UNESP UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP LÍVIA BOCALON PIRES DE MORAES REPRESENTANDO DISPUTAS, DISPUTANDO REPRESENTAÇÕES: cientistas sociais e campo acadêmico no ensino de sociologia ARARAQUARA – S.P. 2016 LÍVIA BOCALON PIRES DE MORAES REPRESENTANDO DISPUTAS, DISPUTANDO REPRESENTAÇÕES: cientistas sociais e campo acadêmico no ensino de sociologia Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais. Linha de pesquisa: Cultura, Democracia e Pensamento Social Orientadora: Prof.ª Dr.ª Renata Medeiros Paoliello Bolsa: CNPq ARARAQUARA – S.P. 2016 LÍVIA BOCALON PIRES DE MORAES RRREEEPPPRRREEESSSEEENNNTTTAAANNNDDDOOO DDDIIISSSPPPUUUTTTAAASSS,,, DDDIIISSSPPPUUUTTTAAANNNDDDOOO RRREEEPPPRRREEESSSEEENNNTTTAAAÇÇÇÕÕÕEEESSS::: cientistas sociais e campo acadêmico no ensino de sociologia Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Ciências e Letras – UNESP/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais. Linha de pesquisa: Cultura, Democracia e Pensamento Social Orientador: Prof.ª Dr.ª Renata Medeiros Paoliello Bolsa: CNPq Data da defesa: ___/___/____ MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientadora: Prof.ª Dr.ª Renata Medeiros Paoliello Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP/Araraquara Membro Titular: Prof. Dr. Milton Lahuerta Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP/Araraquara Membro Titular: Prof.ª Dr.ª Elide Rugai Bastos Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara AGRADECIMENTOS A realização desse trabalho, felizmente, contou com o apoio de inúmeras pessoas, então cada linha escrita está repleta de gratidão. Gratidão a Deus, que tem me oferecido tanto! Tantas oportunidades de aprendizado e crescimento, tantas experiências transformadoras. E, acima de tudo, que tem colocado no meu caminho pessoas muito especiais, que tornam minha vida mais bonita, mais serena, e infinitamente mais significativa. Gratidão à minha mãe, Sueli, que foi o colo nos momentos de cansaço e de dúvida sobre esse trabalho, e que me ouviu tão pacientemente, mesmo quando nem mesmo eu sabia exatamente onde queria chegar. Gratidão ao meu pai, Maurício, que sempre se mostrou tão orgulhoso do meu trabalho, sempre me incentivou tanto, e que continua se preocupando comigo e cuidando de mim mesmo quando tenho a ilusão de ser autossuficiente. Gratidão ao meu irmão, Vinícius, que é a pessoa mais persistente que eu conheço, e que conquistou muito mais ao longo dos seus dezesseis anos do que eu nos meus vinte e seis. Você é um guerreiro. Gratidão à minha irmã, Letícia, de quem eu sinto tanto orgulho, muito, muito mais do que eu costumo demonstrar. Você mora no meu coração. Gratidão infinita ao meu amor, meu amigo e meu companheiro, Douglas. Pelos abraços, pelas palavras de incentivo, pela compreensão diante do cansaço. Por acreditar em mim muito mais do que eu mesma, por crescer comigo e me permitir crescer com você ao longo de todos esses anos. Gratidão aos amigos, de tão diferentes lugares, que estiveram ao meu lado, fisicamente ou não, durante esses dois anos de trabalho intenso, e que me sustentaram tão carinhosamente e de formas tão singelas. Gratidão aos meus alunos, que me ensinam muito mais do que eu a eles, e que, em grande parte, são a motivação do meu esforço. Gratidão à Renata Paoliello, minha orientadora, por acreditar em mim e no potencial desse trabalho, e por sempre me orientar com tanta solicitude, comprometimento e afetividade. Você é uma pessoa rara. Gratidão ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara, e a seus funcionários e professores. Em especial, a Ângelo Del Vecchio, pela imensa gentileza com que atendeu a uma mestranda bastante confusa; à Ana Lúcia de Castro, pelos questionamentos e sugestões, na banca de qualificação e fora dela, que tanto contribuíram com minha pesquisa; e à Milton Lahuerta, por aceitar participar da banca de defesa, e pelas valiosas contribuições a ela. Gratidão à Elide Rugai Bastos, pela atenção e cuidado em relação a meu trabalho, e pelas inúmeras contribuições feitas a ele com sua participação nas bancas de qualificação e defesa. Gratidão ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), pelo financiamento desta pesquisa. Gratidão à Amaury Cesar Moraes, Elisabeth da Fonseca Guimarães, Heloísa Teixeira de Souza Martins, Ileizi Fiorelli Silva, Lejeune Mato Grosso de Carvalho, Nelson Dacio Tomazi e Sueli Guadelupe de Lima Mendonça, por terem tão gentilmente permitido que eu estudasse suas trajetórias e vivências, e por terem sido tão prestativos e amáveis ao me receberem e ao partilharem suas impressões e experiências comigo. “Não haveria sociólogo que assumisse o risco de destruir o discreto véu de fé ou de má-fé que faz o charme de todas as devoções institucionais, sem que ao mesmo tempo acreditasse na possibilidade e necessidade de universalizar a liberdade em relação à instituição que a sociologia procura; sem que acreditasse nas virtudes libertadoras daquilo que é sem dúvida o menos ilegítimo dos poderes simbólicos, o da ciência, especialmente no momento em que toma a forma de uma ciência dos poderes simbólicos capaz de restituir aos sujeitos sociais o domínio das falsas transcendências que o desconhecimento não para de criar e recriar.” Pierre Bourdieu (1994, p. 63) RESUMO A pesquisa parte do estudo das ciências sociais, embasando-se na teoria sociológica de Pierre Bourdieu para construí-las teórica e metodologicamente como espaço social acadêmico vinculado ao campo acadêmico, isto é, como lócus de atuação profissional de um conjunto de agentes dotados de concepções, objetivos e interesses comuns, simultaneamente diferenciados dos participantes de outras ciências, e distintos entre si. Seu objetivo é compreender de que maneiras o caráter específico da luta por autoridade científica no espaço social acadêmico das ciências sociais, com suas regras de funcionamento explícitas e incorporadas, configura o caráter das disputas concernentes ao processo recente de institucionalização da obrigatoriedade do ensino de sociologia no Ensino Médio (1997-2008), em especial quanto às relações e representações de Amaury Moraes, Elisabeth Guimarães, Heloísa Martins, Ileizi Silva, Lejeune de Carvalho, Nelson Tomazi e Sueli Mendonça, cientistas sociais pioneiros na defesa desta institucionalização. Para realizar este intuito, construo um histórico da constituição do espaço social acadêmico no Brasil, adotando como recorte temporal o ano de 1964, e a posterior implantação, pelos governos militares, de uma política educacional voltada à institucionalização da pós-graduação e à centralidade das agências de fomento no setor de Ciência e Tecnologia do país, refletindo acerca do impacto destas para a área das ciências sociais e seus integrantes, e da gradual valorização de determinadas formas de fazer científico, e de fazer-se cientista neste espaço social, por elas acarretadas. Em seguida, com base na análise da organização do currículo Lattes, e em dados obtidos nas plataformas virtuais da Capes e do CNPq, esboço a estrutura deste espaço social, indicando os principais instrumentos e estratégias para aquisição de capital científico, e identificando os agentes e instituições dominantes, bem como as posições ocupadas pelos agentes e instituições vinculados ao ensino de sociologia. Realizo um estudo das trajetórias acadêmicas dos sujeitos da pesquisa, analisando o capital simbólico detido por eles no espaço social e sua relação com a defesa do ensino de sociologia, e elaboro, a partir de entrevistas semiestruturadas feitas com cada um deles, uma espécie de histórico do processo de institucionalização do qual participaram, enfatizando seu envolvimento e a rede de relações pessoais e institucionais que gradativamente se constituiu, bem como suas concepções acerca de suas ações e das relações atinentes a elas. Analiso as resistências ao ensino de sociologia e as disputas internas ao grupo dedicado à sua implantação e estudo, compreendendo as representações dominantes relativas a este ensino e ao significado de ser cientista social no interior do espaço social acadêmico das ciências sociais. Palavras – chave: Ciências sociais. Espaço social acadêmico. Ensino de sociologia. Sociologia relacional. Pierre Bourdieu. ABSTRACT The research studies social sciences, based on Pierre Bourdieu´s sociological theory, in order to construct them theoretically and methodologically as academical social space bounded to the academical field, that is, as professional acting locus of a group of agents with common conceptions, objectives and interests, simultaneously differentiated from participants from other sciences, and distinct from each other. Its goal is to understand the ways in which the specific character of the contest for scientific authority in the academical social space of social sciences, with its explicit and embedded operating rules, configures the character of disputes concerning the recent process of institutionalization of sociology compulsory education in high school (1997-2008), particularly with regard to relations and representations of Amaury Moraes, Elisabeth Guimarães, Heloísa Martins, Ileizi Silva, Lejeune de Carvalho, Nelson Tomazi e Sueli Mendonça, social scientists pioneers in defense of this institutionalization. To accomplish this intent, I build a history of the constitution of academical social space in Brazil, adopting as a time frame the year of 1964, and the subsequent deployment, by military governments, of an educational policy focused on the institutionalization of postgraduate and on the centrality of funding agencies to the country's science and technology sector, reflecting about the impact of these to the area of social sciences and its members, and to the gradual appreciation of certain forms of scientific work and of how to make yourself a scientist in this social space, entailed by those practices. After, based on the analysis of curriculum Lattes organization, and of data obtained on virtual platforms of Capes and CNPq, I outline the structure of this social space, indicating the main instruments and strategies for the acquisition of scientific capital, and identifying the dominant agents and institutions, as well as the positions occupied by the agents and institutions involved with the teaching of sociology. I realize a study of academical trajectories of the studied subjects, analyzing the symbolic capital held by them in the social space and its relation with the defense of the teaching sociology, and elaborate, based on semi-structured interviews with each of them, a sort of historical of the process of institutionalization in which they participated, emphasizing their involvement and the network of personal and institutional relationships that gradually constituted, as well as their conceptions about their actions and relationships regards to them. I analyze the resistance to teaching sociology and internal disputes to the group dedicated to its study and implementation, understanding the dominant representations concerning this teaching and the meanings of being a social scientist in the academical social space of the social sciences. Key-words: Social Sciences. Academical social space. Teaching sociology. Relational sociology. Pierre Bourdieu. LISTA DE TABELAS Tabela 1 Programas e cursos de Pós-Graduação em Sociologia e Ciências Sociais por estrato de avaliação (2012) 56 Tabela 2 Número de IES e projetos participantes do PIBID em 2014 65 Tabela 3 Bolsas concedidas pelo PIBID e pelo PIBID Diversidade em 2014 65 Tabela 4 Bolsistas produtividade (PQ A) e sênior (PQ SR) nas áreas de Antropologia, Ciência Política e Sociologia (2015) 68 Tabela 5 Periódicos de Sociologia com Qualis A1 produzidas no Brasil (2014) 73 Tabela 6 Produção Bibliográfica na grande área de Ciências Humanas (2014) 74 Tabela 7 Teses e dissertações sobre o ensino de sociologia defendidas no Brasil, distribuídas por unidade federativa e região (1993-2013) 92 Tabela 8 Grupos de pesquisa cadastrados no CNPq que desenvolveram atividades relacionadas ao ensino de sociologia, de acordo com o ano de ocorrência no Diretório dos Grupos de Pesquisa no Brasil (2000- 2015) 98 Tabela 9 Grupos de pesquisa cadastrados no CNPq que desenvolveram atividades relacionadas ao ensino de sociologia, de acordo com a instituição e o(s) líder(es) (2000-2015) 100 Tabela 10 Trabalhos aprovados para apresentação no GT Ensino de Sociologia, segundo edição e ano do evento (Congresso Brasileiro de Sociologia 2005-2015) 104 Tabela 11 Trabalhos apresentados no GT Ensino de Sociologia, segundo unidade federativa e filiação institucional dos autores (Congresso Brasileiro de Sociologia 2005-2015) 105 Tabela 12 Trabalhos apresentados no GT Ensino de Sociologia, segundo origem geográfica do vínculo institucional dos autores (Congresso Brasileiro de Sociologia 2005-2015) 105 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ABA – Associação Brasileira de Antropologia ABCP – Associação Brasileira de Pós-graduação em Ciência Política ABECS – Associação Brasileira de Ensino de Ciências Sociais ANPOCS – Associação Brasileira de Ciências Sociais Apeoesp - Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo BIB - Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais BNCC – Base Nacional Comum Curricular C&T – Ciência e Tecnologia Capes - Campanha de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior/ Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior CEBRAP – Centro Brasileiro de Análise e Planejamento CEDEC – Centro de Estudos de Cultura Contemporânea CFE - Conselho Federal de Educação CNAE - Classificação Nacional de Atividades Econômicas CNE – Conselho Nacional de Educação CNPq - Conselho Nacional de Pesquisa/ Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. CNTE - Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação CONTEE - Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino CP II – Colégio D. Pedro II DCNEM – Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio DIEESE - Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Econômicos ELSP - Escola Livre de Sociologia de São Paulo ENESEB - Encontro Nacional de Ensino de Sociologia na Educação Básica FACCAT - Faculdades Integradas de Taquara FAJE – Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia FAMA - Faculdade Atenas Maranhense FAPs - Fundações de Apoio à Pesquisa FASUL - Faculdade Sul Brasil FEPESP - Federação dos Professores do Estado de São Paulo FESP - Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo FINEP - Financiadora de Estudos e Projetos FNSB - Federação Nacional dos Sociólogos FOC - Faculdades Oswaldo Cruz FUNDAJ – Fundação Joaquim Nabuco Gepe - Grupo de estudos e práticas de ensino da Universidade Estadual de Londrina GD – Grupo de Discussão GT – Grupo de Trabalho IES - Instituições de Educação Superior IFES - Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Espírito Santo IFPB - Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Paraíba IFSC - Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Santa Catarina IFRO - Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Rondônia IFRS - Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul INCIS - Instituto de Ciências Sociais ISBN - International Stander Book Number ISSN – International Stander Serial Number JCR - Journal Citation Reports LABES - Laboratório de Ensino de Sociologia Florestan Fernandes Lapecs - Laboratório de Pesquisa e Ensino de Ciências Sociais LAVIECS - Laboratório Virtual e Interativo de Ensino de Ciências Sociais LDB – Lei de Diretrizes e Bases Lenpes - Laboratório de Ensino, Pesquisa e Extensão de Sociologia LEO - Laboratório de Estudos de Oralidade Lepecs - Laboratório de Ensino, Pesquisa e Extensão em Ciências Sociais, Educação e Saberes LES - Laboratório de Ensino de Sociologia LESOC - Laboratório de Ensino de Sociologia MBA - Master in Business Administration Metrocamp – Faculdade Metrocamp OCNs – Orientações Curriculares Nacionais PCNEM – Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio PIBIC - Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica PIBID - Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência PIBID Diversidade - Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência para a Diversidade http://www.ufrgs.br/laviecs2/ PL – Projeto de Lei PMSP - Prefeitura Municipal de São Paulo PNLD – Programa Nacional do Livro Didático PNPGs - Planos Nacionais de Pós-Graduação PROAP - Programa de Apoio à Pós-Graduação PROEX - Programa de Excelência Acadêmica ProfSocio - Mestrado Profissional em Rede para Ensino de Sociologia PUC – Pontifícia Universidade Católica RBA - Reunião Brasileira de Antropologia RBCS - Revista Brasileira de Ciências Sociais SBS – Sociedade Brasileira de Sociologia SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência SEEDUCRJ - Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro SESCOOP - Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo SEESP - Secretaria da Educação do estado de São Paulo SETEC - Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica SINDSESP - Sindicato dos Sociólogos do estado de São Paulo SNDTC – Sistema Nacional de Tecnologia e Ciência UBES - União Brasileira dos Estudantes Secundaristas UCAM - Universidade Cândido Mendes UDESC - Centro de Ciências Humanas e Educação da Universidade do Estado de Santa Catarina UECE - Universidade Estadual do Ceará UEL - Universidade Estadual de Londrina UEM - Universidade Estadual de Maringá UEMA - Universidade Estadual do Maranhão UEMG - Universidade Estadual de Minas Gerais UENF - Universidade Estadual do Norte Fluminense UERJ – Universidade Estadual do Rio de Janeiro UESB - Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia UESC - Universidade Estadual de Santa Catarina UF – Unidade Federativa UFA - Universidade Federal do Amazonas UFBA - Universidade Federal da Bahia UFC - Universidade Federal do Ceará UFCG - Universidade Federal de Campina Grande UFERSA - Universidade Federal Rural do Semiárido UFES - Universidade Federal do Espírito Santo UFF – Universidade Federal Fluminense UFFS - Universidade Federal da Fronteira Sul UFG - Universidade Federal de Goiás UFJF - Universidade Federal de Juiz de Fora UFMA - Universidade Federal do Maranhão UFMG - Universidade Federal de Minas Gerais UFMT - Universidade Federal de Mato Grosso UFOP - Universidade Federal de Ouro Preto UFPA - Universidade Federal do Pará UFPB - Universidade Federal da Paraíba UFPE - Universidade Federal de Pernambuco UFPel - Universidade Federal de Pelotas UFPI - Universidade Federal do Piauí UFPR – Universidade Federal do Paraná UFRB - Universidade Federal do Recôncavo Baiano UFRGS - Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRN - Universidade Federal do Rio Grande do Norte UFRRJ - Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro UFS - Universidade Federal de Sergipe UFSC - Universidade Federal de Santa Catarina UFSCAR - Universidade Federal de São Carlos UFSM - Universidade Federal de Santa Maria UFU – Universidade Federal de Uberlândia UFV – Universidade Federal de Viçosa UnB – Universidade de Brasília UNE - União Nacional dos Estudantes UNESP - Universidade Estadual Paulista UNIARA – Centro Universitário de Araraquara UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas UNICENP - Centro Universitário Positivo UNIFESP - Universidade Federal de São Paulo Unilasalle - Centro Universitário La Salle UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná UNISINOS - Universidade do Vale do Rio dos Sinos UNIVASF - Universidade Federal do Vale do São Francisco UPF - Universidade de Passo Fundo USAID - Agência norte-americana de Desenvolvimento Internacional USP - Universidade de São Paulo URCA - Universidade Regional do Cariri UVA - Universidade Estadual do Vale do Acaraú UVV - Universidade de Vila Velha SUMÁRIO Introdução 1 I. Análise praxiológica de um espaço social acadêmico 5 1. Pierre Bourdieu e o conhecimento praxiológico 11 2. As Ciências Sociais como espaço social acadêmico 14 3. Os recursos metodológicos adotados 16 4. A Sociologia como instrumento de autoanálise 19 II. A gênese de um determinado fazer científico 21 1. Estado, regulação e institucionalização 22 1.1. A criação do setor de C&T e as mudanças na Capes e no CNPq 23 1.2. A Reforma Universitária e a pós-graduação 27 2. Autoridade científica, distinção e disputas 36 3. Ciências sociais e trabalho acadêmico 42 4. Autonomia e hierarquia 48 III. Regras do jogo e aquisição de capital 50 1. Currículo Lattes: classificação e consagração 53 1.1. Dados gerais 53 1.2. Formação 54 1.3. Atuação 58 1.4. Projetos 62 1.5. Produções 71 1.6. Patentes, registros e inovação 75 1.7. Educação e popularização de C&T 75 1.8. Eventos 76 1.9. Orientações 80 1.10. Bancas 81 1.11. Citações 83 2. Delineando o funcionamento do espaço social 83 3. Ensino de sociologia: pesquisa, produção científica e divulgação 87 3.1. Programas de Pós-graduação 88 3.2. Produções Bibliográficas 91 3.3. Grupos de Pesquisa 97 3.4. Laboratórios de Ensino 102 3.5. Eventos 103 4. O lugar do ensino de sociologia: crescimento, invisibilidade e subordinação 108 IV. Representando disputas, disputando representações 113 1. Os sujeitos estudados pela pesquisa 115 1.1. Amaury Cesar Moraes 115 1.2. Elisabeth da Fonseca Guimarães 117 1.3. Heloísa Helena Teixeira de Souza Martins 118 1.4. Ileizi Luciana Fiorelli Silva 119 1.5. Lejeune Mato Grosso Xavier de Carvalho 121 1.6. Nelson Dacio Tomazi 122 1.7. Sueli Guadelupe de Lima Mendonça 123 1.8. Capital simbólico e trajetória acadêmica 124 2. As entrevistas realizadas 128 2.1. Hierarquia, legitimidade e autoridade 128 2.2. Rejeições amistosas, oposições declaradas, avaliações silenciosas 150 2.3. Coesão e conflito: novos bens simbólicos, novas disputas 159 V. Considerações finais 169 VI. Referências Bibliográficas 177 1 Introdução A realização dessa pesquisa é fruto de uma proposta científica e pessoal que começou em minha iniciação científica, realizada em 2011, na qual empreendi uma reflexão sociológica, empregando a teoria de Pierre Bourdieu, sobre a formação docente em ciências sociais na Universidade Estadual Paulista, estudando a licenciatura oferecida nos campi de Araraquara e Marília. Esta iniciativa havia sido motivada por um incômodo com a ausência de discussões sobre a formação de professores nos cursos de ciências sociais, não apenas enquanto possibilidade de pesquisa e de produção de conhecimento, mas principalmente como reflexão crítica a respeito de nós mesmos, cientistas sociais. A fim de transformar este incômodo em compreensão, optei por ser uma cientista social que estudasse cientistas sociais, e mais especificamente, sua relação com o ensino, em especial com o ensino de sociologia na educação básica, e após o término da graduação, acresci a esta a opção pela atuação profissional como professora, trabalhando com este ensino. A produção científica que realizo exige, portanto, a ruptura de adesões profundas e inconscientes, que certamente estão na base de meu interesse pelo objeto estudado, de modo que, se Pierre Bourdieu (BOURDIEU; WACQUANT, 2008) nos assevera que a sociologia da sociologia é uma dimensão fundamental da epistemologia sociológica, sendo um pré-requisito necessário para toda prática sociológica rigorosa, neste caso esta apresenta-se como ainda mais imprescindível. A elaboração do projeto relativo a esta pesquisa partiu do contato com a obra do autor, em especial da compreensão, proporcionado pelo seu estudo, de que A sociologia da ciência só é tão difícil porque o sociólogo está em jogo no jogo que ele pretende descrever (seja, primeiramente, a cientificidade da sociologia e, em segundo lugar, a cientificidade da forma de sociologia que ele pratica); ele só poderá objetivar o que está em jogo e as estratégias correspondentes se tomar por objeto não somente as estratégias de seus adversários científicos, mas o jogo enquanto tal, que comanda também suas próprias estratégias, ameaçando governar subterraneamente sua sociologia, e sua sociologia da sociologia (BOURDIEU, 1983, p. 155). Dessa forma, o entendimento das relações que as ciências e cientistas sociais mantêm com o ensino, e em particular com o ensino de sociologia, demanda a análise do próprio jogo inerente a estas ciências, com seus objetos, regras, regularidades e interesses, objetivando cientificamente o conjunto de objetivações, muitas vezes redutoras, compartilhadas pelos agentes envolvidos com as disputas e representações relativas a este 2 jogo, bem como percebê-las como estratégias simbólicas que visam a impor a verdade parcial de um grupo como a verdade das relações objetivas entre os grupos (BOURDIEU, 1994). Esta análise é também essencial para que o pesquisador possa desembaraçar-se, através desta objetivação teórica, descobrindo seu próprio engajamento com os objetos, lutas e representações que busca entender, empreendendo um esforço consciente e sociologicamente armado para situar suas próprias posições, interesses e posicionamentos com relação ao objeto estudado. Nesta pesquisa, as ciências sociais foram construídas, teórica e metodologicamente, como espaço social acadêmico, ou seja, apreendidas enquanto locus de atuação de cientistas sociais que têm por delegação a produção de conhecimento acadêmico, e que partilham de interesses, concepções e objetivos comuns, ao mesmo tempo em que são concorrentes, disputando entre si pela conquista do capital simbólico referente a este espaço social, ou seja, por autoridade científica. O objetivo inicial deste estudo foi entender de que maneiras o caráter específico da luta pela aquisição desta autoridade no espaço social acadêmico das ciências sociais configurou as disputas relativas ao processo recente da institucionalização da obrigatoriedade do ensino de sociologia no Ensino Médio, ocorrido entre 1997, ano em que o deputado federal Roque Zimmerman apresentou o Projeto de Lei n°3.178, e 2008, quando foi aprovada a Lei 11.684, que tornou este ensino obrigatório nas três séries do Ensino Médio em todo o território nacional. Para isso, debrucei-me sobre o envolvimento de um grupo de cientistas sociais cuja atuação em defesa desta obrigatoriedade foi essencial tanto para o sucesso das negociações no Congresso Nacional e para a sanção presidencial da lei, quanto para a gradativa aquisição de legitimidade do ensino de sociologia como objeto de estudos pelas ciências sociais, do qual fazem parte Amaury Moraes, Elisabeth Guimarães, Heloísa Martins, Ileizi Silva, Lejeune de Carvalho, Nelson Tomazi e Sueli Mendonça. Na pesquisa busquei entender as relações que esses cientistas estabeleceram entre si e com outros indivíduos envolvidos nesse processo, como deputados, senadores, secretários da educação, membros do Conselho Nacional de Educação, e em especial com outros cientistas sociais, que partilham do habitus relativo à atuação no espaço social acadêmico das ciências sociais. Ao longo deste processo, e em especial a partir do contato com os sujeitos da pesquisa no trabalho de campo, somou-se àquele objetivo o intuito de entender a influência da luta pela obtenção de autoridade científica quanto a disputas posteriores ao 3 período inicialmente pretendido, e que se diferenciam das primeiras em função de alterações nas relações entre os sujeitos, e destes com outros agentes que participam do espaço social estudado, devido à conquista de relativo capital simbólico e de novos bens simbólicos a serem disputados após a institucionalização da disciplina. Para entender a lógica deste espaço de produção simbólica, a pesquisa estruturou- se de modo a apreender dialeticamente e em profundidade seus aspectos objetivos e subjetivos, partindo da análise “objetivista” (BOURDIEU, 2004, p. 152) da gênese histórica e da estrutura relacional do espaço social, para a compreensão “subjetivista” (idem) das ações e representações dos sujeitos, relacionando as posições ocupadas pelos agentes neste espaço de produção às tomadas de posição em relação a seu universo de práticas sociais. No primeiro capítulo, intitulado Análise praxiológica de um espaço social acadêmico, faço um breve histórico do ensino de sociologia na educação básica no Brasil, destacando as tentativas recentes quanto à sua implantação, por meio dos Projetos de Lei propostos pelos deputados Roque Zimmerman, em 1997, e Ribamar Alves, em 2003. Explico as principais características da sociologia relacional de Pierre Bourdieu, em especial os conceitos de campo e de habitus, e a relação dialética estabelecida entre eles na teoria do autor, e apresento o objeto da pesquisa, esclarecendo o que seja o espaço social acadêmico das ciências sociais. Elenco os recursos metodológicos adotados, expondo seu encadeamento lógico conforme o embasamento científico empregado, e justifico a importância desta pesquisa, ressaltando a necessidade da realização de estudos sociológicos sobre os cientistas e as ciências sociais. No segundo capítulo, A gênese de um determinado fazer científico, construo a gênese histórica da constituição do espaço social acadêmico no Brasil, adotando como recorte temporal o ano de 1964, e destacando a criação do setor de Ciência e Tecnologia, a realização de mudanças na Campanha de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e no Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq)1, a implantação da Reforma Universitária, e a criação da pós-graduação, resultantes da implantação da política educacional dos governos militares, que constituiu as ciências no país, de forma geral, como sinônimos de uma forma específica de fazer científico. Apresento as influências dessa política educacional e desta concepção de ciência para a área das ciências sociais e seus integrantes, e analiso esses fenômenos segundo a teoria de Pierre Bourdieu. 1 Atualmente Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. 4 No terceiro capítulo, chamado Regras do jogo e aquisição de capital, partindo do conceito de campo, e mais especificamente, de campo científico, analiso a estrutura do currículo Lattes, e dados obtidos nas plataformas virtuais da Capes e do CNPq acerca da situação atual das ciências sociais quanto à sua institucionalização e produção, identificando os critérios de consagração no espaço social acadêmico das ciências sociais e os instrumentos e estratégias dominantes para a aquisição de capital científico. Indico quais são os agentes e instituições dominantes neste espaço social e, através de dados referentes às instituições de ensino, programas de pós-graduação, grupos de pesquisa, eventos e produções vinculados ao ensino de sociologia, assinalo as posições ocupadas por eles no espaço social acadêmico das ciências sociais. No quarto capítulo, intitulado Representando disputas, disputando representações, realizo um estudo do currículo Lattes dos sujeitos da pesquisa, traçando sua trajetória profissional e analisando o capital simbólico detido por eles no espaço social, e a relação deste com a defesa do ensino de sociologia. Elaboro, a partir de entrevistas semiestruturadas feitas com cada um deles, um histórico do processo de institucionalização do qual participaram, enfatizando seu envolvimento e a rede de relações pessoais e institucionais que gradativamente se constituiu, bem como suas concepções acerca de suas ações e das relações atinentes a elas. Analiso as resistências ao ensino de sociologia presentes no espaço social estudado, e as disputas e conflitos relativos ao grupo dedicado à sua implantação e estudo, assim como as representações dominantes relativas a este ensino e ao significado de ser cientista social no interior do espaço social acadêmico das ciências sociais, e seus efeitos quanto ao ensino de sociologia. Por fim, nas Considerações Finais exponho os resultados analíticos obtidos na pesquisa, apresentando os modos pelos quais a luta pela aquisição de autoridade científica no espaço social das ciências sociais configura as disputas relativas ao ensino de sociologia, não apenas quanto ao processo de institucionalização de sua obrigatoriedade como disciplina escolar, mas aos conflitos e disputas entre os cientistas sociais responsáveis por esta obrigatoriedade. 5 I. Análise praxiológica de um espaço social acadêmico O histórico de inserção da sociologia como disciplina obrigatória no ensino secundário teve início em 1890, ano em que foi legalmente incluída no ensino com a Reforma Benjamin Constant, inspirada pelo positivismo, que tinha por objetivo instaurar um currículo mais científico no lugar de um currículo clássico-literário. Dois anos depois ocorreu a introdução da disciplina de “sociologia, moral, noções de economia política e direito pátrio” no Atheneu Sergipense, em Aracaju (OLIVEIRA, 2013), representando o início, de fato, desta inserção, cuja obrigatoriedade findou em 1901, com a Reforma Epitácio Pessoa (FEIJÓ, 2012). Em 1925, com a Reforma Rocha Vaz, a sociologia voltou se tornar disciplina obrigatória, inserindo-se no 6° ano do ensino secundário, sendo ofertada aos alunos do Colégio Pedro II, e passando a constar nos currículos dos cursos normais de São Paulo, Rio de Janeiro e Pernambuco, em 1928. A Reforma Francisco Campos, em 1931, organizou o ensino secundário em dois ciclos, o fundamental, com cinco anos, e o complementar, dividido em três opções para preparar os alunos a ingressarem nas faculdades de Direito, Ciências Médicas, ou Engenharia e Arquitetura. Essa reforma incluiu a sociologia como disciplina obrigatória no 2° ano de todos os cursos complementares. Nessa conjuntura houve também a formação dos primeiros professores, de fato especializados, no ensino de ciências sociais, com o surgimento dos cursos da Universidade de São Paulo, criada em 1934, e da Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo, fundada no ano anterior (SILVA, 2010). Mário Bispo dos Santos (2004) denomina este período como o de institucionalização da sociologia no Ensino Médio (1891-1941), em que esta foi introduzida no ensino secundário por decisões governamentais e administrativas, através de reformas do ensino que inicialmente pouco contaram com a participação de cientistas sociais, pois a sociologia esteve presente no país primeiro na educação secundarista, e somente depois na educação superior. Segundo ele, para esse contexto contribuiu a concepção comteana de evolução social, que motivou a substituição das disciplinas consideradas resquícios das fases metafísica e teológica por disciplinas científicas, como a sociologia, cujo ensino foi exercido na época por pensadores responsáveis pela sistematização da área no Brasil, como Fernando de Azevedo, Gilberto Freyre, Carneiro Leão e Delgado de Carvalho, que trataram a educação enquanto problema social, que deveria ser abordado cientificamente pela sociologia. 6 Desse modo, o ensino de sociologia se insere em um projeto educacional que tinha por objetivo mais amplo a constituição de um novo ambiente intelectual e de uma nova elite dirigente, caracterizada em oposição ao bacharelismo, marcado pelo pensamento formal e pela cultura geral e vaga. Para Fernanda Feijó (...) a Sociologia enquanto disciplina foi de extrema relevância para a institucionalização das ciências sociais no Brasil, tendo em vista o incentivo à prática científica ao se demandar mais pesquisas na área para aperfeiçoar o ensino da disciplina. Rotinizar o ensino de Sociologia contribuiu para que se buscassem mais pesquisas nessa área do conhecimento (FEIJÓ, 2012, p. 139). O período seguinte, classificado por Santos como sendo de ausência da sociologia como disciplina obrigatória (1941-1981), se iniciou com a Lei Orgânica do Ensino Secundário, presente na Reforma Capanema, de 1942, por meio da qual a disciplina de sociologia foi eliminada dos currículos, com exceção do ensino normal, segundo a hipótese de Amaury Moraes (2001), por não cumprir os quesitos necessários para se enquadrar no mesmo, devido a não ter ganhado legitimidade para nele figurar como ciência. A esse respeito, declarou Fernando de Azevedo Confesso, porém, que, dada a complexidade de nossa ciência e o grau insuficiente de sistematização de conhecimentos sociológicos no estado atual e em razão dos perigos de deturpação a que ainda está exposto o seu ensino entre nós, seria preferível conceder lugar preponderante, no currículo do ensino secundário, às ciências físicas e experimentais, já constituídas e mais avançadas, que já atingiram um alto grau de precisão nos seus conceitos e nos seus métodos, e cujo papel na educação geral dos espíritos se exerceria mais facilmente pela compreensão das leis essenciais que governam a natureza e pela explicação dos mais simples desses fenômenos e dos princípios fundamentais de teorias mais ao alcance de adolescentes (AZEVEDO apud MORAES, 2011, p. 364). Outros sociólogos, todavia, defenderam o retorno da sociologia como disciplina do ensino secundário, como Antônio Cândido, no Simpósio “O Ensino de Sociologia e Etnologia”, de 1949, e Florestan Fernandes, no Congresso Brasileiro de Sociologia, em 1954, mas após o Golpe Militar, em 1964, e a Reforma Jarbas Passarinho, empreendida pelo governo militar em 1971, a sociologia deixou sua obrigatoriedade também nos cursos normais. 7 O último período delimitado por Santos, de reinserção gradativa da sociologia no Ensino Médio (1981-2001), caracterizou-se pela participação ativa de educadores, políticos, estudantes e sociólogos, em diversos processos de negociação pelo retorno da disciplina nos estados do país (SANTOS, 2004; CARVALHO, 2004). Assim, em 1983 a Associação dos Sociólogos de São Paulo organizou o “Dia Estadual de Luta pela Volta da Sociologia ao 2° Grau”, sendo a sociologia reinserida nos currículos das escolas do estado no ano seguinte, e, ainda nessa mesma década, retornando aos currículos em Pernambuco, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Pará e Rio de Janeiro, por meio das Constituições Estaduais, gradativamente constituindo certa legitimidade da presença da disciplina. Com a reestruturação da rede pública em 1994, entretanto, que tinha por objetivo a redução de seu tamanho e a economia de recursos, a grade curricular foi diminuída, acarretando o retrocesso da presença da sociologia nas escolas, em decorrência da maior valorização de outras disciplinas, como matemática e português (MORAES, 2011). O artigo 36, §1° da Lei de Diretrizes e Bases, nesse sentido, que definia que Os conteúdos, as metodologias e as formas de avaliação serão organizadas de tal forma que ao final do ensino médio o educando demonstre: (...) III – domínio dos conhecimentos de Filosofia e Sociologia necessários ao exercício da cidadania (BRASIL, 1996), embora pareça definir o retorno das duas disciplinas no Ensino Médio, foi interpretado de modo a impedir sua implantação na grade curricular, pois estas seriam tratadas de modo interdisciplinar e contextualizado, preferencialmente nas aulas de História e Geografia, mas possivelmente em outras disciplinas, por meio, por exemplo, da discussão de um artigo de jornal sobre o desemprego, pelo professor de matemática, quando fosse trabalhar porcentagens (CARVALHO, 2004). Assim, esta proposta de abordagem transdisciplinar/interdisciplinar é extremamente passível de questionamento, pois Primeiramente, quais disciplinas incorporariam aos seus conteúdos os ‘conhecimentos’ de Filosofia e Sociologia? Segundo, que domínio dos conteúdos de Filosofia e Sociologia têm os professores de outras disciplinas – sabendo das deficiências de formação específica que a maioria dos professores têm – e em que medida isso é suficiente para que eles transmitam os ‘necessários’ conforme determina a lei? Que domínio de ‘metodologias de ensino interdisciplinares’ têm os professores para que possam dar o ‘tratamento interdisciplinar’ que a lei derivada determina para que se contemple o estabelecido na lei 8 original? Assim como as demais disciplinas, cada vez menos se entende que esses ‘conhecimentos’ sejam apenas informações, valorizando-se em especial as metodologias de pesquisa e, na linguagem das próprias DCNEM (Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Médio), as ‘tecnologias’ da Sociologia, então, que domínio têm os professores de outras disciplinas dessas metodologias e tecnologias para garantir que elas recebam tratamento interdisciplinar e contextualizado e contribuam para a formação plena do educando? (MORAES, 2007, p. 247). Este tratamento contribuiu para que o deputado Roque Zimmerman, a pedido do Sindicato dos Sociólogos, apresentasse o Projeto de Lei n°3.178/97, objetivando dar ao artigo citado uma redação mais incisiva, que garantisse que a Sociologia e a Filosofia fossem disciplinas (CARVALHO, 2004). O movimento pelo retorno da disciplina nessa época, no entanto, não limitou suas estratégias à tramitação do referido projeto. Nesse mesmo ano a sociologia se tornou disciplina obrigatória do vestibular da Universidade Federal de Uberlândia, e no ano seguinte foi aprovado o Parecer nº 15, com as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (DCNEM), nas quais os conhecimentos de Sociologia são incluídos na área de Ciências Humanas e suas Tecnologias. Em 1999 o Ministério da Educação lançou os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (PCNEM), que trazem as competências relativas aos conhecimentos de Sociologia, Antropologia e Ciência Política, e em 2000 a sociologia se tornou disciplina obrigatória em todas as séries do Ensino Médio das escolas públicas do Distrito Federal. Quanto à proposta de alteração da LDB, após ser aprovada por unanimidade nas duas comissões em que foi avaliada, e passar ao Senado em 2000, tornando-se o PL 09/00, onde também foi sancionada, esta foi totalmente vetada no ano seguinte por Fernando Henrique Cardoso, então presidente da República, com a justificativa de que este (...) implicará a constituição de ônus para os estados e o Distrito Federal, pressupondo a necessidade da criação de cargos para a contratação de professores de tais disciplinas, com a agravante de que, segundo informações da Secretaria de Educação Média e Tecnológica, não há no país formação suficiente de tais profissionais para atender à demanda que advirá caso fosse sancionado o projeto, situações que por si só recomendam que seja vetado na sua totalidade por ser contrário ao interesse público (Presidência da República, 2001). 9 Desse modo, apenas com a eleição de Luís Inácio Lula da Silva, que tomou posse em 2003, e com a indicação de um novo ministro da educação2, trazendo novas perspectivas quanto à política educacional, reforçou-se novamente a atuação deste movimento em nível federal, por meio da realização de algumas modificações no Projeto de Lei apresentado por Roque Zimmerman, e de sua reapresentação pelo deputado federal Ribamar Alves, tornando-se o PL 1.641/03. Este mantinha a proposta de que fosse alterado o artigo 36 LDB, para Sociologia e Filosofia se tornassem disciplinas obrigatórias em todos os anos do Ensino Médio (ZANARDI, 2009). O processo de tramitação deste, entretanto, foi bastante demorado. Em função da relevância dos temas então em debate no Congresso (ROMANO, 2009), a discussão desta pauta foi adiada, e apenas em 2004 o projeto foi aprovado nas Comissões de Constituição e Justiça, e de Educação. Com a apresentação de um requerimento de 51 deputados, que afirmavam vê-lo como uma proposta do poder Executivo (do Ministério da Educação), o projeto não foi diretamente encaminhado ao Senado, ficando parado entre o fim de 2004 e o início de 2006, em razão de diversos escândalos envolvendo o Partido dos Trabalhadores (ZANARDI, 2009), ao qual o então presidente é filiado. Ainda em 2004 foi formada uma nova equipe para rever os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, e o Ministério da Educação solicitou às sociedades científicas que indicassem intelectuais ligados ao ensino para a formulação das Orientações Curriculares Nacionais (OCNs) para o Ensino Médio. Ficaram responsáveis pelo ensino de sociologia Amaury Cesar Moraes, Elisabeth da Fonseca Guimarães e Nelson Dacio Tomazi, que questionaram a Diretoria de Políticas do Ensino Médio do Ministério da Educação sobre a legitimidade de um documento oficial sobre ensino de sociologia sem a existência de uma lei que a incluísse como disciplina obrigatória. Como consequência, foi aprovado o Parecer CEN/CEB n° 38/06, que determinou o tratamento disciplinar e obrigatório da sociologia nas escolas cujo currículo fosse estruturado por disciplinas. Entretanto, vários estados da federação, principalmente São Paulo, questionaram essa medida junto ao Conselho Nacional de Educação, bem como a legitimidade deste órgão para legislar sobre disciplinas, sob a justificativa de que a medida interferia na autonomia dos sistemas de ensino e de que traria implicações não desprezíveis quanto aos recursos humanos e financeiros necessários à sua implementação. 2 Cristóvan Buarque. 10 A maioria dos estados, contudo, continuou o processo de implantação da disciplina, através de diretrizes curriculares estaduais, concursos públicos para professores de sociologia, e materiais didáticos próprios, como no caso de Alagoas, Amazonas, Amapá, Distrito Federal, Espírito Santo, Goiás, Mato Grosso do Sul, Pará, Pernambuco, Paraná, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rondônia, Roraima, Santa Catarina, Sergipe e Tocantins (SILVA, 2010). Também continuaram as ações e negociações de sociólogos e suas entidades representativas, como a Federação Nacional dos Sociólogos (FNSB) e o Sindicato dos Sociólogos do estado de São Paulo (SINDSESP), em parceria com entidades dos professores, como o Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp), a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE),a Federação dos Professores do Estado de São Paulo (FEPESP) e a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino (CONTEE), além de entidades estudantis como a União Nacional dos Estudantes (UNE) e a União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES) (CARVALHO, 2004). Quanto ao PL 1.641/03, apenas conseguiu-se que este fosse debatido e aprovado na Câmara no fim de 2007, passando ao Senado em janeiro do ano seguinte, onde também foi aprovado, sendo encaminhado em seguida para sanção pelo presidente em exercício José Alencar, no dia 2 de junho de 2008. No período mais recente desse histórico, entre 1997 e 2008, ou seja, entre a criação do Projeto de Lei n° 3.178/97 pelo Dep. Roque Zimmerman e a sanção, pelo presidente em exercício, do Projeto de Lei 1.641/03, do Dep. Ribamar Alves, constituiu-se um grupo de sociólogos diretamente envolvidos com as disputas constantes da negociação pela obrigatoriedade da sociologia no Ensino Médio. Em sua maioria professores de licenciatura em ciências sociais de diferentes universidades brasileiras, eles contribuíram com a campanha pelo ensino de sociologia não apenas “para fora” da área, ou seja, dialogando com setores da sociedade não diretamente vinculados às ciências sociais, mas também “para dentro”, devido à existência de dúvidas e oposições mais ou menos explícitas às pretensões de obrigatoriedade da disciplina. Dentre eles, destaco os professores Amaury Cesar Moraes, Ileizi Luciana Fiorelli Silva, Sueli Guadelupe de Lima Mendonça, Elisabeth da Fonseca Guimarães, Nelson Dacio Tomazi, Heloísa Helena Teixeira de Souza Martins, e Lejeune Mato Grosso de Carvalho, por sua fundamental participação nesse processo e por comporem, atualmente, algumas das principais referências quanto à produção científica do campo de estudos que, 11 ao longo dessa trajetória, se constituiu (NEUHOLD, 2014). Suas obras e relatos fazem parte do embasamento bibliográfico de diversos estudos sobre a temática, além de serem os principais responsáveis pela crescente inclusão do reconhecimento do ensino de sociologia enquanto objeto legítimo e fundamental de estudos pelas ciências sociais no país. Nas diversas pesquisas que têm se debruçado sobre o ensino de sociologia, segundo Anita Handfas (2011) o estudo de seu histórico de institucionalização foi um dos principais temas3, considerando-se que essa produção tendeu a crescer a partir dos anos 2000, para o que contribuiu a criação de espaços institucionais próprios para sua discussão, como o Grupo de Trabalho de Ensino de Sociologia, realizado bianualmente nos Congressos Nacionais da Sociedade Brasileira de Sociologia, e o Encontro Nacional de Ensino de Sociologia na Educação Básica (ENESEB), também bianual. A autora ressalta, porém, que existem poucas pesquisas que buscam refletir sociologicamente sobre ele, sendo necessária a realização de “estudos que possam fornecer os elementos teóricos e práticos necessários para se pensar uma sociologia do ensino de sociologia” (HANDFAS, 2011, p. 399), ou seja, para produzir saberes sobre o tema a partir das próprias ciências sociais. 1. Pierre Bourdieu e o conhecimento praxiológico Como a noção de campo indica, o caminho epistêmico adotado na pesquisa se vincula à teoria sociológica de Pierre Bourdieu, que segundo Renato Ortiz (1983) tem a questão da mediação entre a sociedade e o agente social, ou entre o sujeito e a estrutura, como uma de suas problemáticas fundamentais. Dessa forma, a discussão epistemológica e metodológica promovida por Bourdieu tem como ponto central a polêmica entre os conhecimentos objetivista e fenomenológico. Para o sociólogo francês (1983), o primeiro constrói relações objetivistas que estruturam tanto as práticas quanto as representações dos sujeitos sobre elas, exigindo que se rompa com o conhecimento primeiro e naturalizado do mundo social, enquanto o segundo explicita este conhecimento e a apreensão do mundo social como natural e evidente, sobre o qual não se pensa. A tentativa de superação da dicotomia entre essas duas formas de conhecimento está na raiz do quadro teórico-metodológico do autor, que através do conhecimento praxiológico busca relacionar de forma dialética o agente e a estrutura social, assumindo 3Entre 1993 e 2010. 12 como objeto as relações objetivas construídas pelo objetivismo, e as relações dialéticas entre estas e as condutas individuais por elas produzidas, e que tendem a reproduzi-las (BOURDIEU, 1983). De acordo com Gabriel Peters (2013), o método analítico praxiológico recupera o papel causal, na reprodução do mundo social, das representações subjetivas e habilidades práticas mobilizadas pelos indivíduos para a interpretação do mundo social e investidas por eles para a produção de suas condutas. Estas representações e habilidades subjetivas variam sistematicamente conforme as condições objetivas, tanto enquanto contextos sociais e históricos, quanto através das diferentes posições ocupadas pelos indivíduos em um mesmo espaço social, pois estas exercem coações estruturais sobre as representações dos agentes. Assim, “pontos de vista” sobre o mundo social são sempre “vistas de um ponto” definido desse mundo (BOURDIEU; WACQUANT, 2008). Por essa relação, as duas formas de investigação aparecem como momentos do método de pesquisa de Bourdieu, com o objetivo de captar a relação histórico-dialética existente entre a trajetória do indivíduo e a reprodução ou transformação histórica de estruturas coletivas, compreendidas em seu aspecto corporificado em práticas sociais. Dessa forma, De um lado, as estruturas objetivas que o sociólogo constrói no momento objetivista, descartando as representações subjetivas dos agentes, são o fundamento das representações subjetivas e constituem as coações estruturais que pesam nas interações; mas, de outro lado, essas representações também devem ser retidas, sobretudo se quisermos explicar as lutas cotidianas, individuais ou coletivas, que visam transformar ou conservar essas estruturas. Isso significa que os dois momentos, o objetivista e o subjetivista, estão numa relação dialética (BOURDIEU, 2004, p. 152). A realidade social não é percebida por Bourdieu, portanto, apenas como exterioridade ou interioridade, “(...) mas simultaneamente como exterioridade objetiva e interioridade subjetiva”, ou como “exterioridade objetiva subjetivamente interiorizada e interioridade subjetiva objetivamente exteriorizada” (PETERS, 2013, p.53), de modo que a teoria da prática do autor tem como fundamento a tese de que existe uma inter-relação causal entre as propriedades objetivas e estruturais dos contextos sociais vivenciados pelos agentes e as suas matrizes de conduta, socialmente adquiridas, utilizando para se referir a estes dois polos de análise, respectivamente, os conceitos de campo e de habitus. O uso da noção de campo é fundamental para compreender determinadas esferas de atividade do mundo social contemporâneo, como espaços de atuação, pública ou 13 profissional, em que existe uma luta pela obtenção de determinada forma de prestígio. O campo pode ser definido como uma rede ou configuração de relações objetivas entre posições, que, por sua vez, estão objetivamente definidas pela situação presente e potencial de seus ocupantes na estrutura de distribuição desigual das espécies de capital (poder) que propiciam àqueles que as detêm a legitimidade da aquisição de lucros específicos que estão em disputa nesse espaço social, bem como pelas relações objetivas que estes mantêm relativamente a outros campos, e às posições ocupadas pelos membros destes. Segundo o autor, a maior vantagem de sua utilização é a constante necessidade de reflexão que estabelece, ao oferecer um sistema coerente de questionamentos periódicos (sobre os limites do universo investigado, suas relações e articulações, etc.) que escapa aos limites do empirismo positivista e do discurso teoricista (BOURDIEU; WACQUANT, 2008). As relações sociais estruturam disposições, capacidades e propensões para que os indivíduos pensem, sintam e ajam de formas determinadas, que guiam criativamente suas respostas aos constrangimentos e solicitações do meio social, sendo o habitus ao mesmo tempo social – as categorias subjetivas de julgamento e de ação são partilhadas pelos indivíduos submetidos a condicionamentos sociais semelhantes – e individual – cada indivíduo possui uma trajetória única, internalizando uma combinação exclusiva de esquemas. O habitus é estrutura social objetiva tornada estrutura mental subjetiva, é competência prática que atua sob o nível da consciência (WACQUANT, 2007), e que, como produto das relações sociais, tem a tendência a garantir a reprodução das relações objetivas que estão em sua origem (BOURDIEU; WACQUANT, 2008). Assim, devido ao fato de a internalização de representações objetivas ocorrer conforme as posições sociais ocupadas pelos indivíduos nos diversos campos, e destes relativamente uns aos outros, garante-se a relativa homogeneidade de habitus por indivíduos que partilharam de condições objetivas semelhantes. O habitus é um sistema aberto de disposições, que é constantemente afetado pelas experiências vivenciadas pelos agentes, de modo que não se trata da reprodução de uma única estrutura social, e tampouco de um mecanismo autossuficiente para gerar a ação. Ele “(...) grava, armazena e prolonga a influência dos diversos ambientes sucessivamente encontrados na vida de uma pessoa” (WACQUANT, 2007, p. 68), e exige um “gatilho externo” para operar, de modo que conforme os estímulos e a estrutura do campo, o mesmo habitus produzirá resultados diversos, não podendo ser considerado isoladamente dos campos que o constituem e daqueles em que se exerce. 14 Na teoria de Bourdieu, para compreender as experiências subjetivas e as motivações internas das ações de determinado grupo de agentes, é preciso reconstruir o campo de relações objetivas em que estes se inserem, bem como a posição ocupada por eles individual e coletivamente, e as trajetórias sociais que possibilitaram a situação analisada, empregando a relação dialética entre habitus e campo – uma dialética que se inicia sempre pelo campo – para chegar ao princípio da gênese das práticas sociais, articuladoras, inevitavelmente, da ação e da estrutura, lembrando que A relação entre habitus e campo opera de duas maneiras. Por um lado, é uma relação de condicionamento: o campo estrutura o habitus, que é o produto da encarnação da necessidade imanente de um campo (ou de um conjunto de campos que estão em intersecção, servindo a extensão de sua intersecção ou de sua discrepância como raiz de um habitus dividido ou mesmo quebrado). Por outro lado, é uma relação de conhecimento ou de construção cognitiva. O habitus contribui para construir o campo como um mundo significativo, dotado de sentido e valor, em que vale a pena investir a própria energia (grifos dos autores – BOURDIEU; WACQUANT, 2008, p. 167). 2. As Ciências Sociais como espaço social acadêmico Nesta pesquisa, adotando a perspectiva de Pierre Bourdieu, em especial seus conceitos de habitus, campo, poder simbólico, capital, estratégia e representação, compreendo sociologicamente as ciências sociais, particularmente em seu aspecto acadêmico, como espaço social de produção científica, cujos agentes mantêm entre si relações de disputa que têm o capital científico como seu instrumento e objetivo, enquanto reconhecimento do poder simbólico detido por eles, capaz de (...) fazer com que se veja e se acredite, de trazer à luz, ao estado explícito, objetivado, experiências mais ou menos confusas, não formuladas, e até não formuláveis, do mundo natural e do mundo social, e, por essa via, de fazê-las existir (BOURDIEU, 2004, p. 176). O poder simbólico, que se trata de um poder de consagração ou de revelação, “constrói o mundo” (BOURDIEU, 2004), uma vez que, sendo as representações dos agentes variáveis segundo a posição que ocupam no espaço social, e segundo seu habitus (BOURDIEU, 1998), a produção de novas visões de mundo e das operações práticas que produzem e reproduzem os grupos modifica o mundo, sendo alvo de lutas simbólicas pelo poder de produzir e impor a visão de mundo legítima. 15 No caso das ciências – e consequentemente das ciências sociais – esta disputa se dá em torno da legitimidade da ciência, ou seja, do reconhecimento, por seus pares e por indivíduos que não fazem parte do campo, da autoridade científica detida pelos agentes. A forma de capital mais valorizada, empregada como instrumento e alvo das lutas, é o capital científico, um dos gêneros de capital simbólico, de modo que os pesquisadores que se encontram em posições hierarquicamente reconhecidas como dominantes possuem maior capital científico, sendo detentores, individualmente, de mais celebridade e prestígio, e socialmente, do poder de impor, para os outros membros do campo, “a definição de ciência que se conforma melhor a seus interesses específicos, isto é, a que lhes convém melhor e lhes permite ocupar, em toda legitimidade, a posição dominante” (BOURDIEU apud ORTIZ, 1983, p. 21). Para compreender as disputas referentes às ciências sociais, em especial ao ensino de sociologia, tomo este campo em seu aspecto acadêmico, como apontado por Ana Paula Hey, que o compreende como “(...) um locus de relações, tendo como protagonistas agentes que têm por delegação produzir conhecimento acadêmico, isto é, um tipo de prática social legitimada e reconhecida como tal”. (HEY, 2008, p. 15). A autora emprega a noção de campo acadêmico em preferência à de campo científico por entender que, no Brasil, a ideia de academia, de Platão, com as áreas de conhecimento como uma espécie de sociedade de caráter científico detentora de membros próprios, mas que possuem um ethos comum, está bastante presente4. A configuração deste campo de produção científica envolve práticas institucionalizadas de produção de conhecimento, relacionadas principalmente às universidades que, juntamente a outras instituições, como as agências de fomento e sociedades científicas, submetem as disciplinas acadêmicas a regras que controlam a qualidade e a quantidade do conhecimento que será incorporado a suas esferas, propondo- se à produção de determinados resultados por meio de certas contenções ou constrangimentos mais ou menos explícitos. Envolve, também, a existência de uma comunidade acadêmica, grupo de pessoas com interesses próprios e mecanismos relativamente eficazes, cujo poder se manifesta de forma relativamente dissimulada, para incluir ou excluir novos membros, inserindo-se na sociedade mais ampla, de modo que seus agentes, além do ethos acadêmico, partilham em muitos aspectos do ethos social mais geral (KANT DE LIMA, 2011). 4 É por partilhar dessa concepção que empreendo a mesma opção. 16 Neste trabalho, contudo, o universo social em questão não será tratado como campo, mas como espaço social acadêmico, posto não possuir autonomia em relação ao campo acadêmico mais amplo, de forma que, como aponta Hey (2008), não é possível explicar o que acontece neste espaço com base apenas em suas propriedades intrínsecas, embora estas sejam fundamentais. 3. Os recursos metodológicos adotados A pesquisa possui caráter qualitativo, e emprega diferentes procedimentos metodológicos com vistas a apreender dialeticamente e em profundidade os aspectos objetivos e subjetivos do objeto, buscando estabelecer a complexidade das relações sociais estudadas. Segundo Pierre Bourdieu, Um dos instrumentos mais poderosos de ruptura é a história social dos problemas, dos objetos e dos instrumentos de pensamento, quer dizer, do trabalho social de construção dos instrumentos de construção da realidade social (...) que se realiza no próprio seio do mundo social, no seu conjunto, neste ou naquele campo especializado e, especialmente, no campo das ciências sociais (grifos do autor – BOURDIEU, 2001a, p. 36). Para o autor, a cada luta travada no campo estão presentes toda a estrutura e história do grupo, por meio do habitus dos agentes, que se encontra no princípio das suas ações, objetivamente organizadas como estratégias sem serem resultantes de intenções estratégicas, de modo que por meio do conhecimento prático das regras do jogo pelos participantes, em cada ato do mesmo está presente toda a sua história. Sendo assim, é possível entender as relações de força presentes no campo pelo retorno à história do grupo, relacionando as condições sociais de produção do habitus e a conjuntura em que este se exerce, de modo a elucidar as disposições dos agentes que encontraram possibilidades de realizarem-se nesse universo e o modo como estas o estruturam em certo momento histórico (HEY, 2008). Neste trabalho isto é feito por meio de revisão e levantamento bibliográficos, que permitem o conhecimento do histórico das disputas constituintes das ciências sociais no Brasil enquanto espaço social acadêmico que emprega um aparato institucional, até o presente assegurado pelo Estado, e que garante a circulação e a produção dos produtos acadêmicos. Este é fruto de uma série de políticas públicas discutidas, definidas e executadas por diferentes agentes – cientistas, estudantes, políticos e militares –, 17 detentores de projetos e defensores de definições diversas sobre o que era e do que deveria ser o ensino, a universidade, a ciência e a produção científica no Brasil, no contexto histórico da ditadura militar e em particular da modernização do ensino superior empreendida no período (MUNIZ, 2008). Assim, o enfoque da análise desta conjuntura para a compreensão da gênese do campo acadêmico no Brasil, em especial do processo de reforma universitária engendrado durante a ditadura militar, se faz por ter sido este o responsável pela constituição da universidade no país, conforme o modelo norte-americano, até então o mais avançado do mundo capitalista, tendo suporte político no regime autoritário (CUNHA, 2007). Além da implantação da Reforma Universitária de 1968, ressalto como marcos históricos desta institucionalização: a criação de um setor de Ciência e Tecnologia no Brasil; a realização de mudanças na então Campanha de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), e no antigo Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq); e a criação do sistema de pós-graduação no país. Todos são relacionados, de alguma forma, com a implantação de macropolíticas científicas diretamente vinculadas ao crescimento econômico, com o intuito de comprovar a eficiência dos governos militares (MUNIZ, 2008). A partir desse histórico traço, como aponta Montagner (2007), as relações de influência e subordinação deste campo de produção simbólica em relação à estrutura do campo do poder, mostrando as linhas de força que delineiam a autonomia relativa do campo acadêmico e das ciências sociais em relação, principalmente, ao Estado, manifestando-se por meio de instituições a ele vinculadas, como as agências de fomento. O passo seguinte, segundo o autor, é delinear as relações concernentes ao âmago do espaço social estudado, ou seja, entre as posições ocupadas por seus agentes e grupos, tendo em vista que esta resulta de uma série de disputas pelo poder simbólico, o que envolve o esboço relacional da estrutura deste espaço. Para isso, realizo primeiramente uma análise da estrutura do currículo Lattes, buscando analisar, conforme a teoria de Bourdieu, cada item a ser neste preenchido pelo pesquisador (dados gerais, formação, atuação, projetos, produções, patentes e registros, inovação, educação e popularização de C&T, eventos, orientações, bancas e citações), e apresentando como dados de referência as informações disponíveis nas plataformas virtuais da Capes e do CNPq acerca da situação atual das ciências sociais quanto à sua institucionalização e produção, particularmente o chamado Documento de Área da Sociologia (2013), cuja informações resultam da avaliação, que até então era trienal, 18 empreendida pela Capes junto a todos os programas de pós-graduação existentes no país. Com base nessa análise, delineio as posições ocupadas pelos agentes e instituições dominantes, tendo em vista que resultam de uma série de disputas pelo poder simbólico, e aponto as posições relativas às instituições (universidades, programas de pós-graduação stricto sensu e lato sensu, grupos de pesquisa), eventos e produções vinculados ao ensino de sociologia, refletindo acerca das diferenças entre os espaços ocupados por estas e pelos agentes e instituições dominantes. Todavia, para além desses instrumentos, é necessário que a pesquisa apreenda o “vivido” dos sujeitos, que embora não seja a verdade completa daquilo que fazem, faz parte de sua prática. Para isso, realizo com eles entrevistas semiestruturadas, a fim de promover um exercício de objetivação quanto ao processo de institucionalização da obrigatoriedade do ensino de sociologia, aos modos como outros cientistas sociais reagiram à sua organização com vistas à defesa da disciplina, e às novas disputas advindas após a implantação desta obrigatoriedade. A respeito desse recurso metodológico, Montagner destaca que Os eventos biográficos não seguem uma linearidade progressiva e de causalidade, linearidade de sobrevoo que ligue e dê sentido a todos os acontecimentos narrados por uma pessoa. Eles não se concatenam em um todo coerente, coeso e atado por uma cadeia de inter-relações: esta construção é realizada a posteriori pelo indivíduo ou pelo pesquisador no momento em que produz um relato oral, uma narrativa. (MONTAGNER, 2007, p. 251-252). Nesta pesquisa, mediante a ressalva feita por Bourdieu, de que a abordagem por meio de histórias de vida deve se precaver da ilusão da transparência do real, evitando reduzir as relações sociais a ações de subjetividades movidas por intenções particulares, já que se estabelecem entre condições e posições sociais objetivas (BOURDIEU, 1983), esta organização dos relatos dos professores entrevistados se dá com vistas a três propósitos principais: 1) Elaborar as trajetórias acadêmicas de cada um dos cientistas sociais estudados, concebendo por trajetória, conforme a teoria de Bourdieu, a objetivação das relações entre os agentes e as forças do campo, apontando as diversas posições por eles ocupadas em diferentes estados do espaço social; 2) Construir uma análise do processo de institucionalização do ensino de sociologia enquanto objeto de disputa por diferentes agentes pertencentes ao espaço social de produção acadêmica das ciências sociais, cujos habitus são em parte constituídos por ele e que, portanto, empregam estratégias e partilham de representações engendradas fortemente por este 19 campo; 3) Abarcar as representações desses cientistas sociais sobre si mesmos e sobre o campo, compreendendo tais enunciados como tomadas de posição dos agentes em relação a seu universo de práticas sociais, em conformidade com a posição que ocupam no espaço de produção da temática e no espaço social mais amplo (HEY, 2008). 4. A Sociologia como instrumento de autoanálise O trabalho tem como finalidade, ao tomar como objeto de análise sociológica um campo de produção científica, explicitar que este, enquanto espaço social, engendra disputas acerca de um tipo específico de alvos sociais, de modo que estudar as ciências sociais por este prisma significa ter como objeto um conjunto de agentes dotados de legitimidade para objetivar o mundo social e as próprias ciências sociais, adquirida por meio de uma série de lutas acerca da verdade sobre esses espaços, bem como “(...) para saber quem, no interior desse universo socialmente mandatário para dizer a verdade sobre o mundo social, (...) está realmente (ou particularmente) fundamentado para dizer a verdade” (BOURDIEU, 2004, p. 116). Dessa forma, como assevera o autor, a análise sociológica da produção dos produtores é imperativa para as ciências sociais, sendo fundamental que aproveitemos os ensinamentos dessas ciências sobre o mundo social em que as mesmas são produzidas, a fim de melhor controlar os efeitos dos determinismos exercidos sobre esse mundo, e consequentemente, sobre elas. Como destaca Peters (2013), a sociologia de Pierre Bourdieu pode ser mobilizada como um instrumental de autossocioanálise, ou seja, um trabalho de investigação autocognoscitiva, que pode ser libertador, principalmente quando expõe à reflexão as disposições e esquemas interpretativos que nos levam a perceber como legítima, e a legitimar, nossa própria dominação. Ao contribuir com a desnaturalização, desbanalização e desessencialização de nossas relações e representações, desnudando sua realidade de arbitrariedades historicamente constituídas através de inúmeras disputas, ela pode funcionar como ferramenta de autorreflexão. Realizar uma sociologia da sociologia, e uma sociologia dos sociólogos, portanto, envolve objetivar a relação do sociólogo com seu objeto, contribuindo para que este se torne mais consciente acerca das finalidades sociais não explicitadas sob a persecução explícita de certos fins científicos (BOURDIEU, 2001a). Assim, pretendo com esta pesquisa, mediante a realização, enquanto cientista social, de um estudo sociológico das ciências sociais e de cientistas sociais, de suas 20 instituições, regras e mecanismos de controle mais ou menos explícitos, de suas disputas e representações acerca das ciências sociais e, portanto, de “ser cientista social”, empreender um esforço de autoanálise sociologicamente armada, constituindo, desse modo, uma (pequena) via de acesso a um trabalho de reaproprição (PETERS, 2013), lembrando que, como tão bem nos diz Bourdieu, “(...) a sociologia liberta libertando da ilusão de liberdade(...) ” (BOURDIEU, 2004, p. 28). 21 II. A gênese de um determinado fazer científico A ordem científica engloba, além da ciência oficial, constituída pelos recursos científicos herdados do passado – manifestos no presente como instrumentos, obras, instituições, hábitos científicos, esquemas geradores de percepção, de apreciação e ação –, o conjunto de instituições que têm por função garantir a produção e circulação dos produtos científicos, bem como a reprodução e circulação de seus produtores e consumidores (BOURDIEU, 1983). Logo, o espaço institucional que abarca os diversos agentes sociais produz algumas das propriedades fundamentais destes, e das relações de conflito que eles tecem entre si. Por esse motivo a instituição apresenta-se de forma naturalizada àqueles que dela fazem parte, pressupondo uma relação de cumplicidade ontológica entre as estruturas mentais dos agentes e as estruturas objetivas do espaço social, levando-os a desconsiderar as condições históricas e sociais que possibilitaram determinada visão de mundo e das obras culturais, percebida como óbvia (BOURDIEU, 2011), tendendo a obter deles uma relação com o campo chamada por Bourdieu de ilusio (BOURDIEU, 2005). Dessa forma, os objetivos e valores que se impõe a eles como definitivamente evidentes e necessários, constituídos na relação entre habitus e campo, por serem simultaneamente a condição e o produto do funcionamento do campo, levam ao recalque de que as instituições que fazem parte dele são resultantes de atos de instituição e legitimação historicamente estabelecidos, de forma que a ruptura com esta aparência de imutabilidade e familiaridade exige, como instrumento primordial, a construção da gênese dessas instituições (BOURDIEU, 2005). O autor ressalta que Compreender a gênese social de um campo, e apreender aquilo que a faz necessidade específica da crença que o sustenta, do jogo de linguagem que nele se joga, das coisas materiais e simbólicas em jogo que nele se geram é explicar, tornar necessário, subtrair ao absurdo do arbitrário e do não motivado os atos dos produtores e as obras por eles produzidas (...) (BOURDIEU, 2001a, p. 69). Assim, o estudo da história de um campo permite compreendê-lo enquanto constructo social, tendo em mente que as especificidades das estruturas simbólicas que o constituem são definidas pelas condições históricas de sua gênese, e que toda ação histórica envolve dois estados do social, ou seja, a história no seu estado objetivado, acumulada nas teorias, instituições e máquinas, e a história em seu estado incorporado, sob a forma de habitus. 22 De tal modo que O interesse assim definido é produto de uma determinada categoria de condições sociais: construção histórica, ele só pode ser conhecido mediante o conhecimento histórico, ex post, empiricamente, e não deduzido a priori de uma natureza trans- histórica (BOURDIEU, 2003, p. 128). É necessário, portanto, realizar a análise científica das lutas historicamente travadas no campo, que abarca o conhecimento dos modos de funcionamento e das funções das instituições que o compõem, e das posições ocupadas pelos agentes neste ou em relação a este espaço social (BOURDIEU, 1994), bem como de sua articulação com outros espaços relevantes para sua configuração. 1. Estado, regulação e institucionalização Construir teórica e metodologicamente a gênese histórica de determinado campo ou espaço social pressupõe, necessariamente, adotar determinado “recorte” ou periodização, que conforme assevera Otávio Velho (1984), jamais deve ser aceita sem crítica, pois sempre possui algo de arbitrário. Entretanto esta, para além de seu caráter contingente, representa o reconhecimento da ação de determinada força, cuja intervenção é relativamente eficaz ao agir em certo campo de forças. A periodização que assumi estabelece como marco histórico de determinado tipo de institucionalização das ciências sociais, explicitado adiante, o período imediatamente posterior a 1964, que também é adotada por outros autores, como Otávio Velho (1984), Renato Ortiz (2003), e Roberto Cardoso de Oliveira5 (1997) constituindo, de acordo com José Segatto e Edison Bariani (2010), a visão hegemônica em relação a este tema. Velho adota o ano de 1964 como recorte temporal porque este inaugura, ou ao menos simboliza, a emergência de um processo que se manifesta no domínio das ciências sociais e que tende a instaurar o que ele caracteriza como “(...) uma nova forma de dominação no campo da produção em ciências sociais” (VELHO, 1984, p. 242), em uma análise que enfatiza a “positividade” da dominação, ou seja, a compreensão dos mecanismos de poder envolvidos e da “cultura” específica originada, relativa a esta produção. Ortiz, ao empreender esta categorização, utiliza como critério o processo de profissionalização e institucionalização das disciplinas que compõem as ciências sociais, sendo a mudança acarretada a partir deste período composta por diferentes fatores, como 5 Nesse caso, o autor realiza uma periodização especificamente da disciplina de Antropologia. 23 o sistemático apoio financeiro por parte do governo, com políticas de financiamento à pesquisa por órgãos públicos, e por organizações privadas; a expansão do número de programas de pós-graduação; a instauração de novos cursos e departamentos universitários, bem como de associações científicas e profissionais; o incentivo à especialização, e a ênfase na pesquisa empírica e no desenvolvimento de uma rede institucional; o treinamento de pesquisadores no exterior; e o destaque a esta forma de prática em detrimento do sentido mais clássico de educação. Cardoso de Oliveira chama a este de período burocrático, por seu início coincidir com a instauração dos cursos de mestrado no Brasil, e com o decorrente estabelecimento de padrões organizacionais com vistas a racionalizar a formação em nível superior, tornando-se a pesquisa essencial ao adestramento dos antropólogos, e dissolvendo-se as cátedras, com o reforço dos departamentos e diminuição da influência das personalidades carismáticas, características do período anterior, iniciado no fim da década de 1940. Esse conjunto de mudanças, cuja implantação e desenvolvimento estão indissociavelmente ligados ao contexto histórico que as engendra, lançam algumas das bases institucionais que compõem tanto as coações objetivas do campo científico nacional, ou seja, as necessidades mais ou menos objetivadas e explicitadas do “jogo científico”, quanto as coações incorporadas, quer dizer, o “sentido do jogo”, distribuído entre os agentes deste espaço social de forma desigual (BOURDIEU, 2004). Dessa maneira, a opção por assumir esse período como referência para a formação das ciências sociais enquanto espaço social acadêmico no país deve-se ao início da institucionalização, nesse contexto, de diversas normas, valores e classificações que se tornam constituintes da prática científica e acadêmica, configurando significativamente as estratégias, representações e discursos dos agentes que são sujeitos da pesquisa. É necessário, entretanto, compreender que este processo também é, ele mesmo, um dos componentes de um movimento mais amplo, que envolve a criação de um setor de Ciência e Tecnologia (C&T) no Brasil. 1.1. A criação do setor de C&T e as mudanças na Capes e no CNPq Embora desde a década de 1930 já houvesse reivindicações por parte de alguns políticos, cientistas e governantes, quanto à intervenção estatal para o financiamento da pesquisa científica e da infraestrutura técnica nacional, estas só passaram a ganhar força com o advento da Guerra Fria, particularmente com o lançamento das bombas atômicas, 24 que no Brasil tiveram o efeito de alinhar a política científica com os interesses militares, estreitando as relações entre ciência, política e poder (MUNIZ, 2008). Isso fez com que o domínio de minerais considerados estratégicos, juntamente com a física nuclear, tornassem-se questões de segurança nacional, estimulando a valorização da ciência e da tecnologia por parte do Estado. Este, com a implantação da ditadura militar, passou a apoiar o desenvolvimento do setor de C&T, associado ao projeto de industrialização nacional mantido pelos militares. Foi no governo de Emílio Garrastazu Médici (1969-1974) que o objetivo de promover o “salto tecnológico” do país se associou à política científica, passando a tecnologia e a ciência a serem vistas como elementos essenciais à construção da nação como potência. Todavia, foi durante o governo de Ernesto Geisel (1974-1979) que de fato se iniciou a organização de um sistema de planejamento governamental para o setor. Assim, o campo de C&T constituiu-se por meio da aliança entre atores originários dos campos científico (pesquisadores de universidades e centros de pesquisa) e tecnológico (tecnólogos e empresários), com habitus diferenciados, que se articularam com base na concepção dos governos militares, ao aliarem, a um sofisticado sistema composto por agências governamentais e instituições de pesquisas, um discurso ideológico acerca da importância da tecnologia e da ciência para o desenvolvimento e progresso nacional (MUNIZ, 2008). Segundo Simon Schwartzman (2001), a união entre os militares, e os intelectuais e cientistas, nesse período, foi gerada pela crença em comum nos poderes da ciência e da tecnologia, aliados ao nacionalismo. Esta, porém, não se deu de forma pacífica, implicando ao mesmo tempo o exílio de diversos acadêmicos e a perda de seus cargos, e a criação de novas instituições científicas e de pesquisa, envolvendo a negociação entre oficiais de segurança e pesquisadores que muitas vezes não eram submissos ao autoritarismo militar. Ana Maria Fernandes (2000) aponta que o regime militar agiu de duas formas opostas em relação à comunidade científica, embora possivelmente com o mesmo propósito. Simultaneamente, este a coagiu, reprimindo e expulsando alguns de seus mais importantes membros, e apoiou a ciência e a tecnologia como nunca até então havia ocorrido no país. Para a autora, os militares careciam de legitimidade ideológica, que não era possível tendo como base apenas a “segurança nacional”, de modo que se tornou necessário incorporar a ciência e a tecnologia como um novo elemento legitimador do 25 regime, incluindo-as como um de seus programas principais e associando-as às ideologias centrais de “nacionalismo” e “desenvolvimento”. Como assevera Nancy Muniz, A política de C&T é priorizada numa vinculação direta com o crescimento econômico que comprovava a eficiência dos governos militares. Tal política se resumia num conjunto de medidas financeiras e institucionais, revelando a base tecnocrática que lhe dava sustentação. É esse arcabouço jurídico- normativo que, juntamente com os discursos dos governantes, criou o campo simbólico de C&T no Brasil, tendo o CNPq por locus de agregação e discussão (MUNIZ, 2008, p. 68). Desse modo, o então Conselho Nacional de Pesquisa, existente desde 1951, tornou-se o órgão coordenador desse novo campo, sendo especialmente reconfigurado em 1975 para coordenar as ações políticas de desenvolvimento do setor, sob a jurisdição do Ministério de Planejamento. Seu estabelecimento e ampliação, juntamente ao da Campanha de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), no mesmo ano, constituem marcos essenciais ao surgimento de um campo acadêmico no Brasil. O Conselho Nacional de Pesquisa, resultante da convergência de interesses entre os campos citados acima, tinha como objetivo inicial, segundo Carlos Benedito Martins (2005), responder pelas atividades relativas à produção brasileira de energia nuclear, promovendo a sua capacitação tecnológica e científica por meio da qualificação de recursos humanos para a pesquisa, dado o número reduzido de cientistas e pesquisadores então existentes. Suas ações incluíam a “concessão de bolsas de estudo para formação e aperfeiçoamento de pesquisadores, apoio à realização de reuniões científicas nacionais e internacionais, apoio ao intercâmbio científico no país e no exterior” (CNPQ apud MUNIZ, 2008, p. 61). Em 1974, ele se tornou o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, tendo como nova missão coordenar, formular e implementar a política científica e tecnológica nacional, e seu planejamento orçamentário, papel que desempenha até hoje. O CNPq, portanto, pode ser concebido como (...) um órgão articulador e mediador das demandas do SNDTC (Sistema Nacional de Tecnologia e Ciência) ou, ainda, como mediador de embates num campo de forças políticas, muitas vezes adversas e concorrentes, como foi o caso da comunidade científica diante das propostas de desenvolvimento tecnológico por parte dos governantes (MUNIZ, 2008, p. 71). 26 Já a Capes tem sua origem na formulação de uma comissão, presidida por Simões Filho, então Ministro da Educação, para promover a Campanha de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, sendo coordenada por Anísio Teixeira até 1963. Seu principal objetivo era a garantia de pessoal especializado em quantidade e qualidade suficientes, com vistas ao atendimento dos empreendimentos públicos e privados ligados ao desenvolvimento social e econômico do Brasil no período. Sua criação foi uma iniciativa estatal voltada para equipar o país de órgãos e instrumentos reguladores de diversos aspectos da vida nacional, por meio de políticas destinadas à sua industrialização (MARTINS, 2005). Dentre as tarefas assumidas pelo órgão, estavam a promoção do estudo das necessidades do país, a mobilização de recursos para oferecer treinamentos para suprir as deficiências que fossem identificadas, a promoção do aproveitamento de oportunidades de aperfeiçoamento de programas de assistência técnica da ONU, e de acordos bilaterais firmados pelo governo, e a expansão e instalação de centros de aperfeiçoamento e estudos pós-graduados (MARTINS, 2003). A Capes, em 1964, transformou-se em Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, ao absorver outros programas do Ministério da Educação, de modo que ela, assim como o CNPq e outras agências de fomento, foram passando por um processo de definição de suas identidades institucionais, que envolveu maior clareza sobre suas funções e prioridades de investimento. Esta passou a privilegiar uma interlocução mais institucional com as universidades, subsidiando o Ministério da Educação na formulação de políticas para a pós-graduação, além de coordenar a avaliação de seus cursos, e estimular a formação de recursos humanos altamente qualificados para a docência nas universidades, a pesquisa, e o trabalho nos setores público e privado (MARTINS, 2005). Ao longo de sua trajetória, a Capes foi construindo sua identidade institucional tomando como referência a construção da pós- graduação, tanto em termos de formulação, como também na implementação e fomento do sistema, de tal modo que se transformou efetivamente na principal agência de fomento do sistema (MARTINS, 2005, p. 29). Assim, os papeis assumidos por estas duas agências de fomento, e sua relevância crescente no setor de C&T, por sua vez, são elementos centrais de um processo amplo, que implantou, por meio da ação estatal, mudanças significativas em toda a estrutura universitária, promovendo a centralidade da realização de pesquisas, associada à 27 preponderância dessas e de outras agências, como as Fundações de Apoio à Pesquisa (FAPs) estaduais, e a Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP). Este processo foi a Reforma Universitária, realizada em 1968, cujos alicerces se encontram em períodos anteriores. 1.3. A Reforma Universitária e a pós-graduação As primeiras universidades brasileiras eram resultantes da reunião formal de institutos isolados de ensino superior criados pelo príncipe D. João, e seu caráter fragmentário recebia críticas desde o Império (CUNHA, 2007). Nos anos 1920, por exemplo, iniciou-se uma série de manifestações que defendiam a criação de universidades capazes de promover a pesquisa e de abrigar a ciência e os cientistas. O Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova recomendava que fossem instituídas universidades que integrassem o ensino e a pesquisa, tendo esse movimento assumido, entre outras iniciativas, a liderança para a criação da Capes, com vistas a renovar o ensino superior. Fernando de Azevedo, um de seus principais integrantes, buscava a integração da universidade, e a ultrapassagem das limitações decorrentes da especialização de seus objetivos, circunscritos à formação profissional. O modelo híbrido de ensino superior, concebido na década de 1930, e que tentava conciliar a tendência tradicional, representada pelas escolas voltadas à formação de profissionais liberais, e a tendência inovadora, voltada para transformar a universidade em centro de pesquisa científica, vigorou até a realização da Reforma Universitária, de modo que com exceção da Universidade de São Paulo (USP), a pesquisa era realizada em unidades dispersas, que dependiam muito da atuação de professores estrangeiros e de brasileiros formados no exterior (DURHAM, 2005). A essa antiga crítica somou-se, durante a república populista, a insatisfação das camadas médias que, diante da crescente inviabilização dos pequenos negócios, passaram a defender cada vez mais a necessidade de que seus filhos cursassem o ensino superior como forma de garantir um bom futuro. Isso acarretou o crescimento acelerado da procura por esse nível de ensino, que teve como contrapartida, além da falta de vagas correspondentes a essa demanda, a desvalorização econômica e simbólica dos diplomas, resultante da disparidade entre o crescimento de profissionais diplomados e a oferta de postos equivalentes no mercado de trabalho, gerando o aumento do desemprego e do subemprego. Esse processo fez com que o movimento estudantil assumisse como pauta a 28 reforma do ensino superior, para que este atendesse às demandas da sociedade e, em última instância, contribuísse para sua transformação (CUNHA, 2007). Dessa forma, durante os primeiros anos da década de 1960 se constituiu um movimento amplo que tinha por objetivos a reforma e a modernização do ensino superior, e que contou com a participação ativa de estudantes, professores e pesquisadores, canalizando as aspirações de cientistas cuja formação havia se realizado no exterior, e que pretendiam transformar as universidades em espaços de produção e divulgação do conhecimento científico, integrando pesquisa e formação profissional (MARTINS, 2003). Data deste momento, igualmente, a formulação de uma doutrina sistemática sobre a reforma universitária. Esta se exprime por meio de dois decretos-leis e pela Lei 5.540/68 (Lei da Reforma Universitária), cujo anteprojeto foi feito por um grupo de trabalho composto por membros do Conselho Federal de Educação e por professores universitários que, de acordo com Cunha (2007), tinham em Johann Gottlieb Fichte o embasamento filosófico de suas ideias, quanto à limitação da autonomia universitária pelo Estado e aos princípios de organização desta, embora este não tenha sido explicitado no relatório que produziram. Esse pensador, juntamente com Hegel, Schelling, Schleiermacher e Humboldt, escreveu entre 1802 e 1816 sobre a ideia de universidade e sua realização, produzindo talvez “ (...) a mais densa reflexão sobre a instituição universitária, desde sua criação no século XVIII até os dias de hoje” (CUNHA, 2007, p. 17). Fichte defendia, nesta reflexão, que cada professor deveria ser detentor do monopólio de uma matéria, estando eles e os estudantes sujeitos a um rígido esquema hierárquico e disciplinar, controlado por instâncias de supervisão e julgamento, sendo estas propostas baseadas em princípios de economia – racionalização dos meios em relação aos fins e eliminação da repetição e do desperdício; de utilidade – ensino voltado à aplicação prática do saber; e de estruturação do múltiplo – discriminação dos elementos e de sua disposição uns em relação aos outros. A modernização do ensino superior no Brasil em direção ao modelo norte- americano, cuja estrutura é compatível com as noções defendidas por Fichte, estava sendo buscada desde fins da década de 1940, por professores, estudantes, e principalmente por administradores educacionais, consistindo na mudança significativa quanto à organização de recursos materiais e humanos da universidade. Ela pleiteava que o conhecimento a ser ensinado fosse dividido em unidades chamadas disciplinas, cuja associação daria origem 29 aos departamentos, e que o currículo passasse a ser contabilizado por meio de créditos, relativos ao cumprimento, pelos estudantes, de determinadas disciplinas. Estes princípios aparecem formalmente no Decreto-lei 53/66, que veda a duplicação de meios para fins idênticos ou equivalentes nas universidades; determina a unidade entre ensino e pesquisa, obrigando que ensino e pesquisa básicos formassem um sistema comum para toda a universidade; e define a criação de Faculdades, Centros ou departamentos de Educação, unidades voltadas para a formação de professores para o ensino básico e de especialistas em pedagogia. Em 1968, com a conclusão do relatório do Grupo de Trabalho da Reforma Universitária, feito por uma comissão mista com membros da Agência norte-americana de Desenvolvimento Internacional (USAID) e do Ministério da Educação do Brasil, este afirma que, apesar de alguns progressos, a estrutura universitária brasileira ainda era anacrônica e não estava apta a atender as necessidades e desafios inerentes ao progresso da ciência e da conjuntura socioeconômica do país, tendo este acarretado a Lei da Reforma Universitária, que definiu que a universidade se tornava a forma de organização por excelência do ensino superior, e fixou suas normas de organização e funcionamento (MARTINS, 2003). Desse modo, foram extintas as cátedras vitalícias e criados os departamentos, os cursos básicos foram implantados, foi instituída a carreira docente e o regime de matrícula por disciplinas (regime de créditos), e houve a racionalização da produção, nas universidades federais, em termos de ensino, assumindo a reforma universitária, conforme Cunha (2000), um caráter essencialmente organizacional, com clara inspiração economicista. A criação das Faculdades de Educação e a fragmentação das Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras acarretou a autonomização de suas diferentes seções, que cresciam e se diferenciavam pelo desenvolvimento do campo científico, enquanto a implantação de campus nas regiões periféricas das cidades passou a ser recomendada, constituindo condição necessária à eliminação da duplicação de meios para fins idênticos ou semelhantes, diminuindo os custos médios das matrículas e contribuindo para a rápida expansão do ensino superior (CUNHA, 2000). Dessa maneira, o governo militar simultaneamente implantou um projeto defendido pela intelectualidade brasileira e limitou as possibilidades de os universitários exercerem a crítica social dentro dessas instituições, modernizando o ensino superior por meio de sua subordinação à empresa capitalista, tornando hegemônicas a organização e a avaliação universitárias com base na produtividade. Se por um lado professores e 30 pesquisadores experientes foram compulsoriamente aposentados, docentes foram impedidos de prosseguir na carreira, reitores foram substituídos por interventores nomeados pelo governo, a autonomia administrativa e financeira foi restringida (sendo os currículos, programas e bibliografias das disciplinas controlados por policiais), e as entidades estudantis tiveram suas ações extremamente limitadas, por outro, ness