre Júlio Maria, havia sido “libertada do regime do padroado, que a mantinha submissa às ordens do governo imperial”37. A hierarquia eclesiástica brasileira editou, em 19 de março de 1890, a Carta Pastoral Coletiva do Episcopado brasileiro, onde emitiu o seguinte juízo sobre o decreto que separou a Igreja do Estado: Se no decreto há cláusulas que podem facilmente abrir a porta a restrições odiosas desta liberdade (a eclesiástica), é preciso reconhecer que, tal qual está redigido, o decreto assegura à Igreja Católica no Brasil uma certa soma de liberdade que ela jamais logrou no tempo da monarquia 38 . Na mesma linha de raciocínio, a manutenção dos direitos da Igreja sobre os bens de mão-morta assegurava aos católicos a manutenção dos direitos de domínio sobre seus bens39. O art. 5º, do Decreto nº 119 A, de 7 de janeiro de 1890, reconhecia a personalidade jurídica das igrejas, para adquirirem bens e os administrarem, sob os limites postos pelas leis de propriedade de mão-morta, mantendo-se a cada uma o domínio dos bens que já estivessem em seu poder na data da edição da lei, bem como dos seus edifícios de culto. As medidas deixavam intocados os bens da Igreja católica no Brasil. Todavia, tais medidas não se consolidariam apenas com a edição da lei. As discussões judiciais sobre direitos ao patrimônio de bens ligados à Igreja se arrastaram nos tribunais por mais alguns anos. O Supremo Tribunal Federal, por meio de acórdão proferido em 19 de outubro de 1896, explicitando os direitos da Igreja, foi depois confirmado por outras decisões posteriores desse mesmo Tribunal (agosto de 1897; agosto de 1903). A decisão da 35 BRASIL. Constituição de 1891, § 4º, art. 70. 36 BRASIL. Decreto nº 1.036 A, de 14 de novembro de 1890. Disponível em: http://goo.gl/dlgLqD Acesso em: 15. jul. 2014. 37 MARIA, Júlio. A Igreja e a República. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1981. p. 103. 38 Id. 39 BRASIL. Decreto nº 119 A, de 7 de janeiro de 1890. Disponível em: http://goo.gl/2Ryatx. Acesso em: 15. jul. 2014. 27 mais alta Côrte Constitucional do Brasil salvaguardou os bens eclesiásticos sobretudo das ordens religiosas do interesse particular40. A nova ordem jurídica republicana havia, todavia, tocado no maior bem simbólico dos católicos. A Constituição da República (1891) não inscreveu o nome de Deus no seu preâmbulo41, a exemplo da Constituição do Império de 182442. Do ponto de vista jurídico, o preâmbulo não tem o valor de norma jurídica, uma vez que dele não se originam direitos e muito menos obrigações aos destinatários da Constituição. José Scampini afirma que: O preâmbulo é uma expressão solene de propósitos e desejos dos constituintes e não uma declaração de normas nem sequer de princípios. Quando se trata de um preâmbulo amplo, solene e majestoso, consoante à doutrina de muitos autores, ele é um excelente manancial de interpretação, porque vale como a síntese ou resumo autorizado e antecipado dos fins essenciais pelos quais a Constituição fora criada 43 . Todavia, a falta do nome de Deus no preâmbulo da Constituição republicana foi interpretada pelo clero como a própria ausência de Deus na pátria brasileira. A hierarquia católica defendia a ideia de que, historicamente, Deus sempre esteve simbolicamente presente na nação brasileira desde a chegada dos primeiros religiosos no Brasil Colônia, adentrou o Império, mas fora retirado pela Constituição Republicana. O reconhecimento da religião oficial – o catolicismo – pela Constituição de 1824 trazia no seu art. 5º44 a expressão “continuará a ser”, indicando, segundo o bispo D. Antônio de Macedo Costa (1830-1891), a precedência da religião a toda e qualquer legislação da nação, fato que garantiria ao 40 LUSTOSA, Oscar de Figueiredo. A Igreja Católica no Brasil República: cem anos de compromisso: 1889-1989. São Paulo: Edições Paulinas, 1991. p. 19. 41 O preâmbulo da Constituição da República, de 1891, foi promulgado com a seguinte redação: “Nós, os representantes do povo brasileiro, reunidos em Congresso Constituinte, para organizar um regime livre e democrático, estabelecemos, decretamos e promulgamos a seguinte Constituição”. BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 24 de fevereiro de 1891. Disponível em: http://goo.gl/50ygOf Acesso em: 15. jul. 2014. 42 A Constituição do Império foi promulgada “Em nome da Santíssima Trindade”. BRASIL. Constituição Política do Império do Brasil, de 25 de março de 1824. Disponível em: http://goo.gl/U70sDd Acesso em: 14. jul. 2014. 43 SCAMPINI, José. A liberdade religiosa nas constituições brasileiras. Petrópolis: Vozes, 1978. p. 138. 44 “Art. 5. A Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a Religião do Império. Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto doméstico, ou particular em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior do Templo”. BRASIL. Constituição Política do Império do Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm Acesso em: 5. jul. 2015. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm 28 catolicismo e seus postulados um direito superconstitucional superior a toda e qualquer Constituição45, portanto, um direito intocável pelas mãos de legisladores. A Igreja se via num vazio institucional. Acostumada à presença no domínio público, a Igreja agora se retirava para o domínio privado devido às constantes pressões da nova ordem jurídico-política do Estado brasileiro, afastando- se do campo da política em face da instauração da laicidade no Estado. Roberto Romano assevera que “mesmo preocupada em combater o laicismo, a Igreja traçou estratégias de convivência com o novo regime e formas de mútuo apoio que garantissem os interesses das duas instituições”46. É nesse cenário que se insere o nosso personagem, o Bispo e Arcebispo da Paraíba e Rio Grande do Norte, D. Adauto Aurélio de Miranda Henriques. 1.1 D. ADAUTO: Formação, Docência, Sagração Episcopal e Visita a Leão XIII O bispo da Paraíba teve sua formação no Brasil e na Europa durante o pontificado de Leão XIII. D. Adauto aprendeu as primeiras letras na sua cidade natal, Areia Grande, no Estado da Paraíba, onde nasceu aos 30 de agosto de 1855. A sequência de sua formação no Brasil deu-se no Seminário de Olinda, Pernambuco. Mais tarde, segue para a Europa indo a Paris. Em 7 de abril de 1875, aos 18 anos, inicia a sua formação eclesiástica, no Seminário Sulpiciano de Issy, onde graduou- se em Filosofia, após dois anos de curso. No dia 8 de maio de 1877, ingressou no Colégio Pio Latino Americano de Roma, onde realizou o curso de Teologia, e, após cursar Direito Canônico, obteve o seu título de doutor, pela Universidade Gregoriana de Roma, finalizando-o no dia 18 de janeiro de 1882. No dia 11 de março de 1882, parte da Europa regressando ao Brasil. De volta ao Brasil, D. Adauto assume as suas funções eclesiásticas no Seminário de Olinda. Aos 31 de agosto de 1882, se junta ao corpo docente do Seminário, sendo nomeado titular da disciplina de Retórica para o Seminário e o Colégio Diocesano. Nos últimos anos de docência, a partir 1892, passou a ocupar a cadeira de Francês e também a de Direito Canônico. O bispo diocesano de Olinda, 45 BORGES, Donaldo de Assis. A referência a Deus nas Constituições brasileiras. In.: VERGARA, Diana Lago de; LINEROS, RoseMary Pérez; RUEDA, Estefanie Elisa Uparela. Educación y Cultura: retos del nuevo siglo em latinoamerica. Cartagena: Rudecolonbia, 2013. p. 984. 46 ROMANO apud DIAS, Romualdo. Imagens de ordem: a doutrina católica sobre autoridade no Brasil (1922-1933). São Paulo: Universidade Estadual Paulista, 1996. p. 25. 29 D. José Pereira da Silva Barros, nomeou-o direitor espiritual do Seminário e cônego efetivo da Sé, cargos que desempenhou até à sua renúncia em 1893, quando foi eleito bispo da nova diocese da Paraíba, depois de recusar o convite da Nunciatura Apostólica para ocupar o cargo de bispo-coadjutor, com direito à sucessão do Cardeal Joaquim Arcoverde de Albuquerque Cavalcanti, na Arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro47. Em 1894, ocorreu a sua sagração episcopal em Roma, no dia 07 de janeiro. Depois da sagração, D. Adauto visitou o Papa Leão XIII. O Papa Leão XIII, nos seus 84 anos de idade, governava a Igreja desde 1878. Francisco Lima relata o diálogo de D. Adauto com Leão XIII durante a audiência em síntese: Leão XIII perguntou a D. Adauto: − “Julgas possível a restauração monárquica no Brasil?” [...] o bispo, fiel ao seu pensamento, respondeu categoricamente a Leão XIII: − “É inteiramente impossível S. S. Padre”. − “Dá-me as razões do que afirma, retrucou-lhe o Papa”. – “S. S. Padre avançou D. Adauto, o sustentáculo dos tronos é a nobreza de sangue, e esta nobreza não existe no Brasil, um país novo sem tradições. A nossa nobreza, que não tem assim foros de fidalguia nem de hereditariedade, figura apenas como prêmio de serviços prestados à nação, ao regime monárquico ou à dinastia reinante. Demais, S. S. Padre, a monarquia na América é uma planta exótica. A mentalidade americana é refratária ao sistema monárquico como bem prova o caso do México: o sacrifício do imperador Maximiliano”. [...] Silencioso e pensativo, confirma Leão XIII com um aceno de cabeça os argumentos do jovem prelado 48 . Embora D. Adauto tenha respondido negativamente à pergunta do Papa, o seu biógrafo registra que, na verdade, o bispo da Paraíba sabia que Leão XIII não desejava a restauração monárquica no Brasil. As repercussões da Questão religiosa (1874) envolvendo o conflito de D. Vital e D. Macedo Costa com a maçonaria, quase no início do pontificado de Leão XIII, ainda provocavam ressentimentos. Segundo Romualdo Dias, a Questão religiosa “foi um exemplo da intransigência do governo diante da Santa Sé, para manter o controle do aparelho eclesiástico”49. Para Antonio Carlos Villaça o conflito entre os bispos e Governo 47 DIAS, op. cit., 1996. p. 57. 48 O Cônego Francisco Lima, biógrafo de D. Adauto, conviveu por muito tempo com o bispo. Nesse sentido, pode-se concluir que o Cônego ouviu o relato da audiência do bispo da Paraíba com o Papa Leão XIII, do próprio D. Adauto, por mais de uma vez. LIMA, Cônego Francisco. D. Adauto: subsídios bibliográficos. 2. ed. João Pessoa: UNIPÊ, 2007. p. 155-158, v. 1. 49 DIAS, op. cit., 1996. p. 20. 30 imperial tinha por foco a necessidade ou não da chancela oficial do Estado para as Bulas pontificiais50. Não havia, portanto, ilusões da Igreja quanto a restauração. Todavia, a princesa Isabel, futura imperatriz, se houvesse a restauração, tinha as graças da Santa Sé. Ela fora agraciada com a “Rosa de Ouro”, em 1888, pelo próprio Papa Leão XIII51. Por outro lado, D. Adauto sabia que o Sumo Pontífice havia aconselhado o Cardeal Lavigerie, em 1890, “a aderir ao regime republicano, desviando os franceses, de toda oposição sistemática àquela forma de governo”52. A adesão de Leão XIII resultava, não só de sua habilidade política, mas também do diagnóstico que fazia da sociedade moderna53, segundo Júlio Maria, Ele viu todos os movimentos que agitam o século; pesou todas as suas revoluções; analisou todas as aspirações democráticas; contemplou as correntes diversas que percorrem o oceano social; meditou profundamente a história da Igreja; avaliou o pouco que ela ganhou e o muito que ela perdeu em certas alianças políticas; [...], todavia muito cheios de si próprios nos governos se esqueceram da religião 54 . Esse era, segundo o Papa, o problema da sociedade moderna: os governos haviam se esquecido da religião. O fundamento da democracia fez a inversão da soberania. Na visão da Igreja a soberania de Deus fora substituída pela soberania dos homens. E nisso residia o mal da sociedade moderna. O mundo moderno se fundamentava na liberdade de pensamento e consciência e se desenvolvia sem obedecer aos preceitos católicos da Igreja55. A prevalência dos interesses, preceitos e princípios católicos na sociedade não mais se fariam pela via direta dos pactos e acordos políticos de cúpula, também não seriam aceitos se não 50 VILLAÇA, Antonio Carlos. História da questão religiosa no Brasil. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1974. p. 1. 51 No § 7º - D. Isabel, a católica, da obra História das ideias religiosas no Brasil, João Camilo Torres narra fatos que se deram na cerimônia, entre eles o discurso proferido por D. Antônio de Macedo Costa. TORRES, João Camilo de Oliveira. História das ideias religiosas no Brasil. São Paulo: Grijalbo, 1968. p. 156-159. 52 LIMA, op. cit., 2007, p. 157. No mesmo sentido, diz Júlio Maria: “Leão XIII impeliu o cardeal Lavigerie a precedê-lo na aceitação da república na França, exigindo-lhe pôr o seu talento, a sua palavra, o seu prestígio ao serviço de uma ideia que ia ser em breve o assunto de importantíssima encíclica”. MARIA, Júlio. A Igreja e a República. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1981. p. 122. 53 Os documentos analisados pela pesquisa fazem referência à sociedade do período pós-Revolução Francesa (1789) sob a designação de “sociedade moderna”. Os documentos pontifíciais originados de Roma, os documentos pastorais de D. Adauto, bem como a literatura do período pesquisado não fazem a distinção entre a Idade Moderna e a Contemporânea. Nesse sentido, a expressão “sociedade moderna” designa o período histórico iniciado pelo Renascimento e Reforma Protestante, sem sofrer descontinuidade pelo fato da Revolução Francesa, até à contemporaneidade do período analisado (1894-1935). 54 MARIA, op. cit., 1981. p. 122. 55 MANOEL, op. cit., 2008. p. 48. 31 se adequassem aos valores da sociedade moderna. A realidade democrática exigia da Igreja novos posicionamentos e estratégias para fazer valer os seus interesses por meio do processo político. A Igreja não tendo mais a garantia de se atrelar aos sistemas políticos por pactos e acordos diretos de outrora, deveria submeter-se à regra democrática. Em decorrência, a Igreja se viu sem o fundamento de sua própria autoridade. Na visão de Julio Maria, A autoridade tendo passado das classes às massas e o futuro pertencendo à democracia, uma nova missão seria imposta ao clero, o qual não deveria ser um instrumento de reino ou um apoio dinástico, mas uma força social 56 . É importante destacar aqui a visão de D. Adauto sobre a democracia. A democracia, segundo ele, necessitaria mais da religião do que outros sistemas políticos, justamente pelo fato de que nela o abuso da liberdade poderia mais facilmente ocorrer57. A força social do clero não deveria se restringir aos limites do campo religioso, mas sim convergir para a luta política. A reafirmação dos valores católicos não mais teria franqueado o caminho do livre convencimento e aceitação apenas pela fé. Os valores católicos deveriam tangenciar os valores da sociedade moderna, e encontrar o caminho para reposicionar a Instituição dentro desse novo quadro político liberal-democrático. Em 1894, D. Adauto A. M. Henriques ao se tornar o primeiro bispo da Diocese da Paraíba e Rio Grande do Norte58, depara-se com duas realidades que, em princípio, veem divergentes e que nos dão os indicativos de que ele teria um olhar diferenciado para as questões jurídicas da relação entre a Igreja e o Estado brasileiro ao apontar duas realidades normativas distintas: a realidade nacional e sua legislação adversa aos princípios católicos; e a realidade das leis dos Estados de sua Diocese, mais afinada com os preceitos da religião. D. Adauto fazia 56 MARIA, op. cit., 1981. p. 5. 57 AEAP. HENRIQUES, Adauto Aurélio de Miranda Henriques. O segredo de nossa felicidade: Carta Pastoral de D. Adaucto Aurélio de Miranda Henriques, arcebispo do metropolitano da Parahyba. Parahyba: Typographia da Imprensa, 1922. p. 25-26. 58 A Diocese da Paraíba e Rio Grande do Norte foi criada por Leão XIII, por meio da Bula Ad universas orbis ecclesias, de 27 de abril de 1892. Em 1914 houve o desmembramendo da Diocese, a partir da criação das Dioceses do Rio Grande do Norte e Cajazeiras. A Diocese da Paraíba foi elevada à categoria de Igreja Metropolitana pela Bula Majus catholicae religionis incrementum, de 6 de fevereiro de 1914. A mesma Bula constituiu D. Adauto o Metropolitano da nova Província Eclesiástica. LIMA, Cônego Francisco. D. Adauto: subsídios bibliográficos. 2. ed., João Pessoa: UNIPÊ, 2007. p. 362-363, v. 1. 32 referência ao fato de que as Constituições dos Estados da Paraíba e Rio Grande do Norte tinham sido promulgadas fazendo referência ao nome de Deus, diferentemente da Constituição republicana59. D. Adauto afirmava que fora agraciado por Deus pelo fato da providência divina ter-lhe enviado para uma diocese em que os Estados haviam promulgado suas Constituições em nome de Deus. E assim, conservavam a paz e a concórdia cristã, diferentemente de outros Estados da pátria, que não inscreveram o nome de Deus nas suas Constituições e por isso não mais tinham forças para encontrar a paz e a felicidade do seu povo60. A análise desse fato envolvendo sistemas legais, sobretudo no plano do Direito Constitucional indicava que havia da parte do bispo da Paraíba uma preocupação especial com as leis do país. A sua trajetória no governo eclesiástico de sua Diocese seria marcada pela luta política por direitos da Igreja na Constituição e nas principais leis do país. Na Carta Pastoral de “Saudação” D. Adauto faz o seguinte registro: Oremos por nosso querido Brasil, que depois que viu desaparecer completamente de sua Constituição a soberania de Deus sobre ele não gozou mais da paz e tranquilidade que constituem a parte principal da felicidade temporal dos povos 61 . Todavia, não seria essa a primeira vez que o princípio da soberania popular sofreria os ataques da ortoxia católica. Esse princípio foi apontado pelo Concílio Vaticano I como sendo a mais herética de todas as heresias porque importava a usurpação das funções de Deus pelos homens. Em decorrência, a fonte do poder das nações não mais descenderia de Deus, mas apenas e tão somente da delegação popular62. A soberania de Deus, a juízo do bispo, havia sido destituída da nação brasileira pela Constituição Republicana. D. Adauto atribuía os males sociais do Brasil ao afastamento intensivo de Deus da sua Carta política, devido “ao absurdo divórcio entre a sociedade brasileira e o seu Criador, divórcio que falsos intérpretes 59 Vale destacar, que, após a Proclamação da República, segundo Felibello Freire, apenas três Constituições estaduais mantiveram a inscrição “em nome de Deus”, ou expressão similar. Entre elas (Minas Gerais, Bahia e Paraíba), não estava a Constituição do Estado do Rio Grande do Norte, diferindo, nesse aspecto, da afirmação feita por D. Adauto. FREIRE, Felisbello. As constituições dos Estados e a Constituição Federal. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1898. p. 408, 475 e 587. 60 AEAP. HENRIQUES, op. cit., 1894, p. 29. 61 Ibid. p. 33. 62 BARBOSA, Rui (Prefácio). In.: DÖLLINGER, Johann Joseph Ignaz von (Janus). O papa e o concílio. Londrina: Leopoldo Machado, 2002. p. 191. 33 da Constituição Federal mais agravavam – confundindo os conceitos contra legem63e praetaer legem64 num bisonho hermenêutico de primários”65. Na sua visão, o problema da falta do nome de Deus na Constituição se agravava ainda mais pela interpretação que se fazia das normas e princípios constitucionais. Ao contrário de se fazer uma interpretação extensiva, que abarcasse os princípios morais da religião e levasse em conta “o espírito da lei”66, a hermenêutica constitucional havia se tornado restritiva para interpretar dentro dos limites da literalidade da lei. De forma autoritária a Constituição havia levado à ruptura dos valores católicos da nação. A análise de questões jurídico-políticas nacionais pelo bispo se tornaria recorrente nas suas obras. Em especial, pelo menos 10 (dez) dos seus escritos tratam especificamente de questões da política nacional67, sendo os demais – cerca de 29 Cartas Pastorais – de interesse interno da religião68 (Anexo A). O rol das obras de natureza política69, segundo a classificação do próprio D. Adauto é de 10 (dez) escritos, sendo 8 (oito) Cartas Pastorais, e 2 (dois) manifestos. São eles: 1. Carta Pastoral “Dos males da ignorância religiosa”, de 1905; 2. Carta Pastoral “Deus e Pátria”, de 1909; 3. Carta Pastoral “Do dever de gratidão para com Deus”, de 1917; 4. Carta Pastoral “Tudo pela pátria, nada sem Deus”, também de 1917; 5. Carta Pastoral “O segredo de nossa felicidade”, de 1922; 6. Carta Pastoral “A volta do homem e da sociedade para Deus”, de 1923; 7. Carta Pastoral “Das bases fundamentais da sociedade”, de 1927; 8. Carta Pastoral “Doutrina contra doutrina”, de 1928; 9. Circular condenando o jornal “O Malho”, de 191170; 63 Verbete contra legem: “contra a lei; o que se opõe à lei”. DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 833, v. 1. 64 Verbete praeter legem: “para além da lei; complementar à lei, sem contrariar o seu espírito”. DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 833, v. 3. 65 LIMA, op. cit., 2007. p. 339, v. 1. 66 O sigficado ou sentido da lei segundo a sua finalidade moral, social e política. 67 Os escritos de natureza política visavam, segundo D. Adauto, abordar questões que diziam respeito à Pátria, o seu engrandecimento e sua verdadeira civilização. 68 Os escritos de natureza religiosa, especificamente, diziam respeito à sociedade religiosa, que segundo D. Adauto, traria de modo indireto o bem da sociedade civil. 69 AEAP. HENRIQUES, op. cit., 1928. p. 3. 70 A Carta-Circular é o manifesto pelo qual D. Adauto se insurgiu contra as publicações do Jornal “O Malho” ofensivas à Igreja. Por meio dela, D. Adauto se dirigiu aos vigários das paróquias de sua diocese para proibir a todos os fiéis da diocese a leitura do Jornal “O Malho”, editado no Rio de Janeiro, por veicular caraicaturas e críticas ofensivas à Igreja. O inteiro teor da Carta se encontra em: 34 10. Protesto dirigido aos Poderes Públicos, de 191571. Notadamente, a sua trajetória no governo eclesiástico diocesano revela pelo menos duas frentes de trabalho: a religiosa – no comando da sua Diocese – e a política – na busca de direitos de interesse dos católicos na Constituição da República. Em ambas o bispo depositou toda sua erudição, originada do seu vasto cabedal intelectual, em especial da sua condição de doutor em Direito Canônico, portanto, especialista em leis72. Em princípio, poder-se-ia argumentar que a sua especialização versaria sobre Direito Canônico, portanto o conhecimento de um ordenamento jurídico especificamente ligado à doutrina católica, fato que o colocaria fora do campo político e das lides jurídico-políticas nacionais. Todavia, o seu pensamento teológico-político é abrangente e fundamentado não só nos aspectos teológicos, mas também no direito, na filosofia e na história. Contudo, não se deve perder de vista que D. Adauto era um intelectual da Igreja formado na escola de Leão XIII, e devidamente alinhado às determinações de Roma. D. Adauto se colocava, portanto, a serviço de uma LIMA, Cônego Francisco. D. Adauto: subsídios bibliográficos. 2. ed. João Pessoa: UNIPÊ, 2007. p. 312, v. 2. As caricaturas de “O Malho” que deram origem à Carta-Circular podem ser consultadas no endereço eletrônico da Fundação Casa de Rui Barbosa, seus títulos e meios de acesso são os seguintes: FCRB. O prêmio. Jornal “O Malho”. Revista nº 439, p. 11. Ano: 1911. Disponível em: http://alturl.com/2udmp; FCRB. Para o reino do céu. Jornal “O Malho”. Revista nº 444, p. 9. Ano: 1911. Disponível em: http://alturl.com/dtu6v; FCRB. Cousas deploráveis no Rio Grande do Sul. Jornal “O Malho”. Revista nº 446, p. 45. Ano: 1911. Disponível em: http://alturl.com/2b4ap; FCRB. Ecos da semana santa. Jornal “O Malho”. Revista nº 449, p. 7. Ano: 1911. Disponível em: http://alturl.com/ozdzn; FCRB. A conversão de São Paulo. Jornal “O Malho”. Revista nº 449, p. 9. Ano: 1911. Disponível em: http://alturl.com/cx6dg; FCRB. Para traz! Jornal “O Malho”. Revista nº 454, p. 9. Ano: 1911. Disponível em: http://alturl.com/y3ix3; FCRB. Nós e os maus padres. Jornal “O Malho”. Revista nº 457, p. 37. Ano: 1911. Disponível em: http://alturl.com/9x59a. Todos os links foram acessados em: 24. dez.14. 71 Em 19 de julho de 1915, o Jornal “A Imprensa”, publicou, da lavra de D. Adauto, o manifesto de protesto aos poderes públicos, dirigido ao Presidente da República e aos presidentes do Senado e da Câmara Federal. Nele, o bispo se opõe à previsão legal do art. 24, do Decreto 11.530, de 18 de março de 1915. O decreto teve por função reorganizar o ensino secundário e o superior na República. O seu art. 24 impôs a regra de que nenhum estabelecimento de instrução secundária, mantido por particulares com intento de lucro ou de propaganda filosófica ou religiosa, poderia ser equiparado ao Colégio Pedro II. Este Colégio foi reconhecido por lei, como o paradigma a ser seguido pelos demais colégios oficiais, todos aqueles mantidos pelos governos dos Estados e inspecionados pelo Conselho Superior de Ensino. A norma excluía do sistema oficial de ensino, não só as escolas particulares como também as confessionais, uma vez que proibia a equiparação de estabelecimentos particulares ou de propaganda filosófica ou religiosa, ao Colégio Pedro II. O documento pode ser consultado segundo a seguinte catalogação: FUNDAJ. Protesto dirigido aos poderes públicos. Jornal “A Imprensa, 19/07/1915. Ano XII, nº 77. INDOC. Divisão de Microfilmagem. Periódicos paraibanos. “A Imprensa”, anos IX a XIII. Gray 00555. Ver tb.: BRASIL. Decreto nº 11.530, de 18 de março de 1915. Disponível em: http://alturl.com/ujng5 Acesso em: 17. jan. 2015. 72 D. Adauto doutorou-se em Direito Canônico pela Universidade Gregoriana, defendendo a tese em 18 de janeiro de 1882, um ano e quatro meses depois da ordenação. Foi o 235º aluno matriculado no Pontifício Colégio Pio Latino-Americano de Roma, tendo entrado no estabelecimento aos 9 de maio de 1877 e saído aos 19 de fevereiro de 1881. LIMA, Cônego Francisco. D. Adauto: subsídios bibliográficos. 2. ed. João Pessoa: UNIPÊ, 2007. p. 70, v. 1. http://alturl.com/2udmp http://alturl.com/dtu6v http://alturl.com/2b4ap http://alturl.com/ozdzn http://alturl.com/y3ix3 http://alturl.com/9x59a http://alturl.com/ujng5 35 doutrina, a católica, e se mostrava ligado a causas de natureza política, apto, portanto, a aplicar no Brasil a política católica conservadora originada de Roma, o Ultramontanismo. Ivan Manoel nos mostra que o ultramontanismo “foi uma orientação política, uma autocompreensão desenvolvida pela Curia Romana após a Revolução Francesa, marcada pela centralização institucional em Roma que levava a um fechamento sobre si mesma - uma recusa de contatos com o mundo moderno”73. Segundo Manoel, o Ultramontanismo vigiu entre 1800 e 1960, e teve por fundamentos: “a condenação do mundo moderno; a centralização política e doutrinária na Cúria Romana; e a adoção da medievalidade como paradigma sócio- político”74. Segundo Riolando Azzi, o termo expressa o fato da Santa Sé ter se tornado, a partir de 1860, “o eixo ao redor do qual girava a corrente mais expressiva do pensamento católico, e Roma tornar-se-ia assim, o polo propulsor do pensamento e da ação eclesiástica”75. E, defendendo posição católica, o padre Desiderio Dechand atribuiu ao Ultramontanismo a condição de ser o “verdadeiro catolicismo”76. A divulgação do pensamento ultramontano, seguindo a orientação de Roma, não abriria mão de sua veiculação por meio de panfletos, revistas e jornais. O jornal católico “A Imprensa”, fundado em 1894 por D. Adauto, foi um dos principais meios de divulgação do seu pensamento e de intervenção política, aliado à publicação de cartas pastorais, visitas pastorais, e audiências com membros dos poderes públicos. O Editorial do jornal católico “A Imprensa”, de 31 de agosto de 1921, intitulado “D. Adaucto A. de Miranda Henriques”, presta-lhe homenagens pelo aniversário em nome do clero e de toda a arquidiocese, e dá mostras não somente de sua personalidade, mas também de suas ações pastorais e políticas, e que ora se reproduz a fim de se destarcar alguns aspectos simbólicos da fala do clero: 73 MANOEL, Ivan aparecido. Igreja e educação feminina (1859-1919): uma face do conservadorismo. 2. ed. Maringá: Eduem, 2008. p. 48. 74 MANOEL, Ivan Aparecido. O pêndulo da história: tempo e eternidade no pensamento católico (1860-1960). Maringá: Eduem, 2004. p. 9. 75 AZZI, Riolando. O altar unido ao trono: um projeto conservador. São Paulo: Edições Paulinas, 1992. p. 114. 76 DECHAND, Desiderio. A situação atual da religião no Brasil. Rio de Janeiro: Garnier, 1910. p. 166. 36 Entre alegre e venturosa comemorou ontem a Igreja da Paraíba o faustoso natalício do seu ilustre Príncipe, o Exmo. e Rvmo. Sr. Arcebispo Metropolitano. Alta significação reveste a data aniversária no ciclo dos humanos acontecimentos, quando se converte, como aqui, num símbolo e traduz o mérito real e verdadeiro. Se há um homem em nosso Estado que faça jus à benemerência, este homem é, de certo, o Exmo. Sr. Arcebispo da Paraíba. De sua existência consagrou à sua terra a melhor parte. Poucos, bem poucos no mundo podem ufanar-se como ele de ter influído nos destinos sociais de sua pátria. São vinte e oito anos de préstimos, de serviço, de vida apostólica, tanto monta a carreira pública de um homem! É de ver a obra ingente que fundou. A que ontem era pobre e humilde diocese e hoje se vê erguida à altura de Província eclesiástica e dividida em duas outras, a de Cajazeiras e a de Natal, com a honra insigne de sede metropolitana, tudo lhe deve: lustre, esplendor, glória, dignidade e prestígio. Ele, o seu primeiro bispo e arcebispo; ele o reformador da disciplina eclesiástica, o que instituiu o seminário, formou os obreiros da vinha do Senhor e os mandou a toda parte. Ele, ainda, o apóstulo que lhe perlustrou o estendal vastíssimo, borrifando, com as bagas quentes e fecundantes de seu suor, a terra dantes árida, inculta e ressequida; ele o pioneiro da civilização, que abriu clareiras, nesses tempos novos, e semeou bênçãos lá dentro nos sertões longínquos. Descendo a perquirir e analisar, como psicólogos, os largos traços de seu caráter, as notas constitutivas e feições várias de sua individualidade superior, prima fronte lhe apanhamos o homem de governo, de amplo descortínio, ereto como uma coluna, que não molga jamais, cônscio do seu valor e da grande autoridade que encarna, arraigado em suas convicções, nauta a um tempo e general experto a quem o rugir da tempestade e o encetar da luta, longe de apavorar, ajudam, tendo a aclarar-lhe a rota o “oculus purus” do Evangelho, não se poupando a sacrifícios, rudes trabalhos e humilhações até; apascenta com a palavra e com exemplo, encaminha e defende com o báculo de seu governo; realiza o tipo que do “Bom Pastor” nos esboçou o Divino Mestre. Acrescentado em merecimentos para com Deus, vem a acabar-lhe a figura máscula e altaneira, o acendrado amor à Pátria, a coragem cívica, nunca posta em dúvida, o apego às pátrias instituições. É o defensor austero dos bons princípios, o mantenedor da ordem e da paz social, prestigiando a autoridade legitimamente constituída e levando o seu apoio a todos os surtos de progresso. É este o homem que Deus pôs a nortear os destinos de nossa amada arquidiocese da Paraíba. Do alto da Borborema que nos sobranceia pode hoje espraiar em derredor a vista e contemplar os frutos ótimos do trabalho fecundo, abençoado de Deus e dos homens. A “A Imprensa” órgão do pensamento católico, apresenta a seu ínclito Prelado e venerando Pastor, por ocasião da auspiciosa data natalícia, o pleito de filial homenagem do clero e de toda a arquidiocese 77 . É evidente o fato de que os elogios tenham partido dos pares de D. Adauto, todavia permitem perceber os aspectos mais particulares da personalidade e da obra do bispo, em particular a ideia de intervenção da religião na política. Destarte, podemos notar expressões que se ligam a uma simbologia monárquica por 77 FUNDAJ. D. Adauto A. de Miranda Henriques. Jornal “A Imprensa”, 31/08/1921. Ano XIX, nº 5. INDOC. Divisão de Microfilmagem. Periódicos paraibanos. “A Imprensa”, anos XVIII a XXI. Gray 00066. 37 meio da expressão “ilustre príncipe” na referência ao Bispo, aliada a uma simbologia teológico-política, uma vez que há expressões que remetem à ideia de pai, protetor, governante rígido, bom pastor, formador, empreendedor e dirigente do Reino de Deus. Por outro lado, verifica-se também aspectos de uma simbologia política nas expressões “influído nos destinos sociais da pátria”; “acendrado amor à Pátria”; “coragem cívica”; “apego às pátrias instituições”; “prestígio à autoridade legitimamente constituida”; e “apoio ao progresso”, o que de fato evidencia a sua opção também por questões de natureza política. Em 1918, o Dr. Manoel Tavares de Cavalcanti78 deixaria registrado que resultava da ação política de D. Adauto “o acordar os corações do indiferentismo religioso que todos jaziam”79. Em 1930, por ocasião do seu jubileu de ouro, D. Adauto recebeu de Pio XI o título de Assistente ao Sólio Pontifício. No documento de concessão do título, o Papa elogiou “a ação bem norteada, as diretrizes sábias e fecundas” no governo da Arquidiocese da Paraíba80. Francisco Lima, biógrafo de D. Adauto, anotou que “no episcopado brasileiro não houve talvez um prelado que, com insistência, com argumentação e tão perfeito conhecimento de causa, sustentasse e defendesse os direitos de Deus sobre a sociedade, como o velho arcebispo da Paraíba”81, e sobre a produção intelectual, afirmara que “a vasta e opulenta coleção e cartas pastorais daria um excelente e profundo tratado de religião, tais os princípios, ideias luminosas, os argumentos ensinados e afirmados com erudição e inteligência”82, demonstrando não somente o saber e a qualidade da obra do bispo, mas também a defesa que fazia da Igreja perante a sociedade. Em 1932, em editorial, o jornal diocesano “A Imprensa” se manifestou no seguinte sentido: “O seu longo episcopado todo devotado aos interesses superiores da fé e aos largos cuidados do apostolado, é um dos mais brilhantes marcos da história eclesiástica da pátria”83. 78 Professor e político paraibano lecionou no Liceu Paraibano e na Escola Nomal, João Pessoa – PB, foi deputado estadual (1907-1908; 1909-1911) e deputado federal de 1921 a 1929. 79 LIMA, op. cit., 2007. p. 202. p. 135, v. 2. 80 Ibid. p. 485, v. 2. 81 Ibid. p. 520, v. 2. 82 Ibid. p. 262, v. 1. 83 Ibid. p. 538, v. 2. 38 Esse importante personagem da história da Igreja e do Brasil, não descuidou nem das relações civis, nem das eclesiásticas e muito menos das de natureza política. A sua participação nas festas comemorativas, missas, ordenações, visitas pastorais e demais cultos, o aproximava do povo em geral. Por outro lado, a sua obra84 e a representação política do seu governo espiritual, legitimava a sua presença junto aos poderes constituídos da nação. É de se observar que as relações políticas de D. Adauto junto aos principais representantes dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, seja no âmbito dos estados de sua diocese ou da própria nação brasileira, deixavam abertos os caminhos para as reivindicações dos católicos junto aos poderes públicos. Todavia, os postulados católicos deveriam se submeter à aprovação pela via democrática a fim de ser, por meio da lei, a referência dos poderes públicos nacionais, daí a obsessão de D. Adauto pela lei, a justificar a necessidade de direcionar o católico e o catolicismo para o campo da política. 1.2 A CARTA PASTORAL DE SAUDAÇÃO (1894) A primeira carta pastoral de D. Adauto – Carta Pastoral de Saudação – foi escrita em Roma por ocasião de sua sagração episcopal e divulgada somente na data de sua posse na Diocese da Paraíba e Rio Grande do Norte. D. Adauto não incluiu essa carta no rol de documentos políticos de sua autoria, todavia a sua análise nos permite identificar alguns dos elementos-chave que orientariam o seu projeto político de positivação de direitos de interesse da religião na Constituição, 84 D. Adauto fundou numerosos colégios e escolas, como o Seminário Provincial (4 de março de 1894); Colégio Diocesano Pio X (4 de março de 1901); Colégio da Imaculada das Neves (14 de março de 1895); Seminário Ferial (novembro de 1897); Colégio de Santa Luzia, em Mossoró, no Rio Grande do Norte (2 de março de 1901); Colégio da Imaculada Conceição, em Natal, no Rio Grande do Norte (15 de março de 1902); Colégio Santo Antonio, em Natal, Rio Grande do Norte (2 de março de 1903); Colégio Diocesano Padre Rolim, em Cajazeiras (22 de abril de 1903); Escola São José, na capital João Pessoa (1º de fevereiro de 1901); Escola Santa Inêz, também na capital (5 de setembro de 1910); Colégio Santa Rita em Areia (11 de fevereiro de 1911); Colégio Santa Dorotéia, em Bananeiras (10 de janeiro de 1918); Colégio de Nossa Senhora do Rosário, em Alagoa Grande (28 de dezembro de 1918); Colégio das Damas Cristãs, em Campina Grande (1932); Colégio Pio XI, em Campina Grande (1932); conforme. FUNDAJ. De luto, a Paraíba católica! Jornal “A Imprensa”, 16 de agosto de 1935. Ano XXIX, nº 977. INDOC. Divisão de Microfilmagem. Periódicos paraibanos. “A Imprensa”, anos XXIX. Gray 00115. 39 que visava não só o balizamento simbólico da religião85 na maior referência legislativa da nação, mas também a tentativa de fazer convergir uma hegemonia católica para o interior da sociedade brasileira por meio da inscrição do nome de Deus na Constituição. Nessa carta, D. Adauto aponta os p roblemas da sociedade moderna, e identifica na falta de respeito à autoridade divina, na inversão da soberania divina pela soberania do povo e na falta do nome de Deus na Constituição, os elementos dissociativos que estavam, a seu juízo, provocando o aviltamento da sociedade moderna. A Carta Pastoral de Saudação teve como destinatários o clero e o povo dos Estados da Paraíba e do Rio Grande do Norte. Em geral, as cartas pastorais de D. Adauto vinham com as devidas recomendações de leitura pelos párocos aos fiéis nas paróquias durante os cultos e posterior arquivamento nos registros paroquiais, além da comunicação do cumprimento à diocese. Porém, D. Adauto tinha em mente que a sua mensagem chegaria às pessoas mais cultas e aos dirigentes políticos. Não confiante de que teriam o conhecimento das cartas nos cultos ou por meio de publicações no jornal “A Imprensa”, ordenava à sua secretaria que as enviassem diretamente aos representantes dos poderes do Estado. A Carta teve por objetivo a “conscientização dos deveres de submissão à autoridade divina”86. Nela, D. Adauto faria por vias indiretas a defesa da Igreja, escudando-se na defesa do fundamento principal de sua existência, a autoridade divina, e por extensão, segundo a sua visão, o fundamento de toda a sociedade. A sociedade moderna havia perdido ou enfraquecido o respeito à autoridade divina. No pensamento de D. Adauto a autoridade seria a vida e a força de toda a sociedade87. A sociedade moderna, segundo o bispo, deu origem e fez propagar doutrinas falsas e sedutoras que vinham de certa forma afogando-a nas suas próprias incoerências. Isto porque, a sociedade moderna se escorava em princípios falsos que havia se originado do liberalismo e do racionalismo francês. Essas doutrinas, segundo D. Adauto, enfraqueceram o respeito a autoridade, e deram 85 A expressão “balizamento simbólico da religião” diz respeito à luta simbólica para construir a visão de mundo social legítimo, a partir da consolidação do nome de Deus na Constituição, impondo-a como universal. BOURDIEU, Pierre. Sobre o Estado: cursos no Collège de France (1989-92). São Paulo: Companhia das Letras, 2014. p. 65. 86 LIMA, op. cit., 2007. p. 158. 87 AEAP. HENRIQUES, op. cit., 1894. p. 18. 40 origem a negações de verdades singulares do senso comum e da razão, algo que denominava de patológico. Dizia, “− Um espírito febril de independência vai solapando o corpo da sociedade moderna, daí essa alucinação dos inovadores”88. Mais tarde, a “Carta Pastoral Coletiva dos Arcebispos e Bispos do Brasil”, de 1915 (Título V, Costumes do povo, Capítulo I, Vida cristã), também faria exortações aos párocos e aos sacerdotes em geral, à vista dos males da sociedade naqueles tempos, segundo a visão católica, pedindo que trabalhassem, na medida de suas forças, para melhorar os costumes do povo (art. 1460). Nesse sentido, os clérigos deveriam interessar-se pelo bem estar do povo em geral, e, de modo particular, cuidar da instrução e do melhoramento espiritual e temporal das classes desprovidas dos bens da fortuna (art. 1461); viver em contato com o povo, para melhor conhecer suas necessidades temporais e espirituais, e levar-lhes os auxílios que estivessem a seu alcance, e não deixá-los a mercê dos caprichos e explorações dos homens ímpios, destituídos de toda moral, e imbuídos de doutrinas perversas e deletérias (art. 1462)89. Os falsos princípios da sociedade moderna precisavam ser combatidos, e D. Adauto apontava o remédio. A profilaxia estava na obediência à autoridade divina e suas determinações, sobretudo a Igreja deveria lutar pela conservação dos princípios e valores da doutrina católica na consciência dos fiéis, sobretudo: Condenar e confundir os esforços da impiedade moderna e dar um novo brilho, um novo realce, uma nova eficácia à sublime doutrina católica, [...] e curar as almas [daquela] tão funesta enfermidade, que [era] a falta de respeito à autoridade 90 . O desiderato de uma nova eficácia da doutrina, todavia, deveria se realizar a partir de mudanças internas na educação eclesiástica para fazer frente aos 88 AEAP. HENRIQUES, op. cit., 1894. p. 19. 89 AEAP. HENRIQUES. Pastoral Coletiva dos Senhores Arcebispos e Bispos das Províncias Eclesiásticas de S. Sebastião do Rio de Janeiro, Mariana, S. Paulo, Cuiabá e Porto Alegre. Rio de Janeiro: Martins de Araújo, 1915, p. 365. Ver tb. BARBOSA, Manoel. A Igreja no Brasil: notas para a sua história. Rio de Janeiro: Ed. e Obras Gráficas a Noite, 1945. p. 157-161. 90 AEAP. HENRIQUES, op. cit.,1894. p. 19. 41 problemas da modernidade91. Essa nova perspectiva de ação visava a assegurar resultados efetivos à doutrina, e passava por pelo menos dois pontos, segundo D. Adauto. São eles: a educação eclesiástica diferenciada e a união do sacerdote ao povo. Essa fala do bispo tinha referenciais na Encíclica Elsi nos, de 15 de fevereiro de 1881, de Leão XIII. Nela, o Papa dizia que na Igreja sempre houve a exigência de sacerdotes virtuosos, porém naqueles dias se exigia muito mais. A formação dos sacerdotes deveria ser diferenciada. Eles deveriam se armar de conhecimentos originados da teologia, da filosofia, da história e das ciências naturais. Por outro lado, o sacerdote deveria aproximar-se do povo, deixar de ser apenas um elemento ou instrumento intocável da “monarquia”92 da Igreja para relacionar-se com o mundo. Destarte, não poderiam evitar as relações com o mundo, ao contrário, obrigados pelos deveres do cargo que ocupavam deveriam pôr-se em relações de proximidade com o povo sabedores de que enfrentariam toda sorte de problemas. Afirmava, todavia, que a virtude do clero daqueles dias dever-se-ia constituir de uma força especial para conservar-se inabalável a fim de subjugar todas as seduções das paixões e afrontar os maus exemplos sem perigo de contágio93. Essas condutas permitiriam, em tese, adequações da Igreja à sociedade moderna. Entretanto, enfatizava D. Adauto, a Igreja queria a civilização completa, a verdadeira civilização94. Esclarece o bispo que: Esta civilização não consistiria tanto na riqueza material (artes mecânicas e indústria), senão principalmente nos bons costumes, nas ciências e nas artes liberais, porquanto, assim como no composto humano, o corpo deve estar sujeito à alma, que é a mais bela parte do homem, assim também na civilização o elemento material deve estar subordinado ao elemento moral, 91 Segundo Roberto Romano a Igreja colocaria em pauta “a discussão do pensamento laico, ora maçom, ora liberal, ora positivista, sobre a manutenção pública da fé como símbolo de poder”. ROMANO, Roberto. Brasil: Igreja contra Estado. São Paulo: Kairós, 1979. p. 89. 92 D. Adauto afirmava que a Igreja era “uma monarquia não hereditária, do qual o Papa, o Papa só, [era] o sumo hierarca”. A natureza institucional da Diocese também decorria da mesma forma política, dizia que “cada Diocese [era] também uma monarquia, cujo chefe [era] o bispo e o bispo só”. Arquivo Eclesiástico da Paraíba: HENRIQUES, D. Adaucto Aurélio de Miranda. Da natureza do governo eclesiástico: Carta Pastoral de D. Adaucto Aurélio de Miranda Henriques, arcebispo da Parahyba e administrador apostólico de Natal. Parahyba do Norte: Typographia da Imprensa, 1917. p. 5 e 7. 93 AEAP. HENRIQUES, op. cit., 1894. p. 24. 94 No projeto político católico ultramontano, a verdadeira civilização deveria ser tributária de uma ordem divina, defendia, portanto, a subordinação do mundo à verdade católica. Segundo Riolando Azzi, “um dos pontos chaves da orientação ultramontana [era] enfatizar a subordinação da razão humana à fé, da filosofia à teologia, da ordem natural à ordem sobrenatural”. AZZI, Riolando. O altar unido ao trono: um projeto conservador. São Paulo: Edições Paulinas, 1992. p. 116. 42 que é a alma da sociedade humana e, portanto, o mais digno de nossa solicitude 95 . A civilização idealizada por D. Adauto deveria fazer prevalecer o aspecto espiritual do homem sobre o seu aspecto material, ou seja, o elemento material deveria subordinar-se ao elemento moral. Nela, a sociedade teria o predomínio da paz e da harmonia, da honestidade e da honra; a partir da observância dos deveres e dos direitos conservar-se-ia o justo equilíbrio, sem o qual haveria de dominar, necessariamente, ou a anarquia, ou o despotismo. Todavia, a plenitude dessa sociedade idealizada e de suas leis, dependia, segundo D. Adauto, inteiramente da filosofia cristã e da autoridade divina. Diante dessa perspectiva Riolando Azzi afirma que “não bastava apenas separar o mundo em duas sociedades distintas, a eclesiástica e a civil, mas era necessário que a sociedade civil tivesse como seus árbitros supremos os representantes da vontade divina, ou seja, a hierarquia católica”96. É também nesse sentido a fala de Leão XIII: Não é difícil determinar qual o aspecto e a forma que teria a sociedade, se a filosofia cristã governasse os negócios públicos. – É natural ao homem viver em sociedade, porque não podendo no isolamento nem grangear o que é necessário e útil à vida, nem adquirir a perfeição do espírito e do coração, a Providência o criou para unir aos seus semelhantes numa sociedade tanto doméstica quanto civil, capaz ela só de nos dar o que é preciso para a perfeição da existência. Mas como nenhuma sociedade pode existir sem um chefe supremo, que imprima a cada qual de per si um impulso uniforme e eficaz para um fim comum, segue-se daí que é necessária aos homens constituídos em sociedade uma autoridade para regê-los, autoridade que, assim como a própria sociedade, proceda da natureza e tenha, por conseguinte, a Deus por autor. Deduz-se daí que o poder público por si mesmo só pode vir de Deus. Só Deus, efetivamente, é o verdadeiro e soberano Senhor das criaturas: quaisquer que elas sejam devem necessariamente Lhe estar sujeitas – obedecer-Lhe; de forma que quem tem o direito de governar só o recebe de Deus, chefe supremo de todos: Omnis potestas a Deo” 97. A proposta de um fundamento divino do poder público ou político tinha por objetivo justificar a intervenção da Igreja (autoridade) nos vários setores da vida social e política. Do ponto de vista teórico, a ideia de intervenção do religioso no político encontra referenciais na teoria de Aline Coutrot que pensa as “forças 95 AEAP. HENRIQUES, op. cit., 1894. p. 25. 96 AZZI, op. cit., 1992. p. 116. 97 AEAP. HENRIQUES, op. cit., 1894. p. 26-27. 43 religiosas” como parte do “tecido político”, uma vez que, segundo ela, tais forças “relativizam a intransigência das explicações baseadas somente nos fatores sócio- econômicos”98. Para Coutrot, “as Igrejas são corpos sociais dotados de uma organização que possui mais de um traço em comum com a sociedade política”99. E como tal difundem um ensinamento que não se limita às ciências do sagrado e aos fins últimos do homem, já que historicamente sempre pregaram uma moral individual e coletiva, proferiram julgamentos em relação à sociedade, além de advertências e interdições100. As intervenções das autoridades religiosas de forma coletiva ou individual, seja por meio de seus escritos ou verbalizada, têm, segundo Coutrot, “uma influência política que não podem ser ignoradas pelo Estado”101. Dessa forma, assevera: O religioso informa em grande medida o político, e também o político estrutura o religioso. Colocando questões que não se pode evitar, apresentando alternativas, ele força as Igrejas a formularem expectativas latentes em termos de escolha que excluem toda possibilidade de fugir do problema. [...] A religião continua a manter relações com a política, amplia mesmo seu campo de intervenção e diversifica suas formas de ação [...] 102 . A relação entre a religião e a política possui elementos intercambiáveis, uma vez que no plano das reivindicações políticas pode haver coincidência entre o fiel e o cidadão, o mesmo interesse pela igualdade, pela liberdade e pela jus