UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE DE CIÊNCIAS E TECNOLOGIA ANA ELISA CRONÉIS ZAMBON A GEOMETRIA EM CURSOS DE PEDAGOGIA DA REGIÃO DE PRESIDENTE PRUDENTE-SP Presidente Prudente 2010 ANA ELISA CRONÉIS ZAMBON A GEOMETRIA EM CURSOS DE PEDAGOGIA DA REGIÃO DE PRESIDENTE PRUDENTE-SP Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Educação da Faculdade de Ciências e Tecnologia, UNESP/Campus de Presidente Prudente, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Educação. Orientadora: Profª Dra. Maria Raquel Miotto Morelatti Presidente Prudente 2010 A GEOMETRIA EM CURSOS DE PEDAGOGIA DA REGIÃO DE PRESIDENTE PRUDENTE-SP ANA ELISA CRONÉIS ZAMBON BANCA EXAMINADORA Data: ___/___/2010 ____________________________________________________ Profª. Dra. Adair Mendes Nacarato ____________________________________________________ Profª. Dra. Leny Rodrigues Martins Teixeira ____________________________________________________ Profª. Dra. Maria Raquel Miotto Morelatti - orientadora - DEDICATÓRIA Aos meus pais, Bernadete e Toninho e à minha irmã, Ana Clara, pelo apoio incondicional que me estimulou a crescer no plano pessoal e profissional. AGRADECIMENTOS À orientadora, Maria Raquel, pelo companheirismo, pela confiança, pela orientação e pela disponibilidade. Às amigas, Belezinha e Francisnaine, pelo apoio diário, pelos momentos de descontração e de estudo, pelo respeito, pela paciência, pelas risadas e pelo ombro amigo nas horas difíceis. Ao amigo Everton e à sua família, pelo acolhimento em uma etapa importante desta pesquisa. À professora Eliane Ortega, pela partilha das discussões teóricas sobre Educação Matemática e pelo incentivo nas dificuldades. Aos membros da banca examinadora, professoras Adair Mendes Nacarato e Leny R. M. Teixeira, pela contribuição. Às Instituições de Educação Superior investigadas, às professoras formadoras e aos alunos dos dois cursos de Pedagogia, objeto desta pesquisa. Aos amigos, parte da minha vida nos últimos 30 meses: Daniela, Marcelo, Carol, Tiago, Carol Polini, Ricardo, Edinho, Nanci, Larissa, Flávio, Regina Célia, Clóvis, Edson, Juliana e Tia Rita, pela presença amiga. Aos membros do Grupo de pesquisa GPEFOPE, em especial, à Professora Yoshie e ao Professor Cristiano, pelo acolhimento. Aos membros do Grupo de Estudo GEEM, em especial à Professora Mônica, pela orientação do projeto de pesquisa. Aos professores do Programa de Pós-graduação em Educação da FCT/Unesp, Mestrado, em especial àqueles junto aos quais pude ter o privilégio de cursar disciplinas: Prof. Dr. Alberto A. Gomes, Prof. Dr. José Milton de Lima, Prof. Dr. Mauro Betti, Profª. Dra Yoshie U. F. Leite, Prof. Dr. Cristiano A. G. Di Giorgi, Profª. Dra. Leny R. M. Teixeira e Profª. Drª. Maria Raquel M. Morelatti. À Capes, pelo apoio financeiro. A Deus, luz e guia de minha trajetória. ZAMBON, Ana Elisa Cronéis. A Geometria em Cursos de Pedagogia da Região de Presidente Prudente-SP. Dissertação (Mestrado em Educação). Faculdade de Ciências e Tecnologia de Presidente Prudente – FCT/UNESP. Presidente Prudente/SP, 2010. RESUMO O presente estudo, vinculado à linha de pesquisa “Práticas Educativas na Formação de Professores”, do Programa de Pós-graduação em Educação da FCT/UNESP, pretende investigar como a Geometria se faz presente em cursos de Pedagogia da Região administrativa de Presidente Prudente - SP. A metodologia da pesquisa, de natureza qualitativa e cunho analítico-descritivo, compreendeu três momentos principais: análise das grades curriculares dos cursos de Pedagogia da região delimitada, análise dos planos de ensino das disciplinas relacionadas ao ensino de Matemática presentes nessas grades curriculares, acompanhamento e análise do desenvolvimento dos conceitos geométricos junto aos futuros professores. A última etapa foi desenvolvida por meio da observação in loco das disciplinas relacionadas ao ensino de Matemática nos anos iniciais em duas Instituições de Educação Superior, uma pública e a outra privada. Essa representa o diferencial da pesquisa, uma vez que é vasta a literatura que anuncia a problemática do abandono do ensino de Geometria na educação básica brasileira, bem como a falta de domínio dos conceitos geométricos por parte dos professores, sobretudo, dos anos iniciais. No entanto, pouco se investiga como efetivamente este campo da matemática se faz presente no processo de formação desses professores. O aporte teórico das reflexões sobre formação de professores está pautado em Shulman (1986), com os conhecimentos base do professor e saberes docentes, sobretudo, aqueles possíveis de serem adquiridos anteriormente à prática. Já os fundamentos das análises direcionadas ao ensino de Geometria localizam-se em estudos de autores que discutem especificamente sobre o desenvolvimento do pensamento geométrico, como Pais (2006), Van Hiele (apud CROWLEY, 2004) e Parzysz (2006). A pesquisa revelou dois modelos contrapostos de formação. Seguindo a tendência da maioria dos cursos de Pedagogia do Brasil (CURI, 2005), o primeiro apresentou aspectos estritamente relacionados ao “como ensinar” conteúdos da Geometria. Já o segundo, superando uma das principais críticas aos cursos de Pedagogia nos últimos anos, enfatizou aspectos que privilegiaram o trabalho com conteúdos da Geometria. Analisando cada um desses modelos, é possível afirmar que ambos apresentam defasagens que reforçam uma inquietação proposta por Saviani (2009): os espaços de formação docente devem priorizar os conteúdos ou os aspectos didático-pedagógicos? Obviamente, ambos os caminhos são igualmente difíceis e enfrentam desafios. As investigações encaminharam-nos, ainda, a discussões sobre aspectos gerais que permeiam a estrutura dos cursos de Pedagogia no Brasil, como a natureza e a carga horária das disciplinas Palavras-chave: Formação de Professores; Anos Iniciais do Ensino Fundamental; Educação Matemática, Ensino de Geometria. ZAMBON, Ana Elisa Cronéis. A Geometria em Cursos de Pedagogia da Região de Presidente Prudente-SP. Dissertação (Mestrado em Educação). Faculdade de Ciências e Tecnologia de Presidente Prudente – FCT/UNESP. Presidente Prudente/SP, 2010. ABSTRACT This study, linked to the research line "Educational Practices in Teacher’s Training", Program Graduate Education in the Univ. Estadual Paulista - UNESP , aimed to investigate how the geometry is present in Pedagogy courses in region of the President Prudente, upstate São Paulo, Brazil. The research methodology was qualitative and analytic-descriptive nature, occurred in three main phases: analysis of the teacher’s plans of Pedagogy courses in the region bounded; considering plans for teaching the subjects related to mathematics education in those curricula; monitoring and analysis of the development of geometric concepts along to future teachers. This last step was made by observing the spot of the disciplines related to mathematics education in their early years in two institutions of higher education, one public and one private, and constitutes the differential of the research, since it is a vast literature announcing the issue of abandoning the teaching of geometry in elementary education in Brazil and the lack of field of geometric concepts by teachers, especially the early years. However, little is investigating how effectively this field of mathematics is present in the process of training these teachers. The reflections theoretical on teacher’s training are ruled by Shulman (1986), with the knowledge base of teacher knowledge and teachers, especially those able to be purchased prior to practice. Already the foundations of analysis directed to the teaching of geometry are authors who discuss specifically on the development of geometric thinking, as Pais (2006), Van Hiele (apud CROWLEY, 2004) and Parzysz (2006). The research revealed two opposing models of training. Following the trend of most courses in Education in Brazil (CURI, 2005), the first model presented aspects strictly related to "how to teach" content Geometry. The second model, overcoming a major criticism of teaching courses in recent years, emphasized issues that favored working with geometry content. Analyzing each of these models, we can say that both have gaps that reinforce a caring proposed by Saviani (2009): the areas of teacher’s training should begin and prioritize content or from and prioritize didactic- pedagogic? Obviously, both approaches are equally difficult and cause problems. Key words: Teachers Formation; Elementary Education; Mathematical Education; Teaching of Geometry. LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 1 - Faixa etária dos alunos do curso de Pedagogia da Instituição A ......... 108 Gráfico 2 - Formação dos alunos anterior ao curso de Pedagogia da Instituição A 109 Gráfico 3 - Atividades docentes dos alunos do curso de Pedagogia da Instituição A ............................................................................................................................... 110 Gráfico 4 - Relação dos alunos do curso de Pedagogia da Instituição A com a Matemática .............................................................................................................. 110 Gráfico 5 - Faixa etária dos alunos do curso de Pedagogia da Instituição B ......... 147 Gráfico 6 - Formação dos alunos anterior ao curso de Pedagogia da Instituição B 148 Gráfico 7 - Atividades docentes dos alunos do curso de Pedagogia da Instituição B ............................................................................................................................... 149 Gráfico 8 - Relação dos alunos do curso de Pedagogia da Instituição B com a Matemática .............................................................................................................. 150 LISTA DE FIGURAS Figura 1 - Esquema apresentado às alunas pela Professora A................................ 119 Figura 2 - Esquema representado pela Professora A para classificação de figura planas em polígonos e não-polígonos ..................................................................... 122 Figura 3 - Esquema representado pela Professora A para classificação dos triângulos em relação às medidas dos lados............................................................. 123 Figura 4 - Esquema representado pela Professora A para classificação dos triângulos em relação aos ângulos internos ............................................................. 124 Figura 5 - Esquema representado pela Professora A para caracterizar a classe dos paralelogramos .................................................................................................. 125 Figura 6 - Trapézio representado no quadro pela Professora A.............................. 126 Figura 7 - Atividade de “Polígonos” proposta pela Professora A........................... 127 Figura 8 -. Atividade de “Simetria” proposta pela Professora A............................ 129 LISTA DE QUADROS Quadro 1 - A presença da Geometria nas Instituições A e B, de acordo com os critérios de análise ................................................................................................... 168 LISTA DE ANEXOS Anexo A - Roteiro de entrevista desenvolvida com as professoras ....................... 181 Anexo B - Modelo do questinário aplicado com alunos ......................................... 183 Anexo C – Planos de ensino das disciplinas direcionadas ao ensino de Matemática do curso de Pedagogia da Instituição A ............................................... 186 Anexo D – “Texto Base”, utilizado pela Professora A para desenvolvimento das atividades de Geometria ......................................................................................... 196 Anexo E - Planos de ensino das disciplinas direcionadas ao ensino de Matemática do curso de Pedagogia da Instituição B ............................................... 230 Anexo F - Divisão de conteúdos direcionados aos primeiros anos do Ensino Fundamental apresentados pela Proposta do Estado de São Paulo de 1988 ........... 236 Anexo G - Material de Apoio utilizado para o desenvolvimento do tema “Blocos Lógicos”, Instituição B ............................................................................................ 241 Anexo H - Material de Apoio utilizado para o desenvolvimento do tema “Barras de Cuisenaire”, Instituição B ................................................................................... 243 SUMÁRIO INTRODUÇÃO........................................................................................................ 15 CAPÍTULO I - FORMAÇÃO DE PROFESSORES, SABERES DOCENTES E O ESPAÇO DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES DOS ANOS INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL .................................................................................... 19 1.1 A escola atual e a formação de professores......................................................... 20 1.2 Saberes docente que compõem a base do conhecimento para o Ensino........................................................................................................................ 25 1.3 Breve histórico sobre os espaços de formação de professores dos anos iniciais do Ensino Fundamental ............................................................................................ 32 1.4 Cursos de Pedagogia e o Ensino de Matemática................................................. 37 CAPÍTULO II - A GEOMETRIA NOS ANOS INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL SOB A PERSPECTIVA DA FORMAÇÃO DE PROFESSORES ....................................................................................................... 43 2.1 A trajetória do ensino de Geometria na educação brasileira no século XX ..... 43 2.2 A Geometria nos anos iniciais do Ensino Fundamental na perspectiva da formação de professores ........................................................................................... 52 2.2.1 O que ensinar de Geometria nos anos iniciais? ...................................... 53 2.2.2 – Por que ensinar Geometria nos anos iniciais?...................................... 56 2.2.3 Como ensinar Geometria nos anos iniciais?........................................... 58 2.3 O desenvolvimento do pensamento geométrico ............................................... 61 2.3.1 As etapas de desenvolvimento do pensamento geométrico propostas por Bernard Parzysz ........................................................................................ 65 2.3.2 O modelo de Van Hiele para o desenvolvimento do pensamento geométrico ...................................................................................................... 69 2.3.3 A mediação pedagógica do desenvolvimento do pensamento geométrico e a formação de professores.......................................................... 74 CAPÍTULO III – METODOLOGIA E DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA 82 3.1 Objetivos ............................................................................................................. 3.2 Caracterização da Metodologia de Pesquisa ....................................................... 82 83 3.2.1 Mapeamento dos cursos de Pedagogia da região de Presidente Prudente ........................................................................................................... 84 3.2.2 Análise das grades curriculares dos cursos de Pedagogia da região de Presidente Prudente ......................................................................................... 87 3.2.3 Análises dos planos de ensino das disciplinas direcionadas ao ensino de Matemática nos anos iniciais do Ensino Fundamental ............................... 89 3.2.4 Seleção das duas instituições campo de observação .............................. 91 3.2.5 Elaboração e realização de entrevistas juntos as professoras ............... 92 3.2.6 Elaboração e aplicação dos questionários juntos aos alunos................... 93 3.2.7 Caracterizações do processo de acompanhamento e observação in loco 94 3.3 Critérios de análise dos dados ............................................................................. 96 CAPÍTULO IV - APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS OBTIDOS JUNTO À INSTITUIÇÃO A ..................................................................................... 99 4.1 Caracterizações da Instituição A ......................................................................... 99 4.1.1 A presença da Geometria nos planos de ensino das disciplinas direcionadas ao ensino de Matemática............................................................. 100 4.1.2 Especificidades das disciplinas direcionadas ao ensino de Matemática na Instituição A - dados obtidos a partir de entrevista junto a Professora A .................................................................................................... 103 4.1.3 Perfil dos alunos da Instituição A e suas relações com a Matemática - dados obtidos a partir de questionário ..................................... 108 4.2 Descrição das observações junto a Instituição A ................................................ 113 4.2.1 Análise das observações junto a Instituição A .................................. 132 CAPÍTULO V - APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS OBTIDOS JUNTO À INSTITUIÇÃO B ..................................................................................... 140 5.1 Caracterizações da Instituição B ........................................................................ 140 5.1.1 A presença da Geometria nos planos de ensino das disciplinas direcionadas ao ensino de Matemática ............................................................ 141 5.1.2 Especificidades das disciplinas direcionadas ao Ensino de Matemática na Instituição B - dados obtidos a partir de entrevista junto à Professora B .................................................................................................... 142 5.1.3 Perfil dos alunos da Instituição B e suas relações com a Matemática - dados obtidos a partir de questionário ....................................... 146 5.2 Descrição das observações junto a Instituição B ............................................... 151 5.2.1 Análise das observações junto a Instituição B .................................. 162 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 166 REFERÊNCIAS ...................................................................................................... 175 ANEXOS .................................................................................................................. 180 15 INTRODUÇÃO O ensino de Geometria representa o foco de minhas investigações desde que desenvolvi, como aluna do curso de Licenciatura em Matemática da FCT/Unesp, sob a orientação da Profaª Drª. Maria Raquel Miotto Morelatti, um projeto de Iniciação Científica, “O papel das tecnologias na aprendizagem de Geometria pelo futuro professor das séries iniciais do ensino fundamental”, financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). O projeto foi realizado entre abril e dezembro de 2006. Seu objetivo foi investigar os conhecimentos prévios de Geometria que futuros professores das séries iniciais do Ensino Fundamental possuíam, para, a partir dessas informações, analisar os softwares educacionais presentes nas escolas públicas estaduais, na direção de identificar quais poderiam auxiliar a aprendizagem de conceitos geométricos, visando à criação de um ambiente construcionista1 de aprendizagem. Para atingir tais objetivos, o projeto envolveu uma intervenção no contexto do curso de Pedagogia da FCT/UNESP/Campus de Presidente Prudente, tendo como sujeitos alunos concluintes do curso. A conclusão da pesquisa forneceu resultados bastante positivos, tanto em relação aos dados empíricos sobre aprendizagem - que evidenciaram um crescimento qualitativo dos alunos em relação à aprendizagem dos conceitos geométricos enfatizados - como também em relação à avaliação elaborada pelos futuros professores sobre a metodologia utilizada para a aprendizagem dos conceitos. Contudo, no decorrer do processo de formação, foi possível identificar indícios de preconceito e de dificuldade dos futuros professores em relação ao conhecimento da Geometria. O discurso recorrente para justificá-lo era de que estavam há muito tempo “distantes” da manipulação de conceitos geométricos, já que o último contato com a Geometria ocorrera no Ensino Médio. Levando em consideração tais afirmações, bem como o fato de a intervenção ter ocorrido junto aos possíveis egressos do curso de Pedagogia, identificamos nesse contexto um problema que ultrapassava a implantação de novas tecnologias e metodologias de ensino para aprendizagem de conceitos geométricos nos cursos de 1 O termo Construcionismo foi utilizado por Papert (1994) para identificar uma abordagem do uso do computador em Educação, quando o aluno constrói o seu conhecimento a partir da elaboração/construção de algo de seu interesse. 16 formação inicial de professores dos anos iniciais do Ensino Fundamental: a presença ou ausência da Geometria nesses cursos e, além disso, como são desenvolvidos os conceitos geométricos juntos aos futuros professores? Ou, mais precisamente, como os cursos de formação de professores dos anos iniciais do ensino fundamental (cursos de Pedagogia) estão abordando a Geometria? Lembremos o que afirmam Nacarato, Grando e Eloy (2009, p. 191), “tomar um campo específico da Matemática como objeto de estudo possibilita um aprofundamento teórico, epistemológico, histórico e pedagógico desse campo”. Para ratificar tal entendimento, destacamos a história do ensino de Geometria no Brasil, caracterizada por períodos de abandono da disciplina na escola básica, como principal justificativa e relevância para desenvolvimento de pesquisas no campo da Geometria. Representam consequentes resultados dessa trajetória as defasagens em todos os níveis, sejam dos futuros professores, sejam dos alunos da escola básica, nesse campo específico da Matemática. Neste trabalho, buscaremos discutir, no decorrer de cinco capítulos, o ensino de Geometria nos espaços de formação de professores dos anos iniciais do Ensino Fundamental, cursos de Pedagogia, especialmente aqueles localizados na região de Presidente Prudente/SP. No Capítulo I, refletiremos sobre o papel do professor na escola atual, aspectos de sua formação e saberes docentes. Apresentaremos, como idéia central, o fato de necessitarmos de professores reflexivos que possuam, também, um repertório teórico consistente. Buscaremos destacar quais são os saberes que o compõem, considerando-o necessário para a competente atuação docente. Nessa perspectiva, enfatizaremos os saberes possíveis de serem adquiridos anteriormente à prática, sobretudo, no processo de formação inicial. Para tanto, adotaremos como principal norte teórico as idéias de Shulman (1986; 1987; 1989), que aponta três aspectos fundamentais para o conhecimento teórico docente - conhecimento do conteúdo, conhecimento pedagógico do conteúdo e conhecimento curricular. Posteriormente, direcionaremos nossas discussões à formação específica de professores dos anos iniciais do Ensino Fundamental, tendo como ponto de partida o histórico sobre os espaços de formação desse grupo de professores. Ainda no primeiro capítulo, discutiremos, a partir de pesquisas atuais e de legislações, a formação oferecida pelos cursos de Pedagogia, direcionando nosso olhar ao ensino de Matemática. 17 No Capítulo II, trataremos especificamente do ensino da Geometria. Iniciaremos nossas discussões analisando a trajetória histórica do ensino de Geometria na educação brasileira do século XX, fundamentando-a em reflexões e apontamentos, que atestam seu abandono nas últimas décadas, bem como a busca atual pela sua recuperação. Discutiremos o ensino de Geometria, tanto nos anos iniciais do Ensino Fundamental, como nos espaços de formação de professores desse nível de ensino, buscando apresentar dados que colaborem para compreensão de três questionamentos principais: O que ensinar de Geometria nos anos iniciais? Por que ensinar Geometria nos anos iniciais? Como ensinar Geometria nos anos iniciais? Também no segundo capítulo, apresentaremos discussões teóricas sobre o desenvolvimento do pensamento geométrico, tendo como base reflexões propostas por três principais autores: Pais (1996, 2000), Van Hiele (apud Crowley, 1994) e Parzysz (2006). Os dois últimos autores estabelecem níveis hierárquicos de desenvolvimento do conhecimento geométrico. No Capítulo III, apresentaremos a metodologia e as etapas de desenvolvimento da presente pesquisa, tendo como ponto de partida o delineamento das questões que nortearam o estudo e a descrição dos nossos objetivos gerais e específicos. Em seguida, esclareceremos os principais aspectos que nos levaram a caracterizar esta pesquisa como qualitativa, de natureza analítico-descritiva. Descreveremos o mapeamento dos cursos de Pedagogia da região delimitada, bem como as análises das respectivas grades curriculares e planos de ensino de disciplinas direcionadas ao ensino de Matemática nos anos iniciais. Na sequência, discutiremos os critérios de seleção para a escolha de duas instituições, em que acompanhamos e observamos in loco as disciplinas direcionadas ao ensino de Matemática nos anos iniciais. Denominamos as instituições selecionadas de Instituição A e Instituição B. Ainda no terceiro capítulo, esclareceremos o processo de elaboração e aplicação dos instrumentos para coleta de dados junto às professoras (entrevista) e alunos (questionário) de cada uma das instituições selecionadas. Por fim, apresentaremos os critérios utilizados para análise dos dados, obtidos a partir desses instrumentos e, sobretudo, das observações in loco. No Capítulo IV, analisaremos os dados obtidos junto à Instituição A. Caracterizaremos as disciplinas relacionadas ao ensino de Matemática presentes na grade curricular do curso de Pedagogia dessa instituição, buscando destacar, sobretudo, 18 aspectos das disciplinas direcionadas ao ensino de Matemática nos anos iniciais do Ensino Fundamental, que acompanhamos por meio da observação. Em seguida, apresentaremos os dados obtidos na entrevista junto à professora responsável por essas disciplinas, orientando nossas discussões a partir de trechos de suas falas. Tendo como base os dados obtidos no questionário, delinearemos também o perfil dos alunos, futuros professores, bem como indicadores de como eles se relacionam com a Matemática. Enunciaremos, também, nossos principais momentos de observação do desenvolvimento de conteúdos da Geometria junto aos futuros professores e, por fim, analisaremos tais observações de acordo com as teorias de Shulman (1986; 1987; 1989), as quais orientam a formação teórica docente e os elementos que norteiam o desenvolvimento do pensamento geométrico. Seguindo a mesma estrutura e elementos de análise do Capítulo IV, no Capítulo V, analisaremos os dados obtidos junto à Instituição B, segunda instituição selecionada para acompanhamento e observação in loco. Nas considerações finais, buscaremos apontar reflexões sobre a formação docente e a formação inicial de professores dos anos iniciais do Ensino Fundamental em cursos de Pedagogia. Ao mesmo tempo, teceremos reflexões sobre a presença da Geometria nesses espaços de formação, tendo como eixos norteadores as realidades observadas nos dois cursos de Pedagogia investigados neste estudo. CAPÍTULO I 19 FORMAÇÃO DE PROFESSORES, SABERES DOCENTES E O ESPAÇO DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES DOS ANOS INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL Neste capítulo, temos a intenção de discutir o papel do professor na escola atual, os aspectos de sua formação, bem como seus saberes. Para analisar e compreender os constituintes da diversidade e da complexidade que orientam a formação e ação docentes atualmente, consideramos pertinente destacar inicialmente a concepção do professor como profissional reflexivo, tendo como eixo norteador o fato de necessitarmos de docentes com esse perfil, bem como que eles dominem também um repertório teórico consistente. Buscaremos destacar quais são os saberes necessários para a atuação docente, dando ênfase àqueles possíveis de serem adquiridos anteriormente à prática, sobretudo no processo de formação inicial. Adotaremos, como principal norte teórico, as idéias de Shulman, sobretudo três aspectos destacados pelo autor como necessários para o conhecimento teórico docente: - conhecimento do conteúdo, conhecimento pedagógico do conteúdo e conhecimento curricular. Posteriormente, direcionaremos nossas discussões à formação específica de professores dos anos iniciais do Ensino Fundamental, alicerçando, como ponto de partida, o histórico dos espaços de formação desse grupo de professores, uma vez que entender sua complexa trajetória auxilia sobremaneira a compreensão da formação demonstrada atualmente por eles e, principalmente, justifica o porquê de considerarmos, neste trabalho, o curso de Pedagogia como espaço primordial para a formação de professores dos anos iniciais do Ensino Fundamental. Por fim, enfocaremos de maneira geral a formação oferecida pelos cursos de Pedagogia, orientando-nos a partir de dados oferecidos por pesquisas atuais e pelas legislações que orientam a efetivação desses cursos. Nessas discussões, conduziremos nossos olhares, sobretudo, ao Ensino de Matemática. 1.1 A escola atual e a formação de professores 20 Faz parte do senso comum considerar que a escola que temos hoje é ruim. Quem nunca ouviu a frase: “A escola de hoje não é boa como a de antigamente”. Essa afirmação se torna ainda mais enfática quando se trata de escola pública. Como conseqüências, surgem avaliações de que os professores representam os principais culpados por essa situação. Não negamos sua parcela de responsabilidade, pois, como afirmam Leite e Di Giorgi (2008, p.22), “não existe educação de qualidade sem professor de qualidade”. Por outro lado, Beisiegel (2005, p.114) também assevera: [...] a escola não perdeu a qualidade, uma vez que ela foi se alargando se estendendo a setores cada vez mais amplos da população. A escola mudou! (...) A qualidade de ensino e conteúdos das disciplinas são pensados a partir de uma escola que já foi superada. A realidade é totalmente outra e exige, inclusive, um quadro teórico de reflexão diferente. Nessa perspectiva, considerando as efetivas mudanças que a escola sofreu nos últimos tempos e a forte presença de alunos das classes menos favorecidas dentro da escola, Leite e Di Giorgi (2008, p.15) indicam que “é preciso pensar a qualidade de ensino em termos quantitativos, isto é, a melhoria qualitativa ocorreu pelo fato de a escola se abrir a uma quantidade maior de alunos provenientes de segmentos antes excluídos”. A nova clientela exige não só um novo formato de funcionamento da instituição escolar, como também professores preparados para dialogar com ela, afinal, ensinar deixou de ser sinônimo de transmitir conhecimento. Roldão (2007, p. 95) esclarece: “a função específica de ensinar já não é hoje definível pela simples passagem do saber, não por razões ideológicas ou apenas por opções pedagógicas, mas sim por razões sócio- históricas”. A autora complementa que o papel do professor significa uma construção histórico-social em permanente evolução, cujo papel tem que estar claro de acordo com o contexto vivido. Almeida (1999) argumenta a respeito de uma troca mútua entre os problemas educacionais e os sociais, já que ambos interferem diretamente um no outro. O caminho da profissionalização docente, por exemplo, tem uma ligação direta com importantes processos sociais, como, por exemplo, a afirmação social da instituição escola, que colaborou para o processo gradual de afirmação dos professores como um grupo profissional socialmente identificável (Roldão, 2007). Assim, para considerarmos a qualidade e a abrangência do ensino, devemos sempre levar em conta o que ocorre no campo da Educação e da sociedade brasileira 21 como um todo, incluindo as esferas da vida social, da família, como também seus respectivos contextos históricos e atuais. Para Pimenta (2006), enquanto prática histórica, a Educação tem o desafio de responder às demandas que os contextos lhe propõem. Carr e Kemmis (apud FIORENTINI, SOUZA JR. e MELO, 2001), consideram que os “atos educativos são atos sociais, e, portanto reflexivos, historicamente localizados, e abstraídos de contextos intelectuais e sociais concretos” (p. 326). Nessa vertente de contextualização, podemos considerar que o professor deve pensar e agir em função de suas idéias individuais sobre o ensino, sobre seu conhecimento específico, bem como sobre a sociedade em que vive, além das necessidades de seus alunos e do contexto de sua escola. Portanto, parece-nos que tomar o professor como um profissional reflexivo corresponde a uma concepção coerente para tratar dos múltiplos aspectos de sua formação e atuação, uma vez que é seu pensamento que orienta sua ação (ALMEIDA, 1999). Nas primeiras décadas do século XX, a interpretação de ensinar como sinônimo de transmitir o saber e o fazer técnico do professor assumiam um significado socialmente pertinente, uma vez que o saber disponível era de domínio de um número restrito de indivíduos e pouco acessível. Foi nessa perspectiva do trabalho docente que se instauraram no Brasil as estruturas de formação de professores, as quais se denominaram modelo 3+1, em que à formação de bacharéis acrescenta-se um ano com disciplinas da área de Educação para a obtenção da licenciatura (GATTI e BARRETO, 2009). Contudo, o conceito de ensinar na sociedade atual recebe, nas palavras de Roldão (2007), a leitura de “fazer outros se apropriarem de um saber”, hipótese de trabalho que exige do professor a incorporação de novos saberes, sejam esses de natureza diversa ou relacionados diretamente à profissão docente. Portanto, o conhecimento dos novos repertórios de saberes desempenha papel fundamental não só para uma nova posição sobre o trabalho desenvolvido em sala de aula, bem como para repensar a formação oferecida pelos atuais espaços de formação inicial de professores. A “categoria” do professor como um profissional reflexivo, sugerida por Almeida (1999), como uma concepção para tratar da profissão docente nos dias atuais, mostra-se como possibilidade de superação das concepções tecnicistas do trabalho docente. 22 A discussão acerca do professor reflexivo tem sua gênese nas idéias de Dewey, divulgadas por Donald Schön a partir dos anos 80. Ele, valorizando a experiência e a reflexão na experiência, propõe uma epistemologia da prática baseada na reflexão do profissional sobre sua prática. Schön (1992) considera três dimensões da reflexão: a reflexão na ação, a reflexão sobre ação e a reflexão sobre a reflexão na ação. A reflexão na ação refere-se ao pensamento que ocorre durante a ação do professor e centra-se em evidências do que está sendo feito e na sua maneira de fazer. A reflexão sobre a ação representa o olhar a posteriori sobre momentos específicos da prática, ou seja, o professor se distancia da ação, reconstrói a mesma mentalmente e reflete sobre o modo como ocorreram os fatos na sua ação, buscando identificar, dentre outros aspectos, as mudanças necessárias. Contudo, a reflexão não pode se limitar aos elementos da sala de aula, ela deve abranger também conseqüências sociais, pessoais e políticas de suas ações no processo de aprendizagem do aluno. Para tanto, é necessário que as práticas do professor sejam relatadas, discutidas e refletidas junto a outros profissionais. Por fim, a reflexão sobre a reflexão na ação possibilita ao professor fazer a compreensão do conhecimento construído em sua prática. Fica evidente que tais dimensões valorizam a prática profissional como momento de construção de conhecimento através da reflexão, análise e problematização. Ou seja, o ensino como prática reflexiva passa a ser entendido como uma situação que apresenta problemas a serem contextualmente determinados e não tecnicamente resolvidos, e ainda, a formação do professor passa a ser entendida como reflexão sobre as práticas concretas e a investigação como um recurso que gera conhecimento (ALMEIDA, 1999, p. 17). Pimenta (2006) complementa que a prática reflexiva do professor deve abranger a totalidade social e política, ou seja, deve ir além do contexto e da instrução escolares. A autora alerta-nos ainda sobre duas diferentes interpretações acerca do conceito de professor reflexivo: como adjetivo ou como conceito. Quando tratado como adjetivo, refere-se ao atributo próprio do ser humano e, por conseguinte, do professor. Quando tomado como conceito, representa um movimento teórico de compreensão do trabalho docente. A “massificação” do conceito (professor reflexivo) tem promovido a popularização de sua compreensão apenas como adjetivo, dificultando o engajamento 23 dos professores em práticas mais críticas, reduzindo-as a um fazer técnico, o qual foi objeto de crítica na sua gênese. Na direção de acentuar a necessidade de ampliação, transformação e, sobretudo, superação desse conceito, Pimenta (2006) exercita uma discussão acerca de críticas advindas de diversos pesquisadores. Liston e Zeichner (1993), por exemplo, apontam para a centralidade de Schön nas práticas individuais, as quais ignoram o contexto institucional. Giroux (1990), por sua vez, aponta a insuficiência da reflexão sobre o trabalho docente de sala de aula para a compreensão teórica que condiciona a prática profissional. Abordando apontamentos de outros autores (CONTRERAS, 1997; LIBÂNEO, 1999; PÈREZ-GÓMEZ, 1992), Pimenta (2006) propõe como possibilidade de superação do conceito de professor reflexivo, bem como de outros conceitos originados a partir desse, como o de professor pesquisador2 e de professor intelectual transformador3, por exemplo, o movimento do intelectual crítico reflexivo, que, para além da consolidação da epistemologia da prática, abrange a capacidade de uma reflexão de caráter público e ético. Outros autores, como Tardif e a própria Pimenta, considerando as limitações e possibilidades da categoria do professor, enquanto profissional reflexivo, apontam discussões sobre como e quais os saberes docentes, sejam específicos da profissão docente ou não, podem contribuir para a ampliação e concretização da compreensão das possibilidades que a reflexão crítica pode ter no contexto escolar. Para Tardif (2000, p.10), “a epistemologia da prática profissional é o estudo do conjunto dos saberes utilizados realmente pelos profissionais [docentes ou não] em seu espaço de trabalho cotidiano para desempenhar todas as suas tarefas”. Ao conceito de saber, o autor atribui um sentido amplo, que engloba o saber (competências), o saber- fazer (habilidades) e o saber-ser (atitudes). Especificamente ao saber docente, Tardif (2002, p. 36) confere o seguinte significado: “[...] um saber plural, formado pelo amálgama, mais ou menos coerente, de saberes oriundos da formação profissional e de saberes disciplinares, curriculares e experienciais”. Esse conjunto de saberes profissionais docentes descritos por Tardif (2000; 2002) como necessários para o ensino - saberes das disciplinas; os saberes 2 Discussão acerca do professor pesquisador é realizada por autores como Lüdke (2001); Libâneo (2002). 3 Discussão acerca do professor como intelectual transformador pode ser encontrada em Giroux (1997); Contreras (2002). 24 curriculares; os saberes da formação profissional e os saberes da experiência - são por ele caracterizados como temporais, plurais e heterogêneos, porque, dentre outros aspectos, são adquiridos através do tempo, provêm de diversas fontes, não formam um repertório de conhecimentos unificado e devem atender a “diferentes objetivos cuja realização não exige os mesmos tipos de conhecimento, de competência ou de aptidão” (TARDIF, 2000, p.15). Para Pimenta (1999), os saberes da docência são constituídos por três categorias: os saberes da experiência (abrangem tanto os saberes adquiridos pelos professores/futuros professores no decorrer da vida escolar e nos cursos de formação inicial quanto aqueles produzidos no trabalho pedagógico cotidiano); os saberes do conhecimento (referentes à formação específica, incluindo os saberes disciplinares e curriculares identificados por Tardif) e os saberes pedagógicos (aqueles que possibilitam a ação do ensinar). Tardif (2000; 2002) e Pimenta (1999; 2002; 2006) atribuem uma importância especial ao saberes oriundos da experiência docente. Entretanto, buscamos destacar, neste momento, os saberes docentes que podem ser adquiridos anteriormente à prática, sobretudo, na formação inicial. De acordo com Grígoli e Lima (2008), seguindo a categorização de saberes apontada por Tardif, aqueles que podem ou deveriam ser construídos na formação inicial são: saberes das disciplinas, os saberes curriculares e os saberes da formação profissional. De acordo com os saberes identificados por Pimenta, as autoras destacam os saberes do conhecimento e os saberes pedagógicos, como aqueles relacionados à formação inicial. De modo a complementar a discussão proposta pelos autores acerca dos saberes docentes, adquiridos na formação inicial, julgamos pertinente destacar as idéias trazidas por Shulman (SHULMAN, 1986; WILSON, SHULMAN e RICHERT, 1987; GROSSMAN, WILSON e SHULMAN; 1989). O estudioso, assim como Tardif, dedica- se a investigar a mobilização dos saberes nas ações do professores, compreendendo-os também como produtores e mobilizadores de saberes no exercício de suas práticas. Contudo, enquanto a particularidade de Tardif reside no reconhecimento da heterogeneidade e pluralidade do saber, com destaque para os saberes da experiência, a particularidade de Shulman consiste no interesse de investigar o conhecimento que os professores têm dos conteúdos e o modo como esses se transformam para ensino, funcionando como base três saberes necessários de serem adquiridos, sobretudo, e não 25 exclusivamente, anteriormente à prática: conhecimento do conteúdo, conhecimento pedagógico do conteúdo e conhecimento curricular. Apesar de particularidades e tipologias diferentes, as classificações de saberes apresentadas por Tardif, Pimenta e Shulman não são distintas a ponto de serem excludentes, uma vez que os saberes experienciais são formados de todos os demais saberes, porém retraduzidos, “polidos” e submetidos às certezas construídas na prática e na experiência (ALMEIDA e BIAJONE, 2007). 1.2 Saberes docentes que compõem a base do conhecimento para o ensino Inúmeros pesquisadores4, sobretudo da área de Educação Matemática, valem-se das idéias de Shulman para discussões sobre a base de conhecimento para o ensino. Shulman é considerado um dos pioneiros nos estudos acerca dos saberes docentes. Em meados da década de oitenta, ele trouxe à tona a discussão a respeito dos conhecimentos que os professores possuem sobre o conteúdo a ser ensinado e sobre o processo de como ensinar e aprender esses conteúdos. Retomando de forma sucinta a trajetória dos estudos sobre formação de professores, pode-se afirmar que, até a década de 1960, os estudos centravam-se quase que exclusivamente no conhecimento que os professores deveriam ter sobre sua disciplina. A partir da década de 1970 e anos de 1980, a ênfase atribuída ao domínio do conteúdo começou a diminuir, enfatizando-se a valorização dos aspectos didático- metodológicos. Essa mudança de foco do “o que ensinar” para o “como ensinar”, foi denominado por Shulman (1986) como “paradigma perdido”. Buscando romper com a dicotomia entre as duas vertentes (o que ensinar e como ensinar) e, sobretudo, na direção de recuperar a valorização do saber do professor sobre aquilo que constitui o conteúdo do ensino e da aprendizagem, Shulman (1986) propôs um novo modelo para a pesquisa sobre o ensino, apresentando três categorias de conhecimento, que orientam a formação teórica docente: conhecimento do conteúdo da disciplina (subject matter content knowledge), conhecimento pedagógico do conteúdo (pedagogical content knowledge) e conhecimento curricular (curricular knowledge) 5. 4 Curi (2005), Fiorentini, Souza Jr e Melo (2001), dentre outros. 5 Alguns autores utilizam a tradução desses três componentes da seguinte maneira: conhecimento da matéria, conhecimento pedagógico da matéria e conhecimento curricular. 26 Contemplando uma revisão dessas três categorias, o autor propõe sete saberes que se consolidam em uma mistura de diversos elementos pedagógicos que unem conteúdo e pedagogia: conhecimento disciplinar, conhecimento pedagógico geral, conhecimento do currículo, conhecimento da psicologia da infância, conhecimento do contexto institucional, os conhecimentos dos fins educativos e outros conhecimentos que não fazem parte do domínio escolar. É importante esclarecer que manteremos o foco de nossas discussões nas propostas originárias de Shulman, as quais englobam, de forma implícita ou explícita, esse conjunto de sete saberes por meio das três categorias já especificadas acima - conhecimento do conteúdo da disciplina, conhecimento pedagógico do conteúdo e conhecimento curricular. O conhecimento do conteúdo da disciplina envolve tanto a compreensão do conteúdo quanto sua organização, já que o professor deve ser capaz de estabelecer relações acerca do conteúdo que vai ensinar e, ainda, relacioná-lo às demais áreas do conhecimento. Para que compreenda os conteúdos, é necessário que o profissional tenha não só o domínio sobre a estrutura do conteúdo da disciplina, como também sobre os conceitos básicos que o compõem. Quando analisa as estruturas da disciplina, Shulman (1986) recorre às idéias de Schwab (1964; 1978)6. Esse autor considera que as estruturas de uma disciplina incluem estruturas sintáticas e, sobretudo, substantivas e epistemológicas. A estrutura sintática representa o conjunto de fórmulas, regras e processos relativos, nas quais verdade, falsidade, validade e invalidade são estabelecidas (SHULMAN, 1986). As estruturas substantivas são os vários modos como os conceitos e princípios básicos da disciplina estão organizados para incorporar seus fatos. Semelhantes estruturas referem-se à natureza e aos significados dos conhecimentos, ao desenvolvimento histórico das idéias, ao que é fundamental e ao que é secundário. Nesse sentido, Shulman (1986, p.9) considera que professores não devem ser capazes apenas de definir para os alunos as verdades aceitas no âmbito da disciplina. Eles devem também explicar porque uma determinada afirmação é garantida, porque vale a pena saber, e como isso se relaciona com outras afirmações tanto dentro da disciplina quanto fora dela, tanto na teoria como na prática [tradução livre]7. 6 As obras de Schwab referenciadas por Shulman são “The Structures of the Disciplines: Meanings and Significances” (1964) e “Science, curriculum and liberal education” (1978). 7 “Teachers must not only be capable of defining for students the accepted truths in a domain. They must also be able to explain why a particular proposition is deemed warranted, why it is worth knowing, and 27 Desse modo, os professores não devem ser somente capazes de definir para os alunos as verdades aceitas no âmbito da disciplina. Devem também ser capazes de explicar os “porquês” e os “como” das afirmações que são postas, tanto na teoria como na prática. Além disso, o autor considera relevante que o professor saiba por que um determinado tópico pode ser assumido como central ou periférico na disciplina. Segundo Almeida e Biajone (2007), o domínio da estrutura da disciplina, nas idéias de Shulman, não se resume tão somente à detenção bruta dos fatos e conceitos dos conteúdos, mas também a compreensão dos processos de sua produção, representação e validação epistemológica, o que requer entender a estrutura da disciplina compreendendo o domínio atitudinal, conceitual, procedimental, representacional e validativo do conteúdo (p.287). Para os autores, o domínio desse conhecimento pelo professor torna-o mediador entre o conhecimento historicamente produzido e aqueles a serem apropriados pelos alunos, reestruturados e socioculturalmente relevantes. O professor funciona como a fonte primária do entendimento do aluno com relação ao conhecimento do conteúdo da disciplina e, ao enfrentar a diversidade dos alunos, ele deve ter flexibilidade adequada para conceber explicações alternativas dos mesmos conceitos e princípios. Portanto, o conhecimento do conteúdo da matéria “repousa em dois fundamentos: a literatura acumulada na área e o conhecimento filosófico e histórico sobre a natureza do conhecimento no campo do estudo” (ALMEIDA e BIAJONE, 2007, p. 288). Por conhecimento pedagógico do conteúdo, Shulman (1986) entende uma combinação entre o conhecimento da disciplina e o conhecimento do “como ensinar”, de modo que as formulações e apresentações tornem os conteúdos compreensíveis para os alunos, ou seja, esse segundo conhecimento destacado pelo autor explora articuladamente, sem dicotomizar, o conhecimento que é objeto de ensino/aprendizagem e os procedimentos didáticos (atividades, exemplos, contra exemplos, etc). É clara a forma indissociável com que Shulman (1986) trata o conhecimento do conteúdo e o conhecimento pedagógico do conteúdo. how is relates to other propositions, both within the discipline and without, both in theory and in practice”. 28 Para alcançar o conhecimento do conteúdo para o ensino, o professor deve ser capaz de transformar, estruturar e fazer interpretações pedagógicas sobre o conteúdo com o objetivo de ensinar, ações essas que dependem necessariamente do domínio do conteúdo. Para descrever essa transição, Wilson, Shulman e Richert (1987) destacam a necessidade de o professor criar representações acerca do objeto de ensino, advindas da reflexão sobre sua própria prática. Como ressaltam Almeida e Biojone (2007, p. 288), quando argumentam que ensinar é antes de tudo entender, Shulman considera o conhecimento pedagógico do conteúdo “um conjunto de formas alternativas de representação que encontram origem tanto na pesquisa como nos saberes oriundos da prática docente”. Levando em consideração tais reflexões, podemos considerar que não é ignorada pelo autor a importância da prática docente para elaboração e re-elaboração das representações dos conteúdos para o ensino. A partir da compreensão pessoal do professor de um determinado conteúdo, ele elabora uma representação de modo a transpô-la para entendimento dos alunos, a fim de atingir o desenvolvimento do conteúdo na mente de cada um. Com base em novas experiências, os professores constroem novas representações para esse conteúdo, até que seja organizado um repertório de representações que favorecem à eficiente compreensão do conteúdo, até mesmo pelo próprio professor. Assim, baseados na diversidade de representações dos professores, os alunos criam suas próprias representações (WILSON, SHULMAN e RICHERT, 1987). Diferentes tipos de conhecimento são inerentes à ação dos professores: conteúdo, objetivos educacionais, conteúdos externos, currículo, saber pedagógico geral e saber sobre os alunos. O professor deve ter em “mãos” um leque de representações que pode ser utilizado de acordo com a necessidade do contexto. Para arquitetar representações, o professor precisa levar em conta o conhecimento que tem sobre os conteúdos, ou outras áreas de ensino, o conhecimento dos alunos sobre o assunto (sejam corretos ou errôneos), quais são os interesses dos alunos, quem são os alunos e qual o contexto em que eles vivem, quais materiais de apoio estão disponíveis na escola e qual conteúdo já foi previamente ensinado. O professor, portanto, deve ser capaz de produzir o conhecimento do conteúdo, ligando-o ao contexto em que será ensinado. Para Shulman, a chave para distinguir a base do conhecimento do ensino repousa na interseção de conteúdos e pedagogia, na capacidade que um professor tem de transformar o conhecimento do conteúdo que ele possui, em formas que sejam pedagogicamente eficazes e possíveis de adaptação às variações de 29 habilidade e contexto apresentados pelos alunos. (ALMEIDA e BIAJONE, 2007, p. 288). Portanto, Shulman (1986) inclui na categoria de conhecimento pedagógico não só as formas mais coerentes de representações, analogias, ilustrações, explicações e demonstrações para um determinado conteúdo, como também a percepção do que faz a aprendizagem de um determinado conteúdo se tornar fácil ou difícil, levando em conta também as concepções errôneas dos alunos. Embora Shulman enfatize o conhecimento pedagógico atrelado à matéria/conteúdo, ele também reconhece a importância do conhecimento pedagógico não atrelado à matéria, denominado de conhecimento pedagógico geral. O terceiro aspecto considerado, o conhecimento curricular, abrange não só os programas de ensino elaborados para um determinado nível de ensino, como também a diversidade de materiais e instrumentos de trabalho disponíveis relacionados aos programas, o que, nas palavras de Shulman (1986, p. 10), significa dizer: o currículo é representado por uma grande quantidade de programas designados para o ensino de materiais e tópicos particulares de dado nível, pela variedade de materiais instrucionais disponíveis em relação a esse programa, e por um conjunto de características que servem tanto como indicações quanto como contra indicações para o uso de um currículo particular ou materiais de programas em circunstâncias particulares [tradução livre]8. Enfim, o conhecimento do currículo engloba o currículo específico ligado à disciplina, à organização e à estruturação dos conhecimentos escolares, à compreensão dos materiais que o professor utiliza para ensinar sua disciplina, como livros-texto, propostas curriculares, jogos pedagógicos, vídeos e softwares, por exemplo, e o conhecimento da trajetória histórico-curricular do conteúdo a ser ensinado. Enfim, o professor necessita ter alternativas curriculares para ensinar. O autor chega até mesmo a apresentar a seguinte analogia: os professores precisam dominar o conhecimento curricular para poder ensinar aos seus alunos, da mesma forma que um médico precisa conhecer os remédios disponíveis para poder receitar. O conhecimento da matéria proporciona ao professor autonomia para produzir a sua própria orientação curricular, o que nos evidencia, mais uma vez, a indissociabilidade dos três aspectos propostos pelo autor - conhecimento do conteúdo, 8 “The curriculum is represented by the full range of programs designed for the teaching of particular subjects and topics at a given level, the variety of instructional materials available in relation to those programs and the set of characteristics that serve as both the indications and contraindications for the use of particular curriculum or program materials in particular circumstances”. 30 conhecimento pedagógico do conteúdo e conhecimento curricular. Eles, juntos, proporcionam ao professor autonomia para a escolha dos conteúdos, para a contextualização dos conteúdos de acordo com as relevâncias sócio-culturais, para a elaboração de seu próprio currículo e, sobretudo, para transformar, estruturar e fazer interpretações pedagógicas sobre o conteúdo com o objetivo de ensinar. Alguns autores9, apesar de considerarem os estudos de Shulman de suma relevância, salientam que não há por parte do autor o reconhecimento dos saberes experienciais e da complexidade da prática, da reflexão. Sabemos que o saber docente é mais do que pura e simples aplicação de conhecimentos teóricos. Para além disso, ele representa a capacidade de transformar os conhecimentos em saberes complexos de acordo com os variados contextos (FIORENTINI, SOUZA JR. e MELO, 2001). Nesse sentido, consideramos coerentes as críticas de que os três tipos de conhecimento citados por Shulman — conhecimento do conteúdo, conhecimento pedagógico do conteúdo e conhecimento curricular, apesar de extremamente relevantes para o exercício da profissão docente, não são suficientes para a composição de um repertório de saberes docentes. Contudo, acreditamos que a triangulação entre os três aspectos, propostos pelo autor, é fundamental para que o professor tenha uma base sólida que lhe possibilite ser reflexivo na e sobre sua ação. Ao trilhar uma linha que nos traz evidências da clara aproximação entre o modelo de professor reflexivo trazido por Schön e a abordagem tomada por Shulman acerca de saberes docentes, Roldão afirma (2007, p. 99) que: o conhecimento resultante da prática não se reporta a legitimação de uma qualquer prática, mas ao conhecimento que resulta da reflexão analítica de professores competentes – reflexão e competência que implicitamente convocam, de forma integrada, as categorias que em Shulman aparecem na forma de componentes. Enquanto a corrente teórica do “pensamento do professor” traz como base as idéias de Schön e centra-se na construção do conhecimento profissional como processo de elaboração reflexiva a partir da prática do profissional em ação, a linha de Shulman (1986, 1987) segue a desmontagem analítica dos componentes envolvidos no conhecimento global docente (do conhecimento do currículo ao conhecimento dos alunos, do conhecimento científico ao conhecimento didático do conteúdo e ao conhecimento científico-pedagógico). Em outras palavras, a primeira linha foca o 9 Como Sockett (apud ELLIOTT, 1996); Fiorentini, Souza e Melo (1998). 31 conhecimento manifestado nos professores que ensinam bem. Já a segunda linha, procura estabelecer o que os professores devem saber para ensinar bem (ROLDÃO, 2007). Portanto, é indiscutível que as duas vertentes em questão sejam dominantes na produção sobre o conhecimento profissional docente. Para Roldão (2007), ainda que as duas tendências tenham divergência, enquanto base de análises, elas convergem na interpretação da práxis e do conhecimento que as sustentam, uma vez que a tendência de Shulman enfatiza o conhecimento prévio necessário, enquanto a tendência de Schön valoriza o conhecimento resultante da prática e da reflexão sobre ela. Concretizando a ligação entre as duas vertentes, Roldão (2007, p.99) reporta-nos uma “definição” do conceito de conhecimento profissional, descrita por Montero (2005), a qual suporta ambas as vertentes referenciadas: O conjunto de informações, aptidões e valores que os professores possuem em conseqüência da sua participação em processos de formação (inicial e em exercício) e da análise da sua experiência prática [...]; situações que representam, por sua vez, oportunidades de novos conhecimentos e de crescimento profissional. Consideramos, então, que ambas as abordagens se completam, uma vez que uma fundamentação teórica sólida envolve a pertinência para uma reflexão mais significativa. Entretanto, considerando a particularidade de Shulman, que “reside no interesse em investigar o conhecimento que os professores têm dos conteúdos de ensino e o modo como este se transformam” (ALMEIDA e BIAJONE, 2007, p. 290), com ênfase no conhecimento do conteúdo como base do conhecimento para o ensino (WILSON, SHULMAN e RICHERT, 1987), é que discutiremos a seguir o tratamento dado pelos cursos de formação inicial de professores dos anos iniciais do Ensino Fundamental aos conhecimentos específicos das disciplinas a serem ministrados em sala de aula. Propomo-nos a essa discussão, tendo em vista as afirmações de Fiorentini, Souza Jr. e Melo (2001, p. 319), segundo os quais a atuação do professor como um profissional reflexivo implica que ele possua um repertório teórico consistente, incluindo, dentre outros saberes necessários para ação docente, o conhecimento dos conteúdos a serem mediados, uma vez que “é justamente a fundamentação teórica que permite ao professor perceber relações mais complexas da prática” para refletir sobre ela. Levando em consideração ainda as especificidades de cada área do conhecimento, 32 destacamos a importância da formação inicial dos professores dos anos iniciais, responsáveis por mediar conhecimentos das diversas áreas que compõem o currículo da Educação Básica. Considerando as históricas imprecisões e discussões acerca do espaço de formação dos professores dos anos iniciais do Ensino Fundamental, bem como buscando destacar os indícios que evidenciam o curso de Pedagogia como espaço predominante para essa formação atualmente, consideramos de suma relevância descrever, ainda que em traços rápidos, a história da formação desse grupo de professores e seus respectivos espaços. 1.3 Breve histórico sobre os espaços de formação de professores dos anos iniciais do Ensino Fundamental Para compreendermos melhor a formação oferecida atualmente pelos cursos de Pedagogia aos futuros professores dos anos iniciais do Ensino Fundamental, os chamados professores polivalentes, consideramos necessário descrever um breve histórico não só da trajetória desse curso, como também dos demais espaços já constituídos como contexto de formação de professores desse nível de escolaridade. De modo geral, como considera Curi (2005), o sistema educativo brasileiro para a formação de professores dos anos iniciais do Ensino Fundamental pode ser descrito em três principais períodos, delimitados por marcos legais – anterior a Lei 5.692/71 (BRASIL, 1971), entre a publicação das Leis 5.692/71 e a 9.394/96 (LDB) (BRASIL, 1996) e após a Lei 9.394/96 (LDB). O primeiro período vai da criação do Curso Normal10, oferecido pelas Escolas Normais, à sua invalidação por força da Lei 5.692/71 (BRASIL, 1971). Com essa lei, que marca o início do segundo período, a formação de professores polivalentes passa a ser realizada em cursos com habilitação para o magistério em nível de Segundo Grau (atual Ensino Médio); unifica-se o Ensino Médio antes dividido em Clássico, Científico e Normal. Ou seja, a Escola Normal passa a se chamar Magistério e os que nela se formam mantêm o direito de lecionar da 1ª a 4ª série. Segundo Gatti e Barreto (2009), com o fim das escolas Normais e a introdução da Habilitação Magistério, entre outras habilitações do então 2º grau, a formação do professor de 1ª a 4ª série acabou sendo 10 O primeiro Curso Normal de nível médio, no Brasil, foi instalado pelo Ato Adicional de 12 de agosto de 1834. 33 realizada por um currículo disperso, acarretando a redução da formação específica para a docência, em virtude da nova estrutura curricular desse nível de ensino. No ano de 1982, são criados os Centros Específicos de Formação e Aperfeiçoamento do Magistério (CEFAM), criados pelo governo federal para aprofundar a formação de professores em nível médio com carga horária em período integral. “Em 1988, pelo Decreto nº 2.808 cria-se o CEFAM no Estado de São Paulo, com a finalidade de priorizar a formação dos professores de pré-escola até 4ª séries do 1º grau” (LIMA, 2007, p. 93). Como ressaltam Gatti e Barreto (2009, p. 39), os “CEFAMS foram criados em busca de garantir uma melhoria na formação de docentes para os anos iniciais de escolarização, em vista dos problemas detectados com a formação desses professores na Habilitação Magistério”. Esses centros, que regulamentavam a formação em nível médio, foram fechados nos anos seguintes à promulgação da Lei 9.394/96 (LDB) (BRASIL, 1996), em razão da transferência da formação dos professores polivalentes para o nível superior. Tal dispositivo legal marca o início do terceiro período referenciado anteriormente. Entretanto, analisando o exposto nos artigos 62 e 63 da Lei 9.394/96 (LDB), transcritos a seguir, destacamos que, apesar da orientação do ensino superior como nível desejável para a formação de professores da Educação Infantil e dos anos iniciais do Ensino Fundamental, ainda é admitida a formação desses professores em nível médio. Ressaltamos, da mesma forma, o surgimento de uma nova instituição formadora de professores, os Institutos Superiores de Educação (ISE), que serão discutidos mais adiante. Art.62. A formação de docentes para atuar na educação básica far-se-á em nível superior, em curso de licenciatura, de graduação plena, em universidades e institutos superiores de educação, admitida, como formação mínima para o exercício do magistério na educação infantil e nas quatro primeiras séries do ensino fundamental, a oferecida em nível médio, na modalidade Normal. Art. 63. Os Institutos Superiores de Educação manterão: 1. cursos formadores de profissionais para a educação básica, inclusive o Curso Normal Superior, destinado à formação de docentes para a educação infantil e para as primeiras séries do ensino fundamental; 2. programas de formação pedagógica para portadores de diplomas de educação superior que queiram se dedicar à educação básica; 3. programas de educação continuada para os profissionais de educação dos diversos níveis (BRASIL, 1996). A Lei 9.394/96 (LDB) estabeleceu ainda o prazo máximo de dez anos para que todos os professores em atuação, redes públicas e privadas e profissionais da educação, 34 se adaptassem à nova legislação (SANTANA, 2009). No ano de 2003, o Conselho Nacional de Educação emite resolução e nota de esclarecimento confirmando a obrigatoriedade do diploma em nível superior para a docência na Educação Infantil e séries iniciais instituídas pela LDB (BRASIL, 1996). Retomando especificamente a trajetória do curso de Pedagogia no Brasil, o curso foi regulamentado em 1939, sendo destinado “a formar bacharéis (técnicos de educação) e licenciados em Pedagogia, inaugurando o que veio a denominar-se esquema 3+1, com blocos separados para o bacharelado e licenciatura” (LIBÂNEO e PIMENTA, 2002, p.16). Os bacharéis podiam atuar na administração publica e na área de pesquisa. Os licenciados com um ano de estudos em Didática e Prática de Ensino podiam lecionar no então ginasial. No ano de 1969, a resolução normativa que acompanha o parecer nº 252, estabelece com mais precisão a função do curso de Pedagogia: formar professores para o ensino normal e especialistas para as atividades de orientação, administração, supervisão e inspeção no âmbito das escolas e sistemas escolares. Admite, também, ao licenciado exercer o magistério nas séries iniciais, dentro da habilitação para o ensino normal (isto é, não se previu uma habilitação específica para se lecionar nas séries iniciais) (PIMENTA E LIBÂNEO, 2002, p.17). Portanto, como ressalta Brzezinski (1996), a estrutura do curso de Pedagogia apresentava nesse momento o princípio de “quem pode o mais pode o menos”, ou seja, se os licenciados em Pedagogia podiam formar professores das séries inicias do curso primário, poderiam também atuar nesse nível. Lima (2007) afirma que a Lei 5.692/71 (BRASIL, 1971) fez emergir a habilitação específica para formar professores destinados às séries iniciais de 1º grau, em nível superior. Segundo a autora, essa habilitação embora nova, “não se constituía numa inovação, visto que foi resultante da idéia esboçada em 1962 no Parecer 251/62, que vislumbrava a possibilidade dessa habilitação nos cursos de Pedagogia” (LIMA, 2007, p.95). Portanto, até o ano de 1996 a formação de professores polivalentes, em nível superior, ocorria nos cursos de Pedagogia. Com a publicação da Lei 9.394/96 (LDB) (BRASIL, 1996), surge um novo espaço de formação, os ISE, já mencionados na reprodução dos Artigos 62 e 63 acima, que mantiveram, inclusive, o Curso Normal Superior destinado à formação de docentes para a Educação Infantil e para as primeiras séries do Ensino Fundamental (SILVA, 2003). O Artigo 64 ratifica, como característica 35 marcante do curso de Pedagogia, a formação do especialista, uma vez que o curso é espaço único para a formação desses profissionais, além da pós-graduação. Assim, o ano de 1997 é marcado pelo início de um impasse, que tinha, de um lado, os grupos favoráveis aos Institutos Superiores de Educação e Escolas Normais Superiores e, de outro, os defensores da formação de professores para os anos iniciais e educação infantil nos cursos de Pedagogia, disposição não prevista pela LDB (GATTI e BARRETO, 2009). Segundo Pimenta (2006), pelo fato de a formação oferecida pelos ISE ocorrer fora da Universidade, esta perde qualquer vínculo com pesquisa e extensão para centrar-se apenas no ensino, rompendo com princípio da indissociabilidade entre essas funções. Após 10 anos da publicação da LDB (Lei 9.394/96), são publicadas as Diretrizes Curriculares Nacionais para o curso de Pedagogia (DCNCP) (Resolução CNE/CP nº 1/2006) (BRASIL, 2005; 2006), Licenciatura, cujo art. 4º determina que: Art. 4º O curso de Licenciatura em Pedagogia destina-se à formação de professores para exercer funções de magistério na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental, nos cursos de Ensino Médio, na modalidade Normal, de Educação Profissional na área de serviços e apoio escolar e em outras áreas nas quais sejam previstos conhecimentos pedagógicos. Em parágrafo único, a resolução ainda traz que: Parágrafo único. As atividades docentes também compreendem participação na organização e gestão de sistemas e instituições de ensino, englobando: I. planejamento, execução, coordenação, acompanhamento e avaliação de tarefas próprias do setor da Educação; II. planejamento, execução, coordenação, acompanhamento e avaliação de projetos e experiências educativas não-escolares; III. produção e difusão do conhecimento científico- tecnológico do campo educacional, em contextos escolares e não-escolares. Portanto, é atribuída ao curso de Pedagogia a formação de professores do 1º ao 5º ano11 do Ensino Fundamental, Educação Infantil, Ensino Médio na Modalidade Normal e EJA, e ainda, a formação do “especialista” em Educação. Como ressalta Lima (2007, p.101), “uma grande surpresa da Resolução foi a possibilidade de o curso de Pedagogia ser oferecido em instituições de educação superior, com ou sem autonomia universitária (art.9), e a [possibilidade de] transformação do Curso Normal Superior em Curso de Pedagogia (art. 11)”. 11 Com o estabelecimento do Ensino Fundamental de 9 anos, o período do 1º ao 5º ano equivale às quatro primeiras séries do Ensino Fundamental, anteriormente definidas como 1ª, 2ª, 3ª e 4ª séries. 36 Alguns autores, como Libâneo e Pimenta (2002), criticam o atual modelo do curso de Pedagogia, em decorrência de fatores como a diversidade de profissionais a serem formados pelo curso, fator que acarreta o aligeiramento da formação devido à necessidade de atender às diversas áreas de atuação do profissional. Outros, como Silva (2003)12, discutem a falta de identidade do curso de Pedagogia e do Pedagogo, o que de certa forma é fruto da histórica indefinição do espaço de formação dos professores da educação infantil e anos iniciais e, sobretudo, de qual é o profissional que deve ser formado pelos cursos de Pedagogia. Entretanto, em meio a imprecisões e discussões adversas, existe hoje uma predominância do curso de Pedagogia, enquanto espaço de formação de professores dos anos iniciais e educação infantil, sobretudo na região sudeste do país. Aproximadamente 65% da oferta e 79% das matrículas no Brasil estão centradas nos curso de Pedagogia (GATTI e BARRETO, 2009). Ou seja, para além das discussões sobre qual deve ser o espaço de formação inicial de professores polivalentes, há uma tendência significativa que evidencia o curso de Pedagogia como espaço primordial para essa formação. Sejam em Universidades, Centros Universitários, Faculdades (Integradas/Isoladas) ou Institutos Superiores de Educação, os cursos de Pedagogia têm, hoje, como um de seus eixos, a formação de professores. Dentre as atribuições direcionadas a esse curso pela resolução CNE/CP 1/2006 – DCNCP (BRASIL, 2005; 2006), destacamos sua instituição oficial também como espaço de formação de professores para os anos iniciais do Ensino Fundamental, Educação Infantil, Ensino Médio na modalidade Normal e para a Educação de Jovens e Adultos. A seguir, ampliamos tal discussão, buscando apresentar características presentes nos atuais cursos de Pedagogia no Brasil, para destacar aspectos direcionados ao Ensino de Matemática. 1.4 Cursos de Pedagogia e o Ensino de Matemática Atualmente, o Ensino Básico compreende não só o Ensino Fundamental como o Ensino Médio e a Educação Infantil. Nas atuais condições do Ensino Fundamental de 9 12 Em seu livro Curso de Pedagogia no Brasil: história e identidade, Bissoli da Silva descreve-nos a trajetória completa do curso de Pedagogia no Brasil, suas constantes transformações e a decorrente falta de identidade do curso. 37 anos, os professores polivalentes, englobando os egressos dos cursos de Pedagogia, são responsáveis por pelo menos 5 anos (1º ao 5º ano), do mínimo de 12, da vida escolar de uma criança, sem incluir o tempo de Educação Infantil até o momento não obrigatório e sem tempo definido oficialmente. Portanto, os professores formados nos cursos de Pedagogia são responsáveis por etapas fundamentais na formação da criança, uma vez que o desempenho do aluno no decorrer dos anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio depende de sua formação nos anos iniciais, bem como na Educação Infantil. Como suporte para compreensão, bem como para construir uma visão panorâmica sobre a formação oferecida aos professores nos atuais cursos de Pedagogia, valemo-nos da reflexão de Gatti e Nunes (2008) no relatório final do curso de Pedagogia do projeto de pesquisa “Formação de professores para o ensino fundamental: instituições formadoras e seus currículos”13, publicado no ano de 2008. Tal pesquisa foi desenvolvida com base nas análises de 71 instituições de Educação Superior, distribuidas por todo o país, que oferecem o curso presencial de Licenciatura em Pedagogia. Como já apresentado, os objetivos do curso de Pedagogia estão voltados à formação de profissionais que vão atuar em diferentes áreas do conhecimento em termos de atuação docente, os chamados professores polivalentes. Curi (2005) afirma que o termo polivalente ressalta a função multidisciplinar do professor dos anos iniciais, ou seja, esse grupo de professores é compreendido como aquele capaz de apropriar-se dos conhecimentos básicos das diversas áreas que compõem a base do currículo dos anos iniciais do Ensino fundamental para articulá-los através de um trabalho interdisciplinar. Nesse sentido, é necessário que as grades curriculares dos cursos de Pedagogia sejam elaboradas com o equilíbrio entre o ensino de disciplinas clássicas, como Filosofia, Psicologia, Sociologia e História da Educação, por exemplo, e as disciplinas do conhecimento das áreas específicas, como Matemática e Língua Portuguesa. Entretanto, como anunciam Gatti e Nunes (2008), a proporção de horas dedicadas às disciplinas referentes à formação profissional específica nos cursos de Pedagogia do Brasil é de apenas 30%, dentre os quais 20,5% são referentes à didática, metodologia e 13 Projeto da Fundação Carlos Chagas que busca analisar o que se propõe como disciplinas formadoras nas instituições de ensino superior dos cursos presenciais de Pedagogia e das licenciaturas de Língua Portuguesa, Matemática e Ciências Biológicas. Pesquisa realizada por solicitação da revista Nova Escola. 38 práticas de ensino (o “como ensinar”) e apenas 7,5%, aos conteúdos do currículo da Educação Básica (o “o que” ensinar). Esses dados evidenciam como os conteúdos específicos das disciplinas a serem ministrados em sala de aula não são prioritários nos cursos de formação inicial do professor dos anos iniciais, sejam em instituições públicas ou privadas. Para Curi (2005), essa falta de ênfase nos conteúdos é histórica. Como também já destacado, a Lei 5.692/71 (BRASIL, 1971) deu abertura para a formação do professor dos anos iniciais em cursos de Pedagogia, que tinham como parte do currículo uma base comum e o restante diversificado de acordo com as habilitações específicas que eram oferecidas em cada instituição. O aluno que optasse pela habilitação para o magistério completava sua formação com as seguintes disciplinas: Estrutura e Funcionamento do Ensino de 1º Grau, Metodologia do Ensino do 1º Grau e Prática de Ensino na Escola de 1º Grau. Fica patente, portanto, a falta de disciplinas que enfatizem conteúdos específicos das disciplinas a serem ensinadas e suas respectivas didáticas. “A história da formação docente no país ajuda a entender a ênfase do curso de Pedagogia, em Fundamentos da Educação” (GURGEL, 2008, p.51). Analisando separadamente as grades curriculares dos cursos de Pedagogia por áreas do conhecimento, Gatti e Nunes (2008) apontam que é perceptível como Língua Portuguesa e Matemática são os focos principais dos cursos de Pedagogia, fato comum, uma vez que as duas áreas são consideradas como base para as demais em qualquer nível da Educação Básica. Não podemos deixar de ressaltar ainda que Língua Portuguesa e Matemática representam os focos principais dos concursos de admissão para atuação docente e, sobretudo, exclusivos das avaliações externas promovidas pelos governos dos Estados. Tais apontamentos estimulam-nos até mesmo a questionar se, ao menos, essas duas áreas de conhecimento são desenvolvidas de maneira satisfatória junto aos futuros professores. Reforçamos também a importância das demais áreas do conhecimento como História, Geografia, Artes, Ciências, Educação Física, uma vez que sendo o professor dos anos inicias um profissional polivalente, ele deve ter base para articular de forma interdisciplinar as mais diversas áreas do conhecimento e, como afirma Gatti e Nunes (2008), a perspectiva interdisciplinar é complexa e requer aprofundamento disciplinar e lógico-conceitual para que a construção do diálogo interdisciplinar não se 39 mostre casuístico e sem os nexos necessários para a compreensão de um tema, um objeto, uma experiência, em sua transposição pedagógica (p.40). Acreditamos que não se pode ensinar aquilo que não se domina. No caso do professor polivalente, podemos, então, considerar que a falta de domínio dos conteúdos não só impossibilita a mediação do conhecimento, mas, sobretudo, a adoção de uma perspectiva interdisciplinar. Como ressaltam Wilson, Shulman e Richert (1987), quanto maior o conhecimento sobre o conteúdo, maiores as possibilidades de representação, o que consequentemente colabora para a realização de relações interdisciplinares. Assim, consideramos oportuno refletir sobre o questionamento proposto por Gatti e Nunes (2008, p. 39): a formação panorâmica, em geral, encontrada nos currículos dos cursos de Pedagogia, é suficiente para o futuro professor vir a planejar, ministrar e avaliar um ensino fundamentado em conhecimentos disciplinares, mas que adote uma perspectiva interdisciplinar? Os dados referentes ao percentual da carga horária direcionada à formação específica do professor, citados acima, já nos dão indícios de algumas falhas do currículo dos cursos de Pedagogia. Gurgel (2008) avalia que grande parte da carga horária das disciplinas do curso de Pedagogia no Brasil – 42% do total – é voltada para o funcionamento dos sistemas educacionais e Fundamentos da Educação (História, Psicologia da Educação, Sociologia, etc.). Nesse sentido, a autora ressalva que “uma boa base teórica em humanidades é fundamental, mas não o suficiente” (GURGEL, 2008, p. 51). As Diretrizes Curriculares Nacionais para Formação de Professores (DCNFP) enfatizam que nenhum professor consegue criar, planejar, realizar, gerir e avaliar situações didáticas eficazes para a aprendizagem e para o desenvolvimento dos alunos se ele não compreender, com razoável profundidade e com a necessária adequação a situação escolar, os conteúdos das áreas do conhecimento que serão objeto de sua atuação didática (BRASIL, 2001, p.21). Na mesma direção, Shulman (1986) afirma que um ensino efetivo depende de um professor que tenha conhecimento tanto sobre a prática pedagógica quanto do conteúdo. A falta de domínio de um conteúdo implica a falta de argumentação para identificar sua expressão escolar, ou seja, a relevância do conteúdo e as estratégias mais adequadas para aprendizagem dos alunos, a chamada transposição didática, contribuindo para a já existente tendência de dissociação da teoria e da prática. 40 É fato que há uma grande diversidade entre os programas de formação inicial de professores, incluindo os cursos de Pedagogia - foco da presente discussão, oferecidos por diferentes instituições. Disciplinas metodológicas, por exemplo, sofrem uma variação entre a aprendizagem apenas de estratégias para o ensino do conteúdo e a inclusão do conteúdo em si (SHULMAN, 1986). Gatti e Nunes (2008), avaliando esse contexto, consideram que o conjunto disciplinar dos cursos de Pedagogia é bastante disperso, ou seja, foi encontrada uma grande variedade de disciplinas em cada curso e entre os cursos, o que sinaliza que o projeto de cada instituição procura sua vocação em diferentes aspectos do conhecimento. Focando especificamente a Matemática dentro das grades curriculares dos cursos de Pedagogia, Curi (2005) relata-nos, quando analisa as grades curriculares e ementas de diversos desses cursos espalhados pelo Brasil, que cerca de 66% possuem a disciplina denominada “Metodologia do Ensino de Matemática” e outros 25% têm na grade a disciplina “Conteúdos e metodologia do Ensino de Matemática”. Sendo assim, considera que, aproximadamente, 90% dos cursos de Pedagogia consideram apenas as questões metodológicas como essenciais à formação de professores. As DCNFP (BRASIL, 2001) também destacam que os cursos de formação de professores para atuação multidisciplinar, geralmente, caracterizam-se por tratar superficialmente (ou mesmo não tratar) os conhecimentos que serão os objetos de ensino do futuro professor. A resolução CNE/CP 1/2006 – DCNCP - enfatiza que os egressos desse curso devem estar aptos a ensinar Língua Portuguesa, Matemática, Ciências, História, Geografia, Artes e Educação Física, de forma interdisciplinar e adequada às diferentes fases do desenvolvimento humano, particularmente de crianças. Considerando que a Matemática é composta por três áreas específicas, Aritmética, Álgebra e Geometria e ainda pela interligação delas, podemos inferir que o professor egresso do curso de Pedagogia deve contemplar dentre suas aptidões, especificamente, conhecimentos necessários para o ensino da Geometria. No mesmo viés, os Parâmetros Curriculares Nacionais: Matemática (PCN) (BRASIL, 2000) para o Ensino Fundamental apontam um campo específico para o estudo de conteúdos conceituais e procedimentais referentes à Geometria, denominado Espaço e Forma, que deve ser abordado nas séries iniciais do Ensino Fundamental. Tal dispositivo legal propõe ainda que o ensino da Geometria deve desenvolver nos alunos um tipo especial de pensamento, que lhes permita compreender, descrever e representar 41 o mundo em que vivem, ou seja, explorar os objetos do mundo físico, estabelecendo assim uma relação entre a Matemática e as demais áreas de conhecimento. A efetivação desse objetivo exige uma competente atuação do mediador pedagógico e uma metodologia de ensino adequada, as quais dependem em grande medida da formação inicial do professor. Por outro lado, Curi (2005) destaca, que dentre os blocos de conteúdos matemáticos que compõem o ensino de Matemática nos anos iniciais, aqueles que aparecem com menor freqüência nas ementas dos cursos de Pedagogia são Grandezas e Medidas, Espaço e Forma, e Tratamento da Informação, sendo os dois primeiros diretamente relacionados ao ensino da Geometria. Barrantes e Blanco (2004) defendem que as concepções dos futuros professores sobre a Matemática e sobre o processo de ensino e aprendizagem têm suas origens também no decorrer do seu processo formativo, ou seja, todas as experiências que os professores tiveram, enquanto alunos, influenciarão diretamente, de forma positiva ou negativa, suas ações futuras como docentes. Nas palavras de Fiorentini, Souza Jr. e Melo (2001, p.317) a forma como conhecemos e concebemos os conteúdos de ensino tem fortes implicações no modo como selecionamos e os reelaboramos didaticamente em saber escolar, especialmente no modo como os exploramos/problematizamos em nossas aulas. Em outros termos, podemos, então, afirmar que formadores de professores, não somente ensinam o conteúdo de seus cursos como também modelam as práticas e estratégias de ensino para os futuros professores em suas salas de aula (SHULMAN, 1986). E ainda, como consideram Nacarato, Passos e Carvalho (2004, p. 16) “o professor, ao ensinar Matemática – quer por ações e discursos, quer na própria transmissão do conteúdo matemático – acaba por ensinar, implicitamente, valores sobre essa área do conhecimento”. No decorrer de suas ações, os professores irão se deparar, gradualmente, com novas situações e conhecimento de novos conteúdos, seja através da preparação de aulas, ou por experiências realizadas, ou pelos próprios alunos, fazendo com que, principalmente, os professores iniciantes recorram à utilização de livros didáticos para esclarecimentos. Frente a essa situação, o professor deve estar preparado para ser crítico em relação às informações postas nesses materiais. 42 Tal fato remete-nos à maneira particular com que Shulman descreve o conhecimento curricular, o qual abrange a importância sobre o conhecimento do material didático que o professor tem à sua disposição, como já mencionado anteriormente. Consideramos ainda relevante destacar o fato de que, principalmente em seus primeiros anos de trabalho, os professores dão preferência ou até mesmo se baseiam em conteúdos com os quais já estão familiarizados que, provavelmente, são aqueles mais enfatizados em sua formação inicial. Nesse sentido, o abandono do ensino de Geometria nos cursos de formação de professores polivalentes, os quais englobam os cursos de Pedagogia, possivelmente acarretará o abandono desse conteúdo pelos professores em suas ações futuras, uma vez que não se pode ensinar aquilo que não se domina. Em consequência, não se pode negar que, dentre outros aspectos, a ausência da Geometria na grade curricular compromete o desenvolvimento do raciocínio lógico e do pensamento dedutivo e imagético do aluno (PIRES, CURI e CAMPOS, 2000). Para aprofundar essa assertiva, discutiremos mais detalhadamente o ensino de Geometria, sobretudo em cursos de formação de professores dos anos iniciais do Ensino Fundamental, cursos de Pedagogia. Para tanto, julgamos necessário retomar inicialmente a trajetória desse campo na história da Educação Matemática brasileira, uma vez que são inúmeros os indicativos do seu abandono nas últimas décadas. CAPÍTULO II 43 A GEOMETRIA NOS ANOS INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL SOB A PERSPECTIVA DA FORMAÇÃO DE PROFESSORES Neste capítulo, refletiremos especificamente sobre o ensino de Geometria. Analisaremos a trajetória histórica do ensino de Geometria na educação brasileira do século XX, tendo como norte reflexões que demonstram abandono de sua prática nas últimas décadas, bem como busca atual pela sua recuperação. Discutiremos o ensino de Geometria nos anos iniciais do Ensino Fundamental e os espaços de formação de professores desse nível de ensino, tendo como objetivo apresentar apontamentos que colaborem para compreensão de três questionamentos principais: O que ensinar de Geometria nos anos iniciais? Por que ensinar Geometria nos anos iniciais? Como ensinar Geometria nos anos iniciais? A fim de complementar tais discussões, elencaremos, brevemente, reflexões sobre o conhecimento dos professores dos anos iniciais do Ensino Fundamental no que tange os conteúdos da Geometria, relacionando-o ao que tem sido ensinado por eles a seus alunos no ambiente escolar. Por fim, direcionaremos nossas reflexões ao desenvolvimento do conhecimento/pensamento geométrico, tendo como base reflexões propostas por três principais autores, Pais (1996, 2000), Van Hiele (apud Crowley, 1994) e Parzysz (2006). Os dois últimos estudiosos estabelecem níveis hierárquicos de raciocínio no decorrer da aprendizagem de Geometria. 2.1 A trajetória do ensino de Geometria na educação brasileira no século XX No início do século XX, o Brasil era ainda um país basicamente agrícola, com a maioria da população analfabeta, sem acesso nem mesmo à Educação elementar. O ensino da Matemática na escola primária era essencialmente utilitário, buscando o domínio de técnicas operatórias necessárias à vida prática e à atividade comercial. Já o ensino secundário, em geral pago, destinava-se, pois, às elites e à preparação para os cursos superiores (PAVANELLO, 1993). Os conteúdos de Matemática (Aritmética, Álgebra e Geometria) eram ensinados separadamente e por professores diferentes. O 44 tratamento dado a eles era puramente abstrato, sem qualquer preocupação com aplicações práticas. Segundo Pavanello (1993), os livros didáticos desse período tratavam os conteúdos sem se preocupar em estabelecer relações entre os diferentes ramos da Matemática. Tal preocupação era também distante dos professores, uma vez que eles eram oriundos das profissões liberais e os professores de Matemática, particularmente, eram os engenheiros civis e os militares, por exemplo. A partir da 1ª Guerra Mundial, processaram-se mudanças nos setores econômico, social e político do país. Em consequência, fortaleceu-se o grupo industrial- urbano, ampliaram-se os setores médios e operários, eclodindo o nacionalismo como decorrência do conflito, assim com cresceu a pressão pela recomposição do poder político. Esses acontecimentos repercutiram no campo educacional, favorecendo um período de reivindicações, sobretudo, relativas ao combate ao analfabetismo. Por outro lado, “a divulgação de obras didático-metodológicas e de teorias psicológicas na década de 20 acaba enfatizando os aspectos puramente metodológicos da educação e minimizando seus componentes social e político” (PAVANELLO, 1993, p. 9). Após a crise de 29, a revolução de 30 e a eclosão da 2ª guerra mundial, acelerou- se o processo de industrialização no país. Nos rastros dessas mudanças, o governo federal provisório tomou a primeira medida relativa à educação: criou o Ministério da Educação e Saúde, tendo como chefe Francisco Campos. Em 1932, foi divulgado o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, elaborado por educadores brasileiros, com o objetivo de fixar as diretrizes que deveriam nortear a política educacional. Dentre outras, o documento apontou a urgência de formação de professores de todos os graus de ensino. Na mesma direção, ele confirmou a necessidade de construção de um sistema unificado de ensino, suficientemente democrático para garantir aos educandos a ascensão a qualquer de seus níveis de acordo com sua capacidade, independente de sua situação econômica. A Constituição de 34 estabeleceu recursos mínimos que deveriam ser investidos na Educação, porém as providências não foram concretas e a educação escolar brasileira continuou altamente seletiva: as escolas para o “povo” (as profissionais) e as escolas para a elite (as secundárias). Essa estrutura acentuou-se com o golpe de 37, que instalou o Estado Novo. “A constituição de 37 deixa de considerar a educação como um dever do Estado, conferindo à ação estatal um caráter meramente supletivo” (PAVANELLO, 1993, p.10). 45 Nesse período, dentre os fatos que exerceram forte influência no curso secundário e no ensino da Matemática e da Geometria, ressaltamos a reforma Francisco Campos (1931), que tentou imprimir organicidade ao ensino secundário, estabelecendo definitivamente o currículo seriado, fazendo com que, aos poucos, fossem desaparecendo os manuais estanques da Matemática – Curso de Álgebra, Curso de Geometria, etc. - “escritos sob influência direta dos manuais franceses da segunda metade do século XVIII” (MIGUEL, FIORENTINI, MIORIM, 1992, p.42), dando lugar àqueles organizados de acordo com as séries às quais se destinavam. Houve também a tentativa de estabelecer a unidade entre os vários ramos da Matemática, entregando o ensino da disciplina a um só professor, fazendo com que o mesmo desenvolvesse, em cada série, o ensino dos vários assuntos procurando integrá- los. Entretanto, como afirma Pavanello (1993), o exame de livros didáticos da época mostra que os temas (Aritmética, Álgebra e Geometria) eram programados em cada série, sem a preocupação de trabalhá-los integradamente. A Geometria era trabalhada e exposta nos livros didáticos, de forma rigorosa e axiomático-dedutiva. Propunha-se ainda que o ensino da Geometria fosse iniciado “pelas explorações intuitivas, a partir das quais se estabelecerão os conhecimentos indispensáveis à construção de uma sistematização, que deverá atingir a exposição formal”. (PAVANELLO, 1993, p.10). Os manuais didáticos de Geometria da primeira metade do século XX eram inspirados nos elementos de Euclides, época, durante a qual, segundo Miguel, Fiorentini e Miorim (1992, p.44), era nítido o dualismo entre Álgebra e Geometria. Os autores ressaltam ainda que “esse dualismo tem sua origem no pensamento grego, notadamente no pensamento platônico14, que, ao supervalorizar a teoria em detrimento da prática, atribuía à Geometria teórica um caráter nobre”. Sendo assim, nas escolas de clientela popular, aquelas cuja finalidade era a preparação para o trabalho (ensino profissional), sonegava-se grande parte dos conhecimentos geométricos, sobretudo, os processos dedutivos a eles subjacentes, dando-se ênfase aos processos pragmáticos proporcionados pela Aritmética e Álgebra. Já nas escolas destinadas às elites (escolas secundárias), ambos os tipos de conhecimento eram considerados, priorizando-se, entretanto, a abordagem dedutiva da Geometria, uma vez que se acreditava ser ela responsável pelo desenvolvimento das 14 A concepção platônica caracteriza-se por uma visão estática, a- histórica e dogmática das idéias matemáticas, como se essas existissem independentemente dos homens. 46 capacidades intelectuais, o que deveria ser privilégio da classe dirigente (PAVANELLO, 1989). Nos últimos anos do Estado Novo, novas reformas são empreendidas pelo então ministro da educação Gustavo Capanema. A primeira das reformas, em 1942, é a do ensino profissional, em especial seu ramo industrial, uma vez que, politicamente, a qualificação do trabalhador urbano faz parte de uma estratégia do governo destinada a resolver o problema das agitações sociais nas cidades, cada vez mais populosas em virtude da aceleração do processo de urbanização e industrialização. (PAVANELLO, 1993 p. 11). Embora o ensino profissional tenha se expandido, o ensino secundário é o mais procurado como um instrumento de ascensão social, por ser ele o único que possibilitava acesso ao ensino superior. As reformas de Capanema para as diferentes disciplinas, em especial, Matemática, como as demais reformas anteriores, são criticadas devido ao excessivo formalismo do ensino, aspectos que acreditamos sejam ressonâncias da tendência formalista clássica do ensino, de predominância nos primórdios do ensino da Matemática. A Lei Orgânica do Ensino Secundário de abril de 1942 propôs uma nova estrutura ao curso: um primeiro ciclo, de 4 anos, denominado ginasial e um segundo, de 3 anos, subdividido em clássico e científico. Os programas de Matemática de 1942 apresentaram algumas diferenças em relação aos de 1931. Não mais se insistia em que os três assuntos (Aritmética, Álgebra e Geometria), fossem abordados em cada uma das séries do ginasial. Entretanto, a Geometria era abordada nas quatro