FERNANDA CRISTINA LIMA TRADUÇÃO COMO REPRESENTAÇÃO CULTURAL: OLHARES SOBRE O BRASIL Dissertação apresentada ao Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista, Câmpus de São José do Rio Preto, para obtenção do título de Mestre em Estudos Lingüísticos (Área de Concentração: Lingüística Aplicada) Orientadora: Prof. Dra. Cristina Carneiro Rodrigues São José do Rio Preto 2008 FERNANDA CRISTINA LIMA Tradução como representação cultural: olhares sobre o Brasil Dissertação apresentada para obtenção do título de Mestre em 28 de março de 2008, área de Lingüística Aplicada, junto ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Lingüísticos do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de São José do Rio Preto. BANCA EXAMINADORA Profª. Drª. Cristina Carneiro Rodrigues Professora Doutora UNESP – São José do Rio Preto Orientador Profª. Drª. Márcia do Amaral Peixoto Martins Professora Doutora Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Prof. Dr. Anna Flora Brunelli Professora Doutora UNESP – São José do Rio Preto São José do Rio Preto, 20 de abril de 2008 Para Célia Regina Lima, por todas as idas e vindas, pela confiança e dedicação infinitas, e por tudo mais. AGRADECIMENTOS Agradeço À professora Dra. Cristina Carneiro Rodrigues, por desde bem cedo ter apoiado, com dedicação, generosidade e sabedoria, meu interesse pelo modo como diferentes vozes “traduziam o Brasil”. Aos meus pais, Célia e Benedito, pela paciência, pelo amor e amparo permanente e incansável nessa jornada. À minha irmã Érika, pela amizade e aprendizado. A Vinícius Sasso, por estar aqui, pelo companheirismo e amor. Aos amigos Marília Pagliaro, Deni Kasama, Angélica Karim Garcia Simão, Alexandre Sampaio, Beatriz Facincani, Ricardo Montagnoli e Claire Martins, pelos inestimáveis momentos de alegria, cumplicidade e apoio ao longo desse percurso. Aos professores Álvaro Luiz Hattnher, pelas considerações e sugestões realizadas no Exame de Qualificação que, sem dúvida, contribuíram muito para a melhoria deste trabalho; Anna Flora Brunelli, pelo carinho e incentivo demonstrados na Qualificação e por ter aceitado contribuir para a etapa final desta pesquisa; e Márcia do Amaral Peixoto Martins, pela generosa colaboração dada ao trabalho, tanto no VII SELin como na defesa desta dissertação. À professora Rosa Maria da Silva, pela surpreendente prestatividade, bondade e incentivo durante toda minha graduação e depois dela. À FAPESP, pela bolsa concedida (processo 05/57720-9). Translation is not only the appropriation of previously existing text in a mode of vertical succession; it is the materialization of our relationship to otherness, to the experience – through language – of what is different. While the way in which alterity and strangeness are respected in translation has much to do with the historical and institutional norms which come to dominate national traditions, these norms are not eternal. (Simon, 1992) SUMÁRIO INTRODUÇÃO.......................................................................................................................10 CAPÍTULO 1- REPRESENTAÇÃO CULTURAL, DISCURSO JORNALÍSTICO E TRADUÇÃO: INTER-RELAÇÕES..................................................................................18 1.1 Representação cultural, identidade nacional e estereótipo......................................19 1.2 Discurso jornalístico e poder...................................................................................30 1.3 Tradução, representação cultural e a formação de identidades nacionais...............35 CAPÍTULO 2- A REPRESENTAÇÃO DA SENSUALIDADE E DA BELEZA..............46 2.1 A representação da sensualidade e da beleza: considerações.................................68 CAPÍTULO 3- A REPRESENTAÇÃO DA VIOLÊNCIA..................................................71 3.1 A representação da violência: considerações..........................................................90 CAPÍTULO 4- A REPRESENTAÇÃO DA CORDIALIDADE, DO OTIMISMO DA BAIXA AUTO-ESTIMA...........................................................................95 4.1 A representação da cordialidade, do otimismo e da baixa auto-estima: considerações..............................................................................................................115 CAPÍTULO 5- A REPRESENTAÇÃO DO BRASIL COMO PARAÍSO NATURAL E PAÍS EXÓTICO........................................................................120 5.1 A representação do Brasil como paraíso natural e país exótico: considerações......................................................................................165 CAPÍTULO 6- A REPRESENTAÇÃO DA CORRUPÇÃO.............................................172 6.1 A representação da corrupção: considerações......................................................192 CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................197 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................202 RESUMO A tradução é uma prática lingüística que, se por um lado, é influenciada pelas orientações sociais, culturais e políticas do contexto em que é realizada, por outro também tem o poder de atuar sobre o contexto na qual é produzida e consumida. Uma das formas pelas quais a prática tradutória atua na cultura a que se destina a tradução é por meio da veiculação de representações culturais de um determinado país e seu povo. Tais representações culturais utilizam estratégias de significação e associações que auxiliam o direcionamento de interpretações a respeito da nação e do povo em questão e a reiteração de estereótipos nacionais, podendo contribuir para a continuidade das relações assimétricas entre determinadas línguas e culturas. O presente trabalho analisa essa situação enfocando como o jornal norte-americano The New York Times constrói em suas notícias representações culturais do Brasil e dos brasileiros e como essas representações são reconstruídas nas traduções das notícias para o português. As representações do Brasil estudadas são a da sensualidade, da violência, da cordialidade, do otimismo, da baixa auto-estima, do exotismo e da corrupção. Pretende-se evidenciar que as traduções dessas notícias, ao trabalharem com representações culturais do Brasil previamente construídas em inglês, por sua vez também elaboram em língua portuguesa representações desse país e dos brasileiros. Neste caso, uma vez que reconstroem e veiculam as representações para o mesmo público interpretado por elas, as traduções reiteram construções correntes no imaginário da sociedade brasileira e podem contribuir, assim, para a reconstrução, a amenização ou até mesmo o reforço dessas representações. Palavras-chave: Estudos da Tradução, representação cultural, representação do Brasil, tradução jornalística, The New York Times. 11 ABSTRACT Translation is a linguistic practice influenced by the social, cultural and political orientations of the context in which it occurs. It is also able to affect the culture in which it is produced and consumed. One way in which the practice of translation can have effects on the target culture is through the conveyance of cultural representations of a specific country and its people. Such representations usually employ signifying strategies and associations which both conduct the way in which a given country or people is understood and also reiterate national stereotypes, perpetuating unequal relations between languages and cultures. This dissertation analyses this issue by focusing on how The New York Times constructs cultural representations of Brazil and Brazilians and on how these representations are reconstructed in the news when translated into Portuguese. The representations of Brazil selected for this study are: sensuality, violence, cordiality, optimism, low self-esteem, exoticism and corruption. The research reveals that, in dealing with cultural representations of Brazil which had been previously constructed in English, the translated new items also reiterate these representations in Portuguese. In this case, since the representations produce and convey representations to those who are represented by them, they also serve to perpetuate prevalent images in the Brazilian imagination, and may contribute to reconstruct, soften, or even reinforce such representations. Keywords: Translations Studies, cultural representation, representation of Brazil, newspaper translation, The New York Times. 12 INTRODUÇÃO Tradução como representação cultural e olhares sobre o Brasil. O título desta pesquisa adianta um pressuposto e o foco de análise. O pressuposto é o de que a tradução atua como uma forma de representação cultural e que ambas essas manifestações lingüísticas suscitam questões políticas e culturais. O foco de análise são os olhares que se voltam para o Brasil. A respeito desses olhares, colocam-se as questões sobre para onde são dirigidos e de onde partem. Nesta pesquisa, os objetos olhados estão estreitamente relacionados entre si: o Brasil, os brasileiros, a cultura brasileira e, por vezes, o português falado no país. Os olhares enfocados são os de dois sujeitos principais. Um deles é o Outro, o norte-americano que, a partir do seu lugar e da posição que essa nacionalidade, essa cultura e a língua inglesa ocupam no cenário geopolítico atual, se põe a construir representações do Brasil e dos elementos que o ato de pensar sobre essa nação implica – é por meio da representação cultural que o Outro manifesta seu olhar. Além dos olhares do estrangeiro, há a visão dos próprios brasileiros sobre si mesmos, seu país, língua e cultura. Dentre as diversas variáveis que influenciam esse olhar, que não se dá de maneira isolada, estão a maneira pela qual os discursos dos brasileiros sobre os brasileiros foram se fazendo desde a formação desse território como nação e de seus habitantes como povo, as circunstâncias históricas e políticas que se mostraram decisivas na construção das várias histórias brasileiras, os sentidos sobre esse povo veiculados pelo próprio imaginário brasileiro e aqueles que o imaginário estrangeiro alimenta sobre o Brasil. Nesta pesquisa, é principalmente por meio da tradução que se expressam os olhares dos brasileiros sobre sua própria cultura. A forma como a tradução manifesta essas interpretações também é, em parte, determinada pelo espaço em que se situam o Brasil, seu povo e cultura no jogo de 13 poder entre nações e pela relação que estabelecem com a hegemonia econômica, política e cultural norte-americana, pois, como afirma Arrojo (1997), a tradução inevitavelmente se inscreve num contexto político e histórico que atua sobre o espaço que as duas línguas e culturas envolvidas nessa atividade poderão ocupar e sobre as possibilidades que poderão considerar. Os olhares desses dois sujeitos principais não ocorrem separadamente, cada um formando um campo de visão distinto e isolado. Pelo contrário, se entrecruzam, se influenciam e atuam na reconstrução um do outro, dependendo das maneiras como vão se configurando as práticas discursivas dos sujeitos que olham, dos que são olhados, e sobre os que são olhados. Em outras palavras, na representação cultural construída pelo estrangeiro, além de se revelar sua própria visão sobre o Brasil, também se evidencia a maneira como os brasileiros se vêem. Da mesma forma, a tradução pode veicular tanto os olhares dos brasileiros como os dos estrangeiros sobre o Brasil e seu povo. Tendo como pano de fundo o texto jornalístico, esta pesquisa tem dois objetivos principais. Um deles é analisar questões culturais, políticas e lingüísticas decorrentes do processo em que uma cultura representa outra e em que esta se apropria daquela primeira representação e reconstrói sua própria representação de si mesma. Trata-se de verificar como um importante órgão da imprensa norte-americana, o jornal The New York Times, representa o Brasil em notícias sobre esse país para os leitores estrangeiros, majoritariamente norte- americanos. São enfocados quais os sentidos, imagens e estereótipos que o jornal reitera ao noticiar e representar o Brasil e os brasileiros, que tipo de leitura esse Outro faz do país, se envolve generalizações e visões negativas a respeito do país e seu povo. O outro objetivo é investigar em que medida as traduções dessas notícias para o português, veiculadas pelo jornal eletrônico Último Segundo, do provedor IG, e pelo UOL, reconstroem ou não essa representação cultural e nacional para o povo brasileiro. Analisam-se 14 quais discursos, representações e identidades perceptíveis na imagem elaborada pelo Outro são reconstruídos e assumidos ou atenuados e rejeitados na tradução dos artigos jornalísticos. A partir disso, é possível perceber como o modo pelo qual as representações são tratadas nas traduções pode evidenciar a maneira como tais imagens tendem a ser consideradas pelas instituições envolvidas na circulação e recepção dessas notícias – a saber, as editorias dos sites brasileiros que as publicam – e que, de certa forma, dão voz aos discursos que circulam no imaginário do país. Considera-se ainda que essas notícias traduzidas tenham a possibilidade de atuar na disseminação de certas representações e até mesmo de determinados estereótipos, uma vez que é bastante expressiva a quantidade de pessoas que têm acesso a essas traduções, e que esses leitores, ao entrar em contato com as representações reconstruídas nos textos em português, podem passar a ser seus retransmissores em potencial.1 Nos Estudos da Tradução é escasso o número de trabalhos que utilizam textos jornalísticos como corpus de pesquisa. A esse respeito, Delabastita (1990) lembra que a falta de trabalhos voltados para a tradução de mídia encontra-se relacionada ao fato de as Ciências Humanas tenderem a selecionar seus objetos de estudo segundo o nível de prestígio cultural atingido por esses objetos. Portanto, estaria aí um possível motivo pelo qual há poucos trabalhos sobre como a tradução de textos de menor prestígio no meio acadêmico, como o midiático, pode fazer circular representações culturais e contribuir para a reivindicação ou negação de identidades. Considera-se que no texto jornalístico, material de consumo rápido e imediato, que se descarta e se renova diariamente – embora veiculando quase sempre as mesmas representações – moldam-se sentidos, culturas, relações hierárquicas e estabilizam-se 1 Ainda que não seja possível determinar o número de acessos especificamente às traduções do UOL ou do Último Segundo, do provedor IG, as estatísticas gerais fornecidas por esses portais parecem significativas. O UOL tem cerca de 1,7 milhão de assinantes, o que significa que este é o número de pessoas que diariamente podem acessar as traduções do jornal, visto que são disponibilizadas apenas para assinantes. Ainda sobre o UOL, no primeiro semestre de 2007 esse portal teve média mensal de 10,5 milhões de acessos de visitantes distintos (unique visitors) domiciliares. O IG, por sua vez, também apresenta estatísticas expressivas, com uma média mensal de 8 milhões de acessos domiciliares. 15 estereótipos. É por isso que, de acordo com Delabastita (1990), a tradução da comunicação em massa desempenha papel determinante nas culturas e na relação entre elas. Nesta pesquisa, a tradução participa de uma dinâmica de reconstrução, percepção e aceitação ou negação de identidades, pois é um dos meios pelos quais tal dinâmica se estabelece, e tem o poder de reconstruir representações de culturas, identidades culturais e fixar estereótipos (VENUTI, 2002). Assim, também se desenvolve a reflexão sobre a influência do fazer tradutório na maneira como um povo recebe determinadas representações que lhe atribuem identidades. Para atingir os objetivos a que este trabalho se propôs, além de ter contado com as reflexões desenvolvidas pelos Estudos da Tradução na Pós-Modernidade, o percurso teórico fez-se a partir de duas outras áreas principais. A Antropologia auxiliou no tratamento de questões sobre a representação cultural e nacional, a identidade e o estereótipo. A Análise do Discurso Francesa (ADF)2 forneceu trabalhos que, assim como aqueles da Antropologia, tratam da representação cultural, e contribuiu ainda com estudos que se voltam à análise do discurso jornalístico. Martins (2003) e Dota (2005), a partir do ponto de vista da ADF, também estudaram as representações culturais do Brasil no The New York Times. Embora não tenham trabalhado com a tradução das notícias, seus trabalhos contribuíram muito para esta pesquisa, já que iniciaram um caminho que começa a ser construído e trilhado para o estudo acerca da representação cultural do Brasil em notícias estrangeiras. A interdisciplinaridade é um aspecto característico dos Estudos da Tradução. O mesmo ocorre nesta pesquisa, em que a interdisciplinaridade que marca a fundamentação teórica foi necessária devido à escassez de trabalhos acadêmicos que tratem das questões culturais da tradução de notícias ou de textos midiáticos, sendo os poucos trabalhos 2 Alguns dos pressupostos teóricos deste trabalho que coincidem com os da vertente francesa da AD são, por exemplo, a consideração da história como fator determinante na construção e reiteração de certos discursos em determinadas condições políticas, culturais e sociais, a caracterização do sujeito de maneira muitas vezes semelhante à forma como o tradutor é visto nos Estudos da Tradução Pós-estruturalistas: um sujeito que não é uno e livre, mas influenciado pelos discursos que o cercam e pelo contexto em que vive. 16 encontrados nessa área o de Culleton (2005) e o de Zipser (2002). Assim, a articulação dos estudos do discurso jornalístico, da representação cultural e das teorias de tradução foi de importância fundamental para que se pudessem abranger as principais questões levantadas pela pesquisa. Em relação aos estudos de Antropologia, por vezes será possível notar que suas referências às identidades do Brasil parecem demasiadamente homogeneizadoras, como se essas identidades não fossem várias e multifacetadas, mas maciças e homogêneas. O principal trabalho que, nesta pesquisa, demonstra esse tipo de olhar sobre o país é The Brazilians (1995), de Joseph Page. Assim, embora as declarações do autor sejam bastante homogeneizadoras, muitas vezes até estereotipadoras, e se distanciem da forma pela qual a questão da identidade é considerada nesta pesquisa, decidiu-se utilizar o trabalho de Page como uma forma de demonstrar que as representações do Brasil e dos brasileiros examinadas aqui circulam no imaginário sobre o país e são freqüentemente reiteradas por estrangeiros e brasileiros. No que se refere à coleta de dados, as notícias publicadas pelo The New York Times sobre o Brasil foram acessadas em meio eletrônico, no site do jornal, http://www.nytimes.com. A seleção do corpus foi iniciada em outubro de 2005 e, a princípio, encerrada em maio de 2006. No entanto, há notícias datadas de junho de 2007 que foram consideradas relevantes para a pesquisa, tendo sido adicionadas ao corpus de análise. As traduções dessas notícias foram encontradas também na internet, no jornal Último Segundo (http://ultimosegundo.ig.com.br/new_york_times) e no provedor UOL (http://www.uol.com.br/jornais). O Último Segundo, embora freqüentemente faça traduções parciais dos artigos, traduz diariamente um número consideravelmente maior de notícias que o UOL, de forma que a maioria das notícias analisadas conta somente com a tradução do 17 primeiro jornal. Nos casos em que o UOL também disponibilizou a tradução, ambas foram utilizadas na análise. Foram escolhidas notícias que tivessem como tema geral o Brasil, mas que também apresentassem algum nível de representação cultural do país ou do povo brasileiro. Percebeu- se que o que tendia a ocorrer não era, por exemplo, apenas uma caracterização pontual da política ou da cultura, mas sim a reiteração de diversas representações em notícias de vários assuntos. Por isso, não se restringiu a escolha das notícias a um tema específico como, por exemplo, política, economia ou cultura, já que, numa só notícia, puderam ser encontradas representações de diferentes identidades atribuídas ao Brasil e aos brasileiros. Os tipos de representações encontradas coincidem com determinadas imagens comumente relacionadas aos brasileiros e, dessa forma, optou-se por agrupar as ocorrências em que foram percebidas representações relacionadas a imagens semelhantes. Assim, trechos pertencentes a notícias distintas podem ser encontrados em um mesmo subgrupo, da mesma forma como passagens de uma mesma notícia podem aparecer em subgrupos diferentes. Com esse procedimento de organização pretende-se demonstrar como as notícias traduzidas podem contribuir para a continuidade de certas representações ou, em caso contrário, desafiá-las. Foram cinco os grupos de representações do Brasil e dos brasileiros reconhecidos nas notícias e objetos de análise nesta pesquisa: “A sensualidade e a beleza”; “A violência”; “A cordialidade, o otimismo e a baixa auto-estima”; “O Brasil como paraíso natural e país exótico” e “A corrupção”. A escolha das representações analisadas aqui foi determinada pela freqüência com que eram percebidas nas notícias selecionadas. Durante o período de coleta dos dados, realizou-se a leitura das notícias relacionadas ao Brasil que o The New York Times publicava e, a partir daí, as representações mais freqüentes começaram a indicar os grupos que poderiam ser formados com o corpus coletado. Outras representações culturais que não 18 constam na pesquisa foram encontradas, embora em número de casos insuficientes para configurar um capítulo de análise. No que se refere à apresentação da análise do corpus, os jornais The New York Times, Último Segundo e as traduções desse primeiro retiradas do provedor UOL são designados, no decorrer da análise, respectivamente por NYT, US e UOL. Os trechos selecionados do The New York Times apresentam numeração seqüencial entre parênteses e as respectivas traduções adotam os mesmos números dos excertos em inglês. Ao fim de cada recorte segue a informação sobre o jornal do qual o trecho foi retirado e a data de disponibilização da notícia. O UOL informa o nome do tradutor ao fim de cada tradução, enquanto o Último Segundo não traz tal informação. Como se disse anteriormente, o jornal Último Segundo muitas vezes apresenta apenas traduções parciais das notícias que traduz. As notícias utilizadas nas análises que trouxerem traduções parciais trazem tal indicação. Nos casos em que os excertos contam apenas com tradução desse jornal e esta for parcial, quando forem comentados trechos não traduzidos, as traduções disponibilizadas serão de responsabilidade da pesquisadora. O mesmo ocorre com citações em língua estrangeira. Os trechos não são necessariamente apresentados em ordem cronológica. Nos fragmentos em que a análise estiver relacionada a termos ou expressões pontuais, tais elementos são sublinhados. No Capítulo 1, são detalhados os pressupostos teóricos que norteiam a pesquisa, articulando-se reflexões sobre a representação cultural e nacional, a estereotipação e a construção de identidades, os mecanismos do discurso jornalístico para a veiculação de avaliações, e sobre os Estudos da Tradução na Pós-Modernidade. No segundo capítulo, iniciam-se as análises, com a representação da sensualidade e da beleza, em que se evidencia como sentidos relacionados a esses dois aspectos são atribuídos aos brasileiros pelas notícias 19 e predominantemente reconstruídos pela tradução. No Capítulo 3, estuda-se a representação da violência que, suavizada pela tradução, é colocada como um comportamento inerente aos brasileiros. O quarto capítulo trata da representação da cordialidade, do otimismo, mas também da baixa auto-estima, como traços naturais ao povo, e em sua maior parte reafirmados na tradução. No Capítulo 5, analisa-se a representação do Brasil como paraíso natural e país exótico, em que o exotismo é relacionado tanto ao país como ao povo, numa interpretação acolhida pela tradução. No Capítulo 6, a representação estudada é a da corrupção, em que a tradução suaviza a forma como o NYT enfatiza essa prática em relação ao Brasil. Esta pesquisa não objetiva realizar avaliações positivas ou negativas das traduções analisadas ou do trabalho dos tradutores responsáveis por elas, mas sim evidenciar que, independente de julgamentos de valor, essas reescritas sofrem e exercem influências diversas da cultura em que são produzidas e consumidas. 20 CAPÍTULO 1 REPRESENTAÇÃO CULTURAL, DISCURSO JORNALÍSTICO E TRADUÇÃO: INTER-RELAÇÕES Neste trabalho, a representação cultural, o discurso jornalístico e a tradução são relacionados e entendidos como manifestações lingüísticas que, ao se cruzarem, atuam na reconstrução, atribuição e percepção de identidades. Não se toma como pressuposto que essas manifestações atuem numa seqüência fechada, em que uma se inicia quando a anterior termina, mas, ao contrário, considera-se que estabelecem uma relação dinâmica. No entanto, para os fins de exposição da fundamentação teórica, a representação cultural, o discurso da mídia jornalística e o papel da tradução como reconstrutora de identidades serão, a princípio, tratados de forma separada. Este capítulo divide-se em três seções. Na seção 1.1, com base nos estudos de Hall (1996, 1997a, 1997b e 2002) e Rajagopalan (2002), primeiramente se trata da representação cultural e nacional e de como essas formas de representação constroem identidades e estereótipos nacionais; em 1.2, a partir do pensamento de Mariani (1998) e Dota (2005), verifica-se como funcionam o discurso jornalístico e seu poder de reproduzir discursos institucionais e reafirmar representações culturais; o item 1.3 trata do poder exercido pela tradução tanto na representação cultural e nacional como na retomada de identidades nacionais, segundo Venuti (2002), Simon (2000), Carbonell (1996) e, especificamente sobre a tradução jornalística, Culleton (2005) e Zipser (2002). 21 1.1 Representação cultural, identidade nacional e estereótipo Antes de tratar especificamente da questão da representação cultural, parece relevante explicitar qual a noção de linguagem verbal que norteia a pesquisa, uma vez que tal concepção acaba determinando a maneira como a própria representação é pensada neste trabalho. Não se considera a linguagem verbal como uma atividade neutra, mas complexa e heterogênea, em que sentidos são construídos na sua produção e na sua interpretação. Entende-se que a interação é um aspecto muito importante da linguagem e que nenhuma manifestação lingüística ocorre no vazio, mas num contexto histórico, cultural e social concreto em que é inevitável a interpretação dos sujeitos envolvidos na interação. Considera- se que sujeito e linguagem não se separam e, sendo assim, é por meio da linguagem que os sujeitos estabelecem sua relação entre si e com o mundo. A relação obrigatória entre sujeito, contexto e linguagem exclui a possibilidade de a linguagem ser uma atividade objetiva e implica a admissão de que a subjetividade é intrínseca a qualquer realização lingüística. Essa mesma relação torna necessário considerar, de antemão, que a linguagem nunca retrata a realidade, mas a refrata. A representação, por sua vez, sendo uma manifestação de linguagem, também não espelha o mundo, mas constrói dele interpretações. Para Hall, Damos sentido às coisas pela forma como as representamos – as palavras que usamos sobre elas, as histórias que contamos a seu respeito, as imagens que delas produzimos, as emoções que lhes associamos, as maneiras como as classificamos e conceitualizamos, os valores que lhes atribuímos. (HALL, 1997a, p. 3)3 3 “[…] we give things meaning by how we represent them - the words we use about them, the stories we tell about them, the images of them we produce, the emotions we associate with them, the ways we classify and conceptualize them, the values we place on them”. 22 A noção de representação ainda é considerada, por alguns, unicamente como ato de espelhamento. Essa maneira de definir a representação como espelhamento ou “retrato fiel” leva à ilusão de que qualquer sistema de representação pode depreender, de forma imediata, a realidade exterior representada, ou seja, que a realidade seria facilmente redutível a quaisquer sistemas de representação, que funcionariam sempre de forma objetiva, sem influência da subjetividade inerente a qualquer atividade humana. No entanto, com o desenvolvimento de estudos na Pós-Modernidade, um considerável número de estudiosos vem trazendo à tona a visão de que a representação não é uma atividade objetiva e alheia à filiação cultural e política daquele que representa, mas um processo em que tais fatores inevitavelmente direcionam o ato de representar e, por meio dele, se revelam. Conforme a citação de Hall (1997a), acima, o ato de representar sempre acompanha a atribuição de sentidos e interpretações. Tais sentidos atribuídos pela representação não são estanques, de forma a significarem por si só e sem deslizamento – mas estão sempre estabelecendo numerosas relações entre si e com o objeto da representação.4 Hall (1997a, p. 9-10) afirma que logo se descobre que o sentido [...] não sobrevive intacto à passagem pela representação. É escorregadio, modificando e deslocando-se com o contexto, o uso e as circunstâncias históricas. Assim, o sentido nunca se encontra permanentemente fixado. Está sempre adiando ou “diferindo” de seu encontro com a Verdade Absoluta.5 Como o autor ressalta, as diversas formas de atribuir sentido se revelam também formas de representar: palavras, histórias e emoções associadas ao que é representado, formas 4 Por “objeto” de uma representação, tem-se em mente aquilo que é representado, aquilo a que representação atribui sentidos: um povo, uma nação, uma etnia, um gênero etc. 5 One soon discovers that meaning […] does not survive intact the passage through representation. It is a slippery customer, changing and shifting with context, usage and historical circumstances. It is therefore never finally fixed. It is always putting off or ‘deferring’ its rendezvous with Absolute Truth. 23 de explicar e classificar, atribuir valores – todos esses processos atuam na reconstrução de trilhas para o pensamento sobre aquilo que é representado. Esses caminhos relativamente pré- estabelecidos podem orientar a reflexão sobre o objeto da representação, de forma que, quanto mais se constroem representações de um determinado objeto, mais fácil vai se tornando a associação a uma série de relações todas as vezes em que, em algum lugar, alguém se põe a pensar nesse objeto. A rede de representações já realizadas funciona assim como um banco de dados, de sentidos, que é diversas vezes disponibilizado para orientar novas representações a respeito desses objetos. As representações culturais que, por serem construídas a partir desses caminhos pré- estabelecidos, parecem mais cristalizadas, são chamadas nesta pesquisa de “imagens”. Esse termo é entendido como efeito de uma determinada representação cultural, como aquilo que a representação pode estabilizar, dependendo dos aspectos que a orientam. Da mesma forma como aqui não se entende “representação” como “retrato fiel” de um povo ou cultura, a noção de imagem também não é utilizada nesse aspecto, revelando-se sempre como algo construído e moldado pelas representações. Aquelas representações que, por vezes reunindo os mesmos sentidos, criam uma trajetória relativamente direcionada para o pensamento sobre algo, atuam de forma ainda mais incisiva quando a representação em questão é uma representação cultural. Tal expressão é entendida, neste trabalho, de forma ampla, compreendendo-se por representação cultural as representações de um país, de um povo, de uma etnia, de um gênero, ou ainda de algum aspecto ou costume relacionado a uma determinada cultura. Uma das questões que o ato de olhar um povo ou cultura considerados subordinados envolve é que o poder associado à atividade de representar pode vincular, ao que é representado, sentidos ligados à inferioridade, à estranheza, ao atraso. Em outras palavras, muitas vezes, numa representação, a diferença é vista de forma pejorativa. Para Hall (1997b, 24 p. 226), “a representação é uma prática complexa e, especialmente ao lidar com a ‘diferença’, envolve sentimentos, atitudes e emoções e mobiliza temores e desejos do observador”.6 A complexidade de tratar da diferença, numa representação cultural, está relacionada à possibilidade de o contato do observador com a diferença do que ou de quem é observado incluir, ao mesmo tempo, sentimentos de atração e rejeição. Se, por um lado, o autor da representação se sente, em determinado nível, atraído pela nação, povo ou cultura que está representando – um dos motivos pelos quais se propõe a interpretar o Outro – por outro lado a diferença de um modo de ser e de viver distintos causa também um estranhamento que pode se converter em repulsa. Esse último sentimento é possibilitado porque a diferença do Outro evidencia formas que desafiam os padrões intelectuais, políticos, estéticos e culturais aos quais o observador está acostumado, aqueles vigentes no contexto considerado por ele familiar, aceitável e normal. Especialmente no caso de a representação ser realizada por um observador vindo de uma cultura hegemônica e observar um povo considerado subordinado, a partir do choque entre práticas e vivências distintas surge a necessidade de afirmação por parte daquele que representa e o estabelecimento de regras de classificação dos seus valores e dos valores do Outro. Essa classificação, em que os valores familiares figuram sempre numa posição privilegiada em relação aos estrangeiros, freqüentemente se dá por meio de oposições binárias: de um lado, os valores do observador vindo de uma cultura hegemônica e, do outro, os do observado, muitas vezes pertencente a uma cultura periférica. A respeito das oposições binárias, Hall (1997b, p. 235) diz que também estão abertas à pena de serem reducionistas e simplificadas – varrendo todas as distinções em sua rígida estrutura bipartida. [...] Um pólo é 6 “Representation is complex business and, especially when dealing with ‘difference’, it engages feelings, attitudes and emotions and it mobilizes fears and anxieties in the viewer, at deeper levels than we can explain in a simple, common-sense way”. 25 normalmente a parte dominante, aquela que inclui a outra em seu campo de atuação. Há sempre uma relação de poder entre os pólos de uma oposição binária.7 Hall (1997b) afirma ainda que os sentidos mobilizam sentimentos negativos, positivos e contraditórios que colocam nossas identidades em debate. De forma semelhante, esses debates podem originar sérias conseqüências, pois os sentidos, estando inscritos em relações de poder, definem o que é normal (quem pertence a um grupo) e o que não é (quem não pertence, quem é excluído). O autor chama a atenção para a forma como nossas vidas são moldadas, dependendo de quais sentidos, dentre as oposições seguintes, estão em jogo, e em quais circunstâncias: “homem/mulher, negro/branco, rico/pobre, homossexual/heterossexual, jovem/idoso, cidadão/estrangeiro” (HALL, 1997a, p. 10).8 Com base na relação de poder mencionada por Hall, também outras classificações hierárquicas facilmente se estabelecem no contexto da representação cultural: ocidental/oriental, europeu/não-europeu, civilizado/selvagem, contemporâneo/primitivo, moderno/antigo, desenvolvido/atrasado. Muitas vezes, numa representação cultural (e como será possível notar em alguns casos da análise), pode-se perceber o realce implícito da diferença entre o observador e o observado, marcação que é freqüentemente realizada com base em oposições binárias. Entende-se que, principalmente quando se tem envolvida na representação cultural o exercício de poder ou algum tipo de hegemonia de uma parte em relação a outra, esse tipo de divisão explicitado acima emerge, de forma que o autor da representação – influenciado pelo imaginário de seu próprio país – possa, mesmo que involuntariamente, reafirmar sua superioridade e autoridade sobre aquele que se mostra diferente. 7 “[binary oppositions] are also open to the charge of being reductionist and over-simplified – swallowing up all distinctions in their rather rigid two-part structure. […] One pole of the binary is usually the dominant one, the one which includes the other within its field of operations. There is always a relation of power between the poles of a binary opposition”. 8 “male/female, black/white, rich/poor, gay/straight, young/old, citizen/alien”. 26 Outro mecanismo freqüentemente acionado quando da afirmação do observador sobre a inferioridade do observado é algo que Hall (1997b) chama de naturalização da diferença. Para Hall (1997b), se as diferenças culturais são situadas como resultantes de processos históricos e sociais distintos, estão abertas a mudanças, e a cultura do observado tem a possibilidade de não ocupar, necessariamente, uma posição subordinada em relação à cultura do observador. Mas se, pelo contrário, tais diferenças são lidas como naturais, significa que se encontram fora do alcance da história, sendo vistas como permanentes e estáveis. Por meio da interpretação das diferenças do Outro como inerentes e irremediáveis, o autor da representação, provido de poder e conhecimento, ratifica a diferença hierárquica que os separa, como algo não passível de ser modificado. A “naturalização” é, portanto, uma estratégia representacional projetada para fixar a “diferença” e então assegurá-la para sempre [...] é uma tentativa de deter o “deslizamento” de sentido para garantir o “fechamento” discursivo e ideológico. (HALL, 1997b, p. 245)9 Neste trabalho, também com base em Hall (1997a, 1997b), entende-se que a representação cultural e nacional muitas vezes possibilita a atribuição de identidades nacionais, já que essas representações colocam em circulação sentidos que coincidem com aqueles que são associados às identidades de um povo. O autor (1997a, p. 3) relaciona sentido e identidade da seguinte forma: sentido é o que nos dá a sensação de nossa própria identidade, de quem somos e a quem ‘pertencemos’ – está, assim, ligado a questões de como a 9 “‘Naturalization’ is therefore a representational strategy designed to fix ‘difference’, and thus secure it forever”. “It is an attempt to halt the inevitable ‘slide’ of meaning, to secure discursive or ideological ‘closure’”. 27 cultura é utilizada para delimitar e manter a identidade no interior de um grupo ou a diferença entre grupos.10 De forma semelhante a Hall, Rajagopalan (2002) considera que é por meio da representação que as identidades são afirmadas e reivindicadas. Sendo assim, a representação cultural e os sentidos que veicula são vistos como um dos meios pelos quais se chega à criação e atribuição de identidades. O conceito de identidade é visto, neste trabalho, da maneira como tem sido considerado nos estudos contemporâneos. Hall (2002, p. 12) afirma que a identidade é “formada e transformada continuamente em relação às formas como somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam. [...] É definida historicamente, e não biologicamente” e que “à em medida que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis”. Rajagopalan (2002, p. 77) pensa na identidade como “um construto e não algo que se encontra por aí in natura”, como “algo em constante processo de (re)construção”. A partir dessas formas de abordar a noção de identidade, nesta pesquisa parte-se do princípio de que a identidade é múltipla, passível de sofrer modificações, sensível às formas como se dão as representações culturais a seu respeito e às imagens que elas criam. Ao situar-se a formação das identidades numa dinâmica em que o modo como se dão as práticas de representação a respeito de um determinado grupo social tem influência sobre as maneiras como esse mesmo grupo social representa a si mesmo, torna-se possível considerar que a representação cultural é dinâmica. Devido a esse caráter dinâmico da representação cultural, os discursos e sentidos sobre a identidade de um povo veiculados por essa mesma nação, por suas instituições sociais, ou pela história, podem ser apreendidos pelo 10 “Meaning is what gives us a sense of our own identity, of who we are and with whom we ‘belong’ – so it is tied up with questions of how culture is used to mark out and maintain identity within and difference between groups”. 28 olhar de um observador estrangeiro – o autor da representação cultural – e podem assim influenciar os discursos que esse observador construirá em torno do grupo social observado. Certas identidades reiteradas a partir dessa observação podem ser aceitas e reivindicadas por esse grupo, que, compartilhando tais sentidos entre si, possivelmente refletem tais identidades aos olhos de outros observadores, que constroem outras representações em concordância com as identidades previamente fornecidas, e assim por diante. Hall (1996, p. 4) defende ainda que [as identidades] surgem da narrativização do sujeito, mas a natureza necessariamente ficcional desse processo de forma alguma enfraquece seu efeito discursivo, material ou político, ainda que o pertencimento, a “costura na história”, por meio da qual as identidades emergem, encontre-se, parcialmente, no imaginário (assim como o simbólico) e, assim, sempre parcialmente construída na fantasia.11 Considera-se que as formas interdependentes – a linguagem, a representação cultural, o discurso, a história, o imaginário – pelas quais a sociedade pode reproduzir suas experiências culturais e sociais fazem com que essa atividade tenha determinados efeitos políticos e culturais. Tais efeitos dependem, em grande parte, de quem está representando a si mesmo, de como ocorre essa representação, bem como de quem realiza a representação do Outro, e da forma que o faz. A questão da formação das identidades nacionais é de grande importância neste trabalho, uma vez que aqui se lida com determinadas identidades do povo brasileiro. Considera-se que as identidades desse povo, assim como de outras nacionalidades, tiveram sua construção na própria memória da nação, nos discursos que desde cedo a circundam e que vão, assim, elaborando um repertório de representações que, posteriormente, podem tomar a 11 […] [The identities] arise from the narrativization of the self, but the necessarily fictional nature of this process in no way undermines its discursive, material or political effectivity, even if the belongingness, the “suturing into the story” through which identities arise is, partly, in the imaginary (as well as the symbolic) and therefore, always, partly constructed in fantasy”. 29 forma de imagens mais estáveis e de identidades a serem reivindicadas ou, em menor freqüência, rejeitadas. A associação direta entre a construção dessas identidades e eventos históricos não é realizada neste trabalho, já que, conforme Hall (1996), é também no imaginário que se dão construções identitárias, não sendo diferente com as identidades nacionais. No entanto, Hall (2002) lembra que ainda é possível encontrar muitas representações culturais ou nacionais em que os elementos essenciais do caráter nacional são colocados como imutáveis, apesar de todas as vicissitudes da história. Para o autor, por meio dessas representações, infere-se que o caráter nacional estaria lá desde a criação da nação, unificado, contínuo, e imutável ao longo de todas as mudanças. Para Hall, uma cultura nacional é um discurso – um modo de construir sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos. [...] As culturas nacionais, ao produzir sentidos sobre a “nação”, sentidos com os quais podemos nos identificar, constroem identidades. Esses sentidos estão contidos nas estórias que são contadas sobre a nação, memórias que conectam seu presente com seu passado e imagens que dela são construídas. A identidade nacional é uma comunidade imaginada. (HALL, 2002, p. 50-51) Especificamente no que se refere às identidades brasileiras, como se poderá ver no item a respeito da representação do Brasil como paraíso natural e país exótico, autoras como Chaui (2000) e Orlandi (2001) identificam, respectivamente, um mito fundador e um discurso fundador. Grosso modo, esses conceitos se referem às imagens a respeito do Brasil e dos brasileiros que foram construídas antes mesmo do descobrimento da terra nova e dos seus habitantes. As fantasias e aspirações criadas pelos europeus a respeito de um mundo desconhecido, dado o descobrimento do Brasil, foram aplicadas ao país e ao povo daqui e permanecem até hoje. Hall (2002. p. 55), de maneira mais geral, também identifica esse tipo específico de discurso sobre uma nação, ao chamar a atenção para o fato de que outro 30 exemplo de narrativa da cultura nacional é a do mito fundacional: uma estória que localiza a origem da nação, do povo e de seu caráter nacional num passado tão distante que eles se perdem nas brumas do tempo, não do tempo “real”, mas de um tempo “mítico”. Assim, as representações e identidades criadas pelo mito fundacional (ou fundador) ou pelo discurso fundador, ao localizar as origens do povo e de seu caráter nacional num passado distante, muitas vezes anterior à própria formação da nação, atribuem a esse caráter um aspecto tradicional, sedimentado, até mesmo inerente e imutável. Um dos efeitos da criação e atribuição de um conjunto de identidades fechadas – como o caráter nacional – a um povo é o inevitável apagamento das suas diversidades, sejam elas sociais, culturais ou étnicas. Nessas representações, cabem e são reiteradas apenas as identidades já reconhecidas como pertencentes ao caráter nacional, sendo as demais apagadas da representação. Hall (2002, p. 59) diz que [...] não importa quão diferentes seus membros possam ser em termos de classe, gênero ou raça, uma cultura nacional busca unificá-los numa identidade cultural, para representá-los todos como pertencendo à mesma e grande família nacional. Outro possível desencadeamento da prática de representar as identidades nacionais de maneira fechada e homogênea é que essas representações podem ser apreendidas de forma tão simplificada e homogeneizada que deslizam para o estereótipo. A partir daí, atingem um tal nível de aparente estabilidade, imutabilidade e reiteração nos discursos correntes que se torna mais difícil o questionamento dessa representação e das identidades advindas dela. Hall (1997) afirma que 31 os estereótipos buscam poucas características “simples, vívidas, notáveis, facilmente apreensíveis e largamente reconhecidas” de uma pessoa, reduzem tudo a respeito dessa pessoa a esses traços, os exageram e simplificam, e então os fixam sem modificações ou desenvolvimento por toda a eternidade (HALL, 1997, p. 258).12 Assim, conforme Hall (1997), neste trabalho o estereótipo é entendido como simplificação, generalização, homogeneização, exagero. Não se questiona se as imagens construídas pelos estereótipos são condizentes ou não, verídicas ou inverídicas, mas se foca no poder que a estereotipação tem de manter estáveis certas representações. Da mesma forma como a representação das identidades nacionais como um conjunto totalmente coeso apaga a diversidade e a heterogeneidade de qualquer sociedade, excluindo da representação idealizada todos os discursos que não caibam nesse conjunto fechado e pré-delimitado, o estereótipo também tem o poder de ocultar aspectos que divergem dos já estabelecidos e escolhidos para representar um povo. Assim, a diversidade discursiva é negada, uma vez que aquilo que não serve ao estereótipo, sendo um elemento estranho, não corrobora e pode “atrapalhar” o funcionamento das representações estereotipadas na definição de nações e nacionalidades. Para Hall (1997b, p. 258), outro aspecto da estereotipação é a prática do “fechamento” e da exclusão. Esse ato simbolicamente fixa limites e exclui tudo aquilo que não pertence. [...] Em outras palavras, é parte da manutenção da ordem social. Estabelece uma fronteira imaginária entre o “normal” e o “desvio”, o “normal” e “o patológico”, o “aceitável” e o “inaceitável”, o que “pertence” e o que não pertence, ou é “Outro”, entre “conhecido” e “intrusos”, Nós e Eles.13 12 “Stereotypes gets hold of the few ‘simple, vivid, memorable, easily grasped and widely recognized’ characteristics about a person, reduce everything about the person to those traits, exaggerate and simplify them, and fix them without changes or development to eternity”. 13 “Another featuring of stereotyping is its practice of ‘closure’ and exclusion. It symbolically fixes boundaries, and excludes everything which does not belong. […] in other words, is part of the maintenance of social order. It sets up a symbolical frontier between the ‘normal’ and the ‘deviant’, the ‘normal’ and the ‘pathological’, the ‘acceptable’ and the ‘unacceptable’, what ‘belongs’ and what does not or is ‘Other’, between ‘insiders’ and ‘outsiders’, Us and Them”. 32 A questão do estereótipo ganha importância nesta pesquisa pelo fato de grande parte das principais representações culturais, imagens e identidades atribuídas aos brasileiros poderem ser consideradas estereótipos desse povo. O estrangeiro, um Outro considerado cultural e economicamente superior, ao representar o Brasil e seu povo pode facilmente retomar e reforçar estereótipos. Os brasileiros, ao aceitarem e reafirmarem tais representações e imagens estereotipadas, podem dar sua própria contribuição para a estabilidade dos estereótipos a seu respeito. 1.2 Discurso jornalístico e poder Neste item procura-se evidenciar como o discurso jornalístico, ao utilizar seu papel de referência na construção de textos14 que direcionam a opinião dos leitores em determinados sentidos, atua na veiculação de representações e das identidades construídas por elas. O objetivo também é ressaltar que os jornais podem atuar na manutenção ou na mudança social, já que influenciam a cultura na qual são produzidos. Na produção das notícias analisadas nesta pesquisa, o funcionamento desse discurso ocorre em dois momentos. O primeiro é quando o NYT, ao publicar notícias sobre o Brasil, retoma algumas representações culturais do país e o discurso midiático influencia na forma como essas representações são retomadas; o segundo momento é aquele em que os sites jornalísticos brasileiros elaboram os artigos para sua veiculação em português. No que se refere às prescrições em relação ao fazer jornalístico, ainda faz parte das recomendações de manuais de estilo, bem como das qualidades que certos jornais se auto- atribuem, a total imparcialidade no relato dos fatos. Essa imparcialidade é vista, por alguns, 14 Considera-se o discurso jornalístico como um tipo de discurso (Maingueneau, 2006). Em contraposição, o texto jornalístico é entendido como o produto ou a materialização desse tipo de discurso. 33 tanto como recomendação em relação à atividade jornalística, como um aspecto que qualquer jornal reconhecido deva apresentar. Nessa prescrição, ignora-se a inevitável leitura interpretativa que, intrínseca a toda manifestação de linguagem verbal, obviamente se faz presente no ato de noticiar. Embora essa corrente de pensamento ainda encontre adeptos, já há uma forte tendência a se reconhecer a atuação dos mecanismos utilizados pelo jornalismo na produção de efeitos de verdade e no direcionamento de seus leitores a determinados sentidos. Dota (2005, p. 1) sustenta que os textos da mídia “constituem versões da realidade que dependem de posições sociais, interesses e objetivos daqueles que o produzem”. Também a respeito da ilusão da objetividade criada pelo discurso jornalístico, Mariani (1998, p. 60) afirma que [...] o jornalista projeta a imagem de um observador imparcial – e marca uma diferença com relação ao que é falado, podendo, desta forma, formular juízos de valor, emitir opiniões etc., justamente porque não se ‘envolveu’ com a questão. Na produção de textos que sejam lidos como verdade, cria-se um efeito de distanciamento por parte do jornalista que, embora dando a impressão de ser um “observador imparcial”, insere sua opinião por meio da avaliação implícita dos fatos ou elementos noticiados. Tratando especificamente dessa atuação no campo político e chamando a atenção para a mudança na forma como se vê a questão da (im)parcialidade da mídia, Mariani afirma que “nos dias de hoje, não se nega mais a atuação da mídia, em geral, e também da imprensa, mais especificamente, nas situações em que ocorre a tomada de decisões políticas” (MARIANI, 1998, p. 59). Assim, a proclamada “objetividade” do jornalismo deve ser entendida sempre como um efeito, algo que parece ser buscado e, nesse sentido, 34 [...] a “objetividade” dos fatos, ie, sua evidência de visibilidade, resulta inevitavelmente de um gesto interpretativo que se dá a partir de um imaginário constituído. Sendo assim, ao relatar os acontecimentos os jornais já estão exercendo uma determinação nos sentidos. (MARIANI, 1998, p. 63) A autora levanta um aspecto relevante para este trabalho, que é a influência do imaginário no ato de noticiar, de forma semelhante a que, na representação e atribuição de identidades, o imaginário nacional fornece os sentidos reiteradamente atribuídos por essas manifestações lingüísticas. A atitude interpretativa e avaliadora, inevitável a esse tipo de discurso, não significa necessariamente uma atitude deliberada por parte dos jornalistas. Embora em alguns momentos possa ser este o caso, na maioria das vezes, o que parece ocorrer é que os sentidos e discursos abrigados pelo imaginário no qual o jornalista se insere, além de influenciar as instituições produtoras das notícias, emergem na escrita desse profissional. Esse processo, bem como a freqüente não-percepção desse efeito por parte do jornalista, são lembrados por Mariani que, citando Barthes (1978),15 confirma que essas questões, que são da ordem do funcionamento da língua, envolvem tanto o sujeito produtor da notícia quanto o receptor. [...] A língua nos “obriga a dizer”, como afirmou Barthes (1980), mas seu efeito é provocar em nós a ilusão inversa, ou seja, de que a dominamos. (MARIANI, 1998, p. 65) Do mesmo modo que, para a autora, o produtor da notícia pode não perceber que os discursos que circulam no imaginário de um povo se inserem na construção de seu texto, também o leitor comumente não tem tal percepção, devido ao envolvimento histórico em que se encontra, à impressão que tem de estar fazendo uma leitura literal em que os sentidos captam a essência dos fatos e também à imagem de imparcialidade da escrita jornalística. Mariani ressalta ainda que 15 BARTHES, Roland. Aula. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 1978. 35 a ideologia da transparência dos sentidos da linguagem comparece sempre e de diferentes maneiras, produzindo o efeito de literalidade, ao mesmo tempo em que apaga o processo de imposição hegemônica de uma determinada interpretação. (MARIANI, 1998, p. 67) A autora lembra que a associação entre o efeito de verdade e a informação está relacionada, por um lado, à “ilusão referencial da linguagem” e, por outro, ao próprio processo histórico de constituição da prática jornalística. Os procedimentos lingüísticos utilizados para produzir efeitos de verdade sem que as avaliações sejam explícitas são vários, passando pela nomeação, designação e predicação, dentre outros. Esses procedimentos quase sempre aparecem como formas neutras, não chamam a atenção para si, mas a maneira como são encadeados ao longo de um texto e ao longo de várias notícias relacionadas acaba construindo uma forma de representação do assunto tratado, e que orienta representações futuras. É a reiteração desses procedimentos que leva o leitor a estabelecer as mesmas avaliações implicitamente estabelecidas pelo veículo de comunicação. Para Mariani (1998, 226), “nas denominações se depreende o encontro da língua com a ideologia” e o ato de os jornais nomearem, criarem explicações e “digerirem” o fato cria um processo de encadeamento em que há a ilusão de uma relação direta entre as causas e as conseqüências dos fatos ocorridos. Outro aspecto do discurso jornalístico, além do inevitável direcionamento interpretativo e opinativo, é sua estreita relação com a manutenção do poder e da estabilidade de instituições e de práticas dominantes. Não poderia ser diferente, considerando-se que a imprensa, também uma instituição, relaciona-se com outras instituições sociais e, assim, freqüentemente põe-se a serviço da manutenção do vínculo entre certos grupos sociais e essas entidades, podendo contribuir para o não-questionamento de suas práticas e para a manutenção dos discursos predominantes que as orientam. 36 A respeito da relação entre o discurso jornalístico e o poder, Mariani (1998, p. 63) sustenta que o que constitui uma propriedade do discurso jornalístico é a sua submissão ao jogo das relações de poder vigentes, é a sua adequação ao imaginário ocidental de liberdade e bons costumes. [...] Estas propriedades [...] estão no cerne da produção jornalística: são aspectos invariantes de qualquer jornal de referência. O jogo de poder que, permeando esse tipo de discurso, orienta a escolha de determinados temas a serem noticiados, ao mesmo tempo em que retiram outros da pauta, direciona o público em relação a certos debates e, similarmente, desvia sua atenção de outros eventos que ou não são noticiados ou, de acordo com a avaliação dos responsáveis pela edição dos jornais, merecem menos espaço e menos aprofundamento no noticiário. Dessa forma, pretende-se explicitar que desde o espaço disponibilizado para que o jornalista desenvolva determinado assunto, até o título escolhido e as associações realizadas no texto, são decisões que podem sofrer influência dos interesses institucionais da própria imprensa, bem como de outros órgãos ou setores sociais. No que se refere à seleção de pautas a serem veiculadas e ao direcionamento de sentidos em prol da manutenção de práticas e de poder, Mariani (1998, p. 82) afirma que [...] noticiar, no discurso jornalístico, é tornar os acontecimentos visíveis de modo a impedir a circulação dos sentidos indesejáveis, ou seja, determinar um sentido, cujo modo de produção pode ser variável conforme cada jornal, mas que estará sempre submetido às injunções das relações de poder vigentes e predominantes. Assim como Mariani (1998), Dota (2005) também chama a atenção para o papel que as instituições dominantes em certa cultura têm na inserção ou apagamento (por meio do não- debate) de certos discursos. Também para a segunda autora, as 37 instituições que produzem e divulgam notícias são social, econômica e politicamente situadas e, por essa razão, suas produções textuais (re)produzem interesses e visões que interferem na estruturação da sociedade. (DOTA, 2005, p.1) Conforme lembra Mariani (1998), embora o discurso jornalístico obtenha um relativo sucesso no ato de conduzir a determinadas leituras, construir representações e veicular discursos que favoreçam determinados setores sociais, esses fins nunca são totalmente alcançados. A impossibilidade de sucesso pleno se dá graças ao deslizamento dos sentidos, à dissonância dos discursos e também à subjetividade intrínseca ao ato de leitura, que dá ao público a possibilidade de construir interpretações distintas daquelas (propositalmente ou não) sugeridas pelo texto jornalístico. 1.3 Tradução, representação cultural e a formação de identidades nacionais O aporte teórico dos Estudos da Tradução desta pesquisa baseia-se na noção de que a tradução não é um processo neutro, em que são postas em diálogo duas línguas ou culturas de mesmo status. Pelo contrário, a questão da assimetria existente entre diferentes línguas, países e culturas é de especial interesse para os estudos da área, uma vez que, por um lado, a tradução há séculos tem desempenhado o papel de sustentar esse desequilíbrio e que, por outro, também é capaz de questioná-lo. A prática tradutória foi e é de fundamental importância no estabelecimento e manutenção do poder que, em diversos momentos da história, principalmente em situações de domínio colonial e neocolonial, uma cultura exerce(u) sobre outra. Por extensão, a atuação da tradução é decisiva também em outros contextos em que se pode perceber algum tipo de 38 relação (ou tensão) entre dominantes/centrais/hegemônicos de um lado, e dominados/periféricos/subordinados, de outro, sejam quais forem os aspectos que essa relação assuma.16 As culturas envolvidas no processo de tradução neste trabalho caracterizam esse tipo de situação, já que a cultura brasileira, que nos primeiros tempos se orientava segundo os ecos da cultura portuguesa, veio posteriormente a se inspirar na cultura de outros países europeus e, por fim, mais recentemente, absorve vários aspectos da cultura norte-americana. A esse respeito, Skidmore (1994), afirma que, já no fim do século XIX, a influência econômica portuguesa sobre o Brasil era insignificante, e que o país e o português brasileiro nessa época conquistaram independência política, cultural e lingüística de Portugal, passando então a sofrer influência de outros países europeus, como a Inglaterra, no âmbito econômico, e a França, no aspecto cultural (SKIDMORE, 1994). Ainda segundo o autor, é nas três últimas décadas do século XIX que a influências desses dois países estrangeiros passam a ser desafiadas pelos Estados Unidos, graças a sua economia crescente. Skidmore (1994) lembra que, ao passo que crescia o comércio norte-americano com o Brasil, a elite brasileira começava a voltar sua atenção às idéias, às instituições, à sociedade e à cultura norte- americanas. Como resultado desse processo, o Brasil e o português brasileiro passam, no momento, pela influência cultural e econômica exercida pelos Estados Unidos e pela língua inglesa. Ainda que não se trate de ver os brasileiros como receptores passivos da dominação estrangeira, a relação entre os países, culturas e línguas nos quais as traduções analisadas aqui se inserem e são produzidas não deixa de revelar um contexto de desequilíbrio, e é importante pensar no papel da tradução nesse diálogo assimétrico. 16 Na literatura, os termos “dominante”, “central” e “hegemônico(a)” são utilizados em contextos similares e referem-se a países e culturas considerados pontos de referência no cenário internacional, fonte inspiradora para outras nações, ou que exercem algum tipo de influência (lingüística, cultural, política ou econômica) sobre essas últimas. De forma semelhante, as adjetivações “dominado(a)”, “periférico(a)” e “subordinado(a)” designam países ou culturas que, de certa forma, são atingidos e influenciados por alguma forma de poder do primeiro grupo. 39 Um dos principais teóricos que têm como objeto de estudo o lugar da tradução nas práticas de dominação entre culturas, Venuti, em Escândalos da Tradução (2002), denuncia a forma como a tradução há muito tem sido utilizada como instrumento político e ideológico no estabelecimento de cânones e na reconstrução de representações de culturas estrangeiras, dentre outros contextos. O autor afirma que “a tradução é particularmente reveladora das assimetrias que têm estruturado as relações internacionais durante séculos” e que “[...] a tradução é uma prática cultural que está profundamente implicada nas relações de dominação e dependência, igualmente capaz de mantê-las ou interrompê-las” (p. 297). Embora se reconheça que a tradução possa questionar as relações de domínio entre culturas, não se considera, no entanto, que tal capacidade do ato de traduzir se equipare à força da tradução de manter tais relações. Isso se daria, dentre outros fatores, porque a prática da tradução em prol da continuidade do exercício da dominação parece mais sedimentada e porque a tradução é uma prática invisível (VENUTI, 2002), o que faz com que o questionamento dessa prática por meio da própria tradução enfrente maior dificuldade. O poder da tradução de “penetrar nas relações geopolíticas” (VENUTI, 2002, p. 130) e de reiterar as representações culturais de uma nação em relação a outra constrói uma barreira imaginária, mas eficaz, que auxilia na permanência das assimetrias. De um lado, está a cultura dominante, com sua hegemonia assegurada pela história. De outro, subordinada a esta primeira e influenciada por dela, em vários sentidos, a cultura periférica, que muitas vezes coincide com países que, em algum momento de sua história, foram colonizados. Venuti (2002, p. 351) afirma que “[...] a autoridade cultural e o impacto da tradução variam de acordo com a posição de um determinado país na economia geopolítica”. Isso significa que, quando na tradução está envolvida uma língua ou uma cultura que, durante algum período, foi considerada subordinada, o fato de o país periférico em questão ter deixado de ser colônia há vários séculos ou apenas recentemente não modifica muito sua 40 posição subalterna em relação aos países centrais. No jogo de poder que caracteriza as relações internacionais, salvo raras exceções, dificilmente o passado colonial se apaga, as marcas que parecem atribuir a essas nações um caráter permanentemente fraco e dependente seguem impressas, na verdade, no olhar dos países economicamente poderosos, não os deixando olhar para essas ex-colônias como, de fato, ex-colônias. Num raciocínio semelhante, Venuti diz que o que permanece intocado é o uso das práticas tradutórias que estabelecem uma relação hierárquica entre línguas maiores e línguas menores, entre culturas hegemônicas e subalternas. As traduções desencadeiam um processo de formação de identidade, no qual o colonizador e o colonizado, a empresa multinacional e o consumidor local, estão em posição desigual. (VENUTI, 2002, p. 311) Assim, da mesma forma como a tradução atuou em diversas situações na formação de línguas, culturas e literaturas nacionais, agregando a essas nações que se formavam valores e ideais advindos de uma cultura de antemão imposta como superior, ou original (oposta à cultura nova e derivada que então se formava), passados alguns séculos a prática tradutória ainda é utilizada no mesmo sentido. A tradução continua mantendo hierarquias tradicionais e sedimentadas desde o período colonial, em que, segundo Simon (2000), funcionava como uma expressão do poder cultural do colonizador. Nos diálogos atuais entre línguas e culturas, embora não se tenha mais “colonizadores” e “colonizados”, no sentido estrito dos termos, novos participantes assumiram essas posições, criando novos diálogos que, ainda assim, não desestabilizam as assimetrias sedimentadas. Em outras palavras, embora os participantes do diálogo mediado pela tradução não sejam mais os mesmos (como Brasil/Portugal, ou México/Espanha, por exemplo), as posições não se alteraram, aqueles que eram vistos como a “periferia do mundo” continuam sendo vistos assim, em relação aos hegemônicos atuais (Brasil/Estados Unidos, ou México/Estados Unidos). 41 Nos novos contextos, fica mais fácil entender como as hierarquias se mantêm, tendo em mente que países cultural e economicamente dominados por outro muitas vezes realizam a prática ostensiva de tradução a partir da língua dominante: a dominação cultural é estreitamente relacionada à troca unilateral. Esse aspecto é também enfatizado por Venuti (2002), que verifica que o volume de importação e tradução de livros ou outros produtos culturais estrangeiros para o inglês norte-americano é muito baixo. Pelo contrário, os Estados Unidos exportam muitos produtos culturais para países influenciados por sua cultura, língua e poder econômico, e esses bens são assimilados pelo público estrangeiro por meio da tradução. Assim, nota-se que um volume de tradução consideravelmente maior é feito na direção culturas/línguas hegemônicas � culturas/línguas subordinadas, de onde se depreende que uma maior concentração de tradutores parece se encontrar nesse segundo grupo. Simon (2000) sustenta que muitos tradutores vivem em países periféricos, que historicamente ocupam posições às margens do poder e que, quando, além disso, tais países são marcados por um passado colonial, o trabalho desses tradutores pode evidenciar as marcas dessa relação desigual, salientada pela exposição diária aos conflitos da troca lingüística assimétrica. Tendo-se em mente que parece ser realizado um volume maior de traduções em culturas que são vistas como periféricas e que têm o hábito de importar e assimilar produtos culturais estrangeiros, que serão submetidos à tradução para consumo do público doméstico, pode-se entender que a direção na qual se dá esse processo facilita que a tradução continue corroborando práticas de dominação. A tradução, assim como em outros tempos, ainda é utilizada para trazer e disseminar, nos países subordinados, determinados sentidos, discursos e representações produzidos numa cultura hegemônica e que, naturalmente, servem aos interesses dessa mesma cultura. Considera-se que a assimetria entre a cultura do tradutor e aquela produtora do texto a ser traduzido gera efeitos na escrita tradutória. Esses efeitos são entendidos aqui como fatores 42 que orientam os tradutores inseridos em contextos como os mencionados por Simon (2000) a adotarem práticas que reproduzem e continuam a relação de dominação dos valores da cultura hegemônica em relação àqueles da cultura local. Outro efeito, de certa forma também relacionado à manutenção do domínio cultural, é apontado por Venuti (2002, p. 131): a formação de identidades culturais, que se pode dar de várias maneiras. Duas delas, segundo o autor, são a formação de uma representação doméstica para determinadas traduções e a formação de um público doméstico para essas traduções. [...] uma vez que as traduções são geralmente destinadas a comunidades culturais específicas, elas iniciam um processo ambíguo de formação de identidade. Ao mesmo tempo em que a tradução constrói uma representação doméstica para um texto ou cultura estrangeiros, ela também constrói um sujeito doméstico, uma posição de inteligibilidade que também é uma posição ideológica. O poder que a tradução exerce na reconstrução e reivindicação de identidades culturais é de fundamental importância nesta pesquisa, visto que aqui a tradução muitas vezes reassume e veicula, para os brasileiros, identidades culturais a seu respeito que tanto existem no imaginário estrangeiro sobre o Brasil como no próprio imaginário nacional. Tem-se aí também a formação de sujeitos domésticos, ou uma representação cultural desses sujeitos, de forma semelhante a que Venuti (2002) afirma que “a tradução forma sujeitos domésticos por possibilitar um processo de ‘espelhamento’ ou auto-reconhecimento: o texto estrangeiro torna-se inteligível quando o leitor ou a leitora se reconhece na tradução” (p. 148). Venuti (2002) sustenta ainda que o reconhecimento doméstico provocado por certas estratégias tradutórias simboliza também posições ideológicas que, ao transmitirem certos valores, crenças e representações, freqüentemente se colocam a serviço dos interesses de certos países (muitas vezes aqueles produtores do texto a ser traduzido) ou mesmo de grupos sociais domésticos. No caso de essas traduções serem abrigadas por instituições políticas ou 43 sociais (como o Estado ou a imprensa, como é o caso aqui) “o processo de formação de identidade representado por um texto traduzido afeta de modo potencial a reprodução social, proporcionando um sentido do que é verdade, do que é bom e possível” (VENUTI, 2002, p. 149). A reconstrução de representações culturais e identidades realizadas pela tradução, além de freqüentemente continuar a dominação cultural, já que dissemina discursos que interessam e beneficiam grupos ou nações hegemônicas, pode ainda reforçar essa dominação por meio de uma prática ainda mais difícil de ser revertida: a reconstrução de estereótipos culturais. A estereotipação de um país ou de um determinado grupo nacional atua facilmente na manutenção do poder realizada pelo discurso tradutório. Isso ocorre porque, ao fixar ainda mais determinados sentidos em relação aos sujeitos subordinados, a tradução dá seqüência a representações que não cessam de colocar esse Outro considerado subalterno como inferior, atrasado, exótico, dentre outros estereótipos comuns. Venuti (2002) afirma que a estereotipação está potencialmente envolvida na representação de qualquer cultura estrangeira. A respeito do papel desempenhado pela representação e pela criação de estereótipos na forma como as culturas são lidas, Carbonell (1996) sustenta que a representação, a estereotipação, estratégias de significação e poder: a rede na qual uma cultura é colocada e moldada de fato aparece como uma textura de signos ligados por infinitas conotações e denotações, um sistema se sentidos de complexidade inextricável que é refletida, desenvolvida e registrada no ato multi-fatorial da escrita. Se a cultura for concebida em termos lingüísticos, o contexto no qual um texto é produzido é de máxima importância para qualquer teoria de crítica cultural que procure esclarecer o movimento de significação que se estabelece na semiótica de mundos exóticos e espaços estranhos, reais ou fantásticos. (CARBONELL, 1996, p. 81)17 17 “Representation, stereotyping, strategies of signification and power: the network in which a culture is fashioned does appear as a texture of signs linked by endless connotations and denotations, a meaning system of inextricable complexity that is reflected, developed and recorded in the multifarious act of writing. If culture is conceived of in linguistic terms, the context in which a text is produced is of the utmost importance to any theory of cultural criticism that seeks to clarify the movement of signification that takes place in the semiotics of exotic worlds and alien spaces, real or fantastic”. 44 A união das manifestações lingüísticas mencionadas pelo autor multiplica o poder de cada uma delas e leva o que é construído por essa junção a adquirir valor de verdade, e, assim, ganhar força para orientar, determinar e manter relações que se revelam quase sempre as mesmas, entre culturas “maiores” e “menores”. Nesta pesquisa, representações de uma cultura periférica são construídas por uma cultura hegemônica; passam pelo discurso jornalístico do país dominante para então serem submetidas simultaneamente à tradução e a outro discurso jornalístico, ambos processos inscritos na mesma cultura subordinada, possibilitando, a seu povo, a visão de como o Outro hegemônico o vê. No que se refere à maneira como a tradução jornalística é vista neste trabalho, considera-se que tanto a tradução como o discurso jornalístico orientam os aspectos que determinam a forma como se dá essa prática. Procura-se demonstrar que as representações e os discursos que circulam no imaginário do Brasil emergem na escrita tradutória, como emergem em qualquer outra escrita. Culleton (2005) realizou um estudo sobre a tradução de notícias e as percepções do autor podem ajudar a esclarecer como se dá essa prática. A pesquisa do autor concentrou-se em traduções jornalísticas do espanhol para o português, e Culleton percebeu que os jornais que publicam notícias traduzidas oferecem, de maneira geral, duas diferentes condições de trabalho a quem realiza as traduções. Há aqueles que não dispõem de um profissional cuja única função seja traduzir, e que, quando há algum artigo a ser traduzido, um jornalista é chamado a interromper sua atividade para realizar a tradução da notícia, em pouco tempo e pressionado pelo horário de fechamento da edição. Em outros casos, aparentemente menos comuns, as traduções são realizadas por um profissional que faz dessa sua ocupação única. Para Culleton (2005, p. 33), 45 a automatização [da imprensa] também afeta o jornalista-tradutor, que deve fazer o seu trabalho dentro do contexto das redações. Este fator, acrescido à comum sobrecarga de trabalho, provoca um sentimento de rotina e automatismo que pode prejudicar a qualidade da tradução. Para o autor, o fator da urgência caracteriza a tradução de notícias, já que, muitas vezes, os responsáveis pela tradução são os próprios jornalistas, que são obrigados a cumprir os rigorosos horários do fechamento das edições. Além da questão do tempo, os jornalistas que são também tradutores se submetem ainda a outras coerções, como o espaço disponível para a reportagem, que depende do que a editoria disponibiliza para publicar o material recebido, além de critérios políticos e jornalísticos. Dentre os critérios políticos, semelhantes àqueles apontados por Mariani (1998), que cerceiam a atividade de qualquer jornalista e naturalmente se impõem também à atividade dos tradutores de notícias, Culleton (2005) menciona linhas editoriais, proprietários de jornais, políticos, lobbies, “que influenciam e condicionam a inclusão ou exclusão de determinadas matérias” (p. 48), assim como outros processos de decisões sobre a apresentação das notícias, como “a publicabilidade, segundo a ideologia dominante [...], reforçada pelos ‘anseios’ dos donos dos meios de comunicação” (p. 83). A forma como Culleton (2005) caracteriza as condições de trabalho de quem traduz notícias permite notar que os cerceamentos característicos da atividade jornalística impedem que se possa atribuir somente aos tradutores a responsabilidade pela veiculação ou não das representações estudadas a seguir. Ter em vista que a escrita dos tradutores é atravessada por vários discursos institucionais, e que isso se reflete na reconstrução ou rejeição das representações culturais do Brasil perceptíveis nas notícias analisadas aqui, reforça o argumento desta pesquisa de que a tradução é uma forma de representação cultural. Ainda que se considere a escassez de tempo 46 como um dos fatores que influenciam o texto final das traduções, o papel do imaginário não se apaga, pois neste tipo de contexto o imaginário nacional também atua com mais força: se o escritor (neste caso, o jornalista e o tradutor) não monitora demasiadamente o que escreve, parece facilitar a entrada de discursos e representações em sua escrita. Assim, o tradutor, como sujeito historicamente envolvido, tem em sua escrita a influência das representações culturais e dos discursos alimentados pelo imaginário nacional, da mesma forma como a tradução, formadora de identidades culturais, produz efeitos em seu texto. Como diz Zipser (2002), ao lidar com a tradução de um fato jornalístico, o tradutor utilizaria um “filtro cultural” criado pela cultura de chegada para reconstruir ou restringir a representação realizada no texto original, como se, diante dos olhos do tradutor, se colocassem os “óculos” da cultura que receberá a tradução, metáfora que pode ser associada ao que aqui se chama de imaginário nacional. Embora esta pesquisa considere e dê relevância ao papel do imaginário nacional no direcionamento da escrita tradutória, não se trata de assumir que o tradutor, ainda que sujeito historicamente envolvido, seja completamente assujeitado. Tal postura significaria, conforme Possenti (1995), atribuir todo o lugar e todos os papéis aos discursos que atravessam o sujeito e negar-lhe qualquer atividade, equívoco que o autor considera um retorno à simplificação – apenas invertida – da noção do sujeito cartesiano, fonte de todo seu dizer. Em consonância com o pensamento de Possenti (1995), Brunelli (1999, p. 124) afirma que o sujeito não é, portanto, nem senhor nem escravo da língua, mas um trabalhador bastante competente, capaz de realizar uma série de tarefas com a linguagem [...] em função de determinados objetivos, dentro dos limites impostos pela autonomia do sistema lingüístico e por todo o contexto sócio- histórico que o cerca. A maneira pela qual Possenti (1995) e Brunelli (1999) reconhecem que a atuação dos discursos não elimina a atuação do sujeito auxilia a esclarecer a forma como se vê o papel do tradutor neste trabalho. Ainda que, por se inserir num espaço limitado por fatores sociais, 47 históricos e econômicos, esse profissional não possa realizar uma escrita livre, na qual decida por sua isenção ou participação, vista como “manipulação deliberada” (FROTA, 2000, p. 63), o tradutor é um sujeito que, sem dúvida, realiza trabalhos e manobras com a língua e com a linguagem. Não é possível determinar a participação exata de cada um desses dois fatores – os discursos que cercam o tradutor e sua capacidade de agir por meio da linguagem – no processo de tradução, mas é certo que, na prática quotidiana, esses dois aspectos se conjugam, atuam e não se dissociam. CAPÍTULO 2 A REPRESENTAÇÃO DA SENSUALIDADE E DA BELEZA A seguir são analisadas as maneiras pelas quais as construções da imagem do povo brasileiro como um povo sensual são tratadas nas traduções. A sensualidade é freqüentemente atribuída aos brasileiros e, como confirma Chaui (2000, p. 8), “há, assim, a crença generalizada de que o Brasil [...] tem um povo pacífico, ordeiro, generoso, alegre e sensual, mesmo quando sofredor”. Essa crença parece permear tanto o imaginário estrangeiro sobre o país como o imaginário dos próprios brasileiros, podendo-se tratar de uma representação compartilhada. Por vezes a imagem da sensualidade exuberante aparece expandida do povo para o próprio país, o que caracteriza uma personificação. Como se demonstrará também, em parte dos fragmentos analisados a imagem de sensualidade vem associada a aspectos como a hipocrisia e a beleza. Os primeiros trechos referem-se a uma notícia publicada na data de 27 de abril de 2006, e traduzida apenas pelo US a respeito do lançamento do livro O Doce Veneno do Escorpião (2006),1 autobiografia da ex-garota de programa Rachel Pacheco, conhecida como Bruna Surfistinha. O título da notícia, de autoria de Larry Rohter, e sua tradução são, respectivamente: (1) She Who Controls Her Body Can Upset Her Countrymen (NYT, acesso em: 27 abr. 2006) 1 SURFISTINHA, Bruna. O doce veneno do escorpião. São Paulo: Panda Books, 2005. 49 Ela, que controla o próprio corpo, pode irritar seus compatriotas (US, acesso em: 27 abr. 2006) Na época da publicação desta notícia, Bruna já era bastante conhecida no Brasil por meio da mídia. No entanto, o mesmo não necessariamente ocorria nos Estados Unidos, onde provavelmente os leitores pouco ou nada sabiam sobre ela ou seu livro. Assim, esse título, em que não consta o nome de Bruna nem a informação de que é brasileira, funciona também para apresentar aos leitores norte-americanos a mulher que é tema da notícia. No decorrer do artigo, Bruna é apresentada aos leitores estrangeiros por meio de uma caracterização que a coloca como uma brasileira que controla o próprio corpo. Essa caracterização que o NYT realiza, na notícia como um todo, é mais marcante quando lida pelos leitores estrangeiros pois, para eles, a informação de que Bruna controla seu corpo (o que configura uma representação da liberação sexual) alia-se ao dado de que é uma mulher brasileira quem tem esse comportamento. A representação de Bruna, para o leitor estrangeiro, acaba abrangendo as mulheres brasileiras como um todo, numa generalização: as mulheres brasileiras podem assim ser interpretadas como sexualmente independentes e liberais. Isso ocorre porque o público que se depara com uma representação cultural de um povo ou país estrangeiro tende a generalizar o que lê, o que parece ser um efeito típico desse tipo de representação. Assim, os leitores norte- americanos possivelmente realizam generalizações a respeito do que lêem sobre o Brasil com maior facilidade que os brasileiros. Na tradução do exemplo (1), embora a caracterização de Bruna seja semelhante a que ocorre no texto em inglês, apenas o fato de ela ter poder sobre o próprio corpo é percebido com maior ênfase, de forma que a representação da sensualidade é mais suave para os brasileiros que para os estrangeiros. Como será possível perceber em vários outros exemplos, o fato de os brasileiros estarem mais próximos e terem mais conhecimento sobre o objeto da 50 representação cultural parece levar esse público a generalizar menos o que lê sobre seu próprio país. Assim como no texto em inglês, o título da tradução também prepara a argumentação contra a imagem da liberação sexual no Brasil, que será desenvolvido no decorrer do texto. No entanto, como se verá adiante, devido à tradução parcial que o US realiza desta notícia, no texto em português essa discussão não é suficientemente desenvolvida. A seguir tem-se uma passagem na qual Rohter fala dos efeitos causados pelo blog que Bruna mantinha na internet e pela publicação de seu livro. (2) By going public with her exploits, she has also upended convention and set off a vigorous debate about sexual values and practices, revealing a country that is not always as uninhibited as the world often assumes (NYT, acesso em: 27 abr. 2006) Tornando públicas as suas façanhas, ela também subverteu convenções e abriu ala a um vigoroso debate sobre valores e práticas sexuais, revelando um país que não é sempre desinibido como o mundo freqüentemente pensa ser (US, acesso em: 27 abr. 2006) No texto em inglês, a constatação da possibilidade de a desinibição sexual do Brasil – e não de seu povo – não ser tão abrangente como se supõe prepara a discussão que se seguirá e que colocará tal liberação sexual em dúvida. No entanto, considera-se que o NYT, ao colocar esse assunto em pauta, de certa forma também reitera a imagem da liberação sexual associada aos brasileiros e ao Brasil. A respeito da personificação do povo brasileiro pelo país, pode-se considerar tal procedimento lingüístico bastante comum quando se trata de noticiar fatos sobre uma determinada nação. No entanto, no momento em que representações culturais e nacionais são realizadas, tais personificações desempenham um papel distinto do que se tem 51 numa notícia como “Italy Arrests 2 In Kidnapping Of Imam in ‘03”.2 Neste exemplo, a substituição de “Italian police”, por exemplo, por “Italy” parece não constituir uma personificação que acabe atribuindo uma representação cultural, uma identidade ou ainda um estereótipo a determinada nação, como ocorre em (2). No caso da notícia em questão, a escolha de “a country that is not always as uninhibited” em detrimento de “people that is not always as uninhibited” contribui para a generalização da imagem de desinibição e da liberação sexual como traços tão característicos do povo brasileiro que terminam por “contaminar” o Brasil. Na tradução, a representação da liberação sexual também é construída e, de forma semelhante ao texto do NYT, nota-se a personificação do povo pelo país. O efeito desse procedimento, para o leitor brasileiro, é a reafirmação de que tal desinibição, embora seja menos difundida do que aparenta ser, de fato é de tal forma característica a esse povo que chega a qualificar o Brasil. Uma vez que a tradução desta notícia é incompleta, ou seja, que o leitor brasileiro não tem acesso ao debate elaborado por Rohter, o texto em português acaba contribuindo para que essa representação seja reforçada. A questão da imagem da hipocrisia relacionada à sexualidade, apenas sugerida na passagem anterior, começa a ser delineada mais explicitamente na seguinte passagem: (3) At book signings, Ms. Pacheco said, “80 percent of the public is women, which I didn’t expect at all,” because most of the readers of her blog appeared to be men, including customers who “wanted to see how I had rated their performance.” As she sees it, the high level of female interest in her sexual experiences reflects a gap here between perceptions about sex and the reality (NYT, acesso em: 27 abr. 2006) Pacheco afirmou que “80% do público é composto por mulheres, coisa que de forma alguma esperava acontecer” já que a maior parte dos leitores de seu blog parecia ser de 2 Notícia publicada pelo The New York Times em 6 de julho de 2006. 52 homens, inclusive clientes que “queriam ver como classifiquei o desempenho deles”. Sob o seu ponto de vista, o alto índice de interesse feminino sobre suas experiências sexuais reflete uma brecha entre o entendimento do sexo e a realidade (US, acesso em: 27 abr. 2006) Embora haja uma exceção, de forma geral Bruna é tratada, no NYT, por “Ms. Pacheco” – a exceção refere-se ao exemplo (7), quando é chamada de “Bruna”. Na tradução do US, não é utilizado nenhum dos pronomes de tratamento femininos do português e, assim como no texto em inglês, Bruna é chamada de Pacheco no texto traduzido. Ainda que, no Brasil, escritores sejam normalmente chamados pelo sobrenome, o caso de Bruna é especial pois, antes mesmo de se lançar como escritora, já era conhecida como Bruna Surfistinha. Arrojo (1992) afirma que as convenções contextuais estabelecidas pela comunidade cultural receptora da tradução muitas vezes são parâmetros adequados na orientação de escolhas tradutórias. Isto significa que o tradutor pode, ao realizar determinada escolha, dar preferência a termos ou expressões já construídos e consagrados pelo uso dessa comunidade. Assim, no caso deste artigo, percebe-se que se referir à autora de O Doce Veneno do Escorpião (2006) como “Bruna”, “Bruna Surfistinha” ou, até mesmo, “Surfistinha”, causaria reconhecimento imediato por parte dos leitores brasileiros, já que é por meio dessas formas que esse público a conhece. A princípio, os leitores brasileiros não teriam referencial algum para o sobrenome “Pacheco”, o que faz com que a tradução, ao referir-se a Bruna Surfistinha por meio desse sobrenome, cause estranhamento ao leitor brasileiro. Em relação à sugestão de que há um distanciamento entre os valores que regem a prática sexual e o que se diz ou se aparenta a respeito dessa prática no Brasil, percebe-se que a idéia de repressão relacionada à postura em relação à sexualidade no país não é nova no imaginário estrangeiro. Joseph Page, antropólogo norte-americano, afirma, em seu livro The Brazilians (1995), que 53 […] a tão divulgada sensualidade que o Brasil parece exalar – e que atinge sua apoteose no frenesi do Carnaval do Rio – de fato oculta atitudes repressivas e reprimidas em relação ao sexo que permeiam grande parte da sociedade brasileira. (PAGE, 1995, p. 3)3 Como se pode perceber no recorte do NYT, a imagem da hipocrisia é construída por meio de um discurso atribuído a uma brasileira (“as she sees it”), que perceberia uma brecha entre “perceptions about sex and the reality”. Na tradução, a percepção da hipocrisia também é atribuída a Bruna. Na próxima passagem a construção da imagem da hipocrisia novamente aparece na voz da brasileira. (4) “I think there’s a lot of hypocrisy and a bit of fear involved,” she said. “Brazilian women have this sexy image, of being at ease and uninhibited in bed. But anyone who lives here knows that’s not true” (NYT, acesso em: 27 abr. 2006) “Eu acho que existe muita hipocrisia e um pouco de medo envolvidos”, disse ela. “As mulheres brasileiras recebem essa imagem sensual, de serem fáceis e desinibidas na cama. Mas qualquer um que viva aqui sabe que isso não é verdade” (US, acesso em: 27 abr. 2006) Não será considerado relevante nesta análise o fato de uma determinada representação encontrar-se em discurso direto ou indireto. Para os fins desta pesquisa interessa mais saber na voz de quem aparece a representação, se na de um brasileiro – como é o caso dos exemplos (3) e (4) – ou na de um estrangeiro, freqüentemente o autor da notícia. Esse procedimento de 3 “[...] the well publicized sensuality that Brazil seems to exude – and that reaches its apotheosis in the frenzy of the annual Carnival in Rio – in fact hides the repressive and repressed attitudes about sex that permeate much of Brazilian society”. 54 não estabelecer uma diferença significativa entre discurso direto e indireto baseia-se no pensamento de Maingueneau (1997), para quem o discurso direto [...] freqüentemente é oposto, de forma um pouco ingênua, ao discurso indireto, alegando que ele pretende reproduzir literalmente as alocuções citadas; seria mais exato ver nele uma espécie de teatralização de uma enunciação anterior e não uma similitude absoluta [...]. Ele não é mais nem menos fiel que o discurso indireto, são duas estratégias diferentes empregadas para relatar uma enunciação. (MAINGUENEAU, 1997, p. 85) Ainda segundo o autor, o fato de um locutor (neste caso, o jornalista) apenas relatar as asserções de um terceiro, em lugar de garanti-las pessoalmente, permite crer que ele não poderia, por si só, afirmar tal verdade. Tal impossibilidade pode dever-se tanto ao fato de o enunciador não acreditar totalmente na asserção, como também permite que possa ocultar-se por trás desse terceiro, já que essa é uma maneira de sugerir seu ponto de vista, sem necessariamente responsabilizar-se por isso. Ainda que se considere que, nos casos (3) e (4), a fala de Bruna possa ter sido traduzida para o inglês, essa última hipótese pode ser verificada uma vez que é o jornalista estrangeiro quem, ao deslocar o discurso da brasileira e inseri-lo num novo contexto – uma discussão sobre a aparente hipocrisia dos brasileiros em relação à sexualidade – constrói essa representação. Para Maingueneau (1997, p. 86), está aí a ambigüidade do distanciamento, na qual “o locutor citado aparece, ao mesmo tempo, como um não-eu, em relação ao qual o locutor se delimita, e como a ‘autoridade’ que protege a asserção”. No caso dos excertos (3) e (4), essa “autoridade” que protege a afirmação é uma mulher brasileira, o que garante confiabilidade à sua afirmação, já que essa se refere às mulheres de sua própria nacionalidade. Também a respeito do uso do discurso relatado, mas tratando especificamente desse uso em textos jornalísticos, Mariani (1998) afirma que tal prática teria se disseminado a partir das décadas de 40 e 50, a fim de dar a impressão de que os fatos e os sujeitos falam por si, 55 demarcando fronteiras entre discursos diferentes, dando a impressão de que o locutor- jornalista se apaga. Assim, para a autora, a reprodução das falas seria utilizada com o intuito de indicar dizeres sobre os quais os jornais supostamente não teriam responsabilidade. Ainda em relação ao caso (4), no texto em inglês, lê-se, na voz de Bruna que as mulheres brasileiras têm (“have”) a imagem de serem sexy, sentirem-se confortáveis (“at ease”) e desinibidas na cama. Na tradução, lê-se que as brasileiras recebem essa imagem. Ainda que tanto os atos de ter como o de receber uma determinada imagem possam indicar que tal imagem foi atribuída por outros, o texto em português, por meio do uso do verbo “receber” permite depreender uma atitude mais passiva das mulheres brasileiras em relação a essa atribuição. Além disso, no texto em português, “at ease” é traduzido por “fáceis”, o que reforça a imagem da liberação sexual em relação à mulher brasileira. Assim, se de um lado esse estereótipo é mais evidente no original em inglês, em que essa imagem parece inerente (elas a tem, e não a recebem), por outro, o texto em português reforça a representação realizada em (4) e a torna mais pejorativa, visto que sentir-se confortável, desinibida na cama é menos negativo que ser considerada uma mulher fácil. A tradução dessa notícia para a língua portuguesa, publicada no US, encerra-se nesse ponto. No restante da notícia em inglês, continua sendo construída a imagem do Brasil como um país sensual, imagem que em nenhum momento é questionada por Rohter. O que é questionado de maneira mais enfática a partir deste ponto é o estereótipo da liberação sexual, e, a partir daqui, a exposição que visa a desmascarar essa imagem é bastante desenvolvida, e o jornalista norte-americano passa a trazer várias vozes que – atuando como autoridades – fundamentam essa discussão. Para o leitor brasileiro, a notícia termina de maneira relativamente abrupta, e na tradução a que ele tem acesso esse questionamento é apenas sugerido, sem ser suficientemente desenvolvido. 56 A seguir são apresentados e comentados mais alguns trechos da notícia em inglês que demonstram a maneira como o NYT prossegue sua composição do Brasil. Na passagem seguinte, se firma a discussão em relação à hipocrisia que, segundo a notícia, permearia a postura dos brasileiros em relação à sexualidade. (5) That a woman is now talking and behaving as Brazilian men often have may also offend some. Roberto da Matta, a leading anthropologist and social commentator, noted that even though role reversals were an important part of Carnival, other areas of Brazilian life, including sexual relationships, could be quite rigid and hierarchical. Under the system of machismo that prevails in Brazil and other Latin American countries, “only a man has a right to command his own sex life, and that control is seen as a basic attribute of masculinity”, he explained. “So when a young, attractive, intelligent woman appears and says she is a prostitute, you have a complete inversion of roles, leaving men fragile in a terrain where she is the boss, not them” (NYT, acesso em: 27 abr. 2006)4 A respeito do Carnaval e da hipocrisia relacionada à sexualidade, a fala de da Matta, um antropólogo brasileiro, pode ser relacionada a outro atributo comumente associado ao Brasil: a contradição. Martins (2003, p. 160), em estudo sobre a representação do Carnaval no imaginário norte-americano, pesquisa em que utilizou também notícias do NYT e o trabalho de Page (