UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA "JÚLIO DE MESQUITA FILHO" FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS JOELSON VITOR RAMOS DOS SANTOS O ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO CIVIL NA ESFERA DA IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA: APLICAÇÃO DO ACORDO E IMPLICAÇÕES DECORRENTES DA REDAÇÃO DA LEI N° 14.230/2021 FRANCA 2022 JOELSON VITOR RAMOS DOS SANTOS O ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO CIVIL NA ESFERA DA IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA: APLICAÇÃO DO ACORDO E IMPLICAÇÕES DECORRENTES DA REDAÇÃO DA LEI N°14.230/2021 Trabalho apresentado à Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” para a aprovação no curso de Graduação em Direito (Área de Concentração: Direito Administrativo). Orientador: Prof. Dr. José Carlos de Oliveira FRANCA 2022 S237a Santos, Joelson Vitor Ramos dos O acordo de não persecução civil : aplicação do acordo e implicações decorrentes da redação da lei n° 14.230/2021 / Joelson Vitor Ramos dos Santos. -- Franca, 2022 115 p. Trabalho de conclusão de curso (Bacharelado - Direito) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Franca Orientador: José Carlos de Oliveira 1. Direito público. 2. Consenso. 3. Improbidade administrativa. 4. Interesse público. 5. Persecução civil. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Franca. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. JOELSON VITOR RAMOS DOS SANTOS O ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO CIVIL NA ESFERA DA IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA: APLICAÇÃO DO ACORDO E IMPLICAÇÕES DECORRENTES DA REDAÇÃO DA LEI N°14.230/2021 Trabalho de conclusão de curso apresentado como requisito para aprovação no curso de Bacharelado em Direito na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais – UNESP campus Franca. BANCA EXAMINADORA Presidente:________________________________________ Prof. Dr. José Carlos de Oliveira 1º Examinador: __________________________________ Prof. Daniel de Souza Silva 2º Examinador: __________________________________ Prof. Guilherme Vieira Barbosa Franca, 21 de novembro de 2022. Dedico este trabalho aos meus pais, Joelson Ramos dos Santos e Vanderly Batista Santos, por construírem minha essência, com os princípios e valores a mim ensinados. Por fim, em especial, também dedico ao meu avô, Cícero Manoel, que, em razão da força do tempo e brevidade da vida, não conseguiu ver o primeiro neto formado. AGRADECIMENTOS A princípio, com o fim de evitar injustiças, faço aqui o agradecimento a todas as pessoas maravilhosas que entraram na minha vida nestes 5 (cinco) anos de graduação e que contribuíram até aqui e que, por descuido da minha parte, não serão mencionadas de forma expressa. Primeiramente, agradeço ao meu orientador, o Professor Dr. José Carlos de Oliveira por ter aceitado acompanhar este projeto desde o estágio embrionário, em forma de Iniciação Científica, até o presente momento, mesmo em meio às imensas dificuldades trazidas pelo ambiente pandêmico em conjunto com a novidade de um tema tão desafiador. Agradeço aos meus pais, por todo o sacrifício que fizeram até hoje para que eu pudesse ter o necessário para vencer as mazelas de ordem econômica e social impostas à nossa família. Como sei, não há que se falar em dívida quando o oferecido é feito por amor, mas, caso houvesse, a minha certamente seria incalculável. Agradeço também, aos meus amigos, Gabriel Garro, Igor Ferrari, Alisson Rangel e Mateus Pereira pela incondicional presença e parceria durante todos os anos da graduação, inclusive na tortuosa pandemia. Também, ainda que o nosso convívio tenha sido breve, agradeço ao Bruno Eduardo, Denis Rodrigo, Vinícius Nascimento, dentre outros, por tornarem o meu último ano mais leve e alegre, acalmando os momentos de tormento com os incentivos festivos e calorosas conversas. Em especial, agradeço ao Diego Sentanin, por ser, com certeza, um dos maiores presentes que a UNESP Franca me proporcionou, um irmão para a vida. Sua amizade e parceria foram essenciais para que eu fosse capaz de percorrer o duro caminho da graduação e da vida. As marcas de sua contribuição não estão somente nesse trabalho, mas em tudo que vivi desde o meu primeiro ano em Franca. Ao Cícero Ivanilson, Daniel Barrozo e Matheus Antonio, dispensa aprofundamentos, agradeço a amizade e parceria desde os melindres do ensino médio. Ademais, agradeço a todos os profissionais do departamento de Direito Público por todo o apoio que me deram ao longo da realização do meu trabalho. Por fim, expresso imensa gratidão aos professores do curso por me oferecer, mesmo diante do ataque à Universidade Pública, todas as bases necessárias para a realização deste trabalho e para minha formação como profissional, ensinando a pensar e refletir o direito, atributos necessários para a construção do nosso Estado Democrático de Direito. A todos, minha imensa e profunda admiração, para sempre vocês estarão em meu coração. RESUMO Este trabalho objetiva analisar a procedimentalização do Acordo de Não Persecução Civil (“ANPC”), instrumento autocompositivo disciplinado pela Lei n°14.230/2021. Para isso, será estudado, em especial, o artigo 17-B da Lei de Improbidade Administrativa, incluído pela normativa supramencionada. Busca-se investigar, ante a regulamentação federal, a existência de um consenso na interpretação e aplicação do instituto, mais especificamente, nas questões relativas ao procedimento trazido pela normativa, à legitimidade, à anuência, à propositura e, por fim, à homologação do acordo. Nessa senda, necessário perquirir eventual (in)compatibilidade do ANPC com o interesse público, trançando as linhas gerais do Direito Administrativo Sancionador, em razão da avença fazer parte do sistema da improbidade, por fim, indispensável expor as mudanças paradigmáticas trazidas pela Lei n° 14.230/2021. A metodologia empregada foi a revisão bibliográfica e legislativa, através do método hermenêutico-dedutivo. Constatou-se, ao final da pesquisa, que o instituto é substancial, inovador e compatível com o microssistema de tutela da probidade administrativa, todavia, em razão de a matéria ser inaugural, em relação às questões ventiladas, este trabalho expôs as incertezas sobre como tais questões devem ser interpretadas, o que, se não for bem enfrentado, pode gerar insegurança jurídica e ineficácia do instituto. Palavras-chave: Acordo de não persecução civil; consensualidade; improbidade administrativa; interesse público; procedimentalização. ABSTRACT This paper aims to analyze the procedure of the civil non prosecution agreement, a self- compositive instrument disciplined by the Law n° 14.230/2021. For this, it will be studied the article 17-B of the Administrative Improbity Law, included by the above-mentioned law. The aim is to investigate, before the federal regulation, the existence of a consensus in the interpretation and application of the institute, more specifically, on issues related to the procedure brought by the normative, the legitimacy, the consent, the proposition and, finally, the homologation of the agreement. In this path, it is necessary to question the eventual (in)compatibility of the civil non prosecution agreement with the public interest, braiding the general lines of the Sanctioning Administrative Law, because the agreement is part of the misconduct system, finally, it is essential to expose the paradigmatic changes brought by the Law n° 14.230/2021. The methodology employed was a bibliographic and legislative review, using the hermeneutic-deductive method. At the end of the research, it was found that the institute is substantial, innovative and compatible with the micro-system for the protection of administrative probity. However, due to the fact that the subject matter is inaugural, in relation to the issues ventilated, this paper exposed the uncertainties on how such issues should be interpreted, which, if it is not well faced, may generate legal uncertainty and ineffectiveness of the institute. Keywords: Administrative improbity; civil non prosecution agreement; consensuality; proceduralization; public interest. SUMÁRIO INTRODUÇÃO .......................................................................................................................... 9 1. CONSENSUALIDADE NO DIREITO ADMINISTRATIVO E A INDISPONIBILIDADE DO INTERESSE PÚBLICO .................................................................................................... 14 1.1. O princípio da indisponibilidade do interesse público ...................................... 15 1.1.1. Do interesse público ................................................................................... 15 1.1.2. Da indisponibilidade do interesse ............................................................... 19 1.2. A Administração Pública Consensual ............................................................... 26 1.2.1. O fenômeno da consensualização ............................................................... 26 1.2.2. A evolução da consensualização no direito brasileiro ................................ 30 2. DIREITO ADMINISTRATIVO SANCIONADOR ............................................................ 33 2.1. Breve introdução histórica do direito administrativo sancionador ................. 35 2.2. Direito Administrativo sancionador brasileiro ............................................... 37 2.3. Sanção administrativa ........................................................................................ 39 2.4. Princípios que norteiam o Direito Administrativo Sancionador ........................ 42 2.4.1. Da razoabilidade e da proporcionalidade ................................................... 46 2.4.2. Da individualização da conduta .................................................................. 48 3. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA ............................................................................... 51 3.1. Aspectos gerais da improbidade administrativa ................................................ 51 3.2. Alterações decorrentes da Lei n. 14.230/21 ....................................................... 54 3.2.1. Exclusão da forma culposa e demonstração de perda real.......................... 54 3.2.2. Dos atos de improbidade após a Lei nº 14.230/21 ...................................... 57 3.2.3. Das punições após a Lei n. 14.230/21 ........................................................ 66 3.3. Da (ir)retroatividade da Lei n. 14.230/21 .......................................................... 70 4. ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO CIVIL ....................................................................... 73 4.1. Do breve retrospecto da aplicabilidade do acordo ............................................. 73 4.2. Legitimidade para a propositura do acordo ....................................................... 77 4.3. Anuência do ente público .................................................................................. 84 4.4. Momento de celebração ..................................................................................... 87 4.5. Dos requisitos positivos e negativos para celebração do acordo após a Lei n° 14.230/ 2021 ......................................................................................................................... 91 4.6. Homologação ..................................................................................................... 94 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 98 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................... 106 9 INTRODUÇÃO No cenário jurídico brasileiro, a morosidade na resolução dos embates se revela como um problema frente ao excesso de formalismo e tecnicismo na prestação jurisdicional, o que acarreta a ausência de efetividade e deságua no descrédito da população frente ao Poder Judiciário. Nessa senda, o ideal de justiça começa, inclusive, a ser questionado, pois como assevera Rui Barbosa (1999, p. 39) “justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta”. Todavia, há outras causas que corroboram para essa ineficiência. Como bem advoga Sebastião Sérgio da Silveira (SUAID; SILVEIRA; SILVEIRA, 2020, on-line) dentre outras, temos as leis gerais e abstratas conflitantes entre si (entre os entes federativos); e a alta judicialização de diversos temas, como consumo, ambiente, saúde, educação e moradia. No caso específico das ações por Improbidade Administrativa, uma parte da culpa da ineficiência no processamento de tais lides, conforme declara o professor Silveira (SUAID; SILVEIRA; SILVEIRA, 2020, on-line) foi justamente a complexidade do processo, que exigia o chamamento formal da pessoa jurídica prejudicada - quando esta não for a autora - e uma fase prévia de admissibilidade da ação. Para se ter uma noção da morosidade de tal processo, o Conselho Nacional de Justiça (BRASIL, 2022a, on-line) emitiu a Meta Nacional n° 4 de 2019 - antiga Meta Nacional n° 3 de 2013 -, com o fim de tornar célere a tramitação de processos relacionados à Improbidade Administrativa. In verbis: Identificar e julgar até 31/12/2019: Na Justiça Estadual: 70% das ações de improbidade administrativa e das ações penais relacionadas a crimes contra a Administração Pública, distribuídas até 31/12/2016, em especial a corrupção ativa e passiva, peculato em geral e concussão (BRASIL, 2022a, on-line). Conforme o relatório do CNJ (BRASIL, 2022a), dos processos distribuídos até 2017, dos 154.400 casos de Improbidade Administrativa, somente 53.991 deles foram julgados, isto é, 34,97%; porcentagem muito inferior do estabelecido pela Meta Nacional n° 4 de 2019. Diante desse cenário caótico, tornou-se necessário a edição da Lei n° 14.230/2021, que alterou substancialmente a Lei 8.429/92 (“LIA”). À vista disso, o processo por improbidade aproximou-se do procedimento comum, retirando algumas formalidades que, de certa forma, corroboraram para a morosidade da tramitação e solução das lides. Todavia, ainda assim, o problema da ineficiência ainda não foi solucionado, ante a vultosa quantidade de judicializações. Diante desse cenário, mecanismos começaram a ser elaborados para proporcionar uma maior celeridade na prestação jurisdicional, em especial, tem-se a autocomposição de litígios, como a negociação, a mediação e a conciliação. Tais recursos começaram a ser aplicados com 10 maior fervor nos conflitos privados do que propriamente públicos, sendo que os últimos envolviam direitos indisponíveis. Nesse sentido, Rogério Favreto (GAJARDONI [et al], 2020, p. 364) indica que “andou mal o legislador na redação originária do parágrafo 1°, da Lei n. 8.429/92, ao impedir qualquer forma de transação, acordo ou conciliação, ainda que a questão esteja relacionada a atos de improbidade administrativa”. Isto porque, até o advento da Lei Anticrime (Lei n° 13.964/19), era expressamente vedado qualquer tentativa de conciliação e a celebração de acordos na seara da Improbidade Administrativa, uma vez que esta versa sobre direitos indisponíveis. Desta forma, conclui-se que na tutela do patrimônio público e moralidade administrativa o legislador foi extremamente hostil aos métodos de autocomposição. Com a devida vênia ao legislador de 1992, a possibilidade de acordo deve ser o almejado na prática, para a tentativa de conciliação de conflitos, uma vez que resolve de uma forma muito mais célere, menos burocrática e, ainda por cima, mais vantajosa à máquina pública, por ser mais econômica. Tal entendimento já era posto em prática pelos romanos, uma vez que próximo aos fóruns romanos edificavam-se templos destinado à deusa Concórdia, que atuava, segundo o rito romano, na conciliação (SCAMUZZI apud GAJARDONI [et al], 2020, p. 364). Seguindo em sentido oposto ao estipulado pela antiga redação do artigo 17, § 1° da Lei de Improbidade Administrativo - LIA - e utilizando da experiência romana, Carlos Frederico Brito dos Santos (2002) e Marcelo Figueiredo (1997) defendiam a propositura de acordo na seara da Improbidade Administrativa. Para o Dr. Carlos dos Santos, a vedação do acordo se daria nas hipóteses do artigo 9 e 11 da citada lei, que tratam, respectivamente, enriquecimento ilícito e violação dos princípios administrativos. Já Marcelo Figueiredo acreditava na possibilidade de acordo para os agentes que delatassem e ajudassem a punir os transgressores, uma espécie de “delação premiada”. Tudo com o fim de tornar célere o processo e restituir aos cofres públicos, daquele valor desviado. Em um primeiro momento, eventual tratativa ou permissibilidade de acordo engendra no pensamento social uma ideia de impunibilidade. Isso ocorre pela proximidade da Lei de Improbidade Administrativa com a esfera penal criando uma confusão no tocante a natureza jurídica dela. Para o Dr. Fábio Medina Osório (2020, p. 10), a natureza é de direito administrativo sancionador, aliás, isso foi confirmado pela redação do §4° do artigo 1° da Lei n° 14.230/2021. Inclusive, como vem sendo destacado pela doutrina, a Lei nº 8.429/92 possui sanções que são até mais graves que as da Lei Penal, considerada como a ultima ratio (DIDIER JR.; BOMFIM, 2016, on-line). 11 Entretanto, cabe ressaltar a independência entre as instâncias penal administrativa e civil. Logo, um acordo em esfera civil-administrativa, como é considerada a LIA, não obsta a eventual punibilidade do agente infrator na esfera penal. Ocorre que, com o passar do tempo, desde 1992 - ano de instituição da Lei de Improbidade Administrativa-, diversos dispositivos legais foram criados flexibilizando a proibição de autocomposição sobre as matérias que envolvessem, de alguma forma, a moralidade administrava e indisponibilidade do interesse público. Sucedeu-se que, atualmente, há uma preferência pela solução consensual, pois se percebeu, como leciona a Magistrada Erika Reupke (2020, on-line) que “a proteção do patrimônio público se dá de forma mais eficaz por meio da construção de uma solução negociada do que por uma sentença proferida por um juiz, com ampla produção de provas e risco de prescrição do processo”. Reitera-se aqui, a Meta Nacional n° 4 do CNJ, a tentativa de acelerar a apreciação dos processos que versam sobre a Improbidade e que estão à espera de julgamento nos Tribunais do país. Sabendo disso, houve um grande avanço para a solução negociada com a Lei n. 12.864/2013, que estabeleceu os Acordos de Leniência. Para alguns autores, como Gajardoni (2020, on-line), tal norma, em conjunto com Lei de Improbidade, faz parte de um microssistema processual de tutela coletiva da probidade administrativa, um microssistema - conjunto de normas com o fim de combater a corrupção. Não só isso, mas também a Lei de Mediação – em meados 2015 - em seu artigo 36, §4º, abre a possibilidade de, “nas hipóteses em que a matéria objeto do litígio esteja sendo discutida em ação de improbidade administrativa ou sobre ela haja decisão do Tribunal de Contas da União, a conciliação de que trata o caput dependerá da anuência expressa do juiz (...)” (BRASIL, 2015b). Isto é, houve um confronto direto com a antiga disposição do art. 17, §1° da Lei de Improbidade Administrativa. Nesse sentido, em meados de 2020, a Segunda Turma do STJ pronunciou, mais especificamente no REsp 1.464.287/DF, a respeito da aplicabilidade dos termos procedimentais previsto na delação premiada e no acordo de leniência, em sede de ação de improbidade administrativa. Em consonância aos dispositivos supramencionados, a Lei n° 13.655/18, que incluiu na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (“LINDB”) os artigos 26 e seguintes, implicou numa revogação da antiga disposição da Lei de Improbidade Administrativa. Isso se deu pois a LINDB, por ser uma norma geral, ao objetivar a eficiência na aplicabilidade do direito público, começou a prestigiar e incentivar medidas para a eficiência administrativa, entre elas a possibilidade de tomada de compromissos, como bem assevera seu artigo 26. (BERNARDINA DE PINHO, 2020, on-line). 12 Assim sendo, com tais mudanças com o fulcro de flexibilizar a autocomposição naquelas matérias taxadas como indisponíveis, houve uma aparente desarmonia entre as legislações. Como forma de corrigir tal anomalia, no final de 2019 houve a possibilidade, com o advento da Lei n° 13.964/19, da realização de acordo de autocomposição no âmbito das ações civis de improbidade administrativa, isto é, o Acordo de Não Persecução Civil (“ANPC”). O dispositivo da LIA ficou da seguinte forma: “Art. 17, § 1º As ações de que trata este artigo admitem a celebração de acordo de não persecução cível, nos termos desta Lei” (BRASIL, 2019b). Logo, como a própria nomenclatura ressalta, o Acordo de Não Persecução Civil tem o fim de impedir o início de uma ação civil pública por ato de improbidade administrativa. Para isso, haveria a necessidade de impor algumas condições, como a aplicação de eventuais sanções aos sujeitos responsáveis pelas condutas ímprobas, não afetando as eventuais responsabilizações nas outras instâncias, objetivando tornar mais célere e efetiva a reparação do dano causado ao erário, em âmbito civil. Ocorre que houve o veto presidencial do dispositivo supramencionado, deixando a LIA deficiente. Isso trouxe dúvidas no que tange à sua operacionalização, isto é, faltam referenciais mínimos para a instrumentalização e aplicação das ferramentas trazidas pela Lei n° 13.964/19. O cenário foi substancialmente alterado com a edição da Lei n° 14.230, de 25 de outubro de 2021, que modificou quase que integralmente a Lei de Improbidade Administrativa. Entre tantas mudanças, como a legitimidade ativa exclusiva do Ministério Público e a aproximação da ação de improbidade ao procedimento comum previsto no Código de Processo Civil de 2015, o legislador, no artigo 17-B, finalmente regulamentou o Acordo de Não Persecução Civil, o que deve trazer mais segurança jurídica quanto ao tema. Todavia, embora a lei tenha trazido parâmetros mínimos, ainda há espaço para dúvidas que, uma vez não dirimidas, poderão acarretar insegurança jurídica e na frustação do instituto. Logo, faz-se necessário discutir como está ocorrendo o ANPC, uma vez que é latente a necessidade do uso de tal artificio legal como forma de combater a corrupção de uma forma mais célere, além de ser menos custoso e, consequentemente, mais vantajoso à Administração Pública. À vista do exposto e em respeito ao princípio da eficiência, torna-se essencial o uso do Acordo de Não Persecução Civil para ajudar no combate aos atos ímprobos e à corrupção, sendo o mais importante, na seara civil, o ressarcimento aos cofres públicos do eventual dano ao erário. Para isso, deve ser seguido um procedimento padrão objetivando a segurança jurídica. 13 Diante desse problema, o presente trabalho foi estruturado em quatro capítulos. No primeiro capítulo, foi realizada revisão bibliográfica com o objetivo específico de descrever a mudança de paradigmas no conceito de interesse público, e por consequência, na sua indisponibilidade, já que, como será visto, a consensualidade, em um primeiro momento, pode representar um óbice ao interesse público. Logo, para não restar dúvida sobre a utilização de mecanismos negociais no microssistema de tutela da probidade administrativa, no qual se insere o acordo de não persecução civil, torna-se essencial investigar a evolução da consensualidade no ramo do direto público. Já no segundo capítulo, será apresentado as principais características do Direito Administrativo Sancionador (“DAS”), pois, na hodiernidade, ante a proximidade entre direito penal e administrativo, como as sanções administrativas estão configurando um instrumento para que o Estado influencie nas condutas sociais, de forma a ordenar a convivência e coibir a prática de atos contrários ao interesse público. Nesse cenário, insere-se o ANPC, tornando-se essencial estudar os paradigmas que permeiam o Direito Administrativo Sancionador, em especial, os princípios que o norteiam, haja vista que o ente legitimado para a propositura de eventual avença deverá seguir tais paradigmas, por expressa previsão legal, o art. 1°, § 4° da Lei de Improbidade Administrativa. No terceiro capítulo, o objetivo foi apresentar o impacto da Lei n.º 14.230/2021 na Lei n° 8.429/92, destacando as mudanças estruturais ocorridas no campo das improbidades administrativas, principalmente nos atos que configuram improbidade e as suas respectivas sanções, objetos de eventual ANPC. Por fim, no quarto capítulo, dando especial atenção à inclusão do artigo 17-B à Lei n.º 8.429/1992, que estabelece o novo regime jurídico do acordo de não persecução civil, com fulcro de averiguar a procedimentalização da avença, ante a limitação espacial do presente trabalho, foi apresentado alguns aspectos básicos inerente a propositura do Acordo de Não Persecução Civil, a saber: (i) breve contextualização da aplicabilidade do acordo, dado os limites objetivos e subjetivos; (ii) de quem seria a legitimidade para a propositura da avença; (iii) necessidade de anuência ou não do ente público interessado; (iv) o momento da propositura do acordo e, por fim, (v) a homologação do juiz. A partir disso, traçar parâmetros úteis à delimitação dos acordos celebrados no domínio das improbidades administrativas, a serem observados na prática forense. A relevância do tema se evidencia, em um primeiro momento, pelos riscos que a ausência de um procedimento a ser seguido pode oferecer à dinâmica do instituto consensual. Esses riscos, pode-se dizer, têm o condão de inviabilizar a atuação da consensualidade no trato da 14 probidade administrativa, em razão da insegurança jurídica a ser gerada nos casos reais, desaguando no descrédito dos meios autocompositivos de resolução de conflito, jurando de morte o instituto. Em contrapartida, pode-se dizer que o tema é importante em razão da sua atualidade, uma vez que a Lei n.º 14.230/2021 foi promulgada em dia 25 de outubro de 2021. Nessa senda, as discussões acadêmicas e jurisprudenciais, sobre grande parte das alterações normativas ocorridas ainda são embrionárias; aliás, ao longo de 2022, diversas ações que envolvem a nova normativa tramitaram pelo Supremo Tribunal Federal, ante a amplitude da reforma realizada. Em razão disso, o presente trabalho não se limita tão somente ao estudo do acordo de não persecução civil, mas investiga também outras importantes modificações ocorridas no microssistema de tutela da probidade administrativa. Por fim, em razão do tema ser inaugural, como dito, as discussões doutrinárias ainda estão no estágio de amadurecimento, em razão dos poucos posicionamentos consolidados sobre os assuntos abordados. Dito isso, não se pretende apresentar conclusões concretas e finalizadas, mas sim iniciar e contribuir para algumas discussões, traçando e relacionando perspectivas de análise que possam ser úteis ao enfrentamento do problema de pesquisa proposto, em um futuro próximo. 1. CONSENSUALIDADE NO DIREITO ADMINISTRATIVO E A INDISPONIBILIDADE DO INTERESSE PÚBLICO O Acordo de Não Persecução Civil representa um instrumento consensual no Direito Administrativo, conforme previsto no art. 17-B da Lei de Improbidade Administrativa. Ocorre que, por muito tempo, era extremamente rechaçado pela doutrina e jurisprudência pátria qualquer tipo de consensualidade que envolvesse, de certa forma, o patrimônio público, expressão do interesse público e, por consequência, a sua disponibilidade. Nessa senda, para melhor compreender as implicações decorrentes da Lei n° 14.230/2021, que introduziu e melhor regulamentou os requisitos do Acordo de Não Persecução Civil, compete ao presente capítulo discorrer, por meio de análise e comparações doutrinárias, em especial os ensinamentos de Celso Antônio Bandeira Mello, sobre o interesse público, sua suposta indisponibilidade pela administração pública e as implicações oriundas de eventual confronto com o consensualismo. Além de descrever a evolução dos instrumentos consensuais ao longo dos anos até o presente momento, com a positivação do ANPC. 15 1.1. O princípio da indisponibilidade do interesse público 1.1.1. Do interesse público O princípio da indisponibilidade do interesse público é a norma-base que tende a entrar em conflito com os meios consensuais da Administração Pública. Entretanto, antes de adentrar no assunto com mais afinco, deve-se averiguar o interesse público, o seu conteúdo e a sua natureza jurídica no direito positivo brasileiro. Como bem se sabe, pelas lições de Di Pietro (2022) o regime jurídico administrativo é abrangido pelo conjunto de traços que tipificam o Direito Administrativo, colocando a Administração Pública em uma posição privilegiada na relação jurídico-administrativa. Isto significa que, na prática, a administração possui prerrogativas e sujeições. Dito isso, tem-se, ao lado da tentativa de proteger os direitos individuais frente ao Estado, “a necessidade de satisfação dos interesses coletivos, que conduz à outorga de prerrogativas e privilégios para a Administração Pública” (PIETRO, 2022, p. 105). Segundo Cretella Júnior (1962, p. 13), as prerrogativas públicas são “as regalias usufruídas pela Administração, na relação jurídico-administrativa, derrogando o direito comum diante do administrador, ou, em outras palavras, são as faculdades especiais conferidas à Administração, quando se decide a agir contra o particular”. Por outro lado, observa-se as restrições a que está sujeita a Administração, que, uma vez não cumprida, torna o ato administrativo nulo, dentre elas, Di Pietro (2022, p. 105) afirma “a observância da finalidade pública, bem como os princípios da moralidade administrativa e da legalidade, a obrigatoriedade de dar publicidade aos atos administrativos”. Realizadas tais considerações iniciais, nota-se que, como bem afirma a doutrina majoritária, o interesse público é considerado o instituto-chave do regime jurídico- administrativo, isto é, o interesse público é um filtro pela qual todos os institutos e ferramentas do Direito Administrativo devem ser interpretadas. Diante disso, percebe-se a origem dos dois princípios estruturantes de todo o regime jurídico-administrativo: a supremacia do interesse público e o da indisponibilidade do interesse público. Celso Antônio Bandeira de Mello (2016, p. 59), em sua clássica obra, afirma que “ninguém duvida da importância da noção jurídica de interesse público”. Apenas em relação ao conteúdo do instituto que o autor considera não ser “tão simples que se imponha naturalmente, como algo de per si evidente que dispensaria qualquer esforço para gizar-lhe os contornos abstratos” (MELLO, 2016, p. 59). Ocorre que a conceituação do “interesse público” é de extrema dificuldade pela doutrina e jurisprudência pátria. 16 Aliás, a título de exemplo, os juristas portugueses conferiram diversos significados para o termo “interesse público”. Conforme aponta, Antonio de Souza (1994, p. 20), há uma definição estritamente política, sem vinculação jurídica, como se interesse público fosse uma mera diretriz para a atuação política do administrador. Não só, mas como também posicionamentos que classificam o interesse público, em maior ou menor grau, como um instrumento discricionário da Administração, até representações que o classificam como um poder estritamente vinculado ao ordenamento jurídico. Ou seja, “a imprecisão conceitual da pedra de toque que norteia, rege e conduz as relações entre Estado, de um lado, e a coletividade e os indivíduos, de outro” (HAEBERLIN, 2017, p. 25) é um dos maiores problemas que ainda tangenciam a atividade administrativa, por isso, deve-se perquirir o tema, buscando entendê-lo. No mesmo sentido advoga Eros Roberto Grau (2014, p. 171), “a questão do interesse público, contudo, permanece, sem dúvida, sendo a grande questão do direito administrativo”. Dito isso, passa-se a compreender o conteúdo jurídico do interesse público. A priori, cabe destacar que antes de adentrar no aspecto jurídico, o interesse público era visto muito mais pelo aspecto religioso e filosófico, sendo taxado como “bem comum”. Como bem menciona Hachem (2011, p. 70), em sua obra “Princípio constitucional da supremacia do interesse público”, considerava-se como bem comum aquilo que o Rei, enquanto representante de Deus na Terra (aspecto religioso), assim classificasse. Isto posto, o rei ao interpretar e aplicar concretamente os desígnios divinos, realizava o “bem comum”, não sobrando aos súditos nada senão o dever de cumprir suas ordens, pois a vontade do soberano, era a vontade de Deus. A posteriori, com fim dos regimes absolutistas e a instituição dos Estados Democráticos de Direito, a vontade divina e, por consequência, o bem comum, deixou de ser, único e exclusivamente, decorrente dos desígnios pessoais do monarca. Muito pelo contrário, passou- se a entender o interesse público como algo voltado à realização dos interesses da coletividade que, enquanto titular da soberania, legitima qualquer atuação do Estado (SIQUEIRA, 2016, p. 20). Dessa forma, com a instituição do estado liberal burguês, diante da necessidade de afastar os entraves cometido no período anterior, o interesse público assumiu uma posição individualista, pois, como o indivíduo assumiu posição central, o Estado deveria apenas proporcionar a observância à autonomia individual e evitar invasões na esfera individual de liberdade. Em suma, sobre o período, Daniel Hachem (2011, p. 70) insiste que, em relação à coletividade, a atuação do Estado era meramente para garantir a defesa da segurança pública e realização de atividades específicas que não era de interesse da iniciativa privada. 17 Surge, então, o princípio da legalidade formal como fundamento central da atividade administrativa, um verdadeiro mecanismo desenvolvido para garantir a liberdade dos indivíduos, após a observância da vontade geral da nação, por meio da eleição daqueles que exercerão a atividade legiferante. Em outras palavras, o interesse público do Estado Liberal, por haver uma relação intrínseca entre o interesse privado e o interesse público, era visto como fundamento da “existência do Estado de Direito, assegurado pelo constitucionalismo moderno francês: a proteção do individualismo” (HACHEM, 2011, p. 94). Ocorre que, com o advento do Estado Social de Direito e a sua internalização no ordenamento juridico brasileiro por meio da Constituição de 1988, muda-se a noção de interesse público vigente até então, uma vez que, o conceito de interesse público deve ser preenchido em função do sistema constitucional que se encontrar vigente em um determinado espaço e tempo, sendo algo mutável de tempos em tempos (MUÑOZ, 2006, on-line). Ou seja, diante do Estado Social, a administração passa a ser não mais meramente a garantia da esfera privada de liberdade dos indivíduos, muito pelo contrário, a administração começa a promover a igualdade material entre os indivíduos, por meio da prestação de serviços públicos e da efetivação de direitos sociais. Para isso, surge a necessidade de um papel ativo do Poder Público. Logo, no contexto brasileiro, com o advento da Constituição Federal de 1988, “a essência do interesse público como tarefa suprema do Estado revela-se na centralidade da dignidade do ser humano, visto que a função básica do Poder Público consiste na melhora das condições de vida da população, notadamente no que se refere ao pleno desfrute dos direitos fundamentais por cada um dos cidadãos” (HACHEM, 2011, p. 332). Em outras palavras, existe uma nítida relação entre a noção de interesse público e os valores sociais elencados na Magna Carta como objetivos fundamentais da República. Nesse sentido: (...)Constituição Federal de 1988, que elege a solidariedade como um de seus valores centrais. Por isso, a Constituição não coaduna com posições que pretendem substituir o interesse público, enquanto noção central do Direito Administrativo, pelo respeito se não exclusivo, ao menos primordial dos direitos individuais. Ainda que os direitos individuais estejam compreendidos dentro do conteúdo de interesse público juridicamente aferível a partir do texto constitucional, este não se resume a eles. Uma mudança teórica nesse sentido é uma mudança de valores – o que, em última análise, confronta com a normativa constitucional (FARIA, 2022 p. 64) Sabe-se que, Celso Antônio Bandeira de Mello (2016) influenciou de forma considerável o direito administrativo, ao conceituar, em suas obras, o interesse público. Segundo o administrativista, considera-se interesse público o resultado da “dimensão pública dos interesses individuais, ou seja, dos interesses de cada indivíduo enquanto partícipe da 18 sociedade” (MELLO, 2016, p. 60). Ou seja, interesse público é a comunhão dos interesses que os indivíduos possuem enquanto integrantes de uma sociedade. Logo, pode-se concluir que o interesse público “não se confunde e também não é algo contrário ao interesse dos indivíduos” (MELLO, 2016, p. 61), tratando-se do resultado do conjunto da dimensão pública dos interesses dos indivíduos; além de “não se identifica, sempre, com o interesse do Estado” (MELLO, 2016, p. 61), já que este possui interesses de dimensão pública e particular. Assim sendo, compreende-se que em relação ao titular, o interesse público pode ser ostentado tanto por um indivíduo isoladamente considerado, quanto por uma coletividade, a qual, por sua vez, pode ser determinada ou indeterminada, majoritária ou minoritária (SIQUEIRA, 2016, p. 26). Ou seja, uma vez compreendidas as linhas fundamentais que cercam a noção de interesse público, pode-se reconhecer que particulares individualmente considerados também ostentam interesses públicos. Em outras palavras, o interesse público não é apenas o interesse anunciado pelo Estado, ainda que na defesa da coletividade. Posto isto, no momento em que o particular está trabalhando para defender a efetividade de algum dispositivo do ordenamento jurídico que lhe beneficie, ele está agindo em nome de um interesse público. Pode-se concluir, portanto, que ao observar o interesse de particulares, o Estado não está se afastando do interesse público. Isto acaba legitimando a autocomposição para a resolução de conflitos na órbita do direito público, pois, não é porque o particular está se “beneficiando” com o acordo que não se está observando o interesse público. Na hodiernidade, como bem defende parte da doutrina, como Daniel Hachem (2011), o sentido do interesse público deve ser extraído do direito positivo, pois fundamentações meta- jurídicas de interesse público, como “vontade do povo” ou a “solidariedade social”, podem levar a arbitrariedades injustificadas e à insegurança jurídica, nos dizeres do autor “será público todo o interesse protegido pelo ordenamento jurídico, cuja satisfação deva ser assegurada pelo Estado, direta ou indiretamente, e que constitui uma barreira negativa para a sua atuação, impedindo-o de agir de maneira a contrariá-lo.” (HACHEM, 2011, p. 162). Logo, pode-se resumir que: O interesse público para o Direito, portanto, é resultado de uma escolha político- normativa. Será de interesse público aquilo que o legislador assim definir como tal. Da Constituição às leis ordinárias, o interesse público é condensado nas mais diversas esferas de atuação legislativa. Juridicamente (e essa é a perspectiva que importa aqui), a “solução de interesse público” é aquela adotada pela Constituição e pelas leis infraconstitucionais elaboradas em consonância com esta. Ainda assim, há casos em que o Poder Legislativo não define com precisão qual a atitude a ser tomada pela Administração Pública em uma determinada situação concreta. Não por uma questão de falha na atividade legiferante – o que, a bem da verdade, também ocorre em certos casos –, mas, sim, por um reconhecimento lúcido e racional de que determinados 19 temas devem ser deixados para apreciação da própria Administração Pública (FARIA, 2022, p. 32). Percebe-se, então, que em muitos casos, o interesse público é um conceito juridico indeterminado, cabendo ao administrador/intérprete estabelecer um sentido, observando as características e demandas do caso concreto. Nesse ponto, torna-se imprescindível a devida observância ao princípio da motivação dos atos administrativos. Ocorre que, mesmo com o sentido de interesse público decorrer da lei e, em alguns casos, haver a necessidade do administrador/intérprete fundamentar de forma clara e coesa o sentido ali posto, em razão de ser um conceito indeterminado, Faria (2022, p. 34) relata: A verdade é que nunca haverá uma resposta absolutamente clara, indubitável, extraível direta e imediatamente do texto normativo sem necessidade de interpretação e sempre com um mesmo sentido a ser aduzido. Em maior ou menor grau, a aplicação do Direito sempre irá exigir uma tarefa de interpretação do operador jurídico. E isso significa, no âmbito do tema explorado nesse trabalho, que, por mais densificação legislativa que houver, de uma forma ou de outra sempre caberá à Administração Pública o dever de apreciar o interesse público presente de modo específico em um determinado caso concreto, identificando-o com base nos parâmetros jurídicos existentes no ordenamento e nos valores constitucionais de realização do bem- comum. In concreto, na prática, o administrador encontrará situações em que haverá um suposto embate de interesses, devendo existir um juízo de ponderação. Dito isso, já se adianta que, em razão deste arbitramento, pode aparentar, como se verá adiante, a existência de uma incompatibilidade entre o princípio da indisponibilidade do interesse público e os instrumentos consensuais do Direito Administrativo Sancionador, entretanto, tal alusão está equivocada. Por ora, com o fim em adentrar no capítulo da indisponibilidade, cabe destacar que a manutenção do interesse público como ponto basilar de toda atividade administrativa decorre de um posicionamento ideológico sobre as funções do Estado brasileiro, já que a própria Constituição Federal de 1988, ao adotar o modelo de Estado Social para a República Federativa do Brasil, colocou o interesse público de forma indissociável a esse modelo. Logo, na administração pública, em todos seus setores, o interesse público deve ser a categoria jurídica a funcionar como norte da atividade administrativa. 1.1.2. Da indisponibilidade do interesse Como já asseverado anteriormente, assim como ocorreu com a própria noção de interesse público, o reconhecimento do princípio da indisponibilidade no Direito Administrativo brasileiro se concretiza com os ensinamentos de Celso Antônio Bandeira de Mello (2016, p. 100). Para o autor, a indisponibilidade do interesse público é a base estrutural de todo o regime jurídico-administrativo no Brasil, validando-se como “fonte-matriz do sistema”, pois “dá-se- 20 lhes importância fundamental porque se julga que foi ordenamento jurídico que assim os qualificou.” (MELLO, 2016, p. 57) Ocorre que, não se pode dizer que foram as lições de Bandeira de Mello que “criaram” a noção de indisponibilidade do interesse público, muito pelo contrário, antes disso já podiam se encontrar ensinamentos doutrinários sobre o tema, a título de exemplo, em meados dos anos 60, José Cretella Júnior (1962, p. 263) defendia que a satisfação do interesse público era “o fim máximo a que devem atender os agentes administrativos”, sendo que “se o agente, levado por móveis outros que o interesse público, edita o ato administrativo, este leva um vício grave de origem, informado que foi por finalidade incompatível com aquela que impulsiona o pessoal do Estado” (CRETELLA JÚNIOR, 1962, p. 240). Entretanto, foi Bandeira de Mello que realizou uma sistematização lógica das normas fundamentais que regiam o Direito Administrativo no país, sendo o responsável por trazer à tona o termo “indisponibilidade do interesse público”, uma expressão do vocábulo jus- administrativo brasileiro. Dito isso, como marco inicial para se estudar o conteúdo jurídico da indisponibilidade do interesse público, deve-se investigar a lição de Bandeira de Mello. Para o autor, o significado da indisponibilidade reside no fato de que “sendo interesses qualificados como próprios da coletividade – internos ao setor público -, eles não se encontram à livre disposição de quem quer que seja, por inapropriáveis” (MELLO, 2016, p. 76). Nesse sentido, continua o administrativista, “o próprio órgão administrativo que os representa não tem disponibilidade sobre eles, no sentido de que lhe incumbe apenas curá-los – o que também é um dever – na estrita conformidade do que predispuser a intentio legis” (MELLO, 2016, p. 76). Ocorre que, da mesma forma que acontece com a definição de interesse público, apesar da obra de Celso Antônio Bandeira de Mello e dos demais supracitados, ainda não existe um consenso na doutrina pátria acerca do conteúdo do princípio da indisponibilidade do interesse público. Em relação a isso, cabe destacar o posicionamento de Mariana de Siqueira (2016, p. 202): preponderam os trabalhos destinados a repensar a supremacia do interesse público sobre o privado, sendo demasiado escassos aqueles destinados a refletir especificamente sobre a indisponibilidade do interesse público. A indisponibilidade costuma aparecer nas obras sobre a supremacia a título de ‘carona’ nas arguições teóricas ali construídas, não como objeto principal a constar do título, mas sim como elemento teórico analisado internamente ao longo dos escritos, de maneira pontual e a título acessório. 21 Como visto, o Estado costuma ser visto como um ente abstrato que plana acima da sociedade, com o qual existe uma relação de alteridade, isto é, visto como um “outro” sujeito. Todavia, como pode ser observado em diversos estudos recentes da Teoria Geral do Estado no Ocidente, a razão de ser do Estado Moderno é o homem, sendo concebido em função da coletividade. Nesse sentido, tem-se Gazda (2006, p. 133): É por isso e para isso que o Estado existe, constituindo-se a pessoa humana, de forma individual e coletiva, em seu princípio, seu meio e seu fim. Princípio porque quem lhe constitui são seus próprios integrantes. Meio porque é a pessoa humana integrante do Estado que deve lhe dirigir e conduzir, tanto pela participação direta como agente do Estado, como especialmente pela participação política. Fim em razão de o Estado estar constituído para assegurar aos seus membros a sobrevivência, convivência, socialização e pleno desenvolvimento. Dito isso, o interesse público e a sua eventual indisponibilidade deve ser encarado, na hodiernidade, em prol dos membros da coletividade in concreto, levando em conta, entre tantos princípios, a eficiência, previsto no art. 37 da CRFB/88. Entretanto, antes de adentrar em tais pormenores, deve-se trazer à baila a pesquisa realizada por Moretti (2012), que declama que a indisponibilidade do interesse público possui algumas dimensões, a saber: indisponibilidade da finalidade legal; indisponibilidade do dever de agir; indisponibilidade de bens e serviços públicos; indisponibilidade das competências administrativas. A priori, tem-se a indisponibilidade da finalidade legal, segundo ela, na administração pública, “o bem não se entende vinculado à vontade ou personalidade do administrador, porém à finalidade impessoal a que essa vontade deve servir” (LIMA, 2007, p. 37). Em outras palavras, o agente administrativo não pode tomar decisão que não se destine à satisfação dos objetivos estatais manifestados por meio da atividade legislativa. Isto posto, para essa dimensão da indisponibilidade, “a Administração não pode se desvencilhar dos comandos e direcionamentos que lhe foram impostos pela Constituição e pelas normas infraconstitucionais” (MORETTI, 2012, p. 72). Continuando, Moretti (2012) observa também a existência da indisponibilidade do dever de agir que se relacionado com o dever da Administração Pública em empreender todos os esforços em prol da execução do interesse público. Nesse sentido, Edmir Netto de Araújo (2010, p. 75) ressalta que “a atividade administrativa é compulsória para a Administração e exigível pelo administrado, se o exercício da competência é obrigatório, pois do interesse público o agente não pode dispor ao seu alvedrio, mas cumprir seu dever, usando do poder que a lei lhe atribuiu”. 22 Uma outra dimensão é a indisponibilidade de bens e serviços públicos, que, como o próprio nome revela, determina que o administrador não pode dispor da coisa pública, em razão de não ser proprietário. As hipóteses de exceção, devem estar previstas no próprio ordenamento jurídico. Por fim, tem-se a indisponibilidade das competências administrativas, o que impossibilita a Administração Pública de deixar cumprir com os deveres impostos pelo legislador e de utilizar-se das prerrogativas decorrentes do regime jurídico-administrativo, na busca do interesse público. Dito isso, cabe pontuar Di Pietro (2022, p. 67), para ela, “precisamente por não poder dispor dos interesses públicos cuja guarda lhes seja atribuída por lei, os poderes atribuídos à Administração têm o caráter de poder-dever; são poderes que ela não pode deixar de exercer, sob pena de responder por omissão”. Outrossim, ainda sobre as últimas duas dimensões da indisponibilidade do interesse público proposto por Moretti (2012), tem-se: Seu conteúdo é bastante semelhante ao sentido atribuído à indisponibilidade do dever de agir, com a única diferença que quando se refere à indisponibilidade das competências administrativas existe alguma previsão normativa (constitucional, legal ou mesmo administrativa) imbuindo à Administração de uma prerrogativa a ser utilizada em hipóteses objetivamente descritas pela legislação para a persecução do interesse público. No primeiro caso, a indisponibilidade atua de modo mais genérico – isto é, ainda que não haja previsão de competência específica –, como forma de direcionar a atividade praeter legem da Administração à realização do interesse público. (FARIA, 2022, p. 73) Realizadas tais observações sobre as dimensões defendidas por Moretti (2012), percebe- se que se trata, tão somente, de uma divisão didática da indisponibilidade do interesse público, O importante é esclarecer que, como visto em tópico anterior, o conteúdo do interesse público é mutável, devendo ser considerado na análise o tempo e espaço, logo, a indisponibilidade, por decorrência lógica, também será mutável conforme o contexto fático de cada caso concreto. Nesse cenário, a doutrina defende que, por força do princípio da indisponibilidade, a Administração Pública não pode agir com a mesma liberalidade que o fazem os particulares no alcance de seus interesses individuais, pois, caso tente, irá “trair sua missão própria e sua própria razão de existir” (MELLO, 2016, p. 73). Nesse sentido, cabe apontar a doutrina de Hachem (2011, p. 49), o princípio da indisponibilidade do interesse público “consiste na impossibilidade de o agente público atuar livremente, e na sua consequente submissão ao dever de realização das finalidades cogentes que lhe são encomendadas pelo ordenamento jurídico”. Fato é, da mesma forma que ocorre com princípio da segurança jurídica, da proporcionalidade e da razoabilidade, o princípio da indisponibilidade do interesse pública não está previsto constitucionalmente de forma explicita. Nesse sentido, Siqueira (2016, p. 195) 23 afirma que, apesar de não ser “texto expresso nas disposições da Constituição de 1988, nem por isso, todavia, carece de proteção jurídica”. O mesmo ocorre em Hachem (2011, p. 118): (...) não há dúvidas que a indisponibilidade dos interesses públicos, como ideia-síntese das sujeições especiais da Administração Pública em prol do cidadão, pode ser identificada como um princípio implícito no tecido constitucional, sendo que o dever da Administração de obedecer a todos os seus desdobramentos (...) resulta diretamente da sua submissão à Constituição. Dito isso, Romeu Felipe Bacellar Filho (apud ROCHA, 2009, p. 196) destaca que o princípio da indisponibilidade estaria previsto no art. 3º, inciso IV da Constituição Federal de 1988, pois, o agente administrativo não pode ter como objetivo central de sua atividade o atingimento de interesses particulares, nas palavras do autor: Com efeito, o princípio geral que domina toda a atividade estatal, exercida através da Administração Pública, é o bem comum. Este não representa a soma de todos os bens individuais, mesmo porque os bens individualmente considerados podem conflitar com aquele. Pelo contrário, aqui está o limite negativo: a Administração Pública não pode objetivar interesses particulares. O administrador que transgrida este preceito convulsiona, desarmoniza e desacredita a ação administrativa (ROCHA, 2009, p. 196). Sabendo disso, objetivando melhor estruturar a procedimentalização do Acordo de Não Persecução Civil, que por tratar da probidade administrativa, deve seguir, em menor e maior grau, as premissas da indisponibilidade do interesse público, cabendo aqui investigar as consequências de tal princípio no ordenamento pátrio. Em relação a temática, deve-se ter como norte as consequências previstas por Celso Antônio Bandeira de Mello (2016, p. 77), que são: (a) o princípio da legalidade e suas decorrências como a finalidade, a razoabilidade e a proporcionalidade e a motivação; (b) a obrigatoriedade do desempenho da atividade pública/continuidade dos serviços públicos; (c) o controle (interno e externo) dos atos administrativos; (d) o tratamento isonômico dos cidadãos em face da Administração; e, por fim, (e) inalienabilidade dos direitos concernentes a interesses públicos. Em relação a primeira consequência, o princípio da legalidade, como já visto anteriormente, é “uma decorrência natural da indisponibilidade do interesse público” (MELLO, 2015, p. 78), pois o conteúdo do interesse público é aquilo previsto pelo legislador. Dessa forma, nasce a obrigação do agente público em promover este interesse público, por meio do respeito e observância a legislação, subordinando a atividade às normas jurídicas consagradas. De tal princípio, decorre outros atributos, que, para melhor concatenamento de ideias, será visto, ainda que de forma geral e sucinta. A priori, como bem dispõe Celso de Mello (2016, p. 100), há o atributo da finalidade dos atos administrativos, para o administrativista “não se aplica uma lei corretamente se o ato de 24 aplicação carecer de sintonia com o escopo por ela visado” (MELLO, 2016, p. 80). Assim, os atos jurídicos que correspondam as manifestações de vontade da Administração Pública devem ser editados objetivando o cumprimento de determinada finalidade prevista em lei. Caso isso não ocorra, o ato firmado terá sua invalidade jurídica decretada. A posteriori, outro atributo da legalidade que será muito importante para a análise do Acordo de não persecução civil, como será visto no tópico 2.4.1 , é o da razoabilidade e proporcionalidade, uma vez que, nos casos em que o agente público possui de certa margem de discricionariedade para identificar um dado interesse público, como é no caso da ANPC, a indisponibilidade do interesse público exige que essa decisão seja razoável e proporcional em relação aos direitos e interesses do caso em concreto. Desse cenário, decorre o tributo da motivação dos atos administrativos, que é o dever que o agente público possui de demonstrar, de forma devidamente fundamentada, todas as razões que levaram a tomar determinada decisão, já que os bens e direitos são públicos. A consequência prática é fazer com que os cidadãos e os órgãos de controle verifiquem se o ato objetivou a perseguição de uma finalidade pública ou não. Uma outra consequência do princípio da indisponibilidade prevista por Celso de Mello (2015) é o dever de continuidade de execução das atividades administrativas. Isto significa que o agente público não pode, de forma deliberada, deixar de cumprir determinada demanda oriunda de sua competência administrativa, pois “no momento que o Estado toma para si a titularidade da prestação de determinado serviço, parece lógico deduzir que dele se espera uma prestação contínua, sob pena de, não satisfazendo as necessidades presentes naquela situação, violar a dignidade dos cidadãos atingidos” (FARIA, 2022, p. 104). Somado ao exposto, tem-se a submissão da atividade administrativa ao controle externo e interno, consequência jurídica que será muito observado nos Acordos de Não Persecução Civil. Por ora, cabe pontuar que o controle da Administração é uma necessidade intrínseca ao Estado de Direito, pois a lógica aqui é diametralmente oposta ao dos Estados Absolutistas, na qual vigorava o princípio da irresponsabilidade. Na hodiernidade, como bem dispõe Rogério Leal (2005, p.125), o controle da Administração Pública vigora como ponto basilar, por ser um instrumento jurídico ideal para se efetivar a submissão do Estado à ordem jurídica e garantir a harmonia do sistema entre os Poderes do Estado. Além disso, existe controle interno, exercido pelo própria Administração, como na homologação pela Instância Superior do Ministério Público dos Acordos de Não Persecução firmados pelos Parquets, como será melhor exposto no item 4. Ora, somente com o controle, através das diversas técnicas, há a possibilidade de correção de atos administrativos que não 25 fizeram jus ao cumprimento do interesse público. Dessa forma, impõe-se à Administração, de forma coercitiva, a obrigação de executar decisões que caminham em prol da coletividade. Outrossim, como consequência, observa-se a necessidade de haver o tratamento isonômico dos cidadãos em face da Administração e o princípio da impessoalidade administrativa. Para Celso de Mello (2016, p. 86) “sendo encarregada de gerir interesses de toda a coletividade, a Administração não tem sobre estes bens disponibilidade que lhe confira o direito de tratar desigualmente àqueles cujos interesses representa”. Ou seja, como o agente público é apenas um gestor, ele não pode privilegiar ou prejudicar alguém por razões de cunho privado. Dito isso, trazendo para a celebração de Acordos de Não Persecução Civil, de modo algum se poderia admitir que o Ministério Público estivesse autorizado a firmar o acordo com determinado agente público e se negar a realizá-lo com outro que se encontrasse exatamente nas mesmas condições. Já findando as consequências identificadas por Bandeira de Mello (2016), tem-se a inalienabilidade dos direitos concernentes a interesses públicos Para o administrativista, “sendo a administração atividade serviente, desenvolvida em nível infralegal, não pode alienar ou ser despojada dos direitos que a lei consagrou como internos ao setor público” (MELLO, 2016, p. 88). Nesse ponto, reside o principal entrave do Direito Administrativo Brasileiro hodierno, o suposto entrave entre os meios consensuais de resolução de conflito, como o Acordo de Não Persecução Civil, e sua suposta ofensa ao princípio da indisponibilidade do interesse público. Como bem se sabe, os bens e direitos da Administração Pública não estão à “livre” disposição do administrador. Entretanto, em determinadas situações a situação fática exige a disposição de algum bem ou direito em específico, desde que previsto pelo próprio ordenamento. Em suma, tem-se: Verifica-se, assim, que muitas vezes a posição pré-formatada e estanque de indisponibilidade de bens e direitos titularizados pela Administração Pública poderá corresponder, em última análise, a uma violação ao princípio da indisponibilidade (...) é comum que supostos interesses públicos gerais (devidamente garantidos pelo ordenamento jurídico) percam a sua real qualidade de interesse público em determinadas situações concretas, inclusive possibilitando o atendimento, nesse sentido, de interesses individuais ou coletivos stricto sensu. Ou seja, é perfeitamente possível que, diante de um contexto fático e jurídico específico, a Administração esteja autorizada a dispor de parcela de seus bens ou direitos, caso essa se mostre a opção que melhor atenderá ao interesse público identificado naquele caso concreto (FARIA, 2022, p. 106) Ou seja, a autocomposição na administração pública é plenamente possível, pois eventuais instrumentos não serão introduzidos por mera apreciação livre e subjetiva da vontade 26 privada do agente público, mas sim pelo que tiver disposto no corpo de normas jurídicas. Dessa forma entende a doutrina e o legislador hodierno, in verbis: “permitir, conforme a ordem jurídica e à luz das circunstâncias fáticas, a utilização de instrumentos consensuais para a densificação do conceito de interesse público, bem como para a solução de conflitos administrativos” (MARRARA, 2012, p. 465). Dito isso, passa-se a analisar, com mais parcimônia, a consensualidade na administração pública, um fenômeno que vem ganhando espaço nos últimos anos, com as sucessivas ferramentas autocompositivas, desaguando no Acordo de Não Persecução Civil. 1.2. A Administração Pública Consensual 1.2.1. O fenômeno da consensualização O Direito Administrativo brasileiro hodierno é marcado pelo fenômeno da consensualização da atividade administrativa, acarretando diversas construções doutrinárias e legislativas sobre o tema, pois, percebeu-se que a rigidez administrativa, muitas vezes, tende a prejudicar a resolução de controvérsias, pois com a introdução da eficiência no bojo dos princípios da Administração, pretendeu-se romper com a lógica burocrática e perseguir um modelo focado em resultados. Nessa senda, o princípio da eficiência foi incluído no art. 37 da Constituição Federal pela Emenda Constitucional nº 19/1998. Isto acrescentou um novo parâmetro para a atuação da administração pública, sendo explicitado no texto constitucional a necessidade de observar a eficiência. Dito isso, ao lado da legalidade, da impessoalidade, e da moralidade, há de ser buscada a eficiência. Para Di Pietro (2022, p. 75), o princípio da eficiência apresenta: (...) na realidade, dois aspectos: pode ser considerado em relação ao modo de atuação do agente público, do qual se espera o melhor desempenho possível de suas atribuições, do que se espera o melhor desempenho possível de suas atribuições, para lograr os melhores resultados; e em relação ao modo de organizar, estruturar, disciplinar a Administração Pública, também com o mesmo objetivo de alcançar os melhores resultados na prestação do serviço público. Em consonância ao disposto, Lucas Rocha Furtado (2007) explica que o princípio da eficiência engloba tanto a eficácia, quanto a efetividade. Pode-se dizer que a eficiência é um dos aspectos da economicidade, isto é, a melhor relação custo/benefício. Já a eficácia diz respeito ao exame dos resultados da ação administrativa em prol dos cidadãos. Por fim, para o doutrinador “no exame da efetividade deve ser feita a comparação entre os objetivos ou metas que haviam sido fixadas por ocasião do planejamento e os resultados efetivamente alcançados” (FURTADO, 2007, p. 112). 27 Ou seja, a administração pública deve não só executar suas atribuições com perfeição, mas também necessita atender a critérios de rendimento. Logo, deve-se buscar maximizar os resultados para o fim de obter uma boa relação custo-benefício, que nada mais é do que concretização do princípio da eficiência. Assim, a experiência privada demonstrou que a utilização de métodos autocompositivos para a resolução de controvérsias, isto é, instrumentos consensuais, tende a ser mais frutíferos do que seguir toda a burocracia. Ocorre que, a compreensão da lógica consensual não é algo simples. Como bem dispõe Floriano Marques Neto (MARRARA, 2012, p. 428), existe uma “herança, forte entre nós, de desconfiar sempre do envolvimento dos particulares em qualquer atividade que promova as necessidades coletivas”. Nesse diapasão, no direito público, surgiu uma discussão sobre a incompatibilidade aparente entre o princípio da indisponibilidade do interesse público e as tentativas de resolução consensual dos conflitos envolvendo a Administração Pública. Como disposto no item anterior, o princípio da indisponibilidade do interesse público, ao ser formulado por Celso de Mello (2016) constitui-se como norma fundamental do regime jurídico-administrativo, por construção doutrinária, jurisprudencial e constitucional. Logo, a vinculação da atividade administrativa ao interesse público é algo inerente, levando ao agente público tomar todas as medidas que melhor atinja este interesse. Ainda assim, na contemporaneidade, como será apresentado, não é difícil encontrar posicionamentos que impedem a Administração Pública de realizar acordos com particulares, por suposta ofensa à indisponibilidade do interesse público. Para essa corrente, o agente público, por ser mero gestor do interesse público e que, portanto, não lhe sendo próprio o interesse, não pode dele se apropriar, renunciar ou desviar. Nessa senda, foram desenvolvidas diversas críticas à incidência do princípio da indisponibilidade nas relações consensuais. Em resumo, pode-se dizer que: Para a corrente mais “tradicional”, a indisponibilidade, enquanto princípio cogente do Direito Administrativo brasileiro, impediria boa parte dos acordos firmados pela Administração Pública com particulares atualmente. Para a corrente crítica à noção de interesse público, por outro lado, o princípio da indisponibilidade, por não encontrar fundamento no ordenamento jurídico pátrio e por não possuir conteúdo próprio ou utilidade jurídica, não poderia ser levantado como barreira à realização de tais acordos, devendo-se, portanto, afastá-lo dessa discussão (FARIA, 2022, p. 160) Parte da doutrina que possui entraves à consensualidade, conforme pontua Hachem (2011), entende que diante do interesse público e privado, existe uma independência absoluta de em relação ao outro, isto é, o interesse público seria observado, apenas e tão somente, a partir 28 da coletividade em si mesmo considerada. Ou seja, o interesse público seria uma entidade autônoma em relação aos indivíduos que a compõem. Ocorre que, como visto no tópico anterior, é inverídica a compreensão de que o agente público não pode atender interesses privados para atingir a finalidade coletiva, logo, errôneo também a conclusão de que o a indisponibilidade do interesse público seria barreira à consensualidade no direito administrativo. Outrossim, a doutrina clássica, como Oswaldo Aranha Bandeira de Mello (1963, p. 38) já apontava que “a manifestação da vontade do Estado, internamente, se faz, de regra, de forma unilateral, tendo em vista o interesse estatal, como expressão do interesse do todo social”. Para o administrativista, como o interesse a ser perseguido deve ser o interesse do “todo social”, a atuação da Administração Pública deve ser unilateral como regra para satisfação desse interesse. Ou seja, a inviabilidade da utilização de instrumentos consensuais decorreria da obrigatoriedade de atuação unilateral da Administração Pública. Dito isso, na prática forense, diversos doutrinadores notaram um completo afastamento de tentativas de consensualização, tanto em âmbito judicial, quanto no administrativo. A título de exemplo, para Odete Medauar (2017, p. 378) “muitas vezes se alega a ‘indisponibilidade’ como barreira para às práticas consensuais na Administração”. No mesmo sentido se posiciona Juliana Palma (2015, p. 59) “corriqueiramente o princípio [da indisponibilidade do interesse público] é apresentado como óbice à celebração de acordos administrativos pela Administração Pública”. Aliás, a própria Odete Medauar (2017) entende pela não aplicação do princípio da indisponibilidade do interesse público para a realização de acordos. Para a autora tal princípio “constitui fórmula vaga, com ausência de sentido preciso”, além do que seria “tautológico afirmar que na atividade administrativa os bens e os interesses não estão à livre disposição dos agentes públicos” (MEDAUAR, 2017, p. 378). Ou seja, a autora acredita que alegar o princípio da indisponibilidade como uma barreira às práticas consensuais da Administração Pública representa: (...) negação da realidade e visão desatualizada, de modo que o fato de que hoje reinam várias práticas consensuais na atividade administrativa (acordos, negociação, conciliação, mediação, arbitragem, etc.) até mesmo na esfera sancionadora (termo de ajustamento de conduta, compromisso de cessação, etc.) é visto como um indicativo de que inexiste no Direito Administrativo brasileiro um princípio que demande a indisponibilidade do interesse público (MEDAUAR, 2017, p. 379). Em posição semelhante à de Medauar (2015), pela não aplicação do princípio da indisponibilidade, tem-se Juliana Palma (2015, p. 178), in verbis: 29 (...) restringir a celebração de acordos administrativos pela invocação da indisponibilidade do interesse público mostra-se, assim, um descompasso, sendo que o principal fundamento para tanto consiste na ausência de previsão normativa do princípio, seja para dispor sobre sua conceituação jurídica, seja para obrigar a Administração Pública a se vincular ao princípio da indisponibilidade (...) a imprecisão conceitual do princípio reforça a dificuldade prática em ser aplicado, corroborando a impossibilidade de o princípio em comento ser colocado como um impeditivo à atuação administrativa consensual (...) a indisponibilidade do interesse público não constitui óbice à celebração de acordos substitutivos de sanção porque também este princípio corresponde a uma construção teórica sem adequada metodologia de aplicação (...) princípio de difícil intelecção e, principalmente, de rasa tradução prática, visto que seu conteúdo jurídico não se apresenta uniforme. Percebe-se, então, que tanto aqueles que, ao defenderem o princípio da indisponibilidade e denegam a consensualização, quanto aqueles que desconsideram a indisponibilidade em beneficio da consensualização acabam por cometer equivoco de índole conceitual sobre o conceito de interesse público, como visto em tópico específico, pois partem de uma “visão cega e apoucada da acepção jurídica de ‘interesse público’, alguns pensam que, por meio de atos administrativos consensuais, a Administração estaria concretizando um interesse privado, quando na realidade é o próprio interesse público que está a preponderar” (BACELLAR FILHO, 2010, p. 112) Em outras palavras, os doutrinadores ao adotarem uma concepção simplória de “interesse público” acabam afastando do conceito a proteção dos interesses individuais, prevalecendo-se indiscriminadamente dos interesses do Estado, invertendo-se a lógica que rege o princípio da indisponibilidade. Afinal, diante desse ponto de vista, no caso concreto, pode acabar legitimando um interesse que, apesar de ser ostentado pelo Estado, não necessariamente é de dimensão pública, em detrimento de um interesse titularizado por um indivíduo particular, que corresponda ao interesse coletivo. Em suma, com base no já visto, pode-se dizer que o princípio da indisponibilidade do interesse público é plenamente possível ante os instrumentos consensuais, pois os interesses individuais juridicamente tutelados também compõem o interesse público, além de que o interesse público a ser tutelado pela Administração Pública não se confunde com o interesse próprio e individual do Estado enquanto ente coletivo. Dito isso, pode-se concluir que: (...) o princípio da indisponibilidade do interesse público não pode ser encarado como barreira à realização de acordos pela Administração Pública. Os acordos, na realidade, servem como instrumento para a Administração melhor alcançar o interesse público (daí porque não haveria qualquer problema em relação à indisponibilidade). E isso por três principais motivos: (i) não há, a priori, uma diferença estabelecida de conteúdo ou finalidade dos acordos e dos atos administrativos unilaterais, tratando-se, isso sim, de uma diferença procedimental, de meios para a realização de determinado fim; (ii) os acordos tendem a ser mais eficientes, visto que há uma diminuição da probabilidade de descumprimento de seus termos por parte do particular envolvido na avença do que em relação a decisões administrativas tomadas unilateralmente; (iii) os acordos 30 administrativos são frutos da valorização de direitos e valores consagrados constitucionalmente, como o devido processo legal e a proporcionalidade das decisões da Administração Pública, que representam, junto de outras disposições, o conteúdo do interesse público (FARIA, 2022, p. 173) Assim sendo, não há dúvidas que o fenômeno da consensualização no Direito Administrativo é uma realidade, principalmente, levando em consideração os preceitos introduzidos pelo legislador originário e demais na Constituição de 1988. Ou seja, ante os anseios, perspectivas e necessidades da sociedade hodierna, diversos métodos de resolução de controvérsias e conflitos devem estar disponíveis ao agente público para a solução do caso, na melhor forma possível, visando à instituição de uma sociedade livre, justa e solidária, uma vez que “a Administração Pública, no âmbito do Direito Administrativo, jamais cogita de negociar o interesse público, mas, sim, de negociar os modos de atingi-lo com maior eficiência (MOREIRA NETO, 2003, on-line). 1.2.2. A evolução da consensualização no direito brasileiro No Estado Democrático Brasileiro, o Poder Público está constitucionalmente obrigado a perseguir a consecução dos interesses públicos. No entanto, diante da complexidade do mundo dos fatos, não necessariamente a busca deste interesse ocorrerá de maneira unilateral, como se fosse o único titular ou o único ente capaz de definir o que é matéria de interesse público. Assim, em diversas oportunidades, o legislador iniciou o processo de consensualização, com a permissão e fomento da participação da sociedade civil na resolução do conflito. Cabe mencionar que tais inovações representam formas alternativas de resolução de conflitos, como já dito, assunto primordial na hodiernidade. Isso se comprova pela constatação extraída dos Relatórios do CNJ (BRASIL, 2022a, p. 102) de que a judicialização não é o ideal para solucionar conflitos, afinal, o Poder Judiciário finalizou o ano de 2020 com 75,4 milhões de processos em tramitação, uma redução de 2 milhões de processos em comparação como ano base de 2019. Parte disso decorre do fato de diversas áreas do direito terem aderido meios alternativos para a resolução de conflitos, formas menos burocráticas e consensuais para resolver as suas questões. Em âmbito cível, destacam-se a conciliação, a mediação e a arbitragem; na área trabalhista são comuns a autocomposição e a autodefesa; no direito penal, recentemente, por meio do Pacote Anticrime, surgiu a figura do acordo de não persecução penal. No Brasil, em âmbito administrativo, até pouco tempo havia consenso na doutrina de que inexistia autorização genérica possibilitando a Administração em firmar acordo. O cenário alterou-se com a promulgação da Lei nº 13.655/18. Referida lei foi editada para alterar o 31 Decreto-Lei nº 4.657/42, também conhecido como Lei de Introdução às Normas do Direito brasileiro (LINDB). Dentre as diversas modificações causadas na LINDB, a que deve ser destacada no presente trabalho é a inserção do novo art. 26, que possui a seguinte redação: para eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito público, inclusive no caso de expedição de licença, a autoridade administrativa poderá, após oitiva do órgão jurídico e, quando for o caso, após realização de consulta pública, e presentes razões de relevante interesse geral, celebrar compromisso com os interessados, observada a legislação aplicável, o qual só produzirá efeitos a partir de sua publicação oficial (BRASIL, 2018ª, on-line) Nota-se, então, que o dispositivo retro funciona como um permissivo genérico de realização de acordos pela Administração Pública. Sobre o tema, aponta Sérgio Guerra e Juliana Bonacorsi de Palma (2018, p. 146) “a Lei nº 13.655/18 expressamente confere competência consensual de ordem geral ao Poder Público brasileiro”, isto quer dizer “que qualquer órgão ou ente administrativo encontra-se imediatamente autorizado a celebrar compromisso”. Aliás, parte da doutrina infere que, diante do tom de generalidade que caracteriza o art. 26 da LINDB, existe a autorização para que qualquer ente da Administração Pública possa realizar acordos, mas também sobre qualquer objeto e a qualquer momento. Dito isso, a Administração está autorizada a firmar acordos tanto em processos administrativos, processos judiciais, ato de cunho preparatório para a edição de algum ato administrativo posterior, entre outras possibilidades. A discussão residia no fato da prescindibilidade (ou não) de autorização legislativa específica para a utilização de instrumentos consensuais, ante a normativa genérica da LINDB. Para Fernando Dias Menezes de Almeida (2012, p. 302), a realização de acordos administrativos “está implícita no poder de decidir unilateralmente e de ofício, a opção da Administração por impor a si própria certos condicionantes de sua ação, importando obrigação para com o destinatário da decisão”. No mesmo sentido aponta Juliana Bonacorsi de Palma (2015, p. 273) ao afirmar que “basta a determinação da regra de competência para transacionar as prerrogativas públicas para que o Poder Público se encontre legitimado a terminar consensualmente o processo administrativo, em detrimento da atuação administrativa típica”. Ocorre que, para a presente análise, é desnecessária aprofundar tal discussão, uma vez que, o legislador ordinário, nos últimos anos, em várias searas tem autorizado expressamente, em leis específicas, a utilização de ferramentas consensuais para a resolução de conflitos e, em última instância, atingir o interesse público. A título de exemplo, pode-se mencionar a Lei n° 14.133/2021 (Nova Lei de Licitações e Contratos) e a Lei n° 13.988/2020 (Transação tributária em âmbito federal). 32 No atual cenário licitatório, em meados de 2021, foi editada a Lei n ° 14.133/2021, que, em suma, apresenta importantes inovações no universo das contratações públicas, principalmente por criar regras para União, Estados, Distrito Federal e Municípios e estabelecer como modalidades de licitação a concorrência, o concurso, o leilão, o pregão e o diálogo competitivo, sempre norteados pelos princípios da transparência, da moralidade, da eficácia e da eficiência na prestação dos serviços públicos, bem como sendo conferido tratamento isonômico entre todos os licitantes. Entre as principais novidades, a Lei 14.133/2021 excluiu de seu rol de modalidades a tomada de preços e o convite, como também deu margem à utilização de uma nova forma, o diálogo competitivo, além de incluir o capítulo XII do Título III “dos meios alternativos de resolução de controvérsias”. A nova modalidade prevista na normativa busca promover, no âmbito do próprio procedimento licitatório, uma negociação entre poder público e particulares objetivando a construção conjunta da solução técnica mais adequada para um objeto contratual especialmente complexo e inovador sendo dividido em três fases principais, a saber: pré-qualificação; dialógica; e competição. Por fim, o diálogo competitivo pode ser uma excelente alternativa criada para resolver as demandas mais complexas da administração pública nas quais esteja presente incerteza ou indeterminação quanto a solução a ser alcançada (SANTOS; OLIVEIRA, 2022). Outrossim, em matéria tributária, em meados de 2020, foi regulamentado a Lei n° 13.988/2020 que foi alterada pela recente Lei nº 14.375/22, ambas disciplinaram a transação tributária no âmbito federal, um instrumento consensual na administração pública federal. Sabe- se que as referidas transações configuram instrumento de acordo entre contribuinte e o fisco, permitindo a quitação do crédito em litígio administrativo sob condições especiais e a emissão de certidão de regularidade fiscal. Nessa senda, no dia 12 de agosto de 2022, foi publicada no Diário Oficial de Justiça (“DJE”) a Portaria RFB nº 208 que regulamentou a transação de créditos tributários sob administração da Secretaria de Receita Federal do Brasil (“RFB”), estabeleceu as suas modalidades e requisitos para sua realização. Com o advento da Portaria, as transações dos créditos tributários em contencioso administrativo fiscal poderão ser feitas: (i) por adesão à proposta da RFB, realizada mediante edital previamente publicado; e, (ii) por propostas individuais realizadas pelo devedor ou pela própria RFB. À vista disso, pode-se afirmar que, no ramo do direito público, houve uma mudança paradigmática sobre a utilização de meios autocompositivos para a resolução de conflitos, o que antes era extremamente vedado, na hodiernidade, é estimulado, ante as autorizações e incentivos legislativos. 33 Feitas tais considerações, antes de se analisar com mais afinco o Acordo de Não Persecução Civil, instituto consensual na seara da Improbidade Administrativa autorizado pelo Pacote Anticrime em meados de 2019, e, após, regulado pela Lei n° 14.230/2021, que modificou substancialmente a Lei de Improbidade Administrativa, cabe dispor sobre o Direito Administrativo Sancionador, seara na qual a tutela da probidade está inserida. 2. DIREITO ADMINISTRATIVO SANCIONADOR Com o advento da Lei n° 14.230 de 2021, restou estabelecido, em seu art. 1°, §4°, que se aplica, ao sistema da improbidade administrativa e por decorrência lógica, aos eventuais acordos de não persecução civil, os princípios norteadores do direito administrativo sancionador. Dito isso, para a melhor estruturação do procedimento a ser seguido na elaboração das avenças, torna-se essencial averiguar a evolução histórica desse regime jurídico administrativo e seus princípios norteadores. A priori, utilizando-se do conceito de Osório (2000, p. 54), cabe destacar que Direito Administrativo seria um ramo do Direito Público constituído por normas de organização e normas de comportamento, que se aplicam às Administrações Públicas, ao Poder Executivo, em suas esferas, regulando suas relações entre si, com os demais Poderes, órgãos estatais e com os administrados. Não só isso, mas também incide sobre a função materialmente administrativa de qualquer entidade pública ou privada. Para Celso Antônio Bandeira de Mello (2016, p. 70), somente é possível falar em direito administrativo quando presentes os princípios que lhe são peculiares e que guardam entre si uma relação lógica de coerência e unidade compondo um sistema ou regime (MELLO, 2016, p. 53). Já para Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2022, p. 90), que adota o critério da Administração Pública, o direito administrativo é “o ramo do direito público que tem por objeto os órgãos, agentes e pessoas jurídicas administrativas que integram a Administração Pública, a atividade jurídica não contenciosa que exerce e os bens e meios de que se utiliza para a consecução de seus fins, de natureza pública”. Nessa senda, o direito administrativo sancionador seria um domínio do regime jurídico administrativo que vem chamando atenção da doutrina e jurisprudência no pós-Constituição de 88. Em linhas gerais, pode-se dizer que ele seria “a expressão do efetivo poder de punir estatal, que se direciona a movimentar a prerrogativa punitiva do Estado, efetivada por meio da Administração Pública e em face do particular ou administrado” (GONÇALVES; GRILO, 2021, p. 468). 34 Nesse sentido, o direito administrativo sancionador permeia todos os campos do direito em que a Administração expressa a prerrogativa punitiva. Por exemplo, há a expressão dele no direito tributário quando o contribuinte deixa de praticar uma obrigação acessória, pois, diante do descumprimento da norma, o Fisco impõe uma multa ao contribuinte. Outro exemplo de simples constatação é quando a Administração imputa ao poluidor uma multa ambiental, por meio dos órgãos administrativos ambientais competentes. Ou seja, as obrigações tributárias e a proteção ao meio ambiente não são expressões do poder de punir do Estado, mas o descumprimento dos preceitos ali estabelecidos que autorizam a Administração Pública a aplicar sanções do direito administrativo sancionador. Isto posto, o Estado não pune nenhuma conduta, mas detém o poder ou a prerrogativa de punir, o Estado detém a prerrogativa de punir, mas é a Administração que, de forma efetiva, pune o particular. Pode-se inferir, portanto, que a sanção equivale à resposta do Estado contra a não observância de um comando normativo, sendo prevista com a finalidade de coibir esse tipo de comportamento. Nos dizeres de Daniel Ferreira (2001, p. 25), a sanção é “a direta e imediata consequência jurídica, restritiva de direitos, de caráter repressivo, determinada pela norma jurídica a um comportamento proibido nela prevista, comissivo ou omissivo, dos seus destinatários”. Assim, a realização de acordo de não persecução civil na seara da Improbidade Administrativa, nada mais é, do que mais uma manifestação do direito administrativo sancionador, pois, o ente legitimado, diante de um agente improbo, irá impor sanções objetivando impedir eventual ação de improbidade administrativa. Ocorre que, como bem dispõe José Oliveira e Dinorá Grotti (2020, p. 84), ainda há discrepâncias no entendimento sobre o campo material do Direito Administrativo Sancionador, isto é, quais são as sanções e as funções que devem existir em sua sistematização, além dos princípios constitucionais que devem ser observados em sua estrutura jurídica fundamental e, o mais importante, como devem ser aplicados, tanto no aspecto material, quanto no formal. O reconhecimento do sistema da improbidade administrativa como parte do direito administrativo sancionador, apenas demonstra que o crescimento dele é um fenômeno atual, sendo de extrema necessidade o estudo das mudanças e tendências ocorridas. Isto porque, a gravidade das sanções previstas na Lei 8.429/1992, alterada pela Lei n° 14.230 de 2021 deixa claro, ao operador, que deve haver um núcleo comum de garantias, pois as sanções decorrem do processo de imputação de responsabilidade em razão da prática de ilícitos e muitas vezes, a depender do juízo de valor, conseguem ser mais graves do que as previstas no direito penal. 35 Nessa seara, observa-se uma certa aproximação entre o Direito Administrativo Sancionador e o Direito Penal, pois, em ambos o Estado expressa, por meio dos órgãos públicos competentes, o seu poder de punir condutas antijurídicas. A distinção reside no fato do primeiro buscar eventual punição na órbita administrativa, enquanto o segundo materializa o ius puniendi na seara judicial, nos juízos criminais. Aliás, o próprio direito administrativo sancionador, por sofrer influência da evolução do Direito Penal, era denominado como Direito Penal Administrativo (NIETO, 2012, p. 172). Sobre o tema, aponta Gonçalves e Grilo (2021, p. 469): Em essência qualitativa, não há diferença alguma da punição administrativa para a sanção penal: em ambos os casos o Estado expressa, por meio dos órgãos públicos competentes, o seu poder de punir condutas antijurídicas. É por isso que deve existir um núcleo mínimo de garantias aplicáveis à expressão punitiva do Estado, seja ela exercida e efetivada pelos órgãos administrativos, seja pela justiça criminal. Assim sendo, para compreender a aplicação do acordo de não persecução civil, por fazer parte do sistema da improbidade administrativa, deve-se, em um primeiro momento, apresentar uma breve contextualização histórica do direito administrativo sancionador, pois, para demonstrar a relevância atual, torna-se necessário compreender as origens. Após, será apresentado os princípios norteadores, ante a necessidade de se estabelecer um núcleo comum de garantias, pois, ante o filtro axiológico constitucional a ser seguido. Por fim, será melhor detalhado as características da sanção administrativa e sua individualização, uma vez que são elas que projetam, no plano fático, a manifestação concreta do direito administrativo sancionador, configurando um instrumento para que o Estado consiga influenciar nas condutas sociais e, por isso, deve-se ter uma maior atenção, com o fulcro de proteger o Estado Democrático de Direito. 2.1. Breve introdução histórica do direito administrativo sancionador O direito administrativo sancionador surge em alguns estados europeus em meados do século XIX, em razão do contexto político ali vivenciado. Ora, é sabido que a evolução do direito administrativo sancionar foi peculiar em cada um dos estados europeus, sendo necessário uma digressão histórica especializada, todavia, não é o objetivo e o propósito de realizar isso neste trabalho. Entretanto, em linhas gerais, conforme leciona García Albero (2001), o surgimento, em síntese, decorre da divisão de poderes e a cisão entre os conceitos de ilícito penal e administrativo, uma vez que, até então, existia uma identificação entre os injustos e era exercido, tão-somente, pelo arbítrio do monarca. Dito isso, passou-se ao direito penal, como forma de deliminar o poder sancionador dos estados, ante as reformas francesas, àquelas infrações cujas sanções eram consideradas graves. 36 Ou seja, essa “penalização” dos ilícitos administrativos, acabou reduzindo o âmbito de regulação do direito administrativo. Nessa toada, nos dizeres de Blanca Lozano (1990), o direito administrativo sancionador adquiriu uma posição meramente residual, com o fim de reduzir o arbítrio observado nas monarquias nacionais. Ocorre que, o fato social decorrente do pós-guerras mundiais forçou a mudança de tal mentalidade, pois o sistema política passou ao do “bem-estar social”, que acabou ampliando o sistema de sanções regulamentadas, conforme as normas administrativas. Nesse cenário, assevera Heinz Mattes (1979, p. 219), a teoria das infrações administrativas ganhou força quando o Estado se viu obrigado a intervir influenciando e configurando a vida econômica para alcançar fins político-econômicos. A título de exemplo, o direito sancionador na Alemanha foi extremamente necessário para enfrentar as infrações econômicas que eram prejudiciais ao sistema econômico do Estado, especialmente no contexto crise econômica na Europa, nos anos 30. (MATTES, 1979, p. 222). Ou seja, ao contrário do que aconteceu no século das luzes, no pós-guerras, houve reversão da tendência de criminalização de condutas administrativas, que marcou as legislações penais após a revolução francesa, um profundo processo de descriminalização. Conforme menciona Garcia Albero (2001, p. 322, tradução nossa)1: “a partir de 1939 até os dias atuais, sua evolução implicará na ampliação do poder sancionador a todas as áreas de atuação administrativa”. No mesmo sentido, Alejandro Nieto (2012, p. 144, tradução nossa)2: “entre nós, quase de repente, chegamos a um direito administrativo sancionador de características originais”. Pode-se dizer, então, com as devidas ressalvas, que no decorrer do desenvolvimento do direito administrativo sancionador na Europa, há uma passagem entre a criminalização de condutas pelo direito penal e depois pelo direito administrativo sancionador, a depender das opções políticas de um determinado lugar e tempo. Em suma, há uma transição de condutas do direito penal para o direito administrativo e vice-versa. Entretanto, cabe elencar que: (...) hoje há um cenário de sobreposição no qual podemos verificar que a transferência da conduta descrita como tipo penal para o Direito administrativo sancionador não significa sua descriminalização, senão o reforço da norma penal (muitas vezes sob a alegação da relevância do bem jurídico protegido). Também muitas vezes a incorporação de proibições administrativas ao catálogo de sanções penais não reflete 1 No original: “A partir de 1939 hasta nuestros días, su evolución comportará la expansión del poder sancionador a todos los ámbitos de actuación administrativa”. 2No original: “entre nosotros se ha llegado, casi por salto, a un Derecho administrativo sancionador de caracteres originales y en nada tributario del Derecho extranjero”. 37 a eliminação desta conduta do conjunto do Direito administrativo sancionador (OLIVEIRA, 2012, p. 91) Em suma, é tendência o crescimento do direito administrativo sancionador e sua eventual semelhança com o direito penal, conforme o interesse do legislador em uma determinada época e espaço. A título de exemplo, com o advento do Pacote Anticrime, a atividade legiferante passou a permitir o ANPC, o que antigamente era veemente vedado. Por isso, deve-se observar como tutelar, resguardar as garantias, princípios e regulamentar a sua aplicação na prática. Dito isso, passa-se a observar a evolução do direito administrativo no ordenamento brasileiro. 2.2. Direito Administrativo sancionador brasileiro O constituinte originário de 1988, ao dispor o Título III, Capítulo VII deixou em evidência a crescente expansão da atuação da Administração Pública nos mais diversos setores da sociedade, tudo com fundamentação na estruturação democrática do Estado Brasileiro. Assim sendo, não é novidade que o exercício da função administrativa se espalhou em todos os relevantes segmentos da vida social, nos diversos níveis federativos. É basilar que a Magna Carta consagrou o princípio constitucional da liberdade, como direito individual, em seu art. 5º, inciso II, da CRFB/88. Dito isso, consignou-se, da forma clássica, que o particular poderia fazer tudo aquilo que a lei não proibisse e, por outro lado, a Administração Pública deve fazer somente aquilo que a lei lhe permite. Em outras palavras, para o particular, a liberdade deve ter como norte as proibições normativas e, para a Administração Pública, a liberdade está estritamente conformada às disposições expressas da lei. Ocorre que, como bem preceitua Luís Roberto Barroso (2006, on-line), no paradigma do Estado Constitucional, o neoconstitucionalismo, a liberdade de conformação à Lei assume uma nova ótica, que abandona as fórmulas puramente liberais, pois se supera a ideia de vinculação positiva do administrador à lei, na leitura convencional do princípio da legalidade, reformulando a função administrativa. Nesse sentido, tem-se: É certo dizer que a Constituição atual remodelou a forma pela qual o exercício da função administrativa se cristaliza, à luz do direito, por órgãos e entes da Administração Pública de todos os Poderes e de todas as esferas federativas, incluindo nesta afirmação os Tribunais de Contas e o Ministério Público, considerados Órgãos Constitucionais, dotados de autonomia, em face dos três Poderes. Inaugurou o período de vigência do modelo de Estado Social e Democrático de Direito no ordenamento brasileiro, o que é plenamente justificado em razão das profundas desigualdades sociais e territoriais (OLIVEIRA; GROTTI, 2020, p. 85). Ou seja, a mudança de paradigma normativo é notável, acarretando diversas consequências, na medida em que se consolidou a supremacia constitucional como 38 característica indissociável do Estado Democrático. Umas das evidentes consequências de tal mudança, como bem advoga Celso Antônio Bandeira de Mello (2016) é a observância aos princípios expressos e implícitos que confere uma sistematicidade e racionalidade ao Direito Administrativo e, por decorrência lógica e jurídica, ao Direito Administrativo Sancionador. E isso é substancial para a proteção do interesse público que a atividade administrativa está juridicamente destinada a perseguir no plano fático. Aliás, a firme formação teórica do Direito Administrativo está vinculada ao interesse público, conforme exposto no capítulo anterior. Por ora, leciona Ruy Cirne Lima (1982, p. 16): (...) forma-se o direito administrativo do acúmulo de regras de direito sôbre o princípio de utilidade pública. Logo, porém, é suplantado o princípio básico pelas normas jurídicas que já sôbre êle se amontoam, relativas ao Estado, em cuja atividade encontra a utilidade pública, por excelência, o veículo de sua realização. Nessa senda, o agente público, muito mais que uma escolha, deve atuar tendo por fundamento, ou filtro axiológico, a Constituição Federal de 1988, independentemente, em muitos casos, de qualquer literalidade do legislador ordinário. Dessa forma, percebe-se, tão somente, a subordinação à Constituição e à lei, nessa ordem. Em outros termos, a realidade fática, em razão do complexo e heterogêneo conjunto de problemas sociais, o agente não pode mais estar estritamente atrelado aos ditames estritos da lei, devendo atuar conforme a eficácia normativa principiológica da Constituição, conforme visto anteriormente. O Ministro Luís Roberto Barroso (2006), declama que a fase atual é marcada pela passagem da Constituição para o centro do sistema jurídico, na qual, por meio do filtro axiológico, deve-se ler todas as relações jurídicas e eventuais legislações. Isto posto, cabe mencionar que: Esta presença constitucional significa que aos intérpretes não é dado ignorar ou reduzir sua relevância no s