Ana Laura Rabelo Araújo de Castro Você é daqui? A subjetividade de famílias brasileiras em movimento de migração interna. Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Unesp para a obtenção do título de Mestre em Psicologia (Área de Conhecimento: Psicologia e Sociedade). Orientadora: Profa. Dra. Marlene Castro Waideman Assis 2005 2 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca da F.C.L. – Assis – UNESP Castro, Ana Laura Rabelo Araújo de C355v Você é daqui?: a subjetividade de famílias brasileiras em movimento de migração interna / Ana Laura Rabelo Araújo de Castro. Assis, 2005 215 f. Dissertação de Mestrado – Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Universidade Estadual Paulista. 1. Família. 2. Migração – Aspectos psicológicos. 3. Teoria psicanalítica. I. Título. CDD 150.195 304.8 3 CASTRO, Ana Laura R. A. “Você é daqui? A subjetividade de famílias brasi leiras em movimento de migração interna” Assis, 2005. Dissertação apresentada para obtenção do título de Mestre em Psicologia, no Programa de Pós-Graduação em Psicologia e Sociedade, Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP. RESUMO O objetivo do trabalho consiste em investigar a subjet ividade de famílias que viveram um processo migratório dentro do território brasi leiro, e a reconstrução de um espaço familiar num novo meio social. A análise psicológica do material produzido visa a compreensão da adaptação a este novo ambiente e seus ref lexos na formação da subjetividade da famíl ia, a apreensão do sentido simbólico da mudança para outra cidade e, por f im, na medida em que compreendemos que conteúdos do inconsciente famil iar, que perpassam as gerações, podem inf luenciar o dest ino e a vida prát ica das famíl ias, buscamos indícios da inf luência ou não de determinações psíquicas transmitidas de outras gerações, no movimento migratório destes núcleos famil iares. Uti l izamos como base a teoria psicanalít ica de família, mais especif icamente o conceito de organizador grupal do psiquismo familiar conhecido como eu familiar. Trabalhamos também considerando a transmissão psíquica, processo que explica como a psique vem a ser determinada pela condição de herdeira da subjet ividade humana. Por f im, dentro da ótica da psicologia analít ica, desenvolvemos uma análise simbólica e uma amplif icação do tema migração, baseada no conceito de individuação. Palavras-chave: migração, famíl ia, transmissão psíquica, psicanálise psicologia analít ica, individuação. . 4 CASTRO, Ana Laura R. A. “Are you from here? The subject ivity of the brazi l ian famil ies in an inside migrat ion movement” Assis, 2005. A dissertat ion submitted for the degree of Master in Psychology. Post graduation program in Psychology and society, Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP. ABSTRACT This research’s objective consists on investigat ing the subjectivity of families wich have l ived a migratory process inside the Brazil ian territory, and the reconstruct ion of a familiar space in a new social environment. The psychological analisys of the produced material intends the compreention of the new environment´s adaptat ion and it´s ref lex on the family´s subject ivity formation, the worry on the symbolic sense of moving to other town, and at last, as we understand that the familiar inconscient contents, wich goes from generation to generation, can affect the destiny and family´s practical l ife, we wil l look for evidences of this inf luence or non inf luence of the psychic determinations transmited throught generations in the migratory movement of those families. The family´s psychanalytical theory was used as base, more specif icly, the concept of the grupal organizer of familiar psychism, known as the familiar ego. The psychic transmission was considered in this work, the process wich explains how the psych is determined by the human subjectivity hereditary. Finally, based on the theoretical approach of Jung’s analytical psychology, we tr ied to develop a symbolic amplif ication of a migratory process and the individuation concept. Key words: migrat ion, family, psychic transmission, psychoanalysis, analytical psychology, individuation. 5 Aos meus amores, Ricardo, Lorenzo e Rafael, de quem roubei algum tempo de convívio, mas em função dos quais tenho aprendido lentamente a com-viver. 6 AGRADECIMENTOS Desejo expressar minha grat idão a todas as pessoas que me ajudaram na construção deste trabalho, especialmente a: Profa. Dra. Marlene Castro Waideman, minha orientadora, pela paciência e abertura para meus diferentes conhecimentos. Profa. Dra. Maria Luísa Louro de Castro Valente, pelo carinho com que me recebeu, desde o primeiro dia em que pisei no Departamento de Psicologia da UNESP – Assis. Profa. Ivete Beauchamp de Castro, minha sogra, pela valorização do meu trabalho e auxílio na maternagem de meus f i lhos. Minha famíl ia de origem, que sempre garantiu minha l iberdade de ir e vir, e a base afetiva para este trânsito. Minha família atual, por todo o carinho... Famílias de migrantes que concederam seu testemunho, possibil itando a existência deste trabalho. 7 PRIMEIRAS PALAVRAS Por tanto amor Por tanta emoção A vida me fez assim Doce ou atroz Manso ou feroz Eu caçador de mim Preso a canções Entregue a paixões Que nunca tiveram fim Vou me encontrar Longe do meu lugar Eu caçador de mim Nada a temer senão o correr da luta Nada a fazer senão esquecer o medo Abrir o peito à força numa procura Fugir às armadilhas da mata escura Longe se vai Sonhando demais Mas onde se chega assim Vou descobrir O que me faz sentir Eu caçador de mim Milton Nascimento – Caçador de mim Composição: Luís Carlos Sá e Sérgio Magrão Por onde começar? Perguntamos ao silêncio quando tudo é novo e temos algo a construir. Urge principiar, dar o primeiro passo, considerado geralmente o mais dif ícil . Cada pequena palavra, cada expressão, é original, f i lha única. Antes de as proferir notamos que – já que a l inguagem é em si resultado de um trabalho psíquico iniciado 8 com a percepção – mesmo cada percepção é marcante porque é inédita, diferente, principalmente se o objeto a ser percebido é novo, e se nos encontramos em ambiente estranho, não familiar. Para o novo texto e para a nova experiência de se estar num lugar outro, que não o nosso, pensamos em buscar referências, e as buscamos no passado, no já feito, naquilo que já foi escrito por nós, ou vivido por nós. Ao navegar no papel em branco, é com alívio que encontramos um após outro os portos seguros das memórias e serenamente vislumbramos os caminhos que ainda podemos tri lhar com aqueles conhecimentos que já apreendemos. Certo professor ensinou-nos, ainda no começo da graduação em psicologia, que toda a consciência que conquistamos é eterna. Melhor dizendo, depois que nos tornamos conscientes, não mais poderemos negar tal conhecimento. O estado de consciência não tem regresso. Não se pode fugir do que se sabe. Analisando por este ângulo, todo começo é um recomeço. Todo texto que construímos baseia-se em sabedoria adquirida, seja por nós, seja pela humanidade. Toda vida que construímos teve seu princípio naquela que nos gerou. Toda famíl ia que fundamos traz as marcas dos nossos antepassados. E, para qualquer lugar para o qual nos mudemos, na bagagem estamos nós mesmos. A despeito da compreensão dos fatos, a nova experiência sempre desperta uma insegurança, levando-nos a perguntar a quem nos é apresentado: Você é daqui? O que ref lete a busca de ajuda, em alguém 9 que saiba como se dão as coisas neste “aqui”. Quais são as regras do jogo aqui? E se nos deparamos com alguém que, como nós, não é daqui, queremos explorar a experiência alheia. Há quanto tempo você está aqui? Já se acostumou? Gosta de morar aqui? E sorvemos as respostas com a esperança de que a dor de não ser daqui tenha solução. De que o tempo – e isso ouvimos com freqüência – venha a escrever uma memória de nossa vida aqui. E o vazio se preenche, ao menos temporariamente. Esperamos que a vinda, em seu movimento gradual, se torne uma chegada, e possamos nos deixar f icar. São retalhos do que vivemos logo após a mudança. Resgatamos a palavra “mudança” como importante símbolo direcionador da dinâmica que pretendemos estudar. Da lembrança de nossa infância i lumina-se a cena do comercial de televisão, onde um garot inho olha pela janela de sua casa e anuncia para a famíl ia: “O caminhão da Granero chegou!”. O momento da mudança envolve o desmonte de uma casa inteira, cujos objetos são cuidadosamente encaixotados, mas rapidamente acondicionados num caminhão e transportados até o novo destino. Quando se descarrega aquele monte de caixas, todas iguais... É então que nos damos conta da confusão de tudo o que é nosso, de tudo o que precisa ser encontrado e colocado no seu devido lugar – lugar que deve ser buscado e descoberto na novidade do espaço alterado –, e da reorganização de cada coisa, a reconstrução de uma rot ina, de um lar no qual nos reconheçamos. 10 A imagem concreta da desorganização do espaço físico, em decorrência da situação de mudança, vem, como metáfora, nos contar a respeito da condição inter e intrasubjetiva em que se encontram a família migrante e seus membros. Experiência presente em nossa história de vida, foi fator de inf luência na at itude da pesquisadora, pois t ivemos o sentido da mudança impregnado em nossa primeira infância. Do nascimento até os sete anos de idade, chegamos a morar em sete diferentes cidades, distribuídas em quatro estados brasi leiros. Da famíl ia nômade herdamos o hábito de carregar sempre a casa nas costas, como um caramujo, que ao se sentir ameaçado, fecha-se em si mesmo. Herdamos também a insatisfação com nossa bagagem de conhecimento, o que nos leva a estar sempre em movimento, em busca do que possa ter mais sentido, simbolizar melhor, ser ainda mais importante, ou ainda mais desconhecido. Compomos este trabalho como resultado de uma ref lexão iniciada a partir da migração de nossa família atual, para o município de Assis, ocorrida no ano 2000. Representa a busca de um espaço pessoal e prof issional neste novo lugar. Emigramos da cidade de São Paulo, onde se deu nossa formação prof issional: graduação, aprimoramento, supervisões, grupos de estudo e análise pessoal. A linha teórica na qual desenvolvemos nosso raciocínio clínico foi eminentemente a psicologia analít ica de Jung, apesar de que, na atuação prof issional diversif icada, pudemos ter 11 contato enriquecedor com diversas outras abordagens e formas de pensamento em psicologia e psiquiatr ia. Nosso interesse por trabalhar com o tema Família foi despertado a partir da experiência como instrutora de um projeto executado no município de Tarumã. Naquele contexto, coordenamos vivências com um grupo de adolescentes, no sentido de promover a ref lexão acerca do que consistia a famíl ia para cada um dos jovens, o papel deles no grupo familiar e as idealizações presentes quanto a esta inst ituição. Ao buscar bases teóricas para melhor compreender a famíl ia e sua importância na vida dos jovens, não encontramos na psicologia junguiana a sistematização e o aprofundamento teórico presentes na psicanálise de família. Part imos então para o estudo de alguns autores psicanalít icos e percebemos, com certa surpresa, que algumas idéias psicanalít icas sobre a transmissão da herança famil iar coincidiam com a visão f i logenética da psicologia analít ica. Hoje percebemos que no processo de migração perdemos – ou melhor, rompemos – um elo de ligação com nossa f i l iação junguiana. Ou seja, precisamos, para conseguir partir, nos distanciar de tudo que representasse um apego ao lugar de origem. Desta forma, deixamos de cult ivar nossos vínculos com nosso grupo de trabalho, discussão ou supervisão, o que de fato provocou uma sensação de orfandade, de desidentif icação e mesmo nos desautorizou a pensarmos simbolicamente. Mas, como já dissemos, não adianta renegar o que realmente somos. Ousaremos, portanto, neste trabalho, aliar a compreensão 12 teórica da psicanálise de família com a visão simbólica e analógica da psicologia analít ica, fazendo as pazes com uma maneira de pensar criativa, na intenção de contribuir para o conhecimento acerca da subjetividade das pessoas que aceitam sair em busca de sua individuação, ou de seu caminho singular. 13 SUMÁRIO Introdução ............................................................................. 14 I - Um breve histórico da família ocidental ............................. 18 1. A famíl ia brasileira ........................................................... 23 A formação da família brasileira ....................................... 23 Migrações internas: história recente do Brasil ................... 26 2. Migrações, famíl ias e saúde ............................................. 30 II - Considerações teóricas acerca da família ......................... 43 O nascimento do inconsciente familiar .............................. 46 A transmissão psíquica .................................................... 49 Os psiquismos familiares ................................................. 59 III - A dimensão simbólica no processo de migração .............. 66 Imagens da migração ....................................................... 68 O processo de individuação ............................................. 77 O dinamismo por trás da migração .................................... 80 IV - Desenvolvimento da pesquisa ......................................... 84 Procedimentos metodológicos .......................................... 84 Objetivos ........................................................................ 88 Instrumento .................................................................... 89 Coleta de dados .............................................................. 91 População ...................................................................... 91 Processo de análise dos dados ........................................ 94 Sujeitos .......................................................................... 98 V - Análise dos dados .......................................................... 100 A família Lapell i ............................................................ 100 A família Mafuz ............................................................. 118 A família Souza ............................................................. 134 A família Salviano ......................................................... 150 A família Negrete .......................................................... 168 VI - Discussão dos dados ..................................................... 184 VII - Considerações finais .................................................... 204 Referências bibliográficas ................................................... 208 Apêndices A. Questões norteadoras para as entrevistas ............... 212 B. Termo de Consentimento ......................................... 213 14 INTRODUÇÃO A criação deste trabalho foi impulsionada pela necessidade de buscar compreender a experiência psicológica de famíl ias que migram do espaço familiar originário e reiniciam uma vida em um novo contexto. O movimento migratório que abordaremos acontece quase sempre motivado conscientemente pela busca de melhores condições de vida, por novas oportunidades laborativas fora do contexto social de origem: enfim, em busca do que poderíamos chamar simbolicamente de “a terra prometida”. Este trabalho investigará, no entanto, a existência de inf luências do psiquismo inconsciente – e possivelmente também do inconsciente familiar – no ato de migrar no qual a famíl ia se envolveu. Tal movimento deixa atrás de si um rastro de saudade, povoado de memórias passadas ligadas às raízes famil iares. Mas famíl ias migrantes têm diante de si o desafio de prosseguir seu quotidiano num outro espaço, o que exige o trabalho de reconstrução de uma rede social, familiar e afetiva. As características desta reconstrução, desta adaptação, serão mapeadas, com o intuito de descobrir se têm relação, de alguma forma, com a origem inconsciente dessa busca. Como se dá essa reconstrução, cuja necessidade decorre, talvez, da opção da famíl ia por conquistar um espaço part icular no mundo? O que se espera encontrar nesse novo “lar”, ou o que se busca na terra prometida? Como, f inalmente, encontra-se delineada a subjetividade desta família, recontextualizada num outro espaço social? E mais 15 ainda: teria sido esta migração uma propagação de movimentos iniciados em gerações anteriores? A dinâmica migratória envolve um futuro algo desconhecido, antecipado por uma expectativa. Assim, procuraremos entender o que buscava aquela famíl ia ao migrar, que sentido simbólico permeava aquela mudança. Portanto, falamos do futuro do passado, o que seria um porvir no momento do desejo. Através da lembrança daquele membro da família, viajaremos ao momento em que planos eram traçados, oportunidades ainda não haviam se concret izado e fantasias sobre o que seria o novo lar povoavam o imaginário de toda família. A compreensão de uma experiência humana em sua riqueza de vida e transformação transborda os limites de nossa capacidade de entendimento intelectual. Lançamos mão, neste trabalho, da abordagem simbólica devido à insatisfação com a resposta racional que encontramos ao problema. Pretendemos estudar o fenômeno migração familiar e suas implicações subjet ivas. Não se trata de um estudo de psicossociologia, já que não enfatizaremos a articulação entre as dimensões sociais e psíquicas, mas focaremos nosso olhar na dinâmica inconsciente familiar. Nesse sentido, acreditamos que mesmo um movimento migratório que não implique numa adaptação a diferentes culturas ou idiomas pode produzir alterações no processo familiar. Cabe informar que para Houaiss (2001), em seu Dicionário da Língua Portuguesa, migração define-se como “movimentação de entrada (imigração) ou saída (emigração) de indivíduos ou grupo de 16 indivíduos, geralmente em busca de melhores condições de vida [Essa movimentação pode ser entre países diferentes ou dentro de um mesmo país]” (2001, p.1920). Tendo em vista que somos uma nação nova, povoada por diferentes raças, vindas de lugares tão distantes, justif ica-se que busquemos compreender a origem inconsciente desta dinâmica, que faz parte da representação da identidade brasileira. Trataremos do conceito de famíl ia através de dois prismas: o histórico e o psicológico. Para abordar a base histórica da família nos remeteremos a Philippe Ariès (1981), em sua conhecida obra História Social da Criança e da Família . A importância da família na constituição do psiquismo humano será explicada através de autores da psicanálise como Kaës, Berenstein, Eiguer e outros, que trabalham o conceito de psique intersubjet iva. Ofereceremos também um panorama da situação peculiar da família brasi leira, tendo em vista que muitos estudos têm sido desenvolvidos acerca da migração e de sua inf luência na caracterização da população nacional, porém poucos enfocam os núcleos famil iares, ou mesmo a dimensão psíquica das famíl ias. Ansiamos contribuir com esclarecimentos acerca da dinâmica psicológica familiar envolvida no processo de migração. O fator psíquico pode representar um elemento determinante no sucesso ou fracasso do projeto migratório da família, no que tange a trazer conseqüências saudáveis ou não, tanto para o núcleo familiar, quanto para cada um dos membros deste grupo. 17 Finalmente, ao considerar o processo de migração – em sua dimensão simbólica – como um movimento consoante com a busca da individuação, lançaremos mão de imagens cinematográf icas e l i terárias no sentido de ampliar a percepção deste fenômeno humano. 18 I – UM BREVE HISTÓRICO DA FAMÍLIA OCIDENTAL A noção de família se desenvolveu paralelamente ao movimento de interiorização da vida social, segundo Phil ippe Ariès (1981), historiador francês, que delineou um quadro da transformação, tanto do conceito de infância quanto de famíl ia, desde a idade média, na sociedade ocidental. Na Idade Média, e por muito tempo ainda, a função da famíl ia se relacionava à transmissão da propriedade e do sobrenome, enquanto que não tinha especial importância no que se referia aos laços afetivos, já que, até o século XVII, a convivência coletiva se sobrepunha a qualquer tendência aos relacionamentos privados. A família não existia então como valor, ou como sentimento de pertencimento, ou ainda como lócus de int imidade. Gradualmente, a inst ituição famil iar foi se f irmando, paralelamente ao surgimento da sociedade de classes, no século XVIII , e à tendência ao individualismo, como uma defesa ao convívio social, que outrora invadira toda a vida humana. Este convívio abarcava tanto homens como mulheres, incluindo as crianças, que desde o momento do desmame eram incorporadas à vida social dos adultos. Conforme a infância diferenciava-se como uma importante fase da vida, e a criança considerada objeto de preocupação e de interesse, a família passou a assumir a função de educação e de formação moral de seus novos membros, inaugurando o que o autor denominou de sentimento moderno da famíl ia. Os pais passaram a incumbir-se de 19 preparar a criança para a vida, juntamente com a escola: “a famíl ia e a escola ret iraram juntas a criança da sociedade dos adultos” (Ariès, 1981, p.277). Observamos que a família foi se estruturando em torno da criança, e os sentimentos afetivos entre pais e infantes ampliaram-se então a todos os membros do grupo familiar. O movimento de recolhimento da vida colet iva e a necessidade de intimidade construíram, desta forma, o fenômeno da identidade famil iar. Ampliamos aqui a visão da famíl ia como fenômeno social, para a idéia da família como base para a constituição da subjetividade do ser humano. Como instância de formação e proteção dos indivíduos e como grupo primário onde o psiquismo nasce e se desenvolve. No contexto familiar acontecem experiências precoces que constituem matéria prima para o desenvolvimento de estruturas psíquicas. Desenvolveremos este tema sob o prisma da psicanálise, num capítulo à parte. No momento discutiremos uma questão mais recente no campo de estudo da inst ituição familiar, que consiste no seu grau de importância para o indivíduo e para a sociedade contemporânea, ou ainda sobre sua possível ext inção. Berenstein (2002) questionou a relevância da famíl ia na atualidade, e se essa inst ituição caminha ou não para destituição de suas funções tradicionais. Discutiu o conceito de problema familiar, apontando que no momento em que um modelo se torna of icial, todas as outras situações passam a ser consideradas problemáticas. 20 Examinou, então, as situações familiares, considerando três áreas nas quais ocorrem transformações que possam vir a gerar problemas familiares. São elas as ocorrências provenientes: das relações familiares, do mundo interno dos indivíduos e do mundo social. Tais áreas seriam imbricadas e foram isoladas pelo autor para melhor compreensão de cada uma. As transformações provenientes das relações familiares seriam aquelas relacionadas a situações de morte de algum membro da família, separações, inferti l idade, famíl ias monoparentais, casais homossexuais, além da própria situação de migração, foco de nosso trabalho. Outras mudanças poderiam derivar da variação do mundo interno de um determinado sujeito da família, conduzindo o grupo todo, por vezes, em direção a relações mais íntimas e menos burocráticas. As transformações familiares advindas do mundo social seriam conseqüências de guerras, de exíl io ou perseguição polít ica, ou – como enfatizou o autor – da situação social em que se vive: desemprego, pobreza, precariedade de empregos. Em suma, situações que causariam uma desqualif icação social. “Si sostenemos el criterio moderno de que el trabajo es junto con el amor una base de la salud, su pérdida trae un grave deterioro de la subjet ividad.” (Berenstein, 2002, consultado on-l ine em 17 dezembro 2004). E o sujeito, privado de seu espaço social, traria a privação para o âmbito familiar, e também para o íntimo de seu ser. Berenstein (2002) considerou, por outro prisma, que as situações familiares e seus possíveis problemas, 21 descritos acima, podiam ter um caráter de continuidade com o passado – ou “invariância” – ou um caráter de ruptura e/ou recomposição. Citou Lévi-Strauss (1986), ao enumerar as propriedades invariáveis da famíl ia: originar-se no matrimônio, incluir f i lhos e, eventualmente, outros parentes e basear sua união em laços (jurídicos, econômicos e outros), e leis que regulam a sexualidade. No critério da ruptura caberiam as variantes deste modelo: famílias monoparentais – aquelas compostas por apenas um membro do casal parental e sua prole – recompostas, ou encabeçadas por pares homossexuais. Concluiu o autor que a extinção da famíl ia não estaria em causa, ou seja, tal inst ituição não seria superada em si mesma, mas sim estaria em curso a produção de uma nova forma familiar, baseada em modos novos ou tradicionais de atuação. Carvalho e Almeida (2003) discutiram, num enfoque sócio- econômico, o papel da famíl ia como mecanismo de proteção social na atualidade. Consideraram a famíl ia como uma das insti tuições sociais básicas. Apontaram como funções familiares a proteção e socialização de seus membros; a transmissão, tanto da cultura quanto do capital econômico e da propriedade; e a continência às relações entre gêneros e gerações. Citaram os fenômenos que indicam modif icações – que não são recentes – na estrutura tradicional da família ocidental: aumento dos domicíl ios individuais, redução do tamanho das famílias, crescimento de separações entre casais ou do número de casais sem f ilhos, multipl icação dos domicíl ios chefiados por mulheres. 22 Ressaltaram que o mito da famíl ia nuclear, composta por pai-mãe e f i lhos, pode ter sido um fenômeno efêmero da sociedade americana, na década de 50 do século passado, que foi tomado como um modelo universal. Mas que na realidade esta inst ituição sempre teria t ido um contorno complexo e multifacetado. Como fatores mais recentes que teriam alterado a conformação familiar ocidental, Carvalho e Almeida (2003) apontaram o avanço da urbanização e industrial ização, que teriam descaracterizado a família como unidade de produção; mudanças nas relações de gênero; exercício mais l ivre da sexualidade; idéia da afetividade como condição para a permanência no casamento; f lexibi l ização da relação pai-f i lho. Crit icaram a metodologia de pesquisa da abordagem de domicíl io, baseados em dois fatores. Primeiro, sob o prisma do ciclo familiar: as famílias são estruturas dinâmicas, nascem com pequeno número de membros – número este que tende a aumentar e posteriormente diminuir no decorrer do tempo. Portanto, as modif icações encontradas por uma pesquisa podem ser resultado de fases diferentes do ciclo familiar. Em segundo lugar, quanto à questão da confusão entre grupo familiar e grupo residencial: nem sempre o grupo famil iar – no sentido de comunidade moral, composta por pessoas com as quais se tem um envolvimento emocional – coincide com o residencial. De forma que a inst ituição familiar, com suas funções específ icas, pode não coincidir com o grupo residencial. 23 Após a abordagem da questão geral da família na atualidade, passaremos, então, a olhar para nossa realidade mais próxima. Como se caracteriza a famíl ia brasi leira? 1. A família brasileira A formação da família brasileira A família brasileira não tem um só rosto. É o que concluímos da pesquisa de Samara (2002), que estuda as características da família brasi leira ao longo do tempo. A autora enfatiza que o padrão de famíl ia no Brasi l é heterogêneo, tanto se considerado quanto à evolução temporal, quanto se levarmos em conta a extensão e a peculiaridade de cada região do país. E revela que a documentação of icial não esclarece as reais condições em que as famíl ias viviam, tampouco sua dinâmica de funcionamento. Por muito tempo o modelo de famíl ia patriarcal extensa foi considerado satisfatório para englobar todos os tipos de família que povoaram o Brasi l, desde o colonialismo até a atualidade. Este padrão baseou-se nos estudos de Gilberto Freire, efetuados no início do século XX, com populações das áreas de lavoura canavieira do Nordeste. Aquela autora defende que diversos critérios devem ser levados em conta e que este padrão homogêneo não serve para caracterizar famílias de todo o território brasileiro, durante um intervalo de tempo 24 tão extenso como o do colonial ismo até a contemporaneidade. Há que se considerar contextos econômicos regionais, diversidade de etnia e grupos sociais, e movimentos migratórios das populações, além da contextualização histórica. Na ót ica de nossa pesquisa cabe enfatizar a inf luência dos processos migratórios na conformação da família brasileira. Segundo Samara (2002), a migração da população masculina para áreas de maior desenvolvimento econômico – ocorrida em diversos momentos da história do nosso país – operou alterações na estrutura famil iar brasi leira, tais como: mulheres chefiando famílias, mulheres saindo da reclusão do lar para ocupação de ofícios antes exclusivamente masculinos e redução da prole, entre outros. Além da migração interna, o estímulo à imigração estrangeira – ital ianos e japoneses, principalmente – ocorrido pela ocasião da expansão cafeeira, trouxe um aumento populacional que não foi absorvido pelo trabalho agrário e que se f ixou nas regiões urbanas. Como a comunicação nas regiões metropolitanas é muito mais rápida e o contato com o outro bastante facil itado, podemos trabalhar com a hipótese de que a chegada de pessoas diferentes com culturas diversas, inclusive com costumes familiares diversos, possa ter interferido nos valores familiares tradicionais. Reafirmando o encontrado por Samara (2002), Souza e Botelho (2001) crit icam o patriarcal ismo como modelo único de família no Brasil, baseados em revisões de estudos clássicos sobre a famíl ia brasi leira. 25 Trabalhando com autores que falam da especif icidade da sociedade paulista na época do bandeirismo, reaf irmam como este movimento – caracteristicamente uma migração em direção ao interior do país – inf luenciou a constituição das estruturas familiares na região do estado de São Paulo, e foi inf luenciado, por sua vez, pela origem e miscigenação étnica ocorrida nesta região. Os autores estudados são Ell is Jr. e Cassiano Ricardo. Enfatizando o ponto de interesse do nosso trabalho, qual seja, a relação migração-famíl ia, consideramos relevante o que os autores colocam a respeito da diminuição da média de f i lhos por família, por oposição ao aumento da f i l iação natural, baseados em Ell is Jr., devido à corrida ao sertão empreendida pela população masculina. Já Cassiano Ricardo, segundo Souza e Botelho (2000), remete às origens do povo paulista a razão da característ ica nômade do grupo, responsável pelo bandeirismo. Contribuir iam nesse sentido a mestiçagem com os índios, que são em si uma sociedade nômade, e a descendência castelhana, menos enraizada se comparada aos portugueses. Também Cassiano Ricardo aponta o aumento da f i l iação natural, mas enfatiza que justamente a formação de famíl ias i legít imas – ou a ligação fortuita entre brancos e índios – lado a lado com a existência da grande famíl ia patriarcal sediada no planalto, mas chefiada pelas mulheres na ausência dos bandeirantes, teria sido a base de sustentação do movimento bandeirante. Diferencia assim a famíl ia desta região do padrão familiar tradicional. 26 De qualquer forma, na opinião desse autor clássico, a instituição familiar – no caso paulista, bastante democrática – constituiu a unidade colonizadora do Brasil. Aponta Ricardo, segundo Souza e Botelho (2000), a importância da inf luência deste modelo social paulista na formação dos valores culturais brasi leiros. Refletimos a partir destes dados sobre o grau de importância dos movimentos migratórios e imigratórios na constituição da coletividade brasi leira: a miscigenação das raças, a diversidade da conformação familiar, a conquista de um território novo, a busca pela terra prometida. São aspectos presentes no imaginário simbólico desse povo tão jovem. Percebemos também que, desde o colonial ismo no Brasi l , há uma tendência à diversidade de estruturas familiares. Inclusive já havendo famílias chefiadas por mulheres, o que contraria a idéia de que este seria um modelo concebido na atualidade. Migrações internas: história recente do Brasil Lançaremos um olhar, neste tópico, para a dinâmica migratória recente da população brasileira e sua inf luência no quadro demográfico do país. Segundo Cunha (2003) – demógrafo, pesquisador do Núcleo de Estudos da População da UNICAMP –, durante as décadas que antecederam os anos 1980, a distribuição espacial da população brasi leira sofria um movimento concentrador e urbanizador em direção 27 às grandes metrópoles, na região Sudeste: “Desde 1950, o Sudeste concentra mais de 40% da população nacional, sendo que somente o Estado de São Paulo abrigou em média, no período, 19% dos brasi leiros” (Cunha, 2003, consulta on-l ine em 17 dezembro 2004). O processo de urbanização brasileiro teve como resultado que, em 2000, o índice da população vivendo em cidades superava 80%. Ainda assim, vivem hoje na zona rural mais de tr inta milhões de pessoas, metade deste contingente reside na região Nordeste, que, como veremos adiante, apresenta alto nível de emigração. Nas duas últ imas décadas do século passado, no entanto, houve uma alteração parcial de tal tendência concentradora, devido às transformações econômicas e sociais acontecidas em toda a América Latina. Mesmo com a observação de um movimento de relat iva desconcentração demográfica, grandes centros urbanos ainda assim, representariam forte atração para a população. Ou seja, a maioria dos brasi leiros continua buscando residir em cidades, porém as aglomerações tenderam à dispersão ao longo do território. Novas cidades nasceram e pequenos municípios do interior dos estados elevaram-se a um porte médio. O autor revela que novos espaços regionais se tornaram importantes na dinâmica populacional, principalmente na região Sudeste do país. Dentro desta região, a capital do estado de São Paulo e seu entorno destacam-se quanto ao seu papel relevante nos movimentos demográficos brasi leiros. Todavia, a tendência à aglomeração não se alterou, já que, mesmo rumando para o interior ou 28 para a periferia das grandes metrópoles, a população tende a formar núcleos habitacionais que vão inchando rapidamente. Para entender a complexidade da dinâmica migratória atual, focando a maior região urbanizada do país – a cidade de São Paulo e sua região metropolitana –, devemos ter em mente o cruzamento de f luxos: por um lado, a imigração de população vinda de outros estados (região nordeste principalmente) e por outro, a emigração de pessoas em direção à periferia, ou ao interior do estado. Segundo Cunha (2003), a taxa de crescimento demográfico da região Sudeste vem decaindo desde a década de 1980, mas de forma mais suave na década de noventa. O autor aponta a redução da taxa de fecundidade e a migração inf luenciando neste movimento, lembrando como o estado de São Paulo centralizava o setor industrial brasi leiro antes da desconcentração produtiva. Atualmente, municípios de médio porte, espalhados em diversas regiões brasileiras, têm oferecido concorrência, quanto ao crescimento econômico, à região em questão. A região Norte – e de forma semelhante, a região Centro-Oeste – apresentou crescimento populacional na década de 1980, devido à imigração de população para a conquista da fronteira agrícola do país. Porém, o f im de programas de incentivo governamental, bem como dif iculdades técnicas e operacionais característ icas da região, provocaram certa redução deste movimento. Mesmo assim, o saldo migratório para essa região permanece posit ivo, e seu crescimento 29 demográfico – em decorrência também da alta taxa de natalidade – acima da média nacional. A região Sul apresentou, na década de 1980, a menor taxa de crescimento populacional do país, graças, em parte, ao movimento migratório da população rural do Paraná em direção às fronteiras agrícolas, iniciado na década anterior. Contudo, na década de noventa houve recuperação da população, devido ao desenvolvimento industrial. População destinada, como se conclui, à urbanização. No caso da região Nordeste – tradicional fornecedor de migrantes para a região Sudeste – no mesmo período, a criação de pólos de produtividade, como o Pólo Petroquímico de Camaçari, na Bahia, além de outros fatores, que contribuíram para a abertura de novos postos de trabalho, absorveu trabalhadores que tenderiam a migrar, promovendo o retorno de migrantes que haviam deixado a região por falta de emprego. A partir dos anos 1990, entretanto, o crescimento demográfico nordestino sofreu uma forte queda, coincidente com o aumento da emigração de sua população. A esse respeito, o demógrafo Cunha levanta algumas hipóteses a t ítulo de especulação, mas admite que o assunto necessita de maiores estudos, já que o movimento esperado seria – ao contrário – uma menor migração. Fatores como a seca, a redução da pequena propriedade e a crise das maiores cidades da região – locais estes onde bom número dos migrantes se estabeleceria – haveria contribuído para a evasão de nordestinos. 30 Na opinião de Cunha, a transformação demográfica ocorrida no Brasil, documentada por dados dos censos de 1970 a 2000, representa o resultado não só da redução da taxa de fecundidade – de quatro para 2,3 f i lhos por mulher – mas principalmente do fator migração. Em suas palavras: “pode-se deduzir faci lmente que o efeito da migração foi decisivo nesse processo de distr ibuição espacial da população brasi leira” (Cunha, 2003). E ainda: “chama atenção que o volume de pessoas residindo há menos de dez anos nas várias unidades da Federação aumentou signif icativamente, sugerindo, a princípio, um crescimento da mobil idade interna no país” (Cunha, 2003, consulta on- line em 17 dezembro 2004). Nossa questão gira em torno das transformações no psiquismo familiar e na subjetividade de cada indivíduo que compõe toda esta massa populacional, que se desloca em busca de novos horizontes. Como se adaptam, que conseqüências pode esta mobilização acarretar à saúde do migrante. São aspectos que abordaremos a seguir. 2. Migrações, famílias e saúde O tema da migração tem sido abordado – como demonstrou a revisão bibliográf ica – pelas ciências da sociologia, psicologia, história, demografia e antropologia, entre outras. Em estudos internacionais, observamos uma prol iferação de trabalhos acerca das imigrações forçadas, principalmente com refugiados de guerras, no continente europeu, mas também sobre a questão da imigração de sul-americanos para os Estados Unidos ou a adaptação de cidadãos orientais à cultura 31 ocidental. Não nos aprofundaremos na descrição destes, já que não coincidem com nosso objeto de estudo. Em termos nacionais notamos o interesse pelo estudo das populações ou indivíduos que saem dos campos ou de núcleos habitacionais pequenos e se dir igem às grandes metrópoles, principalmente o movimento do nordestino em direção ao sul-sudeste brasi leiro. Almeida (1997) estuda o tema da solidão, baseada em contatos com trabalhadores da construção civil que teriam migrado dentro dos dois anos anteriores, da região nordeste do país para a cidade de São Paulo. Na parte de seu estudo dedicada ao tema migração, vincula o processo migratório ao quadro sócio-econômico, ou seja, é visto como única opção frente à seca ou falta de postos de trabalho na região de origem. Aponta ainda a alteração na dinâmica econômica, marcada pela descentralização industrial, entre outros fatores, como relevante para o aumento da migração para o interior do estado de São Paulo, de forma que cidades de pequeno e médio porte têm apresentado crescimento populacional signif icativo. Um ponto de interesse para nossa pesquisa consiste na constatação de novas característ icas – no processo migratório na últ ima década do século XX – no que se refere à inserção do trabalhador no mundo do trabalho. O setor terciário, ou setor de serviços, tem aumentado sua demanda, o que inf luencia nas correntes migratórias. 32 A busca de melhor qualidade de vida aparece como o motivo da migração, em todos os casos analisados pela autora. É uma busca marcada pelo sentimento de sol idão, o qual não teria conotação necessariamente negativa (sofrimento), mas poderia ser sentida como posit iva (saudade). Tais sujeitos sofrem ainda abalos em sua identidade, sensação de serem estrangeiros excluídos, discriminações e medos de desemprego. Todavia, desenvolvem estratégias de enfrentamento de dif iculdades, que se caracterizam principalmente pela busca de vinculações sociais: amizades, parentes, religiões. Fica claro que os relacionamentos afetivos tornam mais suportável, ou mesmo viabi l izam, o prosseguimento do projeto de vida. Teremos oportunidade de observar o que acontece quando a imigração não se dá em contexto sol itário, mas envolve o núcleo familiar completo. Azevedo (1993) enfoca a imigração sob o ponto de vista psicológico, tendo como objeto de estudo o movimento de mudança das cidades do interior dos estados de Minas Gerais e Rio de Janeiro para a capital carioca. Embora trabalhe com sujeitos jovens que migraram individualmente, constata que a famíl ia intervém determinantemente nos processos de migração. A princípio, coloca algumas diferenças entre as culturas familiares rurais e urbanas, considerando que os municípios interioranos menores ainda são fortemente inf luenciados por tais culturas, de característ icas predominantemente patriarcais: hierarquia de papéis familiares, submissão feminina; mas também cujos laços de 33 sustentação social são mais fortes, de forma que o indivíduo se sente mais protegido. Por outro lado, as grandes cidades favorecem a superf icialização das relações sociais, segundo a autora, levando o ser humano ao isolamento. Aponta o desenraizamento como sentimento básico vivido pelos migrantes, caracterizando-o como perda de referenciais: temporais, espaciais, culturais e afetivos. Evidencia a força da inst i tuição familiar na cultura brasi leira, de forma que separar-se desta unidade tem um signif icado maior do que em sociedades mais individualistas. Azevedo (1993) observa que “quem migra junto ou ao encontro de alguém, tende a ter sua adaptação faci l itada já que este outro representa uma ponte entre o novo meio que ele encontra na rua, e o familiar que ainda lhe é acessível ao voltar para casa” (1993, p.200). Poderemos, ao enfocar famíl ias migrantes, avaliar a ef iciência, ou não, deste ponto de referência familiar, correspondente ao conceito de eu- familiar explorado por Eiguer, o qual teremos oportunidade de explicar no capítulo seguinte. Cavalcanti (1999) mergulha na vida da comunidade pernambucana de São Severino “dos Macacos” em busca da compreensão do mecanismo social de saída da pobreza, efetivado com o processo de migração para a cidade de São Paulo. “ .as prát icas sociais de saída da pobreza [podem] ser consideradas aqui como processos psicossociais. O confl i to e o desejo de sair da pobreza atuam no imaginár io social e nas representações dos indivíduos e vice-versa, mediante a cr iação de imagens, de ideais, de uma abstração sobre caminhos possíveis, ações possíveis. Neste estudo, procuro entender como essas interações do social com o psíquico atuam nos vários movimentos de l idar com as dif iculdades que uma situação de pobreza produz, na escolha entre f icar no lugar 34 de origem ou deslocar-se para outro meio, caminhos de não conformação” (Cavalcanti, 1999, p.17). Em um consistente trabalho de doutorado que tem como hipótese o fato do deslocamento para a grande cidade provocar mudanças no imaginário dos sujeitos, que por sua vez produz o movimento de saída da pobreza, a autora trabalha com f ilhos, pais e avós, a f im de observar tais mudanças no transcorrer das gerações. Acredita que movimentos de deslocamentos constantes aos quais aquela população – e poderíamos general izar para a população rural nordestina – se submete, é mais do que a repetição de uma herança relacionada com os ancestrais ou uma determinação sócio-cultural, mas evidencia um caminho criat ivo de busca de singularização, de um lugar próprio no mundo, resgatando o mérito pessoal frente a um estigma social. Evidencia a extrema importância da família para aquele grupo social, em termos tanto afetivos como de sobrevivência econômica, bem como as relações de parentesco mais amplo e de amizade. Mas, acima de tudo, vislumbra as possibil idades de transformações psíquicas dos sujeitos agindo por trás dos determinismos e preconceitos sociais e muitas vezes construindo táticas para viver do melhor modo possível na sociedade moderna. Ainda enfocando o processo migratório do nordeste para o “sul- maravi lha” – expressão citada por alguns autores para expressar o conteúdo imaginário de idealização com o qual principalmente a cidade de São Paulo é investida –, cabe comentar o trabalho de Mahfoud (1990) com migrantes baianos operários na grande São Paulo. 35 “A primeira característ ica que salta aos olhos é a de que t ratam de suas vidas como um processo de migração. Essa característ ica está sempre presente, tratem quer do passado, quer do presente e mesmo do futuro” (Mahfoud, 1990, p23). Nessas palavras o autor ressalta o peso da vivência da migração na subjetividade da pessoa que migra. A migração assume um sentido de inexorabil idade, nas circunstâncias abordadas nas pesquisas citadas até então – excetuando-se a pesquisa de Azevedo (1993) com jovens de classe média –, ou seja, em situações socialmente precárias e em função da garantia da sobrevivência, mesmo f ísica, própria ou da família. Passa a ser considerada como a única opção que resta ao sujeito, vít ima de um determinismo social que não lhe dá outra escolha. Ao contrário, em nossa pesquisa, poucos são os que se sentem sem opção. Melhor dizendo, a real idade social diferente das observadas nas pesquisas anteriormente citadas proporciona, à maioria dos nossos entrevistados, maior l iberdade de opção existencial. No entanto, percebemos semelhança signif icat iva entre nossos resultados e os obtidos em outras análises, no que tange às conseqüências emocionais do processo migratório, como: desidentif icação, percepção de alterações espaço-temporais, choques culturais, busca de laços famil iares no novo lar, entre outros. Também f ica claro que, independentemente da classe social do indivíduo e da possibi l idade ou não de escolher engajar-se no processo migratório, dois fatores marcam tanto a procura pela migração, quanto a qualidade da adaptação ao novo lugar de vida: a famíl ia e o trabalho. Talvez possamos trazer como questão contemporânea a exclusão ou 36 inclusão no mundo do trabalho, fator comum tanto aos mais favorecidos economicamente quanto aos menos. Nosso foco de interesse neste estudo, não obstante, consiste na questão da famíl ia. Passaremos, então, aos autores que enfatizam a família como grupo primário de grande importância e que desenvolveram pesquisas que ressaltam a compreensão dos aspectos psicológicos familiares inerentes ao processo de migração. Mota, Franco e Motta (1999) elaboraram um estudo, baseados no referencial teórico de estresse e suporte social, no intuito de avaliar a correlação entre processos adaptativos e estados de saúde. Consideraram a migração como um fator psicossocial capaz de alterar a organização familiar. Tais autores definem a migração como “processo social determinado pelo modo como uma dada organização social provoca desequilíbrios entre grupos populacionais” (Mota, Franco e Motta, 1999, consulta on-l ine em 17 dezembro 2004). Considerando a migração como o fenômeno da mudança de residência que envolve o cruzamento da fronteira de uma unidade administrativa, apontam que as conseqüências no estado de saúde variam conforme característ icas do migrante, sejam elas: sexo, idade, raízes étnicas. Ressaltamos a observação dos autores de que as razões que motivaram a migração e as expectat ivas e crenças quanto à mudança também devem ser levadas em conta nos fatores de risco à saúde. 37 Em termos gerais, segundo Mota, Franco e Motta (1999), o estresse psicológico envolvido na situação de migração gera um potencial patogênico. Mesmo alterações no ambiente f ísico e cultural, como por exemplo, a migração do campo para a cidade, ou vice-versa, podem gerar conseqüências no funcionamento orgânico e emocional do migrante. Uti l izam o conceito de alienação para expor os sintomas possíveis de estresse no processo migratório. Definem alienação como “qualquer t ipo de afastamento ou separação social” (Mota, Franco e Motta, 1999, consulta on-line em 17 dezembro 2004). Seriam sintomas da alienação: impotência, auto-estranhamento, isolamento, ausência de sentido e vazio. A impotência seria um tipo de desamparo aprendido, resultado da frustração ocorrida perante a exposição repetida a estímulos negativos. O isolamento signif icaria o sentimento individual de separação da rede social. A ausência de sentido – conceito dif íci l de ser def inido, segundo os autores – teria relação com senso de signif icado, ou senso de propósito, que o indivíduo deveria ter para se sentir motivado a enfrentar problemas, e se adaptar ao novo ambiente. Tais dimensões, envolvidas no processo migratório, são alguns dos fatores que procuraremos explorar em nossa pesquisa. Entre os conceitos trabalhados, investigamos o de sentimento de pertença, desenvolvido na teoria psicanalít ica de famíl ia. Este sentimento se refere à familiaridade que as pessoas experimentam em seus ambientes naturais. A percepção de ser aceito e reconhecido 38 alimenta uma sensação de proteção que, no caso do migrante, encontra-se abalada, gerando estresse. Continuando o estudo sobre migração e saúde, os autores conferem que a literatura disponível se refere aos processos imigratórios relativos ao movimento de deslocamento internacional, de forma que fatores como diferenças de idioma e cultura são considerados obstáculos mais dif íceis de serem superados, do que o estresse l igado a fatores psicológicos. Não podemos ignorar que alterações objetivas, como a questão do idioma, possam trazer maiores complicações ao processo migratório, mas concluímos, analisando este artigo, que mesmo a migração interna representa risco de estresse psicológico, o que justif ica nosso trabalho. Outro importante fator que interfere no impacto da migração na saúde física e psíquica do migrante, segundo Mota, Franco e Motta (1999), seria o ambiente psicossocial. Dentro da questão psicossocial, resgatamos o que os autores salientam a respeito da família, nosso objeto de pesquisa: “As mudanças que ocorrem antes e depois da chegada no novo ambiente podem romper relacionamentos entre membros famil iares e perturbar a organização famil iar, fazendo o processo de elaboração mais dif íc i l . Espin (1987) revela com seu trabalho a existência de fatores intrapsíquicos que se relacionam com o processo de adaptação de migrantes. Este autor destaca que pode haver diferenças de gênero nos mecanismos ou na intensidade com que os indivíduos são afetados por estes fatores e que membros famil iares podem vivenciar o fortalecimento dos seus laços ou a ruptura dos mesmos” (Mota, Franco e Motta, 1999, consulta on- l ine). No momento em que a sociedade vive os paradigmas da globalização e da individualização, gostaríamos de resgatar a 39 importância de um ponto de referência grupal, na vida psíquica e prática do ser humano. Partiremos, desta forma, do pressuposto de que a inst ituição famil iar – permeada pelo inconsciente familiar, no qual tem lugar o movimento de transmissão psíquica – continua funcionando como proteção e mediação entre o indivíduo e o grupo social maior. Considerando o conceito de transmissão psíquica, Hashimoto (1995) investiga a subjetividade de imigrantes japoneses, em sua vinda para o Brasi l no início do século XX, em busca de oportunidades de trabalho. Baseado numa visão psicanalít ica, elabora uma compreensão de importantes dimensões psíquicas dos sujeitos, enfocando tanto o indivíduo como o grupo familiar. Fala dos desejos e dos mecanismos defensivos, do sofrimento e da util ização de recursos para a sobrevivência emocional numa terra inóspita. Uti l izando poeticamente a percepção do tempo e das estações do ano, mostra como os imigrantes se sentiam privados do referencial externo, espaço-temporal. Compreende as representações psíquicas familiares das estruturas de espaço e tempo e ref lete sobre como tal desamparo dif icultou a adaptação do imigrante à nova terra. Importante referencial para nossa pesquisa, uti l iza conceitos da psicanálise de família, inclusive autores como Eiguer, que pesquisamos por nossa vez, embora trabalhe com a análise f inal dentro de aspectos da psicologia individual. Okamoto (2001) também estuda a imigração de japoneses para o Brasil, abordando em seu trabalho a constituição das associações nipo- brasi leiras que foram fundadas por estes imigrantes. A autora trabalha 40 com a teoria psicanalít ica de famíl ia e com o conceito de rede social. Revela que a formação destas associações derivou da necessidade de refazer laços afetivos e reconstituir uma rede social, perdida com a mudança de país. Aponta também que este movimento aconteceu só após a constatação, pelo imigrante, de que a estadia no Brasi l seria definit iva, já que, a princípio, a vinda teria sido provisória, objet ivando ganho econômico e retorno à terra natal. Segundo a autora, através da formação das agremiações, os japoneses e seus descendentes puderam manter viva a cultura e as tradições do Japão, o que demonstra a valorização e o signif icado interno desse legado cultural. Esta pesquisa tem como eixo central de análise os conceitos da psicanálise de família, tais como o ideal de ego, o habitat interior e sentimento de pertença famil iar. Tais conceitos serão de grande importância para o nosso trabalho, servindo inclusive como orientador para a análise do material. No entanto, algumas diferenças pautam as duas pesquisas: Okamoto (2001) uti l iza o conceito de rede social e trabalha com uma população específ ica de migrantes japoneses, enquanto que em nossa pesquisa não util izaremos o conceito de rede social, mas trabalharemos com a transmissão psíquica intergeracional e com uma população brasi leira, caracterizada pelo movimento de migração interna. Machado (1997), estudando historicamente as mudanças nas relações intrafamiliares decorrentes do fenômeno migratório, procurou esclarecer algumas estratégias familiares e individuais de adaptação 41 ao novo meio. Trabalhou com a genealogia de uma família imigrante de origem germânica, estabelecida em Curit iba (PR) há um século e meio. Naquele contexto, observou a manutenção da endogamia étnica, rompida apenas na quarta geração, o que denotou a existência de uma comunidade fechada, resistente a integrar-se ao novo ambiente. Além da tradição cultural, a condição sócio-econômica e o trabalho também inf luenciaram na união dessa comunidade. Gradualmente as relações sociais foram sendo ampliadas e a noção de comunidade superou os limites da etnia. Mesmo assim os casamentos continuaram a ser efetuados dentro da comunidade. A esse respeito, a autora coloca que: “Embora os estudos sobre imigração tendam a caracter izar a mulher como ponte entre as gerações para a preservação da identidade étnica, pode-se imaginar o caráter muito mais amplo desse papel social feminino: o controle de sua socialização como meio de preservação dos laços comunitários” (Machado, 1997, consulta on-l ine em 17 dezembro 2004). Podemos considerar o papel feminino como sendo de grande importância para a manutenção do núcleo familiar e este, por sua vez, como base da comunidade, conseqüentemente estruturador das aglomerações urbanas. Famíl ia, comunidade, cidade: a mulher atuando no processo de enraizamento da sociedade. Mudando o enfoque para a questão da herança intergeracional, Machado (1997) aponta que a tendência a dar continuidade à prof issão ou ao conhecimento técnico passado de pai para f i lho diminuiu a cada geração, naquele contexto, assim como a manutenção da tradição cultural endogâmica tendeu ao afrouxamento. Podemos entender que a adaptação a um novo meio social exigiu um questionamento e a 42 modif icação criat iva do legado intergeracional, numa direção mais individualista, ou pessoalizada. Entraremos, enf im, na abordagem teórica do assunto, de forma a basear a uti l ização de tais conceitos. 43 II - CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS ACERCA DA FAMÍLIA Existem diversas dimensões a serem consideradas quando se busca definir psicanalit icamente a insti tuição famil iar. Berenstein (1988), ao elaborar uma definição de família, refere-se a duas diferentes ordens. A ordem teórica consiste na definição do sistema familiar como contendo no mínimo os três tipos de relações de parentesco: a relação de consanguinidade, a relação de aliança e a relação de f i l iação. A ordem empírica consiste na percepção dos membros da família, ou seja, o que denominam família, que pessoas fazem parte daquele núcleo familiar, segundo o apontamento do próprio grupo. Desta forma, pode ser considerado o conjunto restr ito pai-mãe- f i lhos, ou as pessoas que habitam sob o mesmo teto, ou ainda as pessoas com as quais se tem um contato afetivo mais ínt imo. Uma ampliação deste conceito, através da consideração do contexto espaço-temporal, pode ser encontrada na definição de Soifer, que caracteriza a famíl ia como: “um núcleo de pessoas que convivem em determinado lugar, durante um lapso de tempo mais ou menos longo e que se acham unidas (ou não) por laços consangüíneos. Este núcleo, por seu turno, se acha relacionado com a sociedade, que lhe impõe uma cultura e ideologia part iculares, bem como recebe dele inf luências específ icas.” (1982, p.22). Soifer (1982) aponta a continência como uma das funções familiares. Discorre, especif icamente, sobre a função de conter as partes imaturas da personalidade, presente nos f i lhos enquanto crianças de forma concreta, e nos demais adultos da famíl ia, de forma 44 inconsciente. Através da convivência com o amor, com a solidariedade e com o respeito espera-se que se dê o controle dos sentimentos e ansiedades infantis. Em termos psicológicos, a criança, tomando os membros de sua família como modelo de maturação e como possuidores de habil idades para sobreviver no mundo lá fora, vive a evolução, de acordo com Soifer, “da relação narcísica de objeto, para a relação objetal, que culmina com a instalação do superego” (1982, p.23). Inicialmente caracterizada por uma simbiose biológica, a relação criança-família saudável tende a se desenvolver devido ao impulso para o crescimento infantil, que, segundo a autora, é biologicamente determinado. A introdução das crianças no mundo externo pressupõe que os adultos responsáveis lhes transmitam a noção de l imites, de forma a capacitá-las a impor um controle sobre suas fantasias onipotentes. Imbuídos da autoridade parental, devem desempenhar esta função, que, em si própria, leva ao discernimento entre a fantasia e a real idade. Tal ensinamento fundamental constitui uma árdua tarefa para o adulto, devido à força dos impulsos autodestrutivos presentes no ser humano. Até o momento, colocamos como importante função familiar a formação de seus novos membros, numa ênfase à distinção de papéis, a saber, os adultos que ensinam e provêem, e as crianças, que são objeto de cuidado. No decorrer da vida familiar, a dialética dos papéis f ica mais evidente, na medida em que as crianças ampliam seu ambiente vital. Ao término da infância, a hierarquia familiar, no que 45 toca ao acesso ao conhecimento, se equil ibra, dando oportunidade aos diversos membros familiares para desenvolver relacionamentos humanos nivelados. Para desempenhar o papel de adulto responsável por uma família, o indivíduo lança mão de recursos e defesas aprendidos e construídos durante sua própria iniciação como ser humano, no relacionamento com seus pais e famil iares, que, por sua vez, lhes foram ensinados por seus pais ou responsáveis. Estes, igualmente, recorreram a experiências vivenciadas por seus pais e assim por diante. Tais modelos vão sendo introjetados como dinâmicas psíquicas e se reproduzem inconscientemente, nos relacionamentos interpessoais. Guardadas as devidas ressalvas para a possibil idade do indivíduo ser capaz de questionar ou modif icar os modelos parentais por si próprio, nos deparamos aqui com o cunho determinista da cultura familiar. De geração em geração, constrói-se um modelo familiar psicológico de enfrentamento da realidade. É fácil observar nas famílias como as configurações reproduzem-se rigidamente, a despeito, muitas vezes, das alterações do meio-ambiente. A respeito deste fato, Schützenberguer, citando o conceito de Boszormenyi-Nagy do mito famil ial, diz que: “o indivíduo é uma entidade biológica e psicológica – eu acrescentar ia psicossocial – cujas reações se determinam tanto por sua própr ia psicologia como pelas regras do sistema familial. Em um sistema famil ia l, as funções psíquicas de um membro condicionam as funções psíquicas do outro membro: há uma regulagem recíproca contínua, e as regras que dizem respeito ao funcionamento do sistema famil ia l são tanto implíc itas como explíc itas, mas, pr incipalmente implíc itas. E dela não são conscientes os membros da família" (1997, p.30). 46 Concluímos, com estas observações, como se torna importante o conhecimento da história da famíl ia num sentido mais amplo: que tipo de afeto permeia a comunicação, a ideologia intrínseca a determinada família e o t ipo de defesa que a caracteriza. A consciência dos fatos, ou seja, a compreensão das redes inconscientes em que as pessoas encontram-se entrelaçadas, pode l ibertá-las para uma dimensão mais pessoal de existência. Mas que poder é esse que envolve o indivíduo e transcende sua psique pessoal? Como chegamos a vislumbrar teoricamente a força abstrata do inconsciente familiar e como ela se constitui? A psicanálise buscou responder a tais questões, partindo de um momento anterior à existência da família como inst ituição. O nascimento do inconsciente familiar A impossibi l idade de vida humana em situação de isolamento aponta para uma das mais marcantes característ icas do homem, que consiste em exist ir como ser social. Sua imperfeição o move em direção a uma existência grupal, de forma a que desenvolva entrelaços sociais e psíquicos com outros de sua espécie, na medida em que é um ser inacabado. Apesar disto, nos primórdios do estudo da psique, a psicanálise chegou a considerá-la como uma entidade monádica, inerente ao indivíduo e independente da relação eu-outro. Mas Freud – já em 1912, em Totem e Tabu, e posteriormente em 1921, em Psicologia de grupo e análise do ego –, trabalhando na relação entre psicologia individual e 47 psicologia social, enfatizou quão dif ícil seria a tarefa de investigar a psique individual no homem isolado, já que para o ser humano o outro é imprescindível, seja como modelo, objeto de afeto ou adversário. A partir da análise de estudos antropológicos, em Totem e Tabu (1912), Freud desenvolveu a hipótese de que a família não constituiria o primeiro sistema social no qual o ser humano se veria inserido. Anterior a tal estrutura, nos primórdios da humanidade, considera-se que haveria existido um sistema classif icatório de parentesco, baseado no totemismo e em seu sistema de leis, o qual incluir ia a exogamia e a proibição do incesto. O totem consist iria num símbolo dinâmico para tais sociedades: o primeiro antepassado, posteriormente assimilado como o espírito guardião, sendo por f im representado por algum animal (ou fenômeno da natureza). Um dos primeiros traços herdados na história da humanidade, o laço totêmico seria mais forte do que a consanguinidade. Considerado como um perigo que ameaçava todo o grupo, o incesto teria a intensidade e a ambivalência de um tabu, de algo ao mesmo tempo sagrado, misterioso e perigoso, impuro. Sua proibição ampliava-se para todos os membros de um mesmo clã e não se relacionava aparentemente com o fato de gerar f i lhos, mas chegava a restringir qualquer contato, principalmente entre irmãos e irmãs e entre f i lhos e mães. Julgando a necessidade de compreender a origem do tabu do incesto, Freud passou a pensar no surgimento da exogamia. Localizou 48 sua origem num momento anterior ao do totemismo e formulou a hipótese de que o ser humano habitaria em pequenas hordas primevas – num modelo darwiniano – onde exist ir ia um macho vivendo com quantas fêmeas pudesse al imentar e proteger. Este macho defenderia seus domínios de outros machos mais novos – seus descendentes – que, sendo expulsos como rivais, ir iam procurar estabelecer seu território com outras fêmeas. Os machos mais novos – unidos por laços fraternos – juntar-se- iam, matariam e devorariam o pai, colocando um f im à horda patriarcal. Isto teria sido possível devido à união de todos na inveja e temor ao pai. Devorando-o, cada um deles adquirir ia parte de sua força. No entanto, além desses sentimentos, os f i lhos também nutririam a admiração e o amor ao pai, que derivou no remorso e no sentimento de culpa pelo crime cometido, impossibil itando que algum deles assumisse então o posto do pai, que jazia morto. A insti tuição da proibição do incesto teria sido o instrumento que manteria a união grupal da horda, antes patriarcal, agora fraterna. Como nenhum dos machos destacar-se-ia na assunção ao lugar do pai e da ordem, e em vista do desejo disseminado pelas fêmeas do grupo, o tabu do incesto coibir ia as lutas internas e possibil itaria a coexistência dentro desse grupo. A tentativa de anular o próprio ato criminoso originou a proibição subseqüente do ato. A morte do ancestral (totem) foi proibida e inst ituiu-se a renúncia às mulheres do clã, através da interdição do incesto. 49 A hipótese freudiana, brevemente retomada aqui, nos leva a vislumbrar um processo histórico da constituição grupal da humanidade que teria t ido início com as mencionadas hordas primevas, transformando-se então em clãs totêmicos. O totemismo foi considerado por Freud como presente na origem da organização social, das leis morais e da rel igião. O desfecho deste processo resultou na constituição dos dois principais tabus da humanidade desde então, que em desenvolvimentos posteriores resultaria no que, na nossa sociedade, seria conhecido como complexo de Édipo. Desse movimento também seria derivada a memória mítica do grupo original. A partir daquele momento, o ser humano levaria consigo a missão de viver em sociedade. Cada indivíduo traria, ao nascer, uma dívida f i logenética, nas palavras de Eiguer (1985). A convivência grupal aconteceria como um destino natural da espécie humana. Considerando que a família surge, em nossa sociedade, como o primeiro espaço grupal – essencial para a constituição psíquica do sujeito – antes e após seu nascimento, justif ica-se o forte elo inconsciente existente entre os membros familiares, a ponto de formarem um psiquismo único. A transmissão psíquica Correa (2000) – estudando a dimensão grupal na construção da subjetividade – aponta o desamparo inicial do ser humano como fator decisivo neste sentido, na medida em que propicia a criação de: 50 “um vínculo de dependência do sujei to em relação a seu grupo primário ou famil iar. Expresso em diferentes níveis, como a al imentação, os afetos e a proteção, esse vínculo de dependência se associa a um sistema de signif icações fornecidas ao sujei to. Como conseqüência, impõe-se constantemente um poder modelador, exercido em pr imeiro lugar pela função parental e pelos grupos primários” ( Correa, 2000, p.58). René Kaës (2001) trabalha com a idéia de que a psique, derivada da experiência corporal e da vivência intersubjetiva, vem a ser determinada pela condição de herdeira da subjet ividade humana. Procuraremos explicar aqui as proposições desse autor, baseadas em Freud. A origem da psique individual precede o sujeito, foge ao controle deste na medida em que a concepção deste sujeito consiste no resultado da determinação do desejo do outro, seu ancestral. Paradoxalmente, para exist ir, o sujeito enfrenta a necessidade de apoderar-se de seu destino, de personalizar sua psique. O nascimento do sujeito é um movimento de encontro de mais do que um casal. Cada um dos componentes do casal vem precedido por um grupo; portanto, o ser humano é nomeado, delineado, recebido e sonhado por um conjunto da humanidade que o precede. O desejo dessa humanidade o cria. Tal desejo encontra-se corporif icado pelo desejo da mãe (f igura materna) pelo f i lho. Inexiste psique humana isenta desta condição. Nas palavras de Kaës: “O grupo precede o sujeito do grupo: isto signif ica que, de certa maneira, não nos é dado escolher não ser incluído no agrupamento, assim como não nos é dado escolher ter ou não ter um corpo; é assim que vimos ao mundo, pelo corpo e pelo grupo, e o mundo é corpo e grupo. A subordinação ao grupo funda-se na inelutável rocha da 51 real idade intersubjet iva como condição de existência do sujeito humano” (Kaës, 2001, p.13). O autor enfatiza ainda que nosso destino é sermos herdeiros da humanidade e somos desta forma precedidos por determinações culturais l ingüísticas e corporais, informações transmit idas de geração em geração, das quais nos apropriamos em larga medida de forma consciente e prática. Tal herança, denominada intergeracional , constitui-se de conteúdos que permeiam nossa história de vida familiar, organizada e introjetada a partir de imagos, fantasias e identif icações elaboradas pela psique individual. Portanto, fazem sentido em nossas vidas e até as constroem. Outro quantum de informação transmitido psiquicamente habita o inconsciente, de forma que nossa vida vem a ser direcionada e inf luenciada por conteúdos anônimos e inacessíveis ao controle. Esta qualidade de herança – denominada transgeracional – caracteriza-se por ser composta de elementos brutos – vivências traumáticas, segredos familiares – os quais não passaram por elaboração pelas gerações anteriores. Movimenta-se atravessando autonomamente os espaços psíquicos dos herdeiros, por vezes irrompendo alternadamente nas psiques individuais, “pulando” gerações. São legados que não fazem sentido, por não apresentarem elo de ligação com conteúdos pessoais do sujeito. Segundo Kaës (2001), nossos ancestrais de certa forma nos tornam reféns de seus desejos insatisfeitos, seus recalcamentos, suas renúncias: 52 “De nossa pré-história tramada antes de nascermos, o inconsciente nos tornará contemporâneos, mas só passaremos a ser seus pensadores pelos efeitos a posteriori . Essa pré-história em que se constitui o or iginár io, a de um começo do sujeito antes de seu advento, se escreve na intersubjet ividade. Arr isquei formular que o sujeito é primeiro um ‘intersujeito ’” (Kaës, 2001, p.13). Tanto a herança intergeracional, quanto a transgeracional, são movimentadas por transmissões psíquicas. O impulso de transmitir consiste num imperativo inconsciente do qual depende a sobrevivência da espécie humana. No entanto, surge eventualmente a urgência em interromper a transmissão, quando esta se caracteriza como fonte de sofrimento. No momento em que o indivíduo se vê invadido por forças de heranças violentas, identif icadas apenas como um não-eu – tal qual uma possessão –, torna-se impossível a elaboração do legado e assim se constitui a enfermidade. Kaës explica que Freud pesquisou três t ipos de transmissão: a intrapsíquica, inerente às formações intermediárias, faz a ponte entre as instâncias inconsciente/pré-consciente, sonho/vigíl ia; a transpsíquica, através dos sujeitos e apesar deles, não aceita l imites nem espaços subjetivos, é concernente à multidão e se baseia no contágio psíquico. E f inalmente a que será abordada aqui: a transmissão intersubjetiva. Entendemos que a transmissão intrapsíquica é o movimento de translação das representações psíquicas, com seus diferentes graus de intensidade, de uma instância a outra do aparelho psíquico. Esta compreensão se baseia no ponto de vista econômico, caracterizado pelo f luir de afetos, deslocamentos de energia e investimentos libidinais. 53 A transmissão transpsíquica, como diz o próprio nome, já pressupõe a existência da possibi l idade de um processo psíquico externo ao sujeito, e vai mais além, não se restringindo ao limite individual, mas transpassando a psique pessoal. A transmissão intersubjetiva tem como espaço o grupo familiar, ou grupo primário, denominado espaço da intersubjetividade, que precede o sujeito singular. O grupo encontra-se estruturado por uma lei constitut iva, e é onde seus sujeitos/membros estabelecem relações de diferença e de complementaridade. A transmissão se desenvolve num processo de escoamento e tem como característ ica a mobilidade, a continuidade espaço-temporal. No entanto, sua temporal idade pode variar de linear a circular, ser intermitente, ou ainda, esburacada. O transmit ido é conservado em forma de traços, tal qual memórias de modelos básicos. “A memória do afeto e da representação será um traço que poderá seguir um destino no inconsciente; ele se manterá vivo, apesar do recalcamento, fora da consciência do sujeito. O que se transmite é o afeto e o representante da pulsão” (Kaës, 2001, p.41). O processo de transmissão implica a existência de uma barreira de proteção, que f i ltra o trânsito do conteúdo transmitido. Esta mediação faz-se pelas pára-excitações. Neste sentido, o ego exerce a função de articulação. A existência de um mecanismo de regulação da transmissão psíquica é o diferencial entre a transmissão intersubjetiva e a transpsíquica. E esta resistência egóica é fundamental para a garantia da integridade psíquica do indivíduo. 54 Conforme salienta Kaës, Freud percebeu que a transmissão psíquica relaciona-se com o laço entre as gerações, e que esse entrelaço contribui para a formação do psiquismo. Buscando compreender como se daria esta relação, encontrou a resposta na questão do tabu e na sua transmissão por contágio. Definindo tabu como “código não-escrito mais antigo da humanidade” (Kaës, 2001, p.49), o autor explica sua transmissão por contágio: a proibição é expandida para todos os sujeitos humanos. Seus desejos, deslocados constantemente, acabam buscando realização através de atos ou objetos substitutos, criando assim a cultura. Tais proibições, repetidas de geração em geração e sustentadas pela tradição, foram incorporadas ao aparelho psíquico dos sujeitos herdeiros, tornando-se o que Freud chamou de partes orgânicas da vida psíquica. Desta forma, fazem parte da vida psíquica – derivados de uma herança transmitida inconscientemente – tanto o desejo como o tabu, ou seja, a tendência à transgressão deste código. Assim se constitui a humanidade: em cada um dos sujeitos, em cada psique individual. A psique do ser humano leva uma marca de duplicidade em sua constituição: por um lado a individualidade; por outro, a colet ividade – ou o desígnio de fazer parte da humanidade. Poder apropriar-se do legado e “sujeit i f icá-lo”, determinando-o em si mesmo, é o que constrói a individualidade. Para tal ut i l izamos o que Freud denominou aparelho para interpretar – o aparelho inconsciente 55 da transmissão – que confere sentido ao transmitido. A recepção da herança não se dá de forma passiva, mas é vivenciada simbolicamente, com o movimento de re-atualização desta numa individualidade. Evelyn Granjon (2000) trabalha com a questão da art iculação da realidade psíquica do sujeito singular com a realidade psíquica do grupo, e entende que a vida psíquica é transmit ida de geração em geração, de forma a caracterizar-se por uma continuidade – que também é encontrada no inconsciente – entre grupo e indivíduo. Acredita que o inconsciente é ao mesmo tempo individual e grupal. Seguindo o pensamento dessa psicanalista francesa, podemos dizer que o processo de transmissão psíquica, caracterizado pela continuidade, anula a concepção temporal de presente-passado-futuro, fundando uma mistura de tempos que se aglutina no aqui-e-agora do indivíduo singular. Como, então, elaborar uma organização egóica baseada na orientação espaço-temporal-real itária perante experiências tão anacrônicas? Este é o desafio da pessoa singular: construir uma subjetividade própria, nascida de tantas heranças. O indivíduo ocupa um lugar nesta teia geracional, local este determinado antes de seu nascimento e inscrito nas relações grupais pré-existentes. O grupo familiar é a primeira estrutura – por isto denominada grupo primário – a receber o sujeito. Formado por laços (al iança, f i l iação e fraternidade), tem funções específ icas e f inal idades particulares, principalmente a de perpetuação de si próprio. 56 O aparelho psíquico familiar, conforme foi entendido por Granjon (2000), compõe-se de um espaço psíquico e de um tempo psíquico próprios do grupo familiar. A origem desse aparelho se dá na aliança, no encontro do casal, e constitui-se da composição da herança genealógica dos dois parceiros, que por sua vez é resultado da transmissão psíquica transgeracional, com suas marcas e traumas. A transmissão psíquica vai além de um processo de comunicação puro e simples, envolvendo a transformação do que é herdado. O problema se dá quando acontece algum empecilho à comunicação ou à aceitação do conteúdo transmit ido. Neste sentido, Granjon coloca uma dist inção entre duas modalidades de transmissão psíquica: uma estruturante, outra alienante da personalidade individual. Assim como Kaës, aquela autora enfatiza a inerência da transmissão psíquica intergeracional ao ser humano, como instrumento constituinte da cultura da humanidade. Uma geração não pode prescindir do conhecimento adquirido pela geração anterior, com o risco de ter que voltar a estaca zero em termos culturais e evolutivos. Quanto ao pessoal, cada ser humano tem uma história familiar e um lugar no mundo que o contextualiza e sedimenta suas novas experiências. Nesse sentido, é estruturante de sua personalidade. Mas a transmissão psíquica transgeracional se torna alienante na medida em que impõe um conteúdo em estado bruto ao herdeiro ou desrespeita os limites subjetivos de espaço-tempo, bem como a capacidade egóica de elaboração do legado. 57 Fustier e Aubertel (1998) explicam o mecanismo que acaba por produzir um sintoma naquele que herda o objeto da transmissão transgeracional: “O aparelho psíquico famil iar, art iculando o eixo de geração e o eixo intragrupal, irá del imitar um espaço psíquico grupal no inter ior do qual o que é vivo, o que se experimenta na atual idade, irá poder inscrever- se em uma cadeia de sent ido tanto famil iar quanto indiv idual. Mas, pode-se produzir uma quebra nesta cadeia de sentidos, uma alteração nas capacidades de elaboração l igadas ao funcionamento do aparelho psíquico famil iar ” (Fustier e Aubertel, 1998, p.135). Para exemplif icar a questão do legado não assimilado, podemos recorrer à imagem de um armário, herdado de um parente ancestral, que contém em seu interior um esqueleto. Existem, de fato, vários “esqueletos” – faltas, culpas, interditos, mortes, delitos – que devem ser passados de geração em geração e que não podem ser simplesmente abolidos. No entanto, ninguém em sã consciência se dispõe a confrontá-los espontaneamente, de forma que diversos mecanismos de defesa são desenvolvidos, com a f inalidade de que o legado prossiga seu caminho, sem que seja pelo sujeito elaborado ou integrado à sua existência pessoal. Forma-se em torno daquele “esqueleto” um halo de terror e mistério inconsciente, muitas vezes mais pavoroso ainda que o próprio esqueleto. Esta poderosa aura congela o legado como está. O tempo vai passando e o processo de imposição deste para a próxima geração segue tendo continuidade. O próximo sujeito é obrigado inexoravelmente a receber tal conteúdo, cuja história ele não conhece, nem pode acessar ou transformar. Vê-se impregnado por acontecimentos, memórias ou 58 afetos irrepresentáveis, pois soltos no espaço-tempo de sua subjetividade. Seus laços afetivos familiares muitas vezes não explicam nem são continentes ao legado – de forma que se constitui numa ilha de não-eu psíquica, resultado de uma falha no processo de transmissão familiar, e motivo de grande sofrimento. Tal sofrimento muitas vezes segue gerando cisões psíquicas: defesas util izadas conforme a possibil idade de elaboração egóica. Assim é que, muitas vezes, nos deparamos com sintomas ou vivências que não fazem sentido para seu portador, nem mesmo para seu grupo familiar imediato, já que não se encontram inscrições deste na história famil iar, devido à impossibil idade de elaboração do traço que deu origem ao sintoma, pelo aparelho psíquico daquela famíl ia. Cada família l ida de determinada maneira com os eventos da vida – de forma traumática ou não – de acordo com a capacidade de continência de seu aparelho psíquico familiar. Segundo Fustier e Aubertel (1998), “essa continência passa pela aceitação da mudança, pela possibi l idade de ‘pôr no passado’ os acontecimentos, isto é, pela capacidade de a famíl ia efetuar um trabalho de luto” (p.137). Vivências traumáticas provocam sofrimento nas famílias e sobrecarregam seu aparelho psíquico, de forma a provocar o sentimento de aniquilamento. O mecanismo de defesa familiar é imediatamente ativado, levando a um recrudescimento dos vínculos familiares. Granjon aponta a função f i logenética do aparelho psíquico familiar, já que 59 “O projeto do grupo famil iar é transmitir a herança psíquica adquir ida e fundadora de cada um e do conjunto, e perpetuar-se , dando a vida para além dos mortos, conservando sempre sua identidade, sua ‘alma’, isso graças e por meio das gerações e das al ianças” (Granjon, 2000, p.20). A aliança entre um casal, e a constituição de uma nova famíl ia, asseguram a continuidade da transmissão psíquica de ambos os grupos de origem. Abordaremos então o processo de formação desta nova aliança, que virá a se encaixar nesta corrente de gerações através das quais o inconsciente vai moldando os psiquismos, no decorrer da humanidade. Os psiquismos familiares Tudo começa, aponta Eiguer (1985), a part ir da proibição do incesto, fator que leva a famíl ia a preparar seus f i lhos para a formação de um novo grupo. Portanto, o ser humano parte em busca de um objeto de amor exterior ao seu núcleo familiar, porém baseia sua escolha nos modelos iniciais parentais. “A escolha de objeto sexual, . . . , ao mobi l izar os inconscientes indiv iduais, dá nascimento ao inconsciente do casal e, em seguida, ao da famíl ia. ( . . .) Quando da vinda do f i lho, os objetos do mundo interno inconsciente da famí lia são projetados nele” (1985, p.34). A escolha do parceiro representa para Eiguer um dos três organizadores grupais do psiquismo familiar. O organizador – conceito inicialmente ut i l izado por Spitz na psicologia do desenvolvimento infantil, para explicar a maturação de uma nova organização psíquica no recém nascido – define-se como o elemento polarizador de forças 60 psíquicas em função da estruturação e integração de novas instâncias mentais. Segundo Eiguer (1985), tal conceito foi apl icado na teoria de grupos, de forma a caracterizar uma certa predisposição para a organização grupal. O organizador, em últ ima análise, é o que dá liga a um determinado grupo, diferencia-o dos demais, potencial izando e direcionando suas capacidades de vínculo interno. Seria a explicação para o fato de determinadas pessoas investirem l ibido umas nas outras e formarem um determinado grupo X, diferente do grupo Y, caracterizado pela interação de outras tantas pessoas, diferentes das primeiras. A primeira etapa desta sensação de pertencer a um grupo seria marcada pela i lusão grupal: no início desabrocharia nos indivíduos uma percepção de indistinção entre um e outro membro, de identif icação narcísica, que também seria o resultado de um esforço inconsciente de integração, de fusão com o grupo. Mas no grupo familiar, devido à sua função peculiar – que consiste em garantir a preservação da realidade social da humanidade – considera-se a escolha do parceiro, determinada, como explicamos anteriormente, pela questão edípica, como o primeiro organizador inconsciente. Em nossa sociedade é senso comum a percepção da semelhança entre pai e marido, ou entre a mãe e a esposa. Escolhe-se exogamicamente, mas segundo um modelo endogâmico. A segunda instância organizadora do psiquismo familiar consiste no eu familiar, def inido como “o investimento perceptual de cada 61 membro da família, que lhe permite reconhecê-la como sua, numa continuidade têmporo-espacial” (Eiguer, 1985, p.38). Poderíamos explicá-lo como a presença de um elo comum e particular a uma dada famíl ia. Uma percepção inconsciente carregada de afetividade, uma marca que só um dos seus membros pode identif icar e que é comum a todo o grupo. Cria-se um mundo familiar imaginário, através de uma química que só existe mediante a existência destes reagentes, e que só tem sentido mediante seus olhos. O sentimento de pertença – um dos componentes do eu familiar – fala daquela sensação original de familiaridade que se encontra no interior daquele grupo: a sensação de estar em casa. O aconchego de sentir que há um lugar no mundo para si, ao qual se pertence hoje, sempre se pertenceu e pertencer-se-á até, ou após, a morte. Contam-se, em família, estórias de antepassados, de acontecimentos, alegóricos ou trágicos, e desta forma vai se escrevendo o romance, a mitologia daquela famíl ia. E a existência desta história pregressa traz a tranqüilidade de se exist ir hoje, integrado ao passado e fruto deste passado originário. O pertencer a uma determinada famíl ia implica em que os membros se conheçam em seus pensamentos e sentimentos mais particulares. O conhecimento do não dito, do não explicado. Que saibam que o outro é assim, sente assim, e reage assim. É como numa representação teatral, onde todos os atores conhecem todos os personagens em sua essência, a priori. Além disso, têm uma história em comum, um passado que os compôs. Essa identidade emocional 62 não pode ser dividida com ninguém fora da família: todos os outros são estranhos, estrangeiros neste mundo de impressões familiares. Essa entidade familiar – como a própria instância egóica individual se corporif ica – materializa-se no que Eiguer denomina de habitat interior, ou “a pele” (Eiguer, 1985, p. 40) da famíl ia. O habitat interior compreende a introjeção do que existe de concreto relativo à família e a sua história, desde a casa, até um simples objeto que contém uma história ou simboliza um sentimento familiar. O lugar f isicamente ocupado pela família no mundo passa a ser uma representação concreta desta família. A função do habitat interior reside em evitar o desmembramento do psiquismo familiar, que é formado por diversos integrantes que tendem a se dispersar no decorrer da vida. Instaurado este lugar próprio, e investida de libido, dia após dia, a sede da família torna-se uma marca mnêmica universal para os membros que a compõem. A edif icação concreta deste lugar corresponde à edif icação inconsciente da instância psíquica grupal. De forma que para onde formos, por quanto tempo nos ausentarmos, estamos sempre saudosos deste lugar-lar. Se nos permitíssemos a arrogância de psicologizar a saudade da terra natal, poderíamos dizer que ela representaria uma ligação l ibidinosa entre um sujeito e sua Casa, que não esmoreceu com o tempo. A residência da famíl ia torna-se reconhecida por seus membros como o lar, um local que possui um mana, um poder de atração sobre aqueles que parti lham da ascendência comum. Este espaço se deixa 63 inscrever pelas singularidades de cada um, pelas rival idades ou alianças, pelo que de individual vai sendo somado ao grupal. A cadeira de balanço do avô, o terço de madrepérolas da avó: coisas que adquirem sentido no conjunto da “ imagem corporal do corpo familiar” (Eiguer, 1985, p41). Tal imagem tende a se desprender dos objetos concretos e sofrer uma introjeção nas psiques dos indivíduos, tornando-se uma representação mental deste grupo. Nos casos em que não ocorre esta introjeção – f icando o habitat familiar muito estruturado sobre o ambiente externo – a famíl ia f ica sujeita ao medo da fragmentação dessa instância famil iar, em casos de mudanças ou alterações no ambiente externo. O prazer e a segurança proporcionados pela sensação de pertencimento àquele corpo familiar constroem dia após dia a convivência em famíl ia e se somam a sua história, como podemos observar nos casos de famílias funcionais. Famílias ditas normais caracterizam-se por uma hierarquia marcada pelo respeito aos papéis de cada membro do grupo, o que gera um movimento dinâmico e leve na execução de tarefas nem sempre simples. São estruturas bem sedimentadas em seu passado, situadas afetivamente no presente e direcionadas ao futuro. O projeto de toda família funcional passa pelo desejo de se perpetuar enquanto grupo e de evoluir, em termos sociais, culturais, econômicos ou religiosos, dependendo do que esteja em evidência em seu ideal de ego coletivo. Esse destino que permeia a psique grupal pode igualar-se ou ser diferente dos ideais de ego pessoais de cada 64 participante do grupo. Em caso de diferença, encontram-se lado a lado com os desejos pessoais, na medida em que são simplesmente comparti lhados por todos os membros, como marcas inconscientes do eu familiar. Em busca de alcançar esse ideal de ego, desenvolve-se uma organização rotineira de trabalho e estudo, elabora-se um orçamento familiar, adia-se a satisfação de desejos imediatos, busca-se uma rede de relacionamento social, compromete-se com uma postura ética, constrói-se patrimônios. Enfim, cria-se cultura, tanto em termos familiares quanto sociais. Todo esse processo secundário de orientação de l ibido para o objetivo futuro tem como líder a f igura paterna, em famílias tradicionais, ou mesmo a dupla parental, que molda, desde antes do nascimento dos f i lhos, uma imagem psíquica daquele f i lho idealizado. Maternidades estão repletas de futuros jogadores de futebol, atrizes famosas, engenheiros, manequins e médicos. Destinos estes fantasiosos, mas extremamente importantes no desenrolar da possibil idade daquele f i lho, de desejar seu próprio caminho. Destinos traçados pelos pais, num movimento de construção de mais um personagem que virá a compor a história da famíl ia atual, que por sua vez consiste no resultado da união e da “coincidência” entre os conteúdos das histórias de cada uma das famílias de origem, o que vem a compor a trama mítica original desse núcleo. Tal atividade interfantasmática se define como o terceiro organizador grupal. O que o casal tem em comum, que experiências 65 semelhantes fazem parte do relato das suas memórias. A identif icação de um com o outro, através destas semelhanças, os aproxima, sedimentando a relação e reforçando os vínculos. O conceito de fantasma faz referência ao produto da ligação entre inconsciente, consciente e pré-consciente, que consiste numa representação fantasiosa de algum conteúdo recalcado. Mas é uma representação diferente do fato em si, transformada, idealizada. Constrói-se, desta forma, através do cruzamento, da mistura das duas representações individuais, referentes aos dois membros do casal, uma terceira dimensão: a dimensão mitológica da nova família. Criamos os f i lhos para o mundo: são palavras de casais parentais que souberam possibil itar o crescimento e a emancipação de seus descendentes, já que o caminho individual nasce no mito familiar, mas f loresce e se singulariza na medida da elaboração pessoal da herança familiar que nos é transmit ida, de geração em geração. 66 III - A DIMENSÃO SIMBÓLICA NO PROCESSO DE MIGRAÇÃO Faremos, neste momento, uma ref lexão a respeito do tema migração e família numa visão junguiana, ou seja, procuraremos compreender o sentido simbólico do engajamento da família no processo da migração. Tal abordagem se faz presente, como já mencionamos no começo deste trabalho, em sintonia com nossa linha de formação na psicologia analít ica. A dimensão simbólica é eminentemente a qualidade de experiência vital mais importante para a humanidade, na visão da psicologia de Jung. Sua obra tem grande importância no resgate do símbolo – e de sua função de l igação psíquica entre consciente e inconsciente – no âmbito das ciências ocidentais. A linguagem simbólica é a forma de expressão primária do inconsciente. Os símbolos são o produto da psique humana, que surgem impregnados de energia inconsciente e têm a função tanto de estabelecer uma ponte entre o consciente e o inconsciente quanto de – através desta relação – ampliar a consciência e dar sentido a aspectos desconhecidos ou até então conflituosos na vida das pessoas. O trabalho envolvido na experiência simbólica, ou seja, a elaboração de um símbolo, envolve mais do que a função intelectual, sendo necessária a vivência subjetiva daquele conteúdo. O símbolo é uma experiência que nunca poderemos definir com clareza ou compreender plenamente, já que vai além de nossa capacidade intelectual. A aproximação com os símbolos, na medida em que se 67 apresentam na vida dos indivíduos ou das colet ividades, faz parte do processo de desenvolvimento psíquico, que tem como objetivo a integração de novos conteúdos à consciência, de forma a ampliá-la. A valorização da dimensão simbólica requer um reconhecimento da limitação da consciência humana e a aceitação do fato de que na natureza inconsciente encontra-se a fonte da energia psíquica. Aquilo a que chamamos de símbolo pode ser uma imagem, um objeto ou uma palavra. Algo que possui um signif icado além do manifesto, ou por trás do que aparenta de imediato. Pode ser-nos enviado através de: sonhos, imagens, sintomas, manifestações artíst icas, mitos, lendas. Na atualidade, muitos símbolos encontram expressão em f i lmes ou outras técnicas artísticas contemporâneas. “Toda vez que a psique tenta se apresentar à consciência [a part ir ] de uma dimensão interna da exper iência para a qual não há precedente ( já que até o momento aprendemos apenas a nos orientar para as coisas exter iores), isso pode ocorrer somente através da associação deste terr itór io inter ior novo e desconhecido com a imagem de algum objeto exter ior ou através da expressão desse terr itór io em termos desta imagem” (Whitmont, 1995, p.27). Lembramos que, para Jung (1971), o inconsciente não é apenas constituído de material reprimido, mas consiste na condição psíquica primária, e que a imagem, portanto, teria uma ligação mais forte com a coisa em si do que o conceito racional. A imagem simbólica, na psicologia analít ica, não é