PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO LINHA DE PESQUISA PRODUÇÃO E ORGANIZAÇÃO DA INFORMAÇÃO GABRIELI APARECIDA DA FONSECA IDENTIFICAÇÃO DOCUMENTAL EM ARQUIVOS PESSOAIS: POSSIBILIDADES, CONVERGÊNCIAS E DESAFIOS Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico Marília 2017 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO LINHA DE PESQUISA PRODUÇÃO E ORGANIZAÇÃO DA INFORMAÇÃO GABRIELI APARECIDA DA FONSECA IDENTIFICAÇÃO DOCUMENTAL EM ARQUIVOS PESSOAIS: POSSIBILIDADES, CONVERGÊNCIAS E DESAFIOS Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Informação da Faculdade de Filosofia e Ciências da UNESP - Universidade Estadual Paulista - como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Ciência da Informação. Linha de Pesquisa: Produção e Organização da Informação (Pós- graduação em Ciência da Informação -FFC/UNESP-Marília) Orientador (a): Profa. Dra. Sonia Maria Troitiño Rodriguez Marília 2017 Fonseca, Gabrieli Aparecida da. F676i Identificação documental em arquivos pessoais: possibilidades, convergências e desafios / Gabrieli Aparecida da Fonseca – Marília, 2017. 121 f. ; 30 cm. Orientador: Sônia Maria Troitiño Rodriguez. Dissertação (Mestre em Ciência da Informação) – Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Filosofia e Ciências, 2017. Bibliografia: f. 102-111 1. Arquivos. 2. Diplomática. 3. Arquivos pessoais. 4. Documentos. I. Título. CDD 025.4 GABRIELI APARECIDA DA FONSECA IDENTIFICAÇÃO DOCUMENTAL EM ARQUIVOS PESSOAIS: POSSIBILIDADES, CONVERGÊNCIAS E DESAFIOS BANCA EXAMINADORA _____________________________________________________ Prof.ª Dra. Sonia Maria Troitiño Rodriguez (Orientadora) UNESP _____________________________________________________ Prof.ª Dra. Telma Campanha de Carvalho Madio (Membro da banca) UNESP _____________________________________________________ Prof.ª Dra. Ana Célia Rodrigues (Membro da banca) UFF _____________________________________________________ Prof.ª Dra. Maria Leandra Bizello (Suplente da banca) UNESP _____________________________________________________ Prof.ª Dra Clarissa Moreira dos Santos Schmidt (Suplente da banca) UFF Marília, 09 de maio de 2017. Dedico este trabalho aos meus pais, Izia e Aparecido AGRADECIMENTOS Agradeço aos meus pais, por todo apoio e carinho, por tudo que sou. Pois sem eles nada seria possível. Agradeço a todos meus familiares e pessoas queridas que torceram por mim. À minha orientadora, professora Dra. Sonia Maria Troitiño Rodriguez por toda dedicação e atenção. Às professoras Dras. Telma Campanha de Carvalho Madio e Ana Célia Rodrigues, por terem aceitado o convite para fazer parte da banca, bem como pelos ótimos apontamentos feitos durante o exame de qualificação que foram essenciais para o desenvolvimento deste trabalho. Aos meus amigos Rutiellen Costa da Silva Pires e Leandro Lopes Ferreira, pelo apoio e amizade. Espero que continuemos sempre assim. Aos colegas do Programa de Pós-graduação em Ciência da Informação pelo companheirismo e reflexões. À minha amiga Francisnaira Cristina Ravazi, pela amizade sincera mesmo com a distância. Às professoras Dras. Marta Lígia Pomim Valentim, Maria José Vicentini Jorente, Dunia Llanes Padrón, Maria Leandra Bizello e ao professor Dr. José Augusto Chaves Guimarães pelas reflexões proporcionadas por suas aulas. À Wahuane pelas dicas de livros e por ter-me feito refletir a respeito do conceito de cultura. Aos alunos da turma XI de Arquivologia, pela excelente acolhida durante meu estágio de docência. Ao CNPQ - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e tecnológico por ter contribuído com essa pesquisa. Muito obrigada! “Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa.” Grande sertão veredas, João Guimarães Rosa RESUMO A presente dissertação trata a respeito da Identificação Documental em arquivos pessoais, através da análise das especificidades existentes nesse tipo de arquivo, especialmente no que se refere à produção documental e recuperação do princípio de proveniência. Assim, buscou-se traçar um breve histórico, conceituação e análise da Identificação Documental na literatura nacional e internacional, tomando como base as pesquisas de Brasil e Espanha. Ressalta-se também a relação existente entre a Identificação Documental e os princípios, funções e métodos da Arquivologia. Voltando-se especificamente para o caso dos arquivos pessoais, que apresentam um notável diferencial em sua composição. Dessa forma, propõe-se refletir sobre questões que envolvem os arquivos pessoais. Trata-se, de uma pesquisa teórica que tem como objeto os arquivos pessoais, seguindo a abordagem do Total Archives, a qual compreende a integração entre os arquivos e tratamento documental. Torna-se, assim, possível perceber o quanto a teoria é importante no desenvolvimento da prática, considerando que diferenças de concepção podem ocasionar efeitos concretos divergentes. Nesse sentido, espera-se que a análise crítica, embasada em fundamentação teórica dos diferentes entendimentos de Identificação Documental e da constituição dos arquivos pessoais, possa vir a contribuir, para a evolução da Arquivologia enquanto ciência, inclusive por tornar possível maior concretude à aplicação prática dos fazeres arquivísticos. Palavras-chaves: Identificação Documental; Arquivologia; Arquivos Pessoais; Tipologia Documental; Procedimentos Arquivísticos; ABSTRACT The present dissertation deals with Archival Identification in Personal Papers, through the analysis of the specific situation in this file type, especially with regard to documentary production and recovery of principle of provenance. Thus, we seek to trace a brief history, conceptualization and analysis of Archival Identification indicated in the national and international literature, based on the research of Brazil and Spain. Also points up the relationship between the Archival Identification and the principles, functions and methods of Archival Science. Turning specifically to the case of personal papers, which have a remarkable difference in their composition. Thus, it is proposed to reflect the issues surrounding personal papers. It is thus a theoretical research that has as object the personal papers, following the Total Archives approach, which comprises the integration of the files and documentary treatment. It is thus possible to see how the theory is important in the development of practice, considering that design differences can result in different specific effects. In this sense, it is expected that the critical analysis grounded in theoretical basis of different understandings of Archival Identification and establishment of the Personal Papers can potentially contribute to the development of Archival science while science, including by making possible greater concreteness to practical application of archival doings. Keywords: Archival Identification; Archival Science; Personal Papers; Archival Diplomatics; Archival Procedures; LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS CONARQ – Conselho Nacional de Arquivos FAPESP - Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo GIFE - Grupo de Identificação de Fundos Externos GIFI - Grupo de Identificação de Fundos Internos ICA-AtoM - International Council Archives - Access to Memory INTERPARES – International Research on Permanent Authentic Records in Eletronic Systems SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO .......................................................................................... 10 2 RELAÇÂO ENTRE ARQUIVOS E ARQUIVOLOGIA: PRINCÍPIOS, FUNÇÕES E FERRAMENTAS ........................................................................ 16 2.1Formação de Arquivos: o processo de produção documental e gestão de documentos ...................................................................................................... 16 2.2 Princípios da Arquivologia: a importância do princípio de proveniência ..... 18 2.3 O papel das funções arquivísticas .............................................................. 22 2.4 O uso de normas e tecnologia na execução de funções arquivísticas ....... 28 3 IDENTIFICAÇÃO DOCUMENTAL: TRAJETÓRIA, TEORIA E QUESTIONAMENTOS ..................................................................................... 33 3.1 O espaço da Identificação Documental na Arquivologia ............................ 33 3.2 Identificação Documental no cenário nacional e internacional ................... 35 3.3 Identificação Documental e as questões que envolvem a produção documental ....................................................................................................... 41 4 O LEGADO DO MÉTODO DIPLOMÁTICO À IDENTIFICAÇÃO DOCUMENTAL ................................................................................................ 46 4.1 Diplomática e Documento: da Idade Média a Contemporaneidade ........... 46 4.2 Aspectos de tipologia documental e produção documental na atualidade: novos desafios para a Diplomática ................................................................... 56 4.3 Documentos de arquivo na contemporaneidade: relações entre Diplomática e Identificação Documental .............................................................................. 61 5 RELAÇÕES ENTRE A IDENTIFICAÇÃO DOCUMENTAL E A COMPREENSÃO DOS ARQUIVOS PESSOAIS ............................................. 66 5.1Arquivos pessoais: limites e convergências entre público e privado ........... 66 5.2Constituição de acervos pessoais: entre a espontaneidade e a construção.........................................................................................................74 4 5.3 O dilema dos tipos documentais em arquivos pessoais ............................. 87 5.4 Aspectos da Identificação Documental em arquivos pessoais ................... 95 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................... 98 REFERÊNCIAS .............................................................................................. 102 ANEXO I ........................................................................................................ 112 10 1 INTRODUÇÃO Este estudo se volta para a temática da Identificação Documental em arquivos pessoais a fim de elucidar tanto a importância dos estudos de Identificação Documental quanto de arquivos pessoais, demonstrando como ambos campos de estudo podem se influenciar mutuamente. Trata-se de continuidade do trabalho de Iniciação Científica intitulado “A contribuição da Identificação Documental em Arquivos Pessoais: um estudo de caso no Instituto Fernando Henrique Cardoso”, auxiliada pela FAPESP. O referido trabalho caracterizou-se como uma revisão de literatura e verificação prática da metodologia de Identificação Documental sobre acervos privados, que se valeu de um estudo de caso no Instituto Fernando Henrique Cardoso e analisou como os conceitos de Identificação Documental e de arquivos pessoais presentes na literatura da área influenciam no trabalho por eles realizado, refletindo sobre o papel da Identificação Documental para a definição e organização de arquivos pessoais. Dessa forma, a pesquisa aqui proposta trata-se de uma extensão da desenvolvida anteriormente, no sentido de que busca aprofundar o estudo teórico acerca da temática de Identificação Documental em arquivos pessoais. São muitos os pormenores que envolvem o documento de arquivo. A proveniência aliada à organicidade, certamente é um dos aspectos mais importantes em relação ao documento arquivístico, sendo um dos fatores determinantes na organização dos mesmos. Segundo Ana Maria de Almeida Camargo (2007, p.48), o arquivo deve ser entendido como uma unidade de amplo espectro, na qual os documentos necessitam receber tratamento específico em função de sua produção, sob o risco de perda do sentido que carregam. Pretende-se problematizar as relações estabelecidas entre a Identificação Documental, enquanto, simultaneamente, área de estudo e metodologia de trabalho, com os princípios e funções arquivísticas e com o método diplomático. Desse modo, busca-se refletir sobre as diversas questões que envolvem um arquivo pessoal e as distintas relações que um documento 11 pode estabelecer tanto com o conjunto documental ao qual pertence quanto com outros conjuntos, de acordo com o contexto no qual está inserido. Busca- se, dessa forma, esclarecer o papel da Identificação Documental em arquivos pessoais. No que diz respeito a procedimentos especializados, a Arquivologia tem princípios e propostas de organização da informação que a distingue de outras disciplinas e caracteriza seu objeto. Heloísa Bellotto (2002a) apresenta quatro objetos para a Arquivologia, sendo um deles intelectual e três físicos. O objeto intelectual é a informação. Já os físicos, são em ordem de importância: conjuntos documentais, documento de arquivo e as entidades arquivísticas. Nesse sentido, a Arquivologia necessita de procedimentos, que evidenciem de que maneira se dá a relação entre o documento de arquivo e sua proveniência, entre outros aspectos correlatos. Dentre as atividades que podem contribuir para isso, a Identificação Documental surge como uma alternativa científica metodológica importante. A Identificação Documental volta-se para um profundo estudo da gênese documental, na qual o órgão produtor e o tipo documental são protagonistas. Ou seja, possibilita a reconstrução do contexto de produção dos documentos, o que vem a colaborar com o desenvolvimento de vários procedimentos arquivísticos. Conforme Ana Célia Rodrigues (2012) as primeiras pesquisas sobre Identificação Documental surgiram na década de 80, tendo sido divulgadas no âmbito do Grupo Ibero‐Americano de Tratamento de Arquivos Administrativos - o qual era composto por Espanha, Portugal, Brasil, México e Colômbia - nas Primeiras Jornadas de Metodologia para a Identificação e Avaliação de Fundos Documentais das Administrações Públicas, realizadas em Madri em 1991. Ainda segundo a mesma, a formulação do conceito de Identificação é mérito de Maria Luísa Conde Villaverde, que participava da jornada citada, de modo que posteriormente, a temática recebe forte influência e contribuição de outros pesquisadores espanhóis. Entretanto, por se tratar de um estudo recente, a noção de Identificação Documental não possui um consenso na área em relação à sua definição e sistematização de sua prática, sendo abordada de modo plural, conforme a corrente de pensamento arquivístico. No Brasil, a 12 temática fora trazida por José Maria Jardim, que a levou ao Arquivo Nacional, onde trabalhava no período, e onde foram desenvolvidos os Grupos de Identificação de Fundos Internos e de Fundos Externos (GIFI e GIFE), a fim de solucionar problemas dos documentos do Ministério da Agricultura. De modo que a partir de então se desenvolveram as pesquisas e aplicações práticas da Identificação Documental no Brasil. Contudo, ainda é uma temática pouco discutida no Brasil e apesar de se basear nos conceitos apresentados pelos pesquisadores espanhóis, seu desenvolvimento no Brasil se difere do ocorrido na Espanha em alguns aspectos, começando pela questão terminológica, já que na Espanha os pesquisadores se referem à temática apenas como Identificação, e no Brasil essa nomenclatura varia de Identificação, Identificação Documental, Identificação Arquivística.1 Tais pormenores são muito sutis, mas podem gerar inconsistência, o que costuma ocasionar efeitos práticos divergentes. A corrente espanhola compreende a Identificação Documental como um processo que reúne o estudo do órgão produtor/acumulador da documentação e de seus registros - representados pelos tipos documentais -, pois entendem que ambos estão relacionados com a proveniência. Já a corrente brasileira, considera as colocações da corrente espanhola. Porém, compreende a Identificação Documental como muito mais próxima da Tipologia Documental do que a primeira. Outro ponto que diferencia ambas correntes é a forma como a Identificação Documental é vista no âmbito da teoria arquivística, posto que os estudos brasileiros a colocam ora como método ora como função arquivística. Deve-se ter cautela ao tratar das relações entre a Identificação Documental e as demais etapas do tratamento arquivístico, especialmente para evitar confusões teóricas que levam a evidenciar aspectos diferentes da documentação. 1 Nessa dissertação, adotou-se o termo Identificação Documental pelo fato de este ser mais utilizado no âmbito da UNESP-Marília. 13 Apenas poderemos chegar a um consenso entre teoria e prática da Identificação Documental através da compreensão de seus fundamentos, além do estudo ponderado sobre os efeitos aplicados. Fatores como a crescente diversidade de tipos documentais, formas, suportes e contextos de produção, tornam a Identificação Documental cada vez mais aliada para uma melhor organização e valorização dos arquivos, especialmente os pessoais, através do estudo do produtor e Tipologia Documental, considerando-se que nos arquivos pessoais há tendência a conclusões equivocadas e que podem induzir a erros, pois nesses casos a organicidade costuma se estabelecer na maioria das vezes por acumulação. As características dos documentos são determinantes da unidade de informação a qual estes devem integrar. Elas referem-se ao âmbito em que a função do registro se cumpre, sua representatividade e importância, entre outros fatores que podem ser evidenciados por meio da aplicação prática da Identificação Documental. Enfim, com a intenção de fundamentar a pesquisa aqui exposta, optou- se por realizar um levantamento histórico e conceitual sobre a Identificação Documental, analisando sua aplicabilidade em arquivos pessoais a partir da abordagem do Total Archives, que segundo Terry Cook (1998, p. 142-143) ―[...] reflete uma visão mais ampla dos arquivos, sancionada pela sociedade como um todo e reflexo dela, em vez de uma visão conformada a priori, ou por poderosos grupos de interesse dos usuários, ou pelo Estado. [...]‖. A fim de amparar tal análise, buscou-se ressaltar o quanto a Identificação Documental pode contribuir para a organização de arquivos pessoais, visto que tais arquivos possuem grande variedade de tipos documentais, suportes, formatos, gêneros... O que muitas vezes se configura em casos de difícil resolução. Buscou-se também explorar as particularidades dos arquivos pessoais, como diferenças entre natureza e caráter dos documentos, pois nesse tipo de arquivo essa distinção costuma ser mais complexa de ser realizada, uma vez que aborda os dilemas que envolvem os documentos públicos presentes nos 14 arquivos pessoais, entre outras coisas, como os diferenciais da produção e acumulação de documentos. Mediante o exposto a respeito do desenvolvimento desta pesquisa, definiu-se como objetivo geral analisar e refletir de que maneira os estudos sobre Identificação Documental se inserem na Arquivologia, posto que surgem muito após o desenvolvimento de teorias e fazeres que se caracterizam como núcleo tradicional da Arquivologia. Dessa forma, o objetivo geral volta-se para a Identificação Documental no âmbito dos arquivos pessoais. Os objetivos específicos foram: 1. Rever a teoria a respeito de Identificação Documental na literatura nacional e internacional, de modo a averiguar quais os aspectos divergentes e convergentes entre si; 2. Analisar a perspectiva de crescimento da Identificação Documental, tanto em teoria quanto em prática no meio arquivístico; 3. Refletir a relação existente entre o método Diplomático e a Identificação Documental apresentando como a Diplomática pode contribuir tanto para o desenvolvimento teórico quanto prático da Identificação Documental; 4. Refletir as relações entre Identificação Documental, princípios e funções arquivísticas; 5. Investigar as particularidades da Identificação Documental em arquivos pessoais, em razão de tais acervos serem caracterizados pela complexidade de suas relações, o que pode interferir na produção/acumulação de documentos. Assim, esta pesquisa se caracteriza como bibliográfica explicativa. De modo que apresenta revisão e reflexão da literatura da área a respeito dos conceitos de Identificação Documental e Arquivos Pessoais a partir da abordagem do conceito Total Archives. Com o intuito de retratar todos os aspectos abordados pela proposta, este trabalho segue estruturado em cinco capítulos, além da introdução, divididos do seguinte modo: 15 O segundo capítulo intitulado “Relação entre arquivos e Arquivologia: princípios, funções e ferramentas” visa apresentar os diversos princípios e funções arquivísticas, com a finalidade de analisar quais as ferramentas que melhor viabilizam e potencializam a aplicação dos fazeres arquivísticos. O terceiro capítulo, intitulado “Identificação Documental: trajetória, teoria e questionamentos”, busca analisar a Identificação Documental no âmbito internacional, assim como seus desdobramentos na teoria e práxis arquivística. Apresenta-se um breve histórico da construção e exploração das especificidades de duas das principais vertentes de pesquisa a respeito da Identificação Documental - brasileira e espanhola. Desse modo, este capítulo se propõe tanto a pontuar o papel da Identificação Documental na Arquivologia, quanto apontar as perspectivas para seu desenvolvimento. O quarto capítulo, intitulado “O legado do método Diplomático à Identificação Documental”, visa por meio da análise histórica do método diplomático, refletir sua relação com a Identificação Documental. Ou seja, apresentar de que maneira a Diplomática contribuiu para o desenvolvimento teórico e prático da Identificação Documental. O quinto capítulo, intitulado ―Relações entre a Identificação Documental e a compreensão dos arquivos pessoais” ressalta as especificidades dos arquivos pessoais relativas a tipo documental, suporte, formato e gênero. E evidencia as diferenças entre natureza e caráter dos documentos, coleção e arquivo pessoal. Destaca-se a contribuição da Identificação Documental para o reconhecimento dos conjuntos pessoais em seus devidos contextos, por meio da explicitação da proveniência. Nas Considerações Finais, sexto capítulo, apresenta-se uma síntese dos resultados apresentados ao longo deste trabalho, apontando a partir da comparação entre a teoria estudada e a realidade encontrada em diversos arquivos, em quais aspectos a Identificação Documental contribui para a organização de arquivos pessoais, e quais as suas especificidades no âmbito desses arquivos. 16 2 RELAÇÂO ENTRE ARQUIVOS E ARQUIVOLOGIA: PRINCÍPIOS, FUNÇÕES E FERRAMENTAS 2.1 Formação de Arquivos: o processo de produção documental e gestão de documentos A produção de documentos arquivísticos enquanto atividade voltada para o funcionamento das instituições e da vida em sociedade em geral, estreita-se com a burocracia, variando conforme a jurisdição e o âmbito onde sua ação se concretiza – se público ou privado. Para Márcia Pazin: Entre as dimensões apresentadas por Max Weber para definir a organização burocrática, uma delas diz respeito diretamente à produção documental da administração. Trata-se do princípio da formalização. Para ele, todas as atividades da organização devem ser formuladas em documentos oficiais, tanto do ponto de vista da operação global da organização – em estatutos, regimentos, regulamentos – quanto das rotinas operacionais – nos procedimentos, por exemplo. [...] (PAZIN, 2011, p. 74). A produção documental é base administrativa e jurídica, pois se refere ao processo de gênese documental – origem e constituição de documentos. A gênese documental corresponde à junção da actio e conscriptio. De acordo com Bellotto (2002b) actio e conscriptio são os elementos que constituem o documento, sendo que actio corresponde ao conteúdo do mesmo e conscriptio a forma física, conforme será abordado no capítulo 4. A produção documental irá variar conforme a cultura local e o sistema jurídico correspondente ao âmbito no qual o produtor está vinculado. Cultura e sistema jurídico são intimamente relacionados. Pois a cultura influencia o sistema jurídico, e este irá reger normas e fundamentos essenciais à produção documental, sobretudo em âmbito burocrático. Assim, justificam-se diferenças ocorridas na produção documental ao redor do mundo, manifestadas em diversos aspectos como variedades de tipos documentais e variações na estrutura dos mesmos, quantidade de documentos produzidos para o cumprimento de uma mesma função, fluidez do fluxo, trâmite, etc. 17 To dream of an extension in space and time for the further development of diplomatics is not the least seductive of its considerations. This endeavor ought to distinguish what is and what is no longer exportable, taking into consideration the place of the written word in a given society. Therein rests, without a doubt, the secret of the brilliant break-throughs of archivistique and diplomatics, at newer junctures, in the studies of aniquity, in both the Near East and the ―classical‖ understanding of antiquity, and also in the older but no less successful introduction, with arms and baggage, of medieval French diplomatics into a Japanese domain. These societies produce, in effect, a documentation which is voluminous enough to authorize comparisons and serializations, and rare enough so that each document possesses a potential for multiple dimensions of information (GUYOTJEANNIN,1996, p.420, grifos do autor).2 Dessa forma, quando a produção documental não condiz com a realidade cultural e consequentemente jurídica de seu meio, há um embate capaz de levar a administração a ineficácia e ineficiência, sem citar a questão de abrir espaço a fraudes documentais. É no âmbito burocrático que a maioria dos documentos é produzida, pois ainda que este represente uma realidade comumente atrelada à administração pública, se faz presente em instituições privadas. A burocracia que muitas vezes é compreendida como sinônimo de retrocesso, lentidão dos processos administrativos públicos, é na verdade um padrão com rigor necessário. Weber, precursor nos estudos sobre burocracia, afirma que: A superioridade puramente técnica da organização burocrática foi sempre a razão decisiva do seu progresso com relação a toda outra forma de organização. O mecanismo burocrático é 2 ―Sonhar com uma extensão no espaço e no tempo para o desenvolvimento da diplomática não é a menos sedutora de suas considerações. Este esforço deve distinguir o que é e o que não é mais exportável, levando em consideração o lugar da palavra escrita em uma determinada sociedade. Nela reside, sem dúvida, o segredo dos brilhantes avanços da arquivística e da diplomática, nos mais recentes encontros, nos estudos da antiguidade, em ambos, tanto no Oriente Próximo quanto na compreensão "clássica" de antiguidade, e também na velha mas não menos bem sucedida, introdução com braços e bagagem, da diplomatica Francesa medieval em domínio Japonês. Essas sociedades produzem, de fato, uma documentação que é suficientemente volumosa para autorizar comparações e serializações, e rara o suficiente para que cada documento possua um potencial para múltiplas dimensões de informação‖ (GUYOTJEANNIN, 1996, p.420, tradução nossa). 18 para as demais organizações como a máquina o é para os modos de produção não mecanizados. Precisão, velocidade, certeza, conhecimento dos arquivos, continuidade, direção, subordinação estrita, redução de desacordos e de custos materiais e pessoais são qualidades que, na administração burocrática pura, e fundamentalmente na sua forma monocrática, atingem o seu nível ótimo. [...] (WEBER, s/d, p. 37-38). Contudo, quando não trabalhada da forma devida, a burocracia pode apresentar excessos desnecessários que levam os trâmites e fluxos documentais ao retrocesso, prejudicando a produção documental. Uma produção documental enxuta é um dos principais requisitos para uma boa gestão documental, que ―[...] atua desde a produção até a guarda ou eliminação do documento. Nessa perspectiva, o arquivista tem grande responsabilidade em relação aos processos administrativos de uma organização.‖ (VALENTIM, 2012, p.12). Disso, se pode entender que a presença do profissional arquivista no âmbito administrativo é de suma importância para evitar incorporações indevidas, pois apesar dos documentos públicos possuírem influência direta com o sistema jurídico e burocrático no qual estão inseridos, nem sempre fica clara essa relação. Até mesmo os documentos pessoais estão envolvidos com administração pública, pois além do sistema jurídico ser válido para todos, existem casos em que a produção de efeito de um documento pode ser diferente de seu contexto de produção. Ou seja, por vezes a proveniência pode não corresponder à procedência necessariamente, tema que nesta dissertação será abordado no capítulo 5. 2.2 Princípios da Arquivologia: a importância do princípio de proveniência A Arquivologia tem sua teoria e prática respaldadas por uma série de princípios que garantem sua eficácia e a distinguem de outras ciências, tal como a Biblioteconomia e a Museologia. 19 Para Heloísa Liberalli Bellotto, o rol de princípios da Arquivologia é composto por: 1. Princípio da proveniência: fixa a identidade do documento relativamente a seu produtor. [...] Arquivos originários de uma instituição ou de uma pessoa devem manter a individualidade, dentro de seu contexto orgânico de produção, não devendo ser mesclados, nos arquivos, a outros de origem distinta. 2. Princípio da organicidade: [...] Organicidade é a qualidade segundo a qual os arquivos espelham a estrutura, as funções e as atividades da entidade produtora/acumuladora em suas relações internas e externas. 3. Princípio da unicidade: não obstante sua forma, gênero, tipo ou suporte, os documentos de arquivo conservam seu caráter único, em função de seu contexto de produção. 4. Princípio da indivisibilidade ou integridade arquivística: os fundos de arquivo devem ser preservados sem dispersão, mutilação, alienação, destruição não-autorizada ou adição indevida. Esse princípio deriva do princípio da proveniência. 5. Princípio da cumulatividade: o arquivo é uma formação progressiva, natural e orgânica. É a sedimentação, de que fala Lodolini (BELLOTTO, 2004, p.88). Alguns autores consideram ainda a existência de outros princípios. Contudo, o princípio de proveniência se destaca dos demais e representa a base fundamental da Arquivologia. Segundo Carol Couture e Jean-Yves Rosseau: Há em arquivística três princípios que constituem o fundamento da disciplina. Trata-se do principio da territorialidade, do principio do respeito pelos fundos ou principio da proveniência e da abordagem das três idades. Utilizados desde o final do século XIX e sobretudo no século XX, constituem a própria base da arquivística moderna ( COUTURE; ROUSSEAU,1998, p.52). Com o desenvolvimento da Arquivologia houve o surgimento de teorias fundamentais, tal como a teoria das três idades, do ciclo vital e a do records continnum, que embora discorram a respeito de uma mesma temática se diferem, dado que se desenvolveram em regiões distintas e de acordo com a realidade vivenciada pelas mesmas. Como destacou Lopes (1998, p.62) ―Na 20 realidade, a arquivística, enquanto disciplina, conheceu um desenvolvimento acidentado, mais ligado às tradições intelectuais e práticas de cada país do que ao estabelecimento de teorias e princípios universais [...]‖. Porém o princípio de proveniência, apesar de ter se desenvolvido de forma distinta em diferentes países, apresentando uma abordagem um pouco diferente de acordo com a corrente arquivística, permaneceu com seu cerne intacto. Apesar de o histórico do princípio de proveniência ser um tanto quanto incerto e polêmico, conforme Ferreira (2012, p.19) este ―[...] sedimenta-se com o propósito de reunir os documentos por fundo de arquivo [...] sem que haja confusões com outros documentos que advêm de diferentes estabelecimentos, indivíduos, corporações ou famílias.‖ Renato Tarciso Barbosa de Sousa sugere que seu propósito é verificar o criador do fundo, o que é mais complexo do que parece ser: A adoção do princípio da proveniência nos encaminha para a necessidade de definição do sujeito criador do fundo de arquivo: quem é o criador do fundo de arquivo? Esse questionamento parece simples e, para alguns, descabido, que nasce, cresce, se modifica, se extingue ou se transforma, aquela pergunta se torna tempestiva (SOUSA, 2008, p.123). A aplicação do princípio de proveniência de fato é mais complexa do que parece ser, de modo que Michel Duchein atenta para a importância de não se confundir os documentos pertencentes a uma entidade com os documentos que se refiram a ela: [...] reunir os documentos por fundos, isto é, reunir todos os títulos (todos os documentos) provindos de uma corporação, instituição, família ou indivíduo, e dispor em determinada ordem os diferentes fundos. Documentos que apenas se refiram a uma instituição, corporação ou família não devem ser confundidos com o fundo dessa instituição, dessa corporação ou dessa família (DUCHEIN, 1986, p.16). Complementando tal pensamento, temos a divisão do princípio de proveniência em dois graus, que se difundiu em função das adaptações que o 21 princípio sofrera com sua difusão por diferentes países. Essa divisão resultou em um segundo princípio, o princípio da ordem original, que para alguns teóricos está atrelado ao princípio de proveniência como seu segundo grau: [...] dísponia que los documentos de cada fondo debían mantenerse en el orden que les hubiera dado la oficina de origen, en lugar de hacerlo por asuntos o materiais. Así nace el denominado principio de respeto al orden original de los documentos, que indica el necesario respeto al orden original de los documentos (CRUZ MUNDET, 2003, p.231).3 Entretanto, é o princípio de ordem original que vem a ressaltar a importância e estreitar as relações entre a proveniência e a classificação, uma vez que esclarece a estrutura dos fundos arquivísticos: ―El principio de procedencia o de respecto al origen va a determinar la clara delimitación del fondo, como agrupación común y más general de los documentos de archivo de cualquier institución o persona, fuera de cuyo modelo solo existirá la artificiosidad de las colecciones. Determinará a su vez la estructuración jerárquica de cada fondo, en la que luego nos detendremos. Nos obligará, en consecuencia, a mantener la unidad e independencia institucional de cada fondo y a buscar su integridad intelectual.‖ (HEREDIA HERRERA, 2003, p.6).4 Os princípios arquivísticos são a base tanto do saber quanto do fazer arquivístico, e as variações existentes em função das correntes de pensamento arquivísticas apenas servem para ressaltar o quanto tais princípios são fortes, 3 ―[...] dispunha que os documentos de cada fundo deveriam ser mantidos na ordem em que lhes foi dada pelo produtor, em invés de ser feita por assunto ou matéria. Assim nasceu o chamado princípio do respeito pela ordem original de documentos, indicando a necessidade de respeitar a ordem original dos documentos.‖ (CRUZ MUNDET, 2003, p.231, tradução nossa). 4 ―O princípio de proveniência ou de respeito à origem vai determinar a real delimitação do fundo, como agrupamento comum e mais geral de documentos de arquivo de qualquer instituição ou pessoa, fora desse modelo só existirá a artificialidade das coleções. Determinará a estrutura hierárquica de cada fundo, na qual nos debruçaremos em breve. Nos obrigará, em consequencia, a mantermos a unidade e independência institucional de cada fundo e a buscar sua integridade intelectual.‖ (HEREDIA HERRERA, 2003, p.6, tradução nossa). 22 pois apesar das particularidades que assumem em função da localidade, estes se mantem presentes em todas as correntes arquivísticas. 2.3 O papel das funções arquivísticas Como funções arquivísticas, temos as atividades essenciais à Arquivologia. São procedimentos que ao serem aplicados, possibilitam que os arquivos cumpram suas obrigações jurídicas e sociais. De acordo com Couture e Rosseau, as funções arquivísticas são: [...] criação, avaliação, aquisição, conservação, classificação, descrição e difusão dos arquivos. Repara-se que não se trata aqui de estabelecer distinções entre os arquivos correntes, os intermediários e os definitivos. Com efeito, as funções devem ser abordadas de modo a cobrir o conjunto dos princípios, dos métodos e das operações que se aplicam à organização e ao tratamento dos arquivos, independentemente da idade destes (ROUSSEAU; COUTURE,1998, p. 265) . As funções arquivísticas juntamente com os princípios arquivísticos, representam a base da Arquivologia. Aliás, são essas funções que viabilizam a aplicação dos princípios que as fundamentam. Enquanto procedimentos de tratamento da documentação arquivística, as funções são suscetíveis a mudanças decorrentes dos efeitos do tempo e espaço. Ou seja, estão sujeitas a variações de acordo com o sistema jurídico em questão, dado que os documentos são reflexo do ambiente no qual são produzidos. Além disso, as funções arquivísticas também apresentam especificidades de acordo com as diferentes correntes de pensamento - as quais também são influenciadas pelas necessidades do contexto no qual se inserem. Nesse sentido, a necessidade atual de se analisar e compreender o contexto dos documentos a fundo, implicou em diversas mudanças na configuração de tais funções. Inclusive, tornando-as cada vez mais próximas e colaborativas: 23 Como organismo o como institución, las funciones que cumple o ha de cumplir el archivo tienen una marcada proyección hacia afuera, de relación con organismos, instituciones o personas situadas fuera del mismo. Son todas aquellas que precisa realizar el Archivo como entidad enclavada en un conjunto de instituciones u organismos superiores e inferiores con los cuales ha de convivir y, por consiguiente, relacionarse. (TAMAYO, 1996, p.32).5 A fim de entender como tem ocorrido a colaboração entre as funções na atualidade, trataremos um pouco mais sobre cada uma das funções apontadas por Rosseau e Couture (1998), iniciando pela função de criação – ou como mais comumente é chamada, produção documental. A produção documental consiste na gênese documental, na consumação do registro (conscriptio) em razão da realização de funções e/ou atividades (actio) do cotidiano do ser humano. A respeito da constituição da actio e conscriptio, compreende-se que: La creación o establecimieno de una determinada situación jurídica, la modificación y aun la extinción de outra ya existente, es lo que venimos denominando, y en la ciência Diplomática se denomina, actio, se decir, la acción o actuación de la parte o partes interessadas em aquella creación, modificación o extinción. La constância por escrito de esa actuación de las partes recibe el nombre de conscriptio ( de conscribo, consignar por escrito). Esta conscriptio, repetimos, puede ser necesaria o voluntaria, según venga impuesta por la Ley o dependa unicamente del arbítrio y libre voluntad de las partes. Una y outra, actio y conscriptio, se generan con toda independência entre sí, de aqui que no sea conveniente considerar a la actio como fase previa o inicial del proceso de la génesis documental, sino simplemente como su antecedente necesario, sin el cual no puede tener sentido ni razón de ser ningún documento. Por consiguiente, habrá que estudiar por separado, por um lado, la actio y su proceso creador, y, por outro, la conscriptio como proceso y génesis del documento en 5 ―Como organismo ou instituição, as funções que o arquivista cumpre ou deve cumprir tem uma projeção acentuada para fora, de relações com órgãos, instituições ou pessoas fora do mesmo. São todas aquelas que executam o arquivo como uma entidade localizada em um conjunto de instituições ou organizações superiores e inferiores com as quais deve conviver, e por consequência, relacionar-se.‖ (TAMAYO, 1996, p.32, tradução nossa). 24 el cual se hace constar una actio outorgada. (TAMAYO, 1996, p. 63, grifos do autor).6 Apesar de todos os documentos de arquivo serem resultado de um processo de gênese documental, no entanto, nem todos serão adquiridos por meio de produção da entidade a qual correspondem. A acumulação costuma ser outra forma de entrada de documentos em fundo arquivístico, especialmente em arquivos pessoais, embora também faça parte da realidade dos arquivos públicos e institucionais em geral. Além dos trâmites documentais que determinam a produção/recebimento dos documentos, originando a questão de que nem todos os documentos de mesma proveniência terão sempre a mesma procedência, existe ainda a acumulação de documentos por meio de ressignificação de proveniência, o que intriga ainda mais os arquivistas. A ressignificação da proveniência de determinados documentos ocorre quando estes são integrados em um fundo diferente de seu fundo de origem, e acabam relacionando-se organicamente com os documentos do novo fundo. Diante das novas conexões estabelecidas, devolvê-los resultaria em um problema ainda maior, de modo que passam a assumir definitivamente a nova proveniência. Casos de ressignificação de proveniência costumam ocorrer em função de desvio de documentos, desmembramentos indevidos, etc. Conforme será melhor abordado ao final desta dissertação, no capítulo 5. 6 ―A criação ou estabelecimento de uma determinada situação jurídica, a modificação e mesmo a extinção de outra já existente, é o que estamos denominando, e na ciência Diplomatica é chamado, actio, ou seja, a ação ou atuação da parte ou partes interessadas naquela criação, modificação ou extinção. O registro escrito dessa atuação entre as partes é chamado conscriptio (de conscribo, consignar por escrito). Esta conscriptio, mais uma vez, pode ser necessária ou voluntária, esta é imposta por lei ou depende unicamente do arbítrio e livre vontade entre as partes. Uma e outra, actio e conscriptio, são geradas de forma completamente independente entre si, aqui não é conveniente considerar a actio como um processo preliminar ou inicial de gênese documental, mas simplesmente como seu antecedente necessário, sem a qual nenhum documento tem sentido ou razão. Portanto, devem ser estudadas separadamente, um lado, a actio e seu processo criador, e, outro, a conscriptio como processo e gênese do documento no qual consta uma actio outorgada.‖ (TAMAYO, 1996, p. 63, tradução nossa). 25 Há ainda outra forma de entrada de documentos em arquivo que não corresponde a tradicional, que varia da produção/acumulação de documentos. Trata-se de outra função arquivística, a de aquisição de acervo, conforme mencionou Rousseau e Couture (1998), muito comum ao caso de arquivos em fase permanente e a centros de documentação, que costumam agrupar diversos fundos documentais em conformidade com sua política institucional. A aquisição de documentos deve perpassar pela função de avaliação, uma vez que para serem adquiridos os documentos devem ter sua viabilidade comprovada pela instituição que os absorverá. A avaliação, por sua vez consiste na etapa do trabalho arquivístico que seleciona os documentos, direcionando-os para guarda permanente ou para eliminação. Tem por finalidade racionalizar o trabalho e garantir o espaço físico nos arquivos, sem que haja prejuízos em termos de conteúdo. Conforme Ieda Pimenta Bernardes: A função da avaliação de documentos é uma atividade de trabalho interdisciplinar que consiste em identificar valores para os documentos (imediato e mediato) e analisar seu ciclo de vida, com vistas a estabelecer prazos para sua guarda ou eliminação, contribuindo para a racionalização dos arquivos e eficiência administrativa, bem como para a preservação do patrimônio documental (BERNARDES, 1998, p. 14). Trata-se de uma das atividades principais da gestão documental, que tem como característica marcar o ciclo vital e prazos de guarda dos documentos por meio da tabela de temporalidade – produto de sua execução. Sobre a base que fundamenta a avaliação: Ressalte-se que o processo de avaliação nunca é feito analisando-se particularmente certos documentos, porque a peça documental, por si só, pouco representa se extraída do contexto no qual foi produzida, ou baseando-se nas unidades administrativas do órgão separadamente (BERNARDES, 1998, p. 18). Enfim, a avaliação tanto é um processo que se baseia na organicidade do conjunto documental, que se torna inviável sem a classificação documental como norte, pois esta é a responsável por trazer à tona tal organicidade juntamente da proveniência documental. Uma vez que ―o objetivo da classificação é, basicamente, dar visibilidade às funções e às atividades do 26 organismo produtor do arquivo, deixando claras as ligações entre os documentos.‖ (GONÇALVES, 1998, p.12). A classificação é uma atividade primordial da organização arquivística, e se baseia em seu princípio fundamental, o princípio de proveniência e organicidade. Sua estrutura é o reflexo das relações entre documentos de proveniência comum, ou seja, pertencentes ao mesmo fundo. Dessa forma, a classificação além de dialogar com as demais funções, norteia as funções de avaliação e descrição, que são posteriores a ela. Segundo Lopes, a descrição se inicia ainda na classificação: A classificação e a avaliação têm o claro objetivo de manter o controle sobre os acervos. Impedir que eles cresçam demais, ordená-los de modo a que se possa acessar as informações. Acredita-se que, dentro da perspectiva da arquivística integrada, a descrição começa no processo de classificação, continua na avaliação e se aprofunda nos instrumentos de busca mais específicos. Em todos os casos, o trabalho do arquivista é o de representar ideologicamente as informações contidas nos documentos. As operações de natureza intelectual são, sem exceção, de natureza descritiva. Portanto é difícil separar a descrição das duas outras atividades fundamentais da prática arquivística (LOPES, 2009, p. 312). A descrição arquivística é uma das atividades básicas de organização de um arquivo. Esta visa extrair, sintetizar e esquematizar as informações contidas nos documentos, de forma a torná-los acessíveis – tanto para a pesquisa interna quanto externa. Apesar da maior parte dos teóricos entenderem a descrição como uma tarefa restrita aos documentos de guarda permanente, e sua aplicação prática também se restringir a esse âmbito, tem se defendido que esta, se realizada ainda no momento da produção dos documentos pode contribuir para a melhoria da gestão documental, uma vez que proporcionará uma melhor recuperação dos documentos e acesso aos mesmos. Em relação a tal afirmação, Vanderlei Batista dos Santos argumenta: Comumente entendida como uma função relacionada à fase permanente, o que consideramos equivocado, a descrição é uma ação que perpassa todo o ciclo de vida do documento, devendo ter seus elementos adequados a cada uma das suas fases, à unidade documental a qual se refere (peça, dossiê, série etc., ou ainda, textual, imagético ou audiovisual) e às necessidades do usuário (produtor ou usuário externo) [...] (SANTOS, 2008, p. 180-181). 27 Entretanto, para que a realização da descrição ainda na fase corrente seja possível, é necessário que haja uma grande sintonia entre as funções, especialmente produção documental, classificação e avaliação. Isso se deve ao fato de ser tal relação que irá constituir a base para a forma como a descrição irá contribuir com as funções de difusão e conservação, posteriores a ela. No que se refere às características da descrição, Santos (2008) ressalta ainda que além de dever estar presente em todas as fases do documento, visando facilitar o acesso aos mesmos, esta deve possuir meios que permitam que seja realizada de forma a abranger todos os suportes, tipos e gêneros documentais. O que significa que para realizar uma boa descrição, o arquivista deve fugir do clichê de que documento de arquivo é apenas aquele escrito e em suporte de papel, e buscar munir-se de ferramentas que contemplem a diversidade documental. A respeito da difusão, Francisco José Aragão Pedroza Cunha (et al, 2015, p. 9) entende que o acesso aos documentos se deve à relevância das funções de avaliação, descrição e classificação a partir da realização da Identificação Documental. Atentando para a importância de tornar o trabalho arquivístico mais eficiente e eficaz, economizando tempo e esforços, deve-se destacar o quanto a Identificação Documental tem a contribuir para o desenvolvimento e união entre as funções arquivísticas. Uma vez que a realização da descrição e classificação mutuamente tende a contribuir para o desempenho de ambas, a aplicação da Identificação Documental na organização arquivística potencializa ainda mais este benefício, posto que a Identificação tende a antecipar a síntese do contexto e conteúdo necessários para a realização das demais tarefas. Conforme Marcia Pazin: A identificação documental, etapa prévia à classificação e à avaliação é o momento em que o profissional de arquivo toma contato pela primeira vez com corpus documental com o qual irá trabalhar durante o processo de organização arquivística. Essa etapa consiste em compreender a função dos documentos no momento de sua criação, a partir da análise do 28 contexto de produção documental e das funções exercidas pela entidade produtora (PAZIN, 2012, p.15). Com a contribuição da Identificação Documental, as funções arquivísticas tradicionais tornam-se capazes de obter o máximo de suas finalidades, e torna-se possível contextualizar a essência de cada documento individualmente e diante do todo no qual este se encontra inserido. Independentemente da corrente de pensamento seguida, a abordagem complexa, a qual é tratada por Morin (2007), aplicada a organização de arquivos sempre possibilitará o melhor dessas atividades. As funções arquivísticas, quando colocadas em diálogo, vislumbram características inerentes à complexidade: convergência, emergência, contexto, etc. E são exatamente esses elementos que tornam a informação ainda mais rica na atualidade, pois estabelecem um claro intercâmbio entre documentos de fundos, séries, e até mesmo entre instituições distintas. O que se torna possível por meio do uso de mecanismos que são fruto da globalização – normas de descrição e sistemas informáticos específicos – uma vez que estes possuem meios que facilitam a exploração do contexto e conteúdo dos documentos. Enfim, as funções arquivísticas devem estar em consonância umas com as outras, e para isso devem ser elaboradas de acordo para que atinjam seus objetivos, valendo-se de diversos coadjuvantes. 2.4 O uso de normas e tecnologia na execução de funções arquivísticas As funções arquivísticas em geral, são por si, tarefas complexas, uma vez que possuem pontos de intersecção e de seu resultado final emergem resultados paralelos, variáveis do contexto e conteúdo dos arquivos em questão. As mudanças decorrentes da atualidade potencializam os resultados das funções arquivísticas ao explorar a complexidade das mesmas por meio do uso da tecnologia. Louise Gagnon-Arguin (1998, p. 48) acredita que a disciplina arquivística desenvolveu-se em função das necessidades de cada época, mas apesar das mudanças ocorridas nos métodos de trabalho ainda encontra-se as mesmas preocupações funcionais. 29 Embora as funções arquivísticas tenham sofrido modificações em seus métodos de construção, o conceito que as define e revela seu propósito funcional é algo que transcende o tempo/espaço. Porém, com as mudanças trazidas com a globalização, as funções arquivísticas passam cada vez mais a ter a necessidade de aderir a ferramentas que acompanhem o desenvolvimento tecnológico e social. Pode- se citar o uso das mídias digitais, internet, e ferramentas em geral – como normas e padrões pré-estabelecidos- que viabilizem a execução das mesmas. O arquivo reflete influências do contexto social que está inserido. Atualizar-se de acordo com as necessidades e ritmo da sociedade faz com que a mesma cumpra com seus objetivos. Pois conforme Marion Beyea, a evidência dos documentos de arquivo deve ser preservada por meio dos processos seguidos no tratamento arquivístico: Arquivos são instituições singulares. Eles preservam documentos que possuem evidência. É dessa evidência que deriva grande parte de seu valor – para propósitos de responsabilidade, administração, cultura e história. Ao lidar com a evidência – não informação ou objetos, embora documentos arquivísticos sejam objetos ou contenham informação -, os arquivistas, ao contrário de outros profissionais do conhecimento, da informação ou de curadoria, devem, nos processos que seguem e nas metodologias que aplicam, assegurar-se de que os documentos arquivísticos, suportes dessa evidência, sejam, ao longo do tempo, mantidos em seus contextos, completos, originais e confiáveis (BEYEA, 2007, p. 32). É com vistas a assegurar a preservação dessa evidência, inerente aos documentos de arquivo que as normas voltadas para o tratamento arquivístico se fundamentam. Para garantir que o papel dos documentos seja alcançado, é preciso que haja padronização desde o seu surgimento até seu destino final, ou seja, que englobe todas as funções arquivísticas. Compreendendo tal necessidade, o Conselho Nacional de Arquivos-Conarq se ocupou de criar Câmaras Técnicas encarregadas dos estudos relativos à padronização de procedimentos técnicos: Instalado em 1994, o Conarq, por intermédio de seu plenário, deliberou sobre a constituição, dentre outros órgãos, de Câmaras Técnicas, de caráter permanente, com a função de 30 elaborar estudos, normas, procedimentos técnicos e administrativos necessários à implementação e consolidação da política nacional de arquivos (OLIVEIRA, 2007, p. 135). No entanto, as normas de arquivo não se limitam as câmaras técnicas do Conarq. O universo das normas arquivísticas é amplo, e abrange normas nacionais e internacionais, as quais abordam os mais diversos temas do meio arquivístico. Apesar do grande número de normas que envolvem as atividades de arquivo, existe ainda uma dificuldade no estabelecimento do aspirado padrão, talvez consequência do grande número delas. Mas segundo Michael Fox: Normalização é sobre consistência, não uniformidade. É sempre um desafio responder às necessidades de nossos clientes, mas nosso trabalho deve servi-los como eles desejam ser servidos (FOX, 2007, p. 30). Embora haja críticas a esse respeito, tanto o surgimento cada vez maior de normas, quanto o uso da tecnologia para a execução das mesmas, são responsáveis pela fundamentação das funções arquivísticas sob um novo viés, pois esses mecanismos tornam possível uma padronização do trabalho, o que traz a possibilidade de troca de informações entre os arquivos. Como disse Michael Fox (2007, p.29), as normas tornam o trabalho mais eficiente. Otro factor destacable ha sido el desarrollo de las tecnologías en los archivos. Lejos de anular prácticas y princípios caracterizadores de la archivística, la informática se ha dado respuesta a las exigencias de la disciplina. Sin embargo, pese a su adaptación, está obligando a utilizar patrones de trabajo similares. Formar parte de una red o trabajar con una aplicación informática utilizada por otros archivos, implica seguir unas reglas comunes de actuación (BONAL ZAZO, 2001, p. 22). 7 7 ―Outro fator importante tem sido o desenvolvimento das tecnologias nos arquivos. Longe de anular princípios e práticas que caracterizam a arquivística, a informática tem respondido às exigências da disciplina. No entanto, apesar da sua adaptação, está obrigando a utilizar padrões de trabalho similares. Formar parte de uma rede ou trabalhar com um aplicativo de software utilizado por outros arquivos, envolve seguir regras comuns de atuação.‖ (BONAL ZAZO, 2001, p. 22, tradução nossa). 31 Assim, mecanismos de sistemas voltados para a organização arquivística, como o ICA-AtoM8- comumente utilizado em arquivos permanentes -, possibilitam a troca de informações de sistemas descritivos entre instituições distintas ou até mesmo entre fundos distintos dentro de uma mesma instituição. Essa nova geração de instrumentos de pesquisa eletrônicos disponibilizados em sistemas que armazenam informações de forma estruturada e dinâmica, quando bem elaborados possibilitam ao usuário do arquivo usufruir diversas funcionalidades que facilitam e incrementam sua pesquisa, especialmente no que se refere às possibilidades de recuperação da informação (FLORES; HEDLUND, 2014, p. 89). Contudo, tanto o ICA-AtoM – enquanto software desenvolvido especialmente para a descrição arquivística – quanto o uso da tecnologia em geral para a descrição em arquivos, são meios pensados com objetivo de tornar possível a aplicação das normas de descrição, bem como do sistema multinível de descrição, de forma coerente, eficaz e eficiente. É importante destacar que a descrição é uma das funções com a maior variedade de normas a seu respeito – como ISAD-G, ISAAR-CPF, ISDF, ISDIAH, NOBRADE, etc. Em arquivos permanentes a descrição multinível, consiste em sintetizar todos os dados contidos nos instrumentos de pesquisa em uma única descrição, o que traz diversos benefícios, como a possibilidade de integração de dados. Dessa forma, tem substituído cada vez mais, a elaboração de instrumentos de pesquisa. De acordo com André Porto Ancona Lopez: O sistema multinível permite descrever unidades ou conjuntos documentais sem o risco de perda de sua relação orgânica com o fundo do qual faz parte, desde que sua classificação obedeça ao princípio da proveniência (LOPEZ, 2002, p.16). 8 Segundo (FLORES, HEDLUND, 2014, p. 92-93) ― O software ICA-AtoM é resultante de um projeto de mesmo nome. O projeto ICA-AtoM (International Council Archives – Access to Memory) teve seu início através de um relatório em 2003, da Comissão de Tecnologia da Informação do ICA, que estabelecia requisitos funcionais para um " Open Source Archival Resource Information System‖ (OSARIS) [...] O software ICA-AtoM é totalmente voltado ao ambiente web, com suporte a vários idiomas e se destina a auxiliar as atividades de descrição arquivística em conformidade com os padrões do ICA. Foi desenvolvido para ser utilizado em conjunto com outras ferramentas de código aberto: Apache, MySQL , Hypertext Preprocessor (PHP), Symfony e Qubit Toolkit .‖ 32 Como instrumentos de pesquisa, são compreendidos os diversos tipos de produtos elaborados na descrição documental com a finalidade de viabilizar a pesquisa, explicitando o conteúdo documental a partir dos diversos níveis hierárquicos de um arquivo. Tais níveis são: instituição, fundo, série, item documental. Dessa forma, cada um dos instrumentos de pesquisa – guia, inventário, catálogo e índice – corresponde a descrição de um nível diferente. Embora a hierarquização da descrição em níveis esteja presente tanto nos instrumentos de pesquisa quanto na descrição multinível, a descrição multinível está mais voltada para o anseio de representar a informação contida nos documentos da maneira mais fiel o possível. Isto se deve ao fato de a descrição multinível ser fruto da normalização, bem como do avanço tecnológico. Conforme sugere Adrian Cunningham (2007, p.81) ―cabe a nós, arquivistas, elaborar sistemas de descrição que reflitam as realidades dinâmicas e complexas do arquivamento.‖ Por outro lado, os avanços alcançados na C&T para a área de arquivos só representarão avanços se todos os procedimentos relativos à gestão de documentos em suporte convencional, como por exemplo a classificação e a avaliação de documentos, forem também utilizados para a produção, preservação e acesso aos documentos digitais (OLIVEIRA, 2007, p.145). De modo geral, o maior problema das confusões terminológicas que podem ocorrer nas normas de descrição é o comprometimento da recuperação da informação. Pois caso seja cometido um equívoco em uma atividade, este poderá resultar em um impacto negativo em atividade posterior, o que pode comprometer o resultado final do tratamento arquivístico. Contundo, o simples ato de representar está sujeito a imperfeições, pois a representação por mais clara, normalizada e benfeita, jamais será capaz de absorver todo contexto e conteúdo da realidade. Enfim, sempre existirá algo entre o documento original e sua reprodução. Pois os produtos das funções arquivísticas – tal como tabela de temporalidade, plano de classificação, descrição - não permitem que o real estado dos documentos seja verificado em sua totalidade e exatidão – eles não substituem os documentos originais. 33 3 IDENTIFICAÇÃO DOCUMENTAL: TRAJETÓRIA, TEORIA E QUESTIONAMENTOS 3.1 O espaço da Identificação Documental na Arquivologia A Arquivologia teve grande desenvolvimento após o final da II Guerra Mundial, devido ao crescimento da produção documental, desencadeado entre outros fatores pelo desenvolvimento tecnológico e crescimento da população. Esse período pós-guerra coincide também com o remodelamento das sociedades ocidentais a uma nova forma de vida e pensamento - o pós- modernismo. Porém, como coloca Jameson (2006, p.17), é preciso ressaltar que ―o conceito de pós-modernismo não é amplamente aceito nem sequer compreendido hoje.‖ Ou seja, o significado de pós-modernidade ainda possui diversas contradições. Da mesma forma, a compreensão da Arquivologia como uma ciência pós-moderna também não é um consenso. Contudo, sendo a Arquivologia uma ciência social aplicada, a qual tem a capacidade de se adaptar e acompanhar as necessidades impostas pelo tempo e espaço - principalmente as de cunho jurídico - uma vez considerado o fenômeno denominado como pós-modernidade, é possível dizer que este exerceu influência significativa perante a Arquivologia. Pois a pós- modernidade é marcada por mudanças sociais e culturais intensas, bem como o aumento cada vez maior na produção de documentos. De modo que é necessário para a Arquivologia manter-se sempre atualizada e desenvolvendo meios que garantam a eficácia e eficiência de seu trabalho – aplicação dos princípios e funções arquivísticas - independentemente de contextos socioculturais, ou seja, adaptando-se ao contexto da produção documental em questão. É nesse ponto que a Identificação Documental surge como uma grande aliada na organização de arquivos. Segundo Rodrigues (2011a), a Identificação Documental surgiu como uma solução para tratar grandes volumes de documentos desorganizados - 34 resultado do aumento na emissão de documentos - visando facilitar a realização das demais tarefas. De acordo com Concepción Mendo Carmona, o conceito de Identificação Documental e os estudos a seu respeito surgem após reuniões entre profissionais ibero-americanos: Tal definición se fue gestando en reuniones profesionales para referirse a una realidad constante en los archivos de países con una larga tradición administrativa y archivística, cuyos procedimientos administrativos y práctica diaria no se habían preocupado por la transferencia sistemática de sus fondos documentales; acumulando fondos indiscriminadamente en depósitos de archivo. El término empezó a utilizarse en los países del área ibero-americana para referirse a la metodología propia para el tratamiento que debería darse a los mismos. [...] Aunque, en España la consolidación de la metodología de la identificación se produce en 1991 en el seno de las Jornadas mencionadas, en realidad no se trata de una creación que parta de la nada. Su origen está en experiencias y proyectos anteriores como el Seguimiento y Control de Archivos Administrativos (S.C.A.A.) creado y diseñado por Mª Luisa Conde Villaverde para su aplicación en el Archivo General de la Administración. No se puede olvidar tampoco la labor que, desde el año 1981, había realizado el Grupo de Trabajo de Archiveros de Madrid, cuya metodología fue sintetizada por Vicenta Cortés. Las Jornadas, por tanto, supusieron el respaldo definitivo y la plataforma de lanzamiento de un término y un método de análisis que permite controlar los fondos documentales tanto en fase de creación, como cuando se encuentran acumulados en archivos centrales, intermedios e incluso históricos, si se diera el caso (MENDO CARMONA, 2004, 41-42).9 9 ―Esta definição foi se formando em reuniões profissionais para se referir a uma realidade constante nos arquivos de países com vasta tradição administrativa e de arquivamento, cujos procedimentos administrativos e prática diária não haviam se preocupado com a transferência sistemática dos seus acervos documentais; acumulando fundos indiscriminadamente em depósitos de arquivo. O termo foi usado pela primeira vez nos países ibero-americanos para se referir à metodologia própria para o tratamento a ser dado a casos similares. [...] Embora na Espanha a consolidação da metodologia de identificação tenha ocorrido em 1991 no âmbito da conferência mencionada, na realidade não é uma criação que começa do nada. Sua origem está na experiência e projetos anteriores, como o monitoramento e controle de processos administrativos (S.C.A.A.) criado e desenhado por Maria Luisa Conde Villaverde para aplicação no Arquivo Geral da Administração. Também não podemos esquecer o trabalho que desde 1981, havia sido realizado pelo Grupo de Trabalho de Arquivistas de Madrid, cuja metodologia foi sintetizada por Vicenta Cortés. Por conseguinte, a conferência assumiu a aprovação final e a plataforma de lançamento por um tempo e um método de análise que permite controlar os fundos documentais, tanto em progresso quanto aqueles que se encontram acumulados em arquivos centrais, intermediários e até mesmo históricos, se for o caso.‖ (MENDO CARMONA, 2004, 41-42, tradução nossa). 35 Dessa forma, o reconhecimento da Identificação Documental ocorreu em momento oportuno, posto que a emissão e acumulo de documentos crescia cada vez mais. Ao realizar análise minuciosa da gênese documental por meio do estudo dos tipos documentais e funções administrativas, a Identificação Documental extrai o contexto e conteúdo dos documentos que serão a base tanto da descrição quanto da classificação, de modo que a partir da Identificação Documental ambas tarefas podem ser realizadas concomitantemente, poupando tempo. Terry Cook acredita que: [...] convenções informais, práticas localizadas, expectativas sociais e normas culturais: estes formam o verdadeiro contexto dos arquivos. Estas são as muitas variáveis que os próprios arquivistas devem pesquisar a fim de entender o contexto real e mais profundo e, portanto, serem capazes de executar todas as funções arquivísticas embasados num entendimento muito melhor de contexto e, portanto, de significado de documentos. O conhecimento da pesquisa que os arquivistas adquirem sobre o contexto, será então transmitido para os pesquisadores, de modo que os documentos arquivísticos possam ser usados com mais sutileza e nuances (COOK, 2012, 145-146). Contudo, tal análise minuciosa do contexto nem sempre é uma tarefa fácil de ser realizada. Há vários fatores entre a produção e acumulação dos documentos que podem dificultá-la. A Identificação Documental é fundamental para que se cumpra essa pretensão em se alcançar maior eficácia, pois investiga a gênese documental, o que facilita a recuperação do contexto e propicia o relacionamento entre as várias funções arquivísticas. Enfim, a Identificação Documental se insere na Arquivologia como uma amplificadora dos princípios e funções arquivísticas devido a seu viés investigativo, o que possibilita que se consiga o máximo das mesmas. 3.2 Identificação Documental no cenário nacional e internacional Diante da forma variável como a Identificação Documental é marcada na Arquivologia, há diversos problemas que cercam sua aplicação prática e seu 36 reconhecimento científico. Dentre eles, o fato de que enquanto área de estudo esta ainda se recente da escassez de pesquisas, de modo que o tema é abordado em poucos países. Nesta dissertação, estão sendo considerados os estudos realizados em dois países – Brasil e Espanha. Contudo, há ainda questões relativas às diferentes abordagens conceituais de cada corrente, o que não significa exatamente um embate ou discordância entre as mesmas, mas talvez um problema terminológico que dificulta o estabelecimento de um consenso e possível expansão dos estudos. Esse problema terminológico nos estudos a respeito da Identificação Documental é marcado principalmente pela variedade de termos utilizados para se referir ao mesmo conceito. A literatura espanhola aborda a temática como Identificação. Já na literatura brasileira é possível encontrar os termos Identificação, Identificação Documental e Identificação Arquivística – sendo este último sugerido por Rodrigues (2011a). Acredita-se que apesar dessa inconsistência terminológica que se apresenta, e das incompreensões que esta é capaz de gerar, ambos os termos se referem à mesma temática. Conforme Cruz Mundet, Identificação é: Proceso del trabajo archivístico prévio e indispensable para muchos otros como la classificación, la descripción y la selección de fondos, así como para la gestión de procesos. Consiste en el análisis de la entidad como estrutura organizativa (su historia, su organización y sus procesos), el análisis funcional, el análisis de la normativa en la que se sustenta y de los tipos documentales resultantes. Los factores fundamentales de la identificación son: el órgano produtor, la competencia, la función y el tipo documental. (CRUZ MUNDET, 2011, p.206).10 Jardim (2015, p.20), supõe que as diferenças conceituais da Arquivologia, marcadas por correntes próprias, devem-se ao fato de que os desdobramentos específicos de cada país se dão em contextos histórico- culturais diversos, o que foi propício para que ao longo do tempo tenham 10 ―Processo de trabalho arquivístico prévio e indispensável para muitos outros como a classificação, a descrição e a seleção de fundos, assim como para a gestão de processos. Consiste na análise da entidade como estrutura organizacional (sua história, sua organização e seus processos), a análise funcional, a análise das normas que a regem e dos tipos documentais resultantes. Os fatores fundamentais da identificação são: órgão produtor, a competência, a função e o tipo documental.‖ (CRUZ MUNDET, 2011, p.206, tradução nossa). 37 surgido expressões como ―arquivologia francesa‖, ―arquivologia canadense‖, ―arquivologia brasileira‖ etc. O autor considera ainda que tais atributos dirigidos à Arquivologia de distintos países sugerem a ideia de que uma disciplina científica pode, em termos epistemológicos, ser classificada em decorrência de características nacionais. Aqui especificamente, discutiremos as relações e diferenças entre a abordagem espanhola e a brasileira, dado que representam os principais focos de estudo sobre Identificação Documental. Verificar pontos em comum em cada abordagem talvez seja um caminho para compreender o que de fato é Identificação Documental e quais são os seus procedimentos e métodos de aplicação. A Espanha é precursora nos estudos sobre Identificação Documental e trouxe grandes contribuições para a temática. Segundo Pedro López Gómez: Por medio del análisis documental, y en el proceso de identificación de las distintas series documentales, pasamos desde los orígenes legislativos, normas, procedimiento y trámite que ha originado cada serie en concreto, al conocimiento del órgano emisor/receptor y sus funciones y competencias, las actividades desarrolladas en el ejercicio de las mismas, y la plasmación documental que se manifestaron, en el tiempo y a lo largo del tiempo (LOPEZ GÓMEZ, 1998, p. 39)11 De modo que a partir de uma acurada análise documental, aliada a identificação de séries documentais, é possível reunir informações relativas à posição hierárquica do documento em relação aos seus níveis superiores orgânicos, conforme proveniência. Da mesma forma, é capaz de contribuir para o entendimento da configuração física e intelectual assumida pelo documento no ato de seu registro. Enfim, a Identificação Documental, revela-se um importante instrumento para o estudo da produção documental, com vistas à contextualização da informação. 11 ―Através da análise documental, no processo de identificar as diferentes séries documentais, passamos desde a legislação, normas, procedimentos e trâmites que originou cada série em particular, para o conhecimento do órgão emissor / receptor e as suas funções e competências, às atividades desenvolvidas no seu exercício, e a produção documental que se manifesta em tempo e ao longo do tempo.‖ (LOPEZ GÓMEZ, 1998, p. 39, tradução nossa). 38 Ainda sobre a proveniência, Antonia Heredia Herrera ressalta que não apenas o estudo da instituição é importante para essa construção, mas também a identificação das séries documentais, completando a ideia anterior: Las soluciones a posteriori, siempre a destiempo, suponen una reconstrucción – nunca invención – que exige conocimiento de la institución, de sus competencias materializadas en funciones y actividades, de su estructura, de la identificación de las series que son testimonio y prueba de dichas funciones y actividades (HEREDIA HERERA, 2003, p.7).12 Quanto à aplicação da Identificação Documental e aos aspectos que a permeiam, é interessante ressaltar que na Espanha esta possui enfoque no fundo, enquanto no Brasil a mesma costuma partir da Tipologia Documental. Quanto ao estudo do contexto e dos documentos, Maria Luísa Conde Villaverde afirma que: En efecto, a partir de ese momento la investigación en los archivos se centrará en los diferentes aspectos de la reconstrucción del contexto de producción de los documentos (identificación del sujeto productor, de su dimensión orgánica y funcional, etc.), así como de su caracterización como testimonio único de los hechos documentados (necesidad de su conservación permanente o posibilidad de selección y eliminación transcurrido el plazo de vigencia de sus valores administrativos; períodos de permanencia en cada una de las etapas de su ciclo vital; confidencialidad de su contenido informativo, etc.) (CONDE VILLAVERDE, 2006, p. 35).13 Entende-se então que a reconstrução do contexto de produção, pela Identificação Documental, a relaciona com os demais procedimentos arquivísticos. Contudo, deve-se ter cautela ao relacioná-los, visto que nesse ponto há uma linha tênue para diferenças conceituais, devido a alguns teóricos 12 ―As soluções a posteriori, sempre em atraso, representam uma reconstrução - nunca invenção - o que exige conhecimento da instituição, de suas competências materializadas em funções e atividades, de sua estrutura, da identificação das séries que são testemunho e prova das ditas funções e atividades.‖ (HEREDIA HERERA, 2003, p.7, tradução nossa). 13 ―De fato, a partir daquele momento a investigação nos arquivos incindirá sobre diferentes aspectos da reconstrução do contexto de produção de documentos (identificação do sujeito produtor, de sua dimensão orgânica e funcional, etc.), bem como de sua caracterização como um testemunho único dos fatos documentados (necessidade de sua preservação permanente ou possibilidade de seleção e eliminação após transcorrido o prazo de vigência de seus valores administrativos; períodos de permanência em cada uma das etapas de seu ciclo vital; confidencialidade do seu conteúdo informativo, etc).‖ (CONDE VILLAVERDE, 2006, p. 35, tradução nossa). 39 considerarem a Identificação Documental como função arquivística e outros não. No Brasil, a discussão se afasta um pouco da abordagem espanhola, e compreende que a Identificação Documental vai além de possuir relação com as funções arquivísticas, também se trata de uma função. Tal apontamento é colocado por Ana Célia Rodrigues: No contexto da identificação, os estudos teóricos desenvolvidos indicam que se trata de uma função arquivística, ainda sem sistematização. Os procedimentos formulados para reconhecer os documentos de arquivos e seus vínculos de proveniência e organicidade, é uma pesquisa preliminar desenvolvida que gera informações registradas em instrumentos próprios e são a base das análises para a avaliação, classificação, descrição e produção de documentos de arquivos (RODRIGUES, 2008, p. 13). Contudo, não há um consenso no país a respeito dessa definição e ainda assim, trata-se de um pensamento que se restringe muito ao âmbito nacional. Ana Célia Rodrigues traz ainda questionamentos tanto a respeito da Identificação Documental como função arquivística quanto da necessidade de busca pela sistematização da mesma, visto que a entende como função: Permanecem, entretanto, algumas questões inéditas no âmbito destas discussões teóricas, que merecem aprofundamento em suas análises: é possível reconhecer a identificação como função independente no contexto das metodologias arquivísticas e neste sentido utilizar os padrões estabelecidos no ensino da arquivologia? Podemos falar de uma metodologia de identificação, especificamente brasileira, que mereça uma sistematização dos métodos e instrumentos elaborados, a exemplo do que vem fazendo a Espanha? (RODRIGUES, 2011b, p.123). A sistematização citada é um ponto muito importante, pois a Identificação Documental ainda não a possui em suas etapas para facilitar sua prática. Aliás, antes de se pensar em sistematizar a prática da Identificação Documental é preciso sanar as inconsistências existentes entre a pesquisa e a prática, o que ocorre não apenas com a Identificação Documental, mas com diversas temáticas da Arquivologia. De acordo com Michel Duchein: A terminologia é, de qualquer forma, o reflexo da prática profissional. Se a terminologia arquivística é pouco precisa, é 40 bem a prova de que arquivologia, ela mesma, está longe de ser uma ciência exata; não é ruim que esta obra nos ajude a essa tomada de consciência (DUCHEIN, 2007, p.14). Enfim, a Arquivologia possui diversos fundamentos e conceitos comuns entre as diferentes correntes, outros ainda difusos e defendidos por correntes específicas, o que demonstra que esta se trata de uma ciência ainda em construção. Dessa forma, é essencial dar sequência aos estudos do passado, pesquisar novas temáticas e acompanhar as necessidades dos tempos atuais, pois só assim a área pode se repaginar para continuar cumprindo sua missão. Antonia Heredia Herrera resume muito bem o problema de delimitar conceitos na Arquivologia, o qual se trata de um campo muito amplo, com abordagens de vertentes distintas e suscetível a fatores sociais e culturais. A autora afirma que são muitas questões que envolvem o documento de arquivo: Son muchas las preguntas que si agolpan. ¿Existe una documentación específica de archivo? ¿Puede hablarse con propriedad de o hemos de considerarlos simplemente como suportes que contienen información? ¿Existe una metodología archivística? Y frente a todo lo cuestionado, una información defendida e aceptada por todos: el soporte en un documento no es lo esencial (HEREDIA HERRERA, 1988, p.350-351).14 A citação de Heredia traz reflexão e diálogo, permitindo-se pensar que as dificuldades colocadas são amplas, posto que a Identificação Documental é um tema que assume determinadas particularidades de acordo com a corrente específica a abordá-la. Contudo, acredita-se que a Identificação Documental enquanto método de análise de documentos traz amparo teórico e prático para repensar as questões aqui postas. Compartilha-se da posição de Camargo e Goulart, ao afirmarem que: 14 ―Há muitas perguntas que se manifestam. Existe documentação específica de arquivo? Podemos falar com propriedade de ou devemos considerá-los simplesmente como suportes que contem informação? Existe uma metodologia arquivística? E contra todo o questionado, uma informação defendida e aceita por todos: o suporte em um documento não é o essencial.‖ (HEREDIA HERRERA, 1988, p.350-351, tradução nossa). 41 [...] o arquivo é sempre maior do que o somatório das partes que o integram, o que significa que cada uma delas carrega consigo a cunha da entidade produtora como um todo. Convém ainda lembrar que, sendo a estabilidade de sentido um dos traços característicos do elo que os documentos de arquivo mantêm com atividades e funções de organismos e pessoas- elo este responsável, aliás, por seu atributo mais importante, a autenticidade-, nenhum esforço de interpretação, por mais que se afaste das evidências empíricas ou procure transcendê-las, pode prescindir dessa relação monossêmica originária (CAMARGO; GOULART, 2007, p. 48). Nessa perspectiva, a Identificação Documental, independentemente do viés que assume de acordo com a corrente que a aborda, se destaca por possibilitar uma organização documental que vai além dos aspectos físicos do documento, permitindo uma visão mais ampla, aprofundada no estudo da proveniência e organicidade. Contudo, vale ressaltar que o estudo das semelhanças e diferenças existentes a seu respeito na literatura são de suma importância para seu reconhecimento entre os profissionais arquivistas, além de possibilitar um consenso acerca da mesma, trazendo com isso melhores aplicações práticas. 3.3 Identificação Documental e as questões que envolvem a produção documental A produção documental é um processo complexo que varia de acordo com o sistema jurídico necessário para documentar e realizar atividades cotidianas. Desse modo, está envolta por um rol de exigências e procedimentos que garantem tanto sua formalidade, como fidedignidade. É importante ressaltar que a produção documental equivale ao momento da gênese dos documentos, o que torna seu estudo essencial para o trabalho arquivístico. De acordo com Heloísa Bellotto: Convém hoje que os arquivistas se aproximem dos estudos da gênese documental. Os estudos da diplomática e tipologia levam a entender o documento desde o seu nascedouro, a compreender o porquê e o como ele é estruturado no momento de sua produção (BELLOTTO, 2004, p.45). 42 Os estudos relacionados à produção documental se estreitam aos de Identificação Documental, pois esta última se fundamenta nas bases do processo de produção documental, uma vez que investiga a gênese dos tipos documentais. A partir desses estudos a respeito da cadeia de produção documental, a Identificação Documental também pode influenciar o sistema de registro de informação, com vista à racionalização da máquina administrativa e burocrática. De acordo com o Arquivo Nacional o excesso de burocracia tem influenciado negativamente o funcionamento dos arquivos: [...] A complexidade de funções atribuídas aos organismos da administração pública, na atualidade, trouxe consigo sérias dificuldades no controle dos documentos, em razão do excesso de burocracia, da proliferação de cópias e da consequente inoperância dos arquivos no fornecimento sistemático de informações aos seus usuários (BRASIL, 1986 p.7). Contudo, os procedimentos burocráticos são essenciais para a garantia de um atributo específico dos documentos, que vai além de registrar funções e atividades jurídicas e administrativas, e diversas outras ações que os originam. Trata-se da necessidade de garantir a autenticidade e genuinidade da actio e conscriptio, no momento de sua produção: Então, é preciso partir para o grande segundo sinal: a função. A gênese do documento de arquivo é determinada pela função a que ele se destina; e implica na relação entre a natureza da sua finalidade e um teor capaz de conferir-lhe, adequadamente, alguma autenticidade e alguma confi abilidade. Na verdade, a função para a qual está se criando o documento é que vai ditar qual espécie documental deve ser a escolhida. E é esta mesma espécie que vai impor o ―modelo‖ da redação (BELLOTTO, 2015, p.281). São os elementos que constituem a espécie e o tipo documental que irão resguardar a verdade documental, tanto em termos de contexto quanto de conteúdo. De acordo com Randolph Starn: The document testifies there to the truths (at least) of the procedures of its making and conservation, which can be 43 decoded, comprehended, and, for that matter, contested. (STARN, 2002, p.392-393)15. Questões relativas à fidedignidade documental também são essenciais para a gestão documental, em virtude de criarem mecanismos de preservação do verdadeiro teor documental, essencial para que o documento possa cumprir o seu legado, assim como para o desenvolvimento das funções arquivísticas em geral. Como destaca Ana Célia Rodrigues: Os estudos de identificação de tipologias documentais vêm nutrindo o debate científico internacional sobre a formulação de requisitos para a gestão documental, sobretudo em ambiente eletrônico. Luciana Duranti introduz no Canadá e Estados Unidos, esta nova abordagem do uso da diplomática aplicada ao estudo dos documentos eletrônicos, discutindo especificamente o momento de sua produção (RODRIGUES, 2011b, p. 110). No meio digital os elementos de garantia da verdade documental são ainda mais importantes, pois se trata de um ambiente suscetível a fraudes e perdas, as quais são acompanhadas de perda de conteúdo documental. De modo que cabe aos produtores se valerem de meios que preservem autenticidade e genuinidade de seus registros, sob risco de perda da confiabilidade da cadeia burocrática que cerca a criação de documentos. Segundo Randolph Starn: To such abstract certainties, my response has been to investigate how the authenticity of texts and artifacts has actually been established or invalidated, over time, by such fundamental authenticating institutions as the library, the museum, and the archives (STARN, 2002, p.387).16 Assim, o princípio de proveniência é fundamental, em todos os aspectos, no estudo da produção documental, considerando que o conhecimento da proveniência e da relação de um documento com os demais 15 ―O documento testemunha as verdades (pelo menos) dos procedimentos de sua fabricação e conservação, que podem ser decodificadas, compreendidas, e, até mesmo, contestadas.‖ (STARN, 2002, p.392-393, tradução nossa). 16 ―A tais certezas abstratas, minha resposta foi investigar como a autenticidade de textos e artefatos foi realmente estabelecida ou invalidada ao longo do tempo por instituições fundamentais como a biblioteca, o museu e os arquivos.‖ (STARN, 2002, p.387, tradução nossa). 44 de seu fundo pode denunciar certos tipos de fraudes documentais. Aliás, a Identificação também pode contribuir muito nesse sentido, uma vez que se trata de uma análise minuciosa em direção à gênese documental. É preciso compreender a proveniência a fundo para realizar qualquer etapa do tratamento arquivístico, o que inclui a Identificação Documental. Considerando que o princípio de proveniência e a Identificação Documental trocam influências positivas, conforme Mendo Carmona afirma que: La identificación es la mejor herramienta para aplicar el principio básico de la archivística: el de respeto a la procedencia y a la estructura interna del fondo. Consiste en la investigación de las características de los dos elementos implicados en la génesis del fondo: el sujeto productor y el objeto producido. Se entiende por sujeto productor la persona física, familia u organismo que ha producido y/o acumulado el fondo. Se entiende por objeto producido la totalidad del fondo y cada una de las agrupaciones documentales que lo conforman. En el método analítico se sustenta todo el tratamiento archivístico que los documentos, que componen el fondo, deben recibir a lo largo de todo su ciclo vital. Se aplica en dos fases sucesivas de trabajo. La primera fase del análisis se centra en la identificación del organismo productor del fondo documental. [...] El segundo paso o fase de la identificación se centra en el análisis de cada una de las series documentales generadas. (MENDO CARMONA, 2004, p.42-43, grifos do autor).17 Ainda que o processo de produção documental seja fundamental para entender a origem de documentos, em grande parte das vezes, o fator de acumulação é determinante para a definição da proveniência de documentos e 17 ―A identificação é a melhor ferramenta para aplicar o princípio básico da arquivística: o respeito à proveniência e à estrutura interna do fundo. Consiste na investigação das características dos elementos envolvidos na gênese do fundo: o sujeito produtor e o objeto produzido. Entende-se por sujeito produtor o indivíduo, família ou organização que produziu e/ou acumulou o fundo. Entende-se por objeto produzido a totalidade do fundo e cada uma das agrupações documentais que dele fazem parte. No método analítico se sustenta todo o tratamento arquivístico que os documentos que compoem o fundo devem receber ao longo de todo seu ciclo vital. Aplica-se em fases sucessivas de trabalho. A primeira fase da análise centra-se na identificação do organismo produtor do fundo documental. [...] O segundo passo ou fase de identificação, centra-se na análise de cada uma das séries documentais geradas.‖ (MENDO CARMONA, 2004, p.42-43, tradução nossa). 45 permitir sua organização, a partir de fundos – muitas vezes fazendo uso da Identificação Documental para determinar a origem e procedência da documentação. Embora Terry Cook não trabalhe com as temáticas de Identificação Documental ou Tipologia Documental, este compreende que o conceito de fundo é algo complexo, uma construção obtida a partir da reconstituição da proveniência: The fonds, therefore, should be viewed primarily as "an intellectual construct.‖. "The fonds is not so much a physical entity in archives as it is the conceptual summary of descriptions of physical entities at the series level or lower, and descriptions of the administrative, historical and functional character of the records creator(s) - as well as descriptions of the records-creating processes (metadata). The fonds is thus the conceptual "whole" that reflects an organic process in which a records creator produces or accumulates series of records which themselves exhibit a natural unity based on shared function, activity, form or use. It is at the heart of this process or relationship linking the creator to the records that the essence of provenance or respect des fonds can be found and must be protected. It is at this functional heart, moreover, that archival descriptive systems should be aimed, structured and standardized. (COOK, 1993, p.33, grifos do autor).18 Em suma, é ousado, porém não equivocado, dizer que o princípio de proveniência é o que relaciona a Identificação Documental não apenas com a produção documental, mas com todas as funções arquivísticas. 18 ―Os fundos, entretanto, devem ser vistos primeiramente como ―uma construção intelectual‖. ― Os fundos não são mais uma entidade física nos arquivos como é o resumo conceitual de descrições de entidades físicas no nível de série ou inferior, e descrições de caráter administrativo, histórico e funcional sobre o criador dos documentos – bem como descrições dos processos de produção de documentos (metadados). Os fundos são portanto, o ―todo‖ conceitual que reflete um processo orgânico em que um produtor de documentos produz e acumula séries de documentos que exibem elas mesmas, uma unidade base que compartilha função, atividade, forma e uso. Isso é o cerne desse processo ou relacionamento que liga o produtor aos documentos, que é a essência da proveniência ou respeito aos fundos que pode ser encontrada e deve ser protegida. É neste coração funcional, além disso, que os sistemas descritivos arquivísticos devem ser direcionados, estruturados e padronizados.” (COOK, 1993, p.33, tradução nossa). 46 4 O LEGADO DO MÉTODO DIPLOMÁTICO À IDENTIFICAÇÃO DOCUMENTAL 4.1 Diplomática e Documento: da Idade Média a Contemporaneidade Compreendendo a importância da Diplomática para a Arquivologia, este capítulo irá discorrer sobre as relações entre Diplomática e Identificação Documental. Será traçado um breve resumo do desenvolvimento da Diplomática e do documento – visto que o desenvolvimento e expansão de um conceito fora fundamental para o do outro, de forma mútua. Além disso, busca- se compreender o papel da Diplomática e do documento na produção documental atualmente. É necessário considerar as diversas abordagens que a Diplomática assumiu ao longo do tempo. Dessa forma, trataremos sobre Diplomática Científica, Diplomática Histórica, Diplomática Forense e Diplomática Contemporânea. Pois de certa forma, todas suas abordagens exercem uma parcela de contribuição para a Arquivologia. Contudo, no âmbito da Identificação Documental, a Diplomática Científica e a Diplomática Contemporânea se destacam por exercer influência mais significativa. A Diplomática Científica contribui a Identificação Documental através de seu método fixo, voltado para análise dos caracteres extrínsecos e intrínsecos dos documentos. Já no caso da Diplomática Contemporânea essa influência se deve ao fato de essa ser a área de especialização da Diplomática que melhor retrata aspectos formais da produção documental e dos tipos documentais – que são objetos de investigação da Identificação Documental. Diante do contexto atual, a evidenciação de aspectos importantes da produção documental e constituição de tipos documentais se torna objeto de estudo privilegiado para a Identificação Documental, pois há diversos fatores influenciadores da produção de documentos, sendo um dos principais deles o crescimento acelerado de novas tecnologias, bem como o aumento da variedade dos tipos documentais. 47 Dessa forma, a contribuição tanto da Diplomática Científica quanto da Diplomática Contemporânea para a Identificação Documental transcende a questão da verificação da autenticidade e genuinidade dos documentos, de modo que a Identificação Documental caminha em direção à reconstituição do contexto de produção, a partir da observação de elementos como a gênese documental, tradição documental, caracteres externos e internos, entre outros, a fim de compreender a função e importância dos documentos em seu conjunto documental. À luz da vontade de averiguar quais os aspectos que influenciam a gênese e a contextualização dos documentos arquivísticos na atualidade, os elementos que envolvem a problemática serão apresentados e discutidos criticamente neste capítulo. Sabe-se que a origem do ato de documentar é bastante remota e já se fazia presente nas civilizações pré-históricas por meio das pinturas rupestres, que serviam como forma de registrar atividades cotidianas, tal como caça, lutas e rituais em geral. A respeito das pinturas rupestres, Argüello Garcia, destaca que: La datación por temas supone que es posible identificar objetos cuya lectura los asocia a una época determinada. [...] En algunos casos la distinción de determinados tipos de plantas permite suponer que el arte rupestre no puede ser más antiguo que la época cuando se introdujo la agricultura en cada zona; en otros se supone que el nivel de detalle como fueron representadas determinadas figuras brinda la posibilidad de diferenciar el arte de las poblaciones cazadoras de las pastoriles [...] (ARGUELLO GARCIA, p. 58, 2008).19 Com o surgimento da escrita e as mudanças na forma de vida do ser humano, ampliaram-se as formas de documentar, e os documentos tornaram- se muito atrelados à escrita. Assim, o registro escrito cresceu gradualmente ao longo dos anos, juntamente da preocupação com a legalidade dos 19 ―A datação por temas supõe que é possível identificar objetos cuja leitura associa a uma determina época. [...] Em alguns casos a distinção de determinados tipos de plantas permite supor que a arte rupestre não pode ser mais antiga que a época de introdução da agricultura local; em outros se supõe que o nível de detalhe que foram representadas determinadas figuras marca a possibilidade de diferenciar pela arte as populações caçadoras das pastoris.[...]‖ (ARGUELLO GARCIA, p. 58, 2008, tradução nossa). 48 documentos. Segundo Bellotto (2002b, p.15), ainda na Idade Moderna iniciaram-se os estudos em torno da Diplomática, mais precisamente no séc. XVII. Inicialmente, com o intuito de certificar a autenticidade dos documentos por meio de elementos capazes de analisar se os mesmos eram falsos ou nã