unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP NATÁLIA CRISTINA LOREVICE UUUSSSOOOSSS NNNÃÃÃOOO---PPPAAADDDRRRÃÃÃOOO DDDAAASSS EEESSSTTTRRRAAATTTÉÉÉGGGIIIAAASSS DDDEEE RRREEELLLAAATTTIIIVVVIIIZZZAAAÇÇÇÃÃÃOOO NNNOOO PPPOOORRRTTTUUUGGGUUUÊÊÊSSS BBBRRRAAASSSIIILLLEEEIIIRRROOO::: hipercorreção e estilo ARARAQUARA – S.P. 2012 NATÁLIA CRISTINA LOREVICE UUUSSSOOOSSS NNNÃÃÃOOO---PPPAAADDDRRRÃÃÃOOO DDDAAASSS EEESSSTTTRRRAAATTTÉÉÉGGGIIIAAASSS DDDEEE RRREEELLLAAATTTIIIVVVIIIZZZAAAÇÇÇÃÃÃOOO NNNOOO PPPOOORRRTTTUUUGGGUUUÊÊÊSSS BBBRRRAAASSSIIILLLEEEIIIRRROOO::: hipercorreção e estilo Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) apresentado ao Conselho de Curso de Letras, da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Bacharel em Letras. Orientador: Prof.. Dra. Angélica T. C. Rodrigues ARARAQUARA – S.P. 2012 Lorevice, Natália Cristina Usos não-padrão das estratégias de relativização no português brasileiro: hipercorreção e estilo / Natália Cristina Lorevice – 2012 41 f. ; 30 cm Trabalho de conclusão de curso (Graduação em Letras) – Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras, Campus de Araraquara Orientador: Angélica T. C. Rodrigues 1. Mudança linguística. 2. Hipercorreção. 3. Pronome relativo. 4. Estilo. I. Título. NATÁLIA CRISTINA LOREVICE UUUSSSOOOSSS NNNÃÃÃOOO---PPPAAADDDRRRÃÃÃOOO DDDAAASSS EEESSSTTTRRRAAATTTÉÉÉGGGIIIAAASSS DDDEEE RRREEELLLAAATTTIIIVVVIIIZZZAAAÇÇÇÃÃÃOOO NNNOOO PPPOOORRRTTTUUUGGGUUUÊÊÊSSS BBBRRRAAASSSIIILLLEEEIIIRRROOO::: hipercorreção e estilo Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) apresentado ao Conselho de Curso de Letras, da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Bacharel em Letras. Orientador: Prof.. Dra. Angélica T. C. Rodrigues Data da defesa/entrega: ___/___/____ MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientador: Prof. Dra. Angélica T. C. Rodrigues Universidade Estadual Paulista - Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara Membro Titular: Prof. Dra. Gládis Massini-Cagliari Universidade Estadual Paulista -Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara Membro Titular: Prof. Me. Maridelma Laperuta Martins Universidade Estadual do Oeste do Paraná UNIOESTE – Campus de Foz do Iguaçu Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara Aos meus pais e irmãos, a quem tanto amo. AGRADECIMENTOS Aos meus pais, por terem me dado a vida, pelo seu amor, por terem me incentivado ao estudo e por estarem sempre ao meu lado nos momentos de decisões e incertezas. À minha orientadora, pela oportunidade que me deu, pela confiança que depositou em meu trabalho, pela paciência que sempre demonstrou em nossas reuniões e por todo o conhecimento que me transmitiu. Obrigada! RESUMO O presente trabalho focaliza o uso atual do pronome relativo qual e variantes (o/os/a/as/ qual/quais, preposicionados ou não) no português brasileiro, detendo-se principalmente sobre o fenômeno de hipercorreção. Como base teórica, utilizou-se o estudo de William Labov acerca do fenômeno e também as regras de emprego desse pronome presentes tanto nas gramáticas tradicionais quanto nas gramáticas de perspectiva linguística. Foi realizada uma análise qualitativa de um corpus de língua escrita com a intenção de descrever os diversos usos desse pronome, buscando suas possíveis motivações, tendo sido encontrados também diferentes tipos de ocorrências de hipercorreção, fato que levou a proposição de uma escala de usos desse pronome relativo, que revela uma perda cada vez maior de suas funções rumo ao uso como índice de prestígio. Discute-se ainda o fator estilístico como um provável motivador desse fenômeno. Palavras-chaves: Mudança linguística; Hipercorreção; Pronome relativo; Estilo ABSTRACT This study focuses on the current use of the relative pronoun qual and variants or alternatives (o/os/a/as/ qual/quais, preceded or not by prepositions) in Brazilian Portuguese concerning mainly on the phenomenon of hypercorrection. As a theoretical basis, it was used the study of William Labov about the phenomenon and also the rules of use of this pronoun present in both traditional grammars and linguistic studies. It was performed a qualitative analysis of a corpus of written language with the intention of describing the different uses of the pronoun, and looking for their possible motivations. There were also found different types of occurrences of hypercorrection, which has led to propose a scale of uses of this relative pronoun, which reveals an increasing loss of its functions towards an use as an index of prestige. It discusses also the stylistic factor as a potential motivator of this phenomenon. Keywords: Linguistic change; Hypercorrection; Relative Pronoun; Style SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 09 2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA .................................................................................... 12 2.1 O fenômeno de hipercorreção ........................................................................................ 12 2.2 As estratégias de relativização ....................................................................................... 15 2.2.1 A abordagem das gramáticas tradicionais................................................................. 15 2.2.2 A perspectiva lingüística .............................................................................................. 20 3 METODOLOGIA .............................................................................................................. 23 4 ANÁLISE DOS DADOS .................................................................................................... 25 4.1 Formas padrão ................................................................................................................ 27 4.2 Formas aceitas como padrão .......................................................................................... 27 4.3 Formas não-padrão ......................................................................................................... 29 4.3.1 Casos de regência ......................................................................................................... 30 4.3.2 Casos de concordância ................................................................................................. 32 4.3.3 Casos de substituição do pronome cujo...................................................................... 32 4.3.4 Casos que não seguem nem a regência, nem a concordância .................................. 33 4.3.5 Casos de tentativa de organização da escrita e de coesão ........................................ 34 4.4 Hipercorreção: uma questão de estilo? ......................................................................... 35 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 39 REFERÊNCIAS .................................................................................................................... 41 9 1 INTRODUÇÃO O presente trabalho tem por objetivo estudar o uso do pronome relativo qual e variantes (o/os/a/as/ qual/quais, preposicionados ou não) no português brasileiro e, particularmente, o fenômeno de hipercorreção a ele associado. De acordo com Neves (2000), o pronome relativo é aquele utilizado para introduzir uma oração adjetiva, isto é, uma oração de função adnominal. Além disso, partindo do exemplo: “Mas a mulher que Aristófanes defende não tem direito à paixão (ACM)” (NEVES, 2000, p.365), ela explica que o pronome relativo, nesse caso que, ocupa a mesma posição 1 que seria ocupada pelo constituinte que ele representa. Assim, por meio de um quadro, ela mostra que esse pronome é o objeto direto de “defende”, assim como o seria “a mulher”, constituinte por ele representado. Portanto, ele exerce uma função sintática dentro da oração adjetiva que introduz. As estratégias de relativização no português brasileiro tem sido alvo de estudos como os de Tarallo (1983 apud Bagno, 2002) e de Bagno (2002; 2011), que explicitam dois recursos diferentes, além da relativa padrão descrita acima. São elas: a relativa copiadora e a relativa cortadora. Esta recebe esse nome, pois a preposição regida pelo verbo é omitida na oração adjetiva. Em: “Chocolate é o doce que eu mais gosto”, por exemplo, omite-se a preposição de, regida pelo verbo gostar. Aquela, por outro lado, ocorre quando o termo que seria retomado pelo pronome relativo é repetido pelo uso de um pronome-cópia, como no exemplo do próprio Bagno: “Esse é um filme que eu gosto muito dele”. Esta última estratégia, segundo ele, tem substituído o pronome cujo, que está desaparecendo do português do Brasil. Ainda acerca das orações adjetivas, o estudioso explica que elas correspondem a um mecanismo de síntese, uma vez que reúnem duas informações diferentes e, nesse processo, cabe ao relativo exercer as duas funções já apontadas acima. Tal mecanismo, no entanto, é contrário à natureza analítica do português brasileiro, como defende o linguista: Há algumas décadas, os linguistas brasileiros vêm se dedicando ao estudo dos pronomes relativos no PB, pronomes que, como vimos, já perderam sua função pronominal e se transformaram em meros conectivos. Por isso, repetimos, é muito importante dedicar especial atenção às construções relativas, pois elas representam um “corpo estranho” na nossa língua: são um mecanismo sintético, numa língua predominantemente analítica. (BAGNO, 2011, p. 972) 1 Concordamos com a autora que o pronome relativo assuma a função sintática do constituinte que ele representa na oração adjetiva. Discordamos, porém, no que se refere à questão da posição, pois a posição de um objeto direto, como é o caso do exemplo dado, deveria ser depois do verbo e não antecedendo o sujeito, como ocorre nessa oração adjetiva: “que Aristófanes defende”. 10 Diferentemente desses estudos, que tratam das estratégias relativas de um modo geral, pretendemos iniciar aqui um estudo que focalize de modo particular o uso do pronome relativo qual no português brasileiro atual. Embora não seja uma forma que ocorra largamente na fala espontânea, ao contrário de cujo esse pronome ainda é utilizado na língua, especialmente em textos escritos. No entanto, nem todos os empregos desse pronome correspondem ao uso considerado padrão. Assim, não são raras as ocorrências de construções como a que segue, em contextos de menor formalidade, como blogs : (1) Diga 5 coisas das quais você não consegue viver !? Para mim é : Livros,Computador,Coca-Cola,Oxigênio e Comida Disponível em Acesso em: 07 out.2012 Em Bagno (2011, p. 970-2), encontramos a referência a alguns tipos de hipercorreção associados a esse pronome. São eles: a falta de percepção do caráter variável do pronome; o emprego de o qual como sujeito quando não existe possibilidade de ambiguidade; o uso desnecessário de o qual como objeto direto, a utilização do pronome sem a preposição regida pelo verbo ou nome retomado pelo relativo e uso de o qual como reorganizador do discurso, um marcador conversacional, caso em que ele não atua como pronome. Abaixo um exemplo deste último caso, dado pelo autor, seguido de uma reescrita proposta por ele, conforme o uso padrão: “*cobrança de serviço o qual foi dito que não seria cobrado → cobrança de serviço que disseram que não seria cobrado” (BAGNO, 2011, p.972). Diferentemente desse trabalho, em que todos os exemplos apresentam a forma o qual, no masculino singular, focalizaremos neste estudo a hipercorreção em construções do tipo preposição + qual e suas variantes de gênero e de número, com a intenção de observar e descrever esses usos, verificando semelhanças e/ou diferenças, de modo a expandir o estudo sobre esse fenômeno. Na seção 2, trataremos da fundamentação teórica utilizada neste trabalho. Apresentaremos inicialmente a teoria de Labov sobre a hipercorreção, a fim de explicitar as características do fenômeno estudado e, em seguida, descreveremos as regras acerca do emprego do pronome relativo qual presentes nas gramáticas tradicionais e em gramáticas de perspectiva linguística, como forma de comparação. Na seção 3, apresentaremos a metodologia utilizada para a escolha do corpus e para a coleta dos dados utilizados nesta pesquisa. A seção 4 tratará da análise dos dados presentes no corpus utilizado, em particular daqueles que correspondem ao fenômeno estudado. Pretendemos descrever os usos http://br.answers.yahoo.com/question/index?qid=20120919150910AA5AP5P 11 encontrados e discutir as possíveis motivações para o fenômeno. Finalmente, apresentaremos as considerações finais. 12 2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA Tendo em vista que o foco deste trabalho é a hipercorreção associada ao emprego do pronome relativo qual, nossa pesquisa se baseou no estudo do sociolinguista William Labov, de 1972, que descreveu e analisou esse fenômeno na comunidade de fala de Nova York. Na primeira parte desta seção, apresentaremos a sua teoria sobre o assunto, de modo que possamos esclarecer em que consiste a hipercorreção e os fatores nela envolvidos. Considerando que esse fenômeno diz respeito a um emprego que se distancia do uso padrão de uma determinada estrutura, faremos, na segunda parte desta seção, uma exposição das regras específicas de uso do pronome qual, prescritas inicialmente pelas gramáticas tradicionais e, em seguida, pelas gramáticas de perspectiva linguística para mostrar o que consideram como uso padrão e para verificar se esses materiais contribuem para a compreensão do emprego padrão dessa estrutura relativa. 2.1 O fenômeno de hipercorreção Ao estudar a mudança linguística, na obra Padrões sociolinguísticos, de 1972, William Labov analisou um importante fenômeno que denominou de hipercorreção. O autor chegou a esse conceito observando, entre outros, a postura dos falantes da comunidade de fala de Nova York em relação ao uso do r. Esse comportamento diferia do comportamento regular apresentado, por exemplo, para o uso da forma th, segundo o qual os falantes da classe mais alta eram os que faziam um uso mais elevado desse traço de prestígio em contextos mais formais. Por meio de análise quantitativa, Labov (2008) 2 constatou que r é um marcador de prestígio do grupo social de status mais elevado, pois, em contextos casuais, ele só era usado significativamente por essa classe social. No entanto, os dados mostraram que, nos contextos mais formais, a classe média baixa apresentou um aumento no uso de r, superando os valores de uso da classe mais elevada. Para descrever este fenômeno, usaremos o termo hipercorreção, já que os falantes da classe média baixa vão além do grupo de status mais elevado em sua tendência a usar as formas consideradas corretas e apropriadas para estilos mais formais. (Trata-se, é claro, de uma extensão do uso habitual do termo para indicar uma aplicação equivocada de uma regra aprendida imperfeitamente, como na marcação de caso hipercorrigida em Whom did you say is calling?*). (LABOV, 2008, p. 155, grifos do autor). 2 Trata-se do mesmo estudo de 1972, publicado em português em 2008 e corresponde à versão utilizada neste trabalho. 13 Esse desvio, conforme demonstra o linguista, não era um caso isolado, mas ocorria também no emprego de outras estruturas. Os falantes da classe média baixa exibiam maior tendência a evitar traços estigmatizados como a forma alta das vogais eh e oh em contextos mais formais, ultrapassando novamente a classe mais alta. Em sua pesquisa, Labov (2008) criou métodos para medir as reações subjetivas inconscientes dos falantes aos usos individuais dessas variáveis fonológicas. Os resultados por ele obtidos demonstraram que os indivíduos que apresentavam um maior uso de um traço estigmatizado na fala casual eram os que mostravam as respostas mais negativas, em relação a esse uso, na avaliação que faziam da fala de outros. Assim, a avaliação negativa do uso de vogais altas oh e eh feita pela classe média baixa é maior que a da classe média alta, assim como a avaliação positiva do uso de r, traço considerado de prestígio. A autoavaliação, por sua vez, mostrou que os falantes percebem a fala que desejariam ter produzido e não a sua fala real. Esse teste de auto-avaliação mostra bem claramente que o extraordinário consenso na reação subjetiva à fala dos outros não corresponde a uma percepção acurada da produção lingüística do próprio informante. Pelo contrário, os informantes identificavam sua própria fala com aquelas normas subjetivas que governavam a direção da variação estilística. Por exemplo, os informantes em sua maioria se identificaram como usuários das variantes de (eh) e (oh) mais baixas do que sua própria produção lingüística, mesmo nos estilos mais formais. (LABOV, 2008, p.161). De acordo com o estudioso, esses comportamentos demonstraram que os falantes da classe média baixa apresentavam uma grande insegurança linguística. Assim, embora o desagrado em relação à própria fala fosse geral entre os nova-iorquinos, que procuravam mudar conscientemente o seu modo de falar, entre os falantes nova-iorquinos de classe média baixa, esse desagrado era ainda maior. Para observar a forma como a mudança linguística afeta as variáveis fonológicas, Labov (2008) também analisou a sua distribuição por faixas etárias. Em situações normais, os falantes mais velhos conservam suas formas de prestígio mais antigas, aquelas consolidadas durante sua juventude, enquanto os mais jovens fazem uso de estruturas de prestígio mais novas. Desse modo, ao observar a fala de indivíduos mais velhos em um dado momento, tem- se acesso às estruturas de um período anterior ao momento estudado, perspectiva de análise denominada “mudança em tempo aparente”. Esse padrão foi verificado, no que diz respeito aos falantes de status mais elevado. No caso da classe média baixa, por sua vez, os falantes mais velhos e mesmo os de meia-idade utilizavam as formas mais novas de prestígio, no caso, o r ultrapassando em seu uso os jovens 14 de sua classe e mesmo os da classe mais alta. Havia, portanto, uma inversão: enquanto houve um grande aumento no uso dessa forma entre os jovens da classe média alta, foi entre os falantes velhos das classes mais baixas que esse aumento se verificou. Tal fato, de acordo com o estudioso, é explicado pela situação de grande insegurança linguística. O estudo em questão mostra que a pronuncia do r na região de Nova York é uma questão recente. Para todos os informantes da pesquisa, essa era uma forma que tinha sido adquirida num período posterior ao da consolidação de sua fala primária. A intenção de Labov (2008) era, pois, descobrir como esse uso tinha se estabelecido como padrão de fala. Labov (2008) explica que há uma sequência no desenvolvimento das estruturas linguísticas pelos falantes. Ela é iniciada por volta dos 2 ou 3 anos de idade, sendo influenciada pelos pais; na fase pré-adolescente, dos 4 aos 13 anos, sua fala passa a ser regulada pelos amigos de sua idade, com quem convive. Afirma ele: Esses são os companheiros capazes de eliminar, por suas pressões, quaisquer desvios do padrão dialetal do grupo. Parece que o período da pré- adolescência é a idade em que se firmam os padrões automáticos da produção verbal: em regra, quaisquer hábitos adquiridos depois deste período são conservados por audiomonitoramento, bem como pelos padrões de controle da produção automática. (LABOV, 2008, p.168) No início do ensino médio, o jovem entra em contato com as normas avaliativas que tornam os indivíduos conscientes do valor social de sua fala e da dos demais, processo que é finalizado por volta dos 17 ou 18 anos. Também nessa época, (16 ou 17 anos) é que os jovens começam a ser capazes de utilizar as formas de prestígio. Os jovens da classe média alta adquirem uma segurança no uso dessas formas que, dificilmente será adquirido pelos falantes de classe mais baixa. O fato de os falantes de meia idade procurarem mudar a sua fala monitorada, tentando adequá-la às formas de prestígio, comprovaria essa hipótese. Apenas os falantes universitários, por conviverem com outros falantes de prestígio e serem por eles avaliados é que conseguem manter um domínio mais consistente dessas normas. Os estudos mostraram que crianças de classe média alta apresentam taxas de aquisição das normas sociolinguísticas mais altas que as de classe média baixa e as demais. Isso significa dizer que, quando adquirem um bom conhecimento dessas normas, as crianças de classe inferior já consolidaram seu vernáculo básico e não conseguirão alterá-lo o suficiente para fazer um uso consistente das formas prestigiadas. O fato de o período de aquisição das formas primárias de fala estar separado por quatro ou cinco anos do período de aquisição das normas sociolinguísticas fazia pensar em como seria possível essa solidificação do uso de r, tanto em estilo cuidado quanto em estilo 15 casual. O natural seria que ela ficasse restrita à classe média alta e que não fosse adquirida após a pré-adolescência. A explicação de Labov (2008) para essa rápida mudança, a introdução de r no padrão de fala da comunidade de Nova York, é o fenômeno da hipercorreção. A utilização, pelos falantes de meia idade da classe média baixa das formas de prestígio dos falantes mais jovens, acelerou a introdução desse traço de prestígio. Ao invés de se propagar lentamente de uma geração à outra, da classe mais alta para as mais baixas, esse traço de prestígio passou a estar presente na vida do jovem de classe média baixa, tanto no convívio com aqueles que frequentavam a faculdade, quanto na fala de seus pais e professores em contextos formais. Embora a fala dos mais velhos possa não exercer muita influência sobre a fala dos jovens, o uso repetido desse traço, pelos pais com crianças que estão adquirindo a linguagem poderia levar a um emprego espontâneo e consistente dessa estrutura por parte delas, no futuro. Assim, em gerações seguintes esse traço seria introduzido desde cedo na fala das crianças. Desse modo, o linguista deixa claro o papel do fenômeno de hipercorreção como elemento difusor no processo de mudança linguística. Neste trabalho, veremos que o fenômeno de hipercorreção visível no uso do pronome qual e variantes tem provocado uma mudança no uso de pronome relativo para um simples conectivo e um índice de formalidade e prestígio. 2.2. As estratégias de relativização Apresentaremos a seguir as regras trazidas por gramáticas tradicionais e por gramáticas de perspectiva linguística para o uso do pronome relativo qual. Embora possamos fazer referência a alguma regra geral, optamos por focalizar principalmente aquelas que se referem diretamente a esse pronome, uma vez que é ele o objeto de estudo deste trabalho. 2.2.1 A abordagem das gramáticas tradicionais Faremos nesta seção um resumo das regras apresentadas pelas gramáticas tradicionais para o emprego do pronome relativo. Como mencionado anteriormente, o uso dessa estrutura corresponde a um mecanismo de certa complexidade, um mecanismo de síntese. De modo geral, o pronome relativo consiste em uma estratégia coesiva por meio da qual é possível unir orações, evitando repetições. Ao fazer isso, o pronome, item gramatical, que não possui um significado próprio, exerce a função do item que está substituindo. Para fazer isso e/ou para compreender uma oração relativa, é necessário que o falante realize o que podemos chamar de 16 dois movimentos: um para trás, para verificar o elemento referido pelo pronome e outro para frente, uma vez que deve prever antecipadamente a regência do verbo da oração adjetiva. O fato de constituir uma estratégia coesiva faz com que esse recurso seja ainda de grande importância na escrita. Por outro lado, sua relativa complexidade torna necessário o conhecimento de sua estrutura e uso. Considerando que as gramáticas constituem um possível material de consulta para os falantes e especialmente para os professores, pretendemos mostrar qual a abordagem que fazem desse assunto e se, de fato, contribuem para a compreensão desse mecanismo. Por essa razão, focalizaremos as regras referentes ao pronome em estudo. Quando necessário para maior clareza, apresentaremos exemplos retirados das gramáticas e, eventualmente, também de nosso corpus, como forma de comparação ou contraste. As gramáticas aqui analisadas foram: Moderna gramática portuguesa (BECHARA, 2009), Nova gramática do português contemporâneo (CUNHA; CINTRA, 1985), Novíssima gramática da língua portuguesa (CEGALLA, 1987) e Gramática mínima: para o domínio da língua padrão (ABREU, 2003). De modo geral, essas obras tratam dos seguintes assuntos relativos ao tema: o que são os pronomes relativos, sua classificação, a natureza de seus antecedentes, as funções sintáticas que podem assumir e o emprego desses pronomes. Além disso, eles também são citados quando os autores tratam das orações subordinadas adjetivas, seu contexto de ocorrência. Todas elas falam sobre sua função anafórica e, com exceção da de Cegalla (1987), sobre a função sintática que exercem na oração que introduzem, condição que os diferencia de uma conjunção. É importante destacar que, em todas elas, a grande maioria dos itens discutidos traz exemplos apenas com o pronome que e, por vezes, com os pronomes quem e onde. O pronome qual é mencionado somente como um substituto de que em duas situações principais: quando seu antecedente estiver distante, podendo causar ambiguidade, ou quando o pronome vier precedido por determinadas preposições. No primeiro caso, não contemplado por Cunha e Cintra (1985), podemos citar um exemplo de Bechara: O guia da turma, o qual nos veio visitar hoje, prometeu-nos voltar depois. (com o emprego de que o sentido ficaria ambíguo) (BECHARA, 2009, p. 199, grifo do autor). O emprego de que, segundo o autor, nesse caso deixaria a frase ambígua, pois existem dois elementos que poderiam ser tidos como seu referente: guia e turma. Assim, a visita 17 poderia ter sido feita tanto por um, quanto pelo outro. O uso de o qual, concordando em gênero e número com o vocábulo guia, deixa claro que esse é o elemento por ele retomado. Concordamos que essa estratégia seja, de fato, eficiente. No entanto, ela não dá conta, por exemplo, de casos em que os dois possíveis referentes sejam de mesmo gênero. Se trocássemos o sintagma o guia por a professora, a ambiguidade se manteria, pois a forma correspondente, a qual, poderia se referir tanto à professora, quanto à turma, fato que não é mencionado pelas gramáticas. Baseado apenas nessa regra, um falante não resolveria seu problema com relação a essa construção. Aliado a isso, devemos destacar o fato de que esse não parece ser um caso comum, pois entre todas as ocorrências do relativo o qual em nosso corpus, em nenhuma delas ele foi utilizado com o intuito de desfazer uma ambiguidade. Esses casos serão melhor discutidos mais adiante, na análise do corpus. O segundo caso de substituição diz respeito ao uso precedido de preposição. De acordo com Cegalla (1987, p. 467), é principalmente nesse caso que o pronome qual pode substituir o pronome que. Para Bechara (2009, p. 488), esse é o caso mais comum de substituição. As gramáticas estudadas são unânimes em dizer que o pronome qual deve ser usado em lugar de que quando a preposição que precede o pronome for composta por mais de duas sílabas. Com exceção de Cegalla (1987), os autores explicam que isso se dá por uma questão de eufonia, por necessidade de maior expressividade, embora ele também possa ser usado com as preposições monossilábicas. Assim, na prática, se nos atentarmos às explicações oferecidas por esses três gramáticos, o pronome focalizado neste trabalho pode ser empregado com qualquer preposição. É interessante observar que, embora a regra acima aponte o uso predominante de o qual com preposições com mais de duas sílabas, as formas mais frequentes de emprego padrão desse pronome encontradas em nosso corpus, seja em Neves (2000), seja nas cartas de leitores da Folha, correspondem às formas no/na qual, nos/nas quais e do/da qual, dos/das quais. Além dessas regras, há algumas características apontadas em algumas obras, mas que não são compartilhadas por todas. Discutiremos rapidamente algumas delas. Bechara (2009) fala sobre o uso adjetivo do pronome qual, situação em que o antecedente é repetido após o pronome. O exemplo dado por ele é o seguinte: “Logo, porém, que este prazo expirou, o rei de Leão fez uma estrada até Talavera, perto da qual cidade 18 destroçou as tropas que intentaram opor-se-lhe [AH. 6, 94]” (BECHARA, 2009, p.488, grifo do autor). Esse caso nos chamou a atenção, pois não foi encontrado em nenhum dos textos que compõem o corpus de nossa pesquisa. Além disso, deve-se questionar o fato de que o trecho citado pertence à obra de Alexandre Herculano, escritor português (1810-1877), não havendo outro exemplo retirado do português brasileiro ou europeu contemporâneo. Outra observação que convém mencionar aqui é aquela feita por Cunha e Cintra (1985) de que a substituição de que por qual ocorre em orações adjetivas explicativas, quando o antecedente é um substantivo. Cegalla (1987), por sua vez, pondera que esse é o uso mais frequente e, entre seus exemplos traz também uma ocorrência de o qual em oração restritiva. De fato, notamos que em todas as ocorrências de uso padrão em nosso corpus os antecedentes eram substantivos. Mas no que se refere ao tipo de oração adjetiva em que o pronome ocorre, encontramos também no corpus deste trabalho o uso restritivo como o que segue: (2) (...) Rigor e imparicialidade são as diretrizes nas quais se baseia o empenho do próprio primeiro- ministro, Mario Monti, para melhorar a eficiência do sistema econômico. Em 2011, na Itália, foram recuperados mais de 12 bilhões de euros ligados à evasão fiscal – esta e o trabalho informal subtraem recursos destinados aos serviços públicos essenciais. (...) Gherardo La Francesca, embaixador da Itália no Brasil (Brasília, DF). Folha de São Paulo. Painel do leitor – 01 jun. 2012 Se a ocorrência do pronome pode se dar tanto em orações explicativas quanto em orações restritivas, acreditamos que essa regra não seja de grande auxílio para a compreensão de seu uso. Esses autores mencionam ainda o uso do pronome com função partitiva. Abaixo um exemplo desse emprego retirado de nosso corpus. (3) Ipecacuanha - Planta clássica do Brasil na medicina universal. Botanicamente recebe vários nomes, dos quais os mais empregados säo Cephaelis ipecacuanha Rich. e Uragoga ipecacuanha (Rich. ) Baill. , da família da Rubiáceas.(beblt.doc p. 3; NEVES, 2000) O pronome o qual também é citado nas gramáticas quando se trata de explicar o sentido de posse do pronome “cujo”, correspondente a “do (a) qual”, como no exemplo retirado de Bechara: “O livro cujas páginas... (= as páginas do qual, as páginas dele, as suas páginas)”. (BECHARA, 2009, p.202) ou ainda a equivalência de quem à forma o qual mencionada em Cegalla (1987, p. 155). 19 Por outro lado, ao falar das diferenças entre orações adjetivas e restritivas, nem a gramática de Bechara (2009) nem a de Cunha e Cintra (1985) trazem exemplos com o pronome qual. Do mesmo modo, ao tratar das funções sintáticas exercidas pelos pronomes relativos, nenhuma delas discute as funções sintáticas específicas do pronome o qual. Cabe observar que Cegalla (1987) menciona o fato de que os pronomes relativos devem vir precedidos de preposição quando ela for exigida pelo verbo da oração adjetiva e que, entre seus exemplos há um com o pronome qual. Essa observação também é feita numa seção anterior, quando o autor fala sobre as orações adjetivas. No entanto, em ambos os casos, trata-se apenas de uma observação seguida de exemplos e sem maiores explicações. Do mesmo modo, Bechara (2009, p. 466), num item denominado “O relativo marcado por índice preposicional”, explica o uso de preposição quando requerida pelo verbo como parte de seu complemento, mas seus exemplos são sempre com o pronome que. Por fim, ainda que as gramáticas apresentem as variantes de o qual, apenas em Bechara (2009) encontramos uma breve menção à necessidade de concordância do pronome com o seu antecedente, mas que não constitui o foco do que está sendo dito: e) O qual – e flexões que concordam em gênero e número com o antecedente – substitui que e dá à expressão mais ênfase. Para maior vigor ou clareza pode-se até repetir o antecedente depois de o qual (BECHARA, 2009, p. 488, grifos do autor). Vemos, assim, que ambos tangenciam questões importantes para a compreensão do uso do pronome relativo qual, mas que não são aprofundadas, no que se refere a esse pronome. Abreu (2003), por sua vez, fala sobre o relativo qual em uma seção a respeito da coesão com pronomes relativos. Ele atenta para o que considera um “excesso de emprego” desse pronome em textos de alunos do ensino fundamental e médio e também de universitários. O autor pondera que, embora ele seja correto, não é comum na língua culta e que, por essa razão, deve ser evitado sempre que possível. Ao analisarmos seu exemplo, constatamos que corresponde ao uso do relativo com função de sujeito e objeto direto sem que haja possibilidade de ambiguidade: “As pessoas as quais pretendem legar um novo país a seus filhos os quais merecem realmente algo melhor, logo desanimam com as dificuldades as quais devem enfrentar” (ABREU, 2003, p.285, grifos do autor). Nesse ponto ele difere de todas as demais obras aqui discutidas, para as quais esse emprego é tido como não padrão. Chama também a atenção o fato de ele tratar desse pronome associado à questão da coesão, mas sua abordagem não difere muito daquela das demais gramáticas, pois as duas 20 situações que ele apresenta de emprego desse relativo são as mesmas apontadas por elas: o uso com preposições com mais de duas sílabas, pois nesse caso o pronome que, por ser átono, desapareceria na pronúncia, e o caso, segundo ele, bem menos comum, em que ele é utilizado para evitar ambiguidade. Essa análise, portanto, nos permitiu verificar que as gramáticas não descrevem satisfatoriamente o uso do pronome aqui estudado, uma vez que trazem regras que já não correspondem ao uso, como a que trata da ambiguidade, ou que pouco contribuem para a compreensão de seu emprego. Esta última questão fica ainda mais evidente pelo fato de não discutirem as funções sintáticas exercidas por esse pronome, visto que são elas, juntamente com a função anafórica, que o caracterizam. Se pensarmos que as gramáticas tradicionais constituem uma importante fonte para o ensino-aprendizagem da variedade padrão, podemos concluir que tanto professores quanto alunos não encontram nesse material explicações suficientemente claras a respeito do uso das estratégias de relativização. 2.2.2. A perspectiva linguística Para contrastar com a abordagem feita pelas gramáticas tradicionais e como tentativa de melhor compreender o emprego de qual e variantes, vamos expor a seguir o tratamento dado aos pronomes relativos pelos linguistas Maria Helena de Moura Neves (2000) e Marcos Bagno (2011). Diferentemente das gramáticas estudadas, especialmente a de Bechara (2009), que trazem a questão dos pronomes relativos de maneira fragmentada, a de Neves (2000) reserva um mesmo capítulo para esses pronomes e as orações adjetivas. Dessa forma, fica mais evidente a relação intrínseca entre essas duas questões. O capítulo se inicia falando sobre as duas funções dos relativos, já explicadas acima. Em seguida faz uma classificação dos pronomes com base em diferentes aspectos. Uma vez que o foco deste trabalho é o pronome qual e suas variáveis, vamos apresentar apenas a classificação que ele recebe. A primeira delas é a de pronome fórico, por fazer referência a um antecedente, característica também apontada pelas gramáticas analisadas. Quanto à natureza dos elementos por ele referidos, ele se enquadra, juntamente com o pronome que, entre os que fazem referência indiscriminada a pessoas e coisas. Segundo Neves (2000), eles não têm significado próprio e são sempre usados com antecedentes. Quanto à flexão, é considerado variável, pois 21 tem flexão de gênero e de número, assim como os pronomes quanto e cujo. Por fim, quanto a sua função, o pronome qual, sempre precedido de artigo, pode tanto ser nuclear (ou substantivo, como costuma ser chamado) ocupando o núcleo do sintagma nominal por elipse do substantivo, ou periférico, ficando anteposto ao núcleo substantivo e exercendo, pois, uma função determinante, de adjetivo. Essa função adjetiva também é apontada por Bechara (2009). No entanto, assim como os exemplos deste foram retirados da literatura, da obra de um escritor português, Alexandre Herculano, dos dois exemplos dados por Neves (2000, p. 374), um foi retirado da crônica “Ai de ti copacabana”, (1978) de Rubem Braga e o outro, da revista O Cruzeiro, da década de 1950. São exemplos antigos e que não necessariamente correspondem ao uso atual. Embora seja necessário um estudo quantitativo para verificar essa questão, podemos dizer que, das 90 ocorrências do pronome encontradas tanto nas cartas de leitores da Folha, quanto em uma pequena parte do material coligido pela profa. Maria Helena de Moura Neves para elaboração da Gramática de Usos do Português (NEVES, 2000) e que foi utilizada neste trabalho, nenhuma delas correspondia a um uso semelhante a esse. Assim como as demais gramáticas, ao falar sobre os tipos de oração adjetiva, Neves (2000) não utiliza exemplos com o pronome o qual, mas apenas com os pronomes que, quem e onde, assim como as demais gramáticas. O último tópico traz as funções sintáticas exercidas por cada pronome relativo, separadamente. Neste ponto a gramática de Neves (2000) difere das demais, pois mostra as funções sintáticas que o pronome qual pode assumir na oração adjetiva, seja em posição nuclear: sujeito, objeto direto, objeto indireto, complemento nominal, complemento ou adjunto adverbial; seja em posição periférica: adjunto adnominal. Convém notar, porém, que essa seção se restringe a enumerar as funções, que são seguidas de um ou dois exemplos. A autora também menciona o fato de do(a) qual ser equivalente a cujo e de essa forma com a preposição de também ser usada quando introduz constituintes locativos ou complementos partitivos, casos em que o cujo não seria possível. Segue um exemplo deste último caso, dado pela autora: “Galeno escreveu cerca de quatrocentos tratados médicos, a maioria dos QUAIS se perdeu (APA)” (NEVES, 2000, p. 369, grifos da autora). Comparando essa abordagem com as das gramáticas tradicionais, observamos que ela procura focalizar melhor as funções dos pronomes relativos, e não apresenta as regras referentes ao pronome qual, focalizadas pelas demais: a do afastamento do antecedente e a das preposições que, como vimos, não contribuem muito para a compreensão do uso adequado desse pronome. 22 Marcos Bagno (2011), por sua vez, sintetiza a condição de emprego dessa estrutura da seguinte forma: O pronome o qual pode ser empregado quando o verbo da oração adjetiva é transitivo indireto e seu complemento é recuperado pelo pronome relativo, combinado com a preposição regida pelo verbo. (...) Em diversos casos, também é possível empregar o relativo que. (...) Esse emprego de prep + que, no entanto, é característico de um estilo mais caprichado, sobretudo literário. (BAGNO, 2011, p.969, grifos do autor). Dessa forma, diferentemente dos demais, Bagno (2011) associa o emprego do pronome ao tipo de verbo que com ele ocorre e defende que num contexto de ocorrência de preposição + relativo, o pronome qual seja o de uso mais comum, sem que isso esteja condicionado pelo tipo de preposição que com ele ocorre. No entanto, ele traz essa observação num capítulo dedicado à hipercorreção e, entre os casos que correspondem ao fenômeno, inclui o uso de o qual como sujeito quando não há ambiguidade presente e o que ele considera como “emprego desnecessário de o qual como objeto direto” (BAGNO, 2011, p. 971, grifo do autor). Com relação ao primeiro caso, como veremos mais adiante, ele aparece também em textos tidos como padrão; quanto ao segundo, o uso desse relativo como objeto direto é um uso possível, como aponta Neves (2000). Partindo dessa análise, verificamos que a perspectiva dos linguistas difere um pouco das gramáticas tradicionais estudadas. Dentre elas, a de Bagno (2011) parece ser a mais apropriada, pois se detém na função exercida pelo pronome. Entretanto, vimos que mesmo entre eles há divergências, que podem provocar dúvidas ao falante que consulte suas obras. Com base nas estratégias de relativização discutidas nesta seção, apresentaremos a seguir a análise das ocorrências do pronome qual no corpus desta pesquisa. 23 3 METODOLOGIA A escolha do corpus desta pesquisa foi motivada pelo conhecimento de que as estruturas relativas correspondem a um mecanismo que contraria a característica analítica do português brasileiro e, portanto, não são uma estrutura de uso muito recorrente e espontâneo na fala. Desse modo, optamos por fazer a análise de um corpus de língua escrita a fim de observar o comportamento dessas estruturas em um contexto de relativa formalidade. Os corpora disponíveis para estudo do português brasileiro, no entanto, são compostos ou por amostras de fala espontânea, que não seriam pertinentes para este estudo, ou por textos escritos, como obras literárias, jornais, entre outros, que são textos que já passaram por uma revisão criteriosa e/ou edição para adequação à norma padrão, o que poderia influenciar a ocorrência de usos não-padrão das relativas. Nosso interesse estava, portanto, em textos que fossem escritos para um contexto de maior formalidade, mas que não tivessem sido corrigidos ou editados. Por essa razão, o primeiro material estudado consiste em uma pequena parte do material representativo da modalidade escrita do português brasileiro coligido pela profa. Maria Helena de Moura Neves para elaboração da Gramática de Usos do Português (NEVES, 2000). Esse material é composto por doze trabalhos, totalizando 293 páginas. Utilizando ferramentas do Word, realizamos uma busca pelo pronome qual e encontramos 74 ocorrências de uso relativo desse pronome. Dentre estas, apenas 3 representavam casos de hipercorreção. Devido ao número muito reduzido de ocorrências do fenômeno de hipercorreção, decidimos analisar as cartas enviadas por leitores para a seção “Painel do leitor” do jornal impresso Folha de São Paulo nos meses de maio e junho de 2012. Escolhemos esse material por ser também um contexto de escrita mais formal e por acreditarmos que essas cartas não fossem corrigidas antes da publicação. No entanto, como constatamos posteriormente, o manual de redação da Folha prevê, no item “cartas”, que “Eventuais erros de português nas cartas de leitores devem ser corrigidos”. 3 Apesar disso, fizemos uma busca nessa seção do jornal e encontramos 16 ocorrências do pronome o qual. Embora nenhuma delas correspondesse a um caso de hipercorreção, esse material serviu como mais uma amostra do uso padrão atual dessa estrutura relativa. Com base nos resultados das buscas nesses corpora, optamos por analisar dados retirados da internet, espaço de escrita que oscila entre formalidade e informalidade, uma vez que o contexto de ocorrência do fenômeno estudado são textos escritos em que percebemos 3 Disponível em: Acesso em 15 out. 2012 http://www1.folha.uol.com.br/folha/circulo/manual_edicao_c.htm 24 que o falante quer demonstrar sofisticação e/ou domínio do que está dizendo, mas que não necessariamente passam por revisão. Nesse sentido, a característica própria da internet, que é a da rapidez da escrita e da publicação, favorece essa espontaneidade procurada. Dado que a análise dos demais corpora revelou uma maior frequência de ocorrência do pronome qual com as preposições em e de e, em número um pouco menor, com a preposição a, e por se tratar de um estudo inicial, restringimos nossa busca a ocorrências de hipercorreção desse pronome com essas três preposições. Pretendemos, com um estudo mais amplo, analisar também dados com as demais preposições. Para o levantamento desses dados, utilizamos como entradas para a busca as formas no(a) qual, do(a) qual, ao(à) qual e suas respectivas variáveis e coletamos 20 ocorrências com cada uma dessas preposições, todas com ocorrência de hipercorreção, num total de 60 ocorrências. Feito isso, analisamos e classificamos esses dados por suas similaridades, de forma que pudéssemos observar e descrever melhor como se dá a hipercorreção no uso dessa estrutura. Uma vez que nosso objetivo principal era identificar e descrever os casos de hipercorreção e por se tratar de um estudo inicial, nos limitamos a coletas de ocorrências do fenômeno. Portanto, não realizamos uma análise quantitativa do fenômeno estudado, mas apenas qualitativa. Assim, para referência aos casos padrão e aceito como padrão, utilizamos dados de Neves (2000) e das cartas de leitores. Para os casos não-padrão, foram considerados os dados da internet e os três casos encontrados nos textos acima mencionados. A partir deste trabalho, esperamos num outro momento, analisar ocorrências com as demais preposições e efetuar também uma análise quantitativa para poder determinar a frequência dos casos de hipercorreção em relação ao uso padrão, a frequência de uso do pronome qual em relação ao pronome que, as preposições mais comuns nesses contextos, entre outros fatores. 25 4. ANÁLISE DOS DADOS Conforme já tratamos na seção anterior, nosso corpus é composto de três materiais diferentes: uma pequena parte do material representativo da modalidade escrita do português brasileiro coligido pela profa. Maria H. M. Neves para elaboração da Gramática de Usos do Português (NEVES, 2000), as cartas de leitores para a Folha e ocorrências retiradas de sites da internet. Partindo do estudo das gramáticas, apresentado anteriormente, e levando em consideração a natureza do fenômeno de hipercorreção, postulado por Labov (2008), ao analisarmos os dados, o que procuramos observar foi a adequação (do ponto de vista da norma padrão) da estrutura relativa ao contexto em que era empregada, de modo que pudéssemos separar as ocorrências, identificando aquelas que correspondiam a um uso com hipercorreção. Considerando inicialmente os dois primeiros materiais mencionados, encontramos três diferentes usos que chamamos, com base na adequação mencionada acima, de padrão, aceito como padrão e não-padrão e que serão expostos nos itens a seguir. A Tabela 1 revela a quantidade de ocorrências de cada uma dessas formas, em Neves (2000), enquanto a Tabela 2 corresponde às quantidades encontradas nas cartas de leitores da Folha. Tabela 1 - Formas de emprego do pronome relativo qual em Neves (2000) Forma de emprego n˚ ocorrências % () Forma padrão 68 92 Forma aceita como padrão 3 4 Forma não-padrão 3 4 Total 74 100 Tabela 2 – Formas de emprego do pronome relativo qual no jornal Folha de São Paulo Forma de emprego n˚ ocorrências % Forma padrão 12 75 Forma aceita como padrão 4 25 Forma não-padrão - - Total 16 100 Ao todo, foram encontradas, portanto, 90 ocorrências do relativo, sendo que 80 delas correspondem ao uso padrão. Observamos, por meio das tabelas, que houve apenas 3 casos de hipercorreção, todos eles em Neves (2000). Destes, dois consistem no uso do pronome não precedido por preposição, e no terceiro ele é precedido pela preposição em. Os casos que 26 denominamos aceitos como padrão por sua vez, totalizam 7 ocorrências. Neles, como veremos, o pronome não é precedido por preposição. Além dessa classificação, também fizemos um levantamento do número de ocorrências com cada preposição encontrada. Cabe observar que consideramos todas as ocorrências em que havia preposição, incluindo aquela acima mencionada, em que há hipercorreção, embora todas as demais correspondam à forma padrão. Procedemos desse modo, pois nosso intuito era apenas saber quais as preposições mais frequentes com o pronome qual nesses materiais considerados. Tabela 3 – Quantidade de ocorrências do pronome qual com cada uma das preposições encontradas em Neves (2000) Preposição N˚ de ocorrências % () de 22 31,9 em 17 24,6 a 7 10 para 6 8,7 segundo 4 5,8 entre 4 5,8 pela 2 2,9 com 2 2,9 durante 2 2,9 sobre 1 1,5 contra 1 1,5 dentre 1 1,5 Total 69 100 Tabela 4 – Quantidade de ocorrências do pronome qual com cada tipo de preposição encontrada no jornal Folha de São Paulo Preposições N˚ ocorrências % () em 6 50,2 de 2 16,6 com 1 8,3 sobre 1 8,3 pela 1 8,3 para 1 8,3 Total 12 100 A análise dos dados de Neves (2000) e das cartas de leitores da Folha revelou, portanto, poucos casos de hipercorreção e mostrou o uso predominante do pronome qual com as preposições em, de e a, fato que nos levou a buscar, na internet, dados de hipercorreção com o pronome qual precedido por essas três preposições. 27 A adequação às regras de emprego padrão desse pronome utilizada na análise daqueles materiais também foi considerada na coleta e análise desses dados da internet. Isso nos levou a propor uma escala de usos do pronome relativo qual, cujos pontos serão apresentados e discutidos a seguir. 4.1. Formas padrão O primeiro ponto dessa escala corresponde aos casos que denominamos de formas padrão. Nessa categoria estão os períodos que atendiam às duas características principais de emprego padrão da estrutura relativa: a retomada de um antecedente, concordando com ele em gênero e número, e o uso da preposição regida pelo verbo (ou pelo nome retomado), quando exigida pela função sintática desempenhada pelo pronome na oração adjetiva. Conforme apresentado nas Tabelas 1 e 2, esses casos corresponderam a 80 das 90 ocorrências encontradas em Neves (2000) e nas cartas de leitores da Folha, e as preposições encontradas com maior frequência foram em, de e a. Com relação à internet, como já dissemos anteriormente, nossa busca se restringiu aos casos de hipercorreção, sendo, portanto, necessária uma ampliação desse estudo num próximo trabalho. Abaixo trazemos um exemplo de emprego padrão. Nele o pronome retoma o termo “reportagem”, concordando com ele, e exerce na oração adjetiva a função de adjunto adverbial locativo, o que justifica o uso da preposição em. (4) Excelente a reportagem “Protestos na passarela” (“Ilustrada”, ontem), na qual representantes de entidades e estilistas apresentaram os problemas e as soluções para a manutenção e a sobrevivência do segmento da moda. Este gera milhares de empregos por todo o país. Pedro Eduardo Fortes (São Paulo, SP) Folha de São Paulo – Painel do Leitor, 23 maio 2012. 4.2. Formas aceitas como padrão Como vimos na seção sobre as gramáticas tradicionais, uma das regras de uso do pronome qual diz respeito à escolha dessa estrutura em caso de afastamento do antecedente e possibilidade de ambiguidade, regra que é compartilhada por Abreu (2003) e Bagno (2011). Entre os dados coletados em Neves (2000) e nas cartas de leitores da Folha, encontramos, entretanto, 7 casos em que o pronome qual era utilizado sem preposição e com função de sujeito (seis ocorrências) ou de objeto direto (uma ocorrência), mas sem que 28 existisse possibilidade de ambiguidade e sem que o seu antecedente estivesse afastado. O uso recomendado pela perspectiva tradicional, nesse caso, seria o do pronome que. Esses empregos, no entanto, ocorreram em textos considerados como escrita padrão e não geram dificuldades de compreensão. Além disso, em todos eles o pronome exerce as duas funções que o caracterizam. Por essa razão, optamos por classificá-los como formas aceitas como padrão. Como vimos, Abreu (2003) também considera correto esse uso, embora recomende que seja evitado. No exemplo abaixo, a forma os quais retoma a expressão “serviços assistenciais já existentes”, com a qual concorda em gênero e número, e é sujeito da oração “não tem penetração nas áreas rurais propriamente ditas”. (5) Posto imediatamente a funcionar, o Serviço de Assistência Itinerante está levando a medicina curativa e profilática aos mais longínquos municípios, complementando os servicos assistenciais já existentes, os quais, geralmente fixados nas sedes, näo tem penetraçäo nas áreas rurais propriamente ditas (ar-o1lo.doc - p.14; NEVES 2000). Essa escolha por o qual em lugar de que, ou seja, a preferência por uma estrutura de uso mais restrito num contexto em que, pela perspectiva tradicional, não seria utilizada, e o fato de isso ter aparecido em contexto de escrita padrão chama a atenção, pois sugere que o falante atribui a ela um caráter de maior sofisticação do que aquele dado ao pronome que. Tal avaliação pode ser resultante da estratégia de substituição de que por qual, sugerida pelos professores em sala de aula como forma de evitar o uso excessivo de que, situação mencionada por Bagno (2011). A existência dessas formas não significa, porém, que não possa existir hipercorreção quando o pronome é precedido apenas do artigo. Dos três casos encontrados em Neves (2000), dois deles correspondem a essa situação, mas a hipercorreção se verifica não por ocuparem a posição de sujeito, como mostramos acima, mas pelo uso da estrutura como um organizador do discurso em um texto com problemas de escrita, situação que será discutida no item 4.3.5. Abaixo, uma dessas ocorrências: (6) No livro citado, o autor relata seu contacto com uma das plantas alucinogênicas mais antigas de que se tem conhecimento, a Cactácea globosa mexicana, Lophophora williamsii (Lem. ) Coult. , a qual dizem mescal ou peuotl. Sua substância ativa é o alcalóide mescalina, usado desde remotos tempos pelas populaçöes aborígenas da regiäo do México, em cerimônias religiosas. Também certos cogumelos dos gêneros Psilocybe, Stropharia e Conocybe säo utilizados por certos índios mexicanos para o mesmo fim. O alcalóide ativo, aqui, é a psilocibina, o éster fosfórico da 4-hidroxi-dimetiltriptamina. Consta existirem semelhantes cogumelos também no Brasil, sem que se conheça, por ora, qualquer estudo botânico ou químico sobre os mesmos (beblt.doc p. 8; NEVES 2000). 29 4.3. Formas não padrão Conforme mencionado anteriormente, os casos aqui apresentados equivalem aos dados retirados da internet, em que há ocorrência do pronome o qual precedido pelas preposições em, de ou a. Quanto aos três casos de hipercorreção presentes em Neves (2000) além dos dois mencionados acima, o terceiro se enquadra na situação que será descrita em 4.3.1 e nele também ocorre a preposição em. Ao analisarmos esses dados da internet que correspondem ao fenômeno de hipercorreção, encontramos uma variedade de casos, embora possamos organizá-los de acordo com certas similaridades. Pretendemos aqui, descrever esses usos, buscando compreender a motivação dos falantes ao produzir tais construções. O estudo do fenômeno de hipercorreção, iniciado como vimos, por William Labov (2008), também está presente em Bagno (2011), em que o autor focaliza sua ocorrência em estruturas do português brasileiro. Ele discute a ligação que há entre a língua (e a avaliação que dela se faz) e a hierarquização social: A sociologia da linguagem nos ensina que onde tem variação (linguística) sempre tem avaliação (social). Nossa sociedade é profundamente hierarquizada e, em consequência disso, todos os valores culturais e bens simbólicos que nela circulam também estão dispostos em escalas hierárquicas que vão do “bom” ao “ruim”, do “certo” ao “errado”, do “feio” ao “bonito” etc. E entre esses valores culturais e bens simbólicos está a língua, certamente o mais importante deles. (...) Por mais que nós, linguistas, rejeitemos a norma-padrão tradicional, por não corresponder às realidades de uso da língua, não podemos desprezar o fato de que, como bem simbólico, existe uma demanda social por essa “língua certa”, identificada como instrumento que permite acesso ao círculo dos poderosos, dos que gozam de prestígio na sociedade. (BAGNO, 2011, p. 936-7, grifos do autor). Assim, a noção de erro está associada à relação entre língua e sociedade. Ela é definida, de acordo com Bagno (2011), pelas próprias classes privilegiadas, detentoras do poder, que avaliam em relação a sua própria variedade, aquilo que é certo ou errado, aceito ou não aceito. Desse modo é considerado erro tudo aquilo que não faz parte dessa variedade. Ele mostra também o quanto essa noção pode ser subjetiva, uma vez que algumas formas tidas como erros já estão sendo assimiladas pelos falantes de maior prestígio e, por essa razão, passam despercebidas até por eles, sensíveis aos erros dos demais falantes. Assim, ele propõe uma escala segundo a qual, quanto maior o prestígio do falante, menor o erro; quanto menor o prestígio, maior e mais monstruoso o erro. Essa avaliação social está diretamente relacionada à questão do poder. Conhecer e fazer uso das formas prestigiadas permitiria aos falantes ascender socialmente. Assim, a 30 preocupação com a ascensão e o reconhecimento social, e a consciência de que sua fala é estigmatizada, ou seja, o estado de insegurança linguística, levam os falantes de classes mais baixas a fazer um uso exagerado de formas consideradas de prestígio. Acreditamos que essa noção de erro seja um dos fatores que motivam em grande parte a ocorrência de hipercorreção no uso do relativo qual e variantes. Para essa discussão, convém apontarmos uma importante observação de Ataliba de Castilho, a respeito dos pronomes relativos. Diz ele: “Como se sabe, o conjunto dos pronomes relativos vem sofrendo séria restrição no PB, com consequente generalização de que” (CASTILHO, 2010, p. 367). Essa generalização de que faz com que ele se torne uma forma de menor relevo, de menor expressividade na linguagem ou até mesmo incômoda, por seu uso repetido, o que leva os falantes a utilizar formas alternativas. É o que ocorre, por exemplo, no contexto escolar, onde os alunos são incentivados a evitar o pronome que, simplesmente substituindo-o pelo pronome qual, fato que é apontado por Bagno (2011), conforme mencionamos acima. Assim, com base nessas prescrições, são levados a crer que o uso que fazem de que é estigmatizado e procuram utilizar aquela forma, tida como de maior prestígio. O pronome o qual, no entanto, não faz parte de seu vernáculo e, portanto, a falta de conhecimento técnico prescrito nas gramáticas, em relação ao uso das estratégias de relativização, leva a construções não-padrão como as que estamos estudando aqui. Seguindo, assim, nossa escala de usos, encontramos os seguintes casos de hipercorreção: 4.3.1. Casos de regência Em muitos dos excertos coletados da internet, observamos que a hipercorreção se dá por uma questão de regência, que pode ocorrer tanto pelo emprego de uma preposição diferente daquela regida pelo verbo da oração adjetiva (ou pelo nome retomado pelo pronome), quanto pelo seu emprego em sentenças nas quais ele exerce função de sujeito ou objeto direto, casos em que a preposição não é necessária, de acordo com a perspectiva padrão. Observamos ainda que, nesses casos, apesar da regência, o falante realiza a concordância com o antecedente do pronome. Na ocorrência (7), de acordo com a perspectiva padrão, o verbo transformar-se requer a preposição em. Na ocorrência (8), por sua vez, a regência do verbo conviver prevê a preposição com. Em (9), por fim, o uso padrão do verbo investir seria com a preposição em: 31 quem investe, investe em alguma coisa. Assim, temos nesses exemplos, o primeiro caso mencionado: há o uso das três preposições consideradas neste estudo, mas com verbos que possuem uma regência diferente. O falante, no entanto, parece querer se aproximar de uma escrita padrão, mas de forma hesitante, o que pode ser observado em (7), pela alternância entre a próclise e a ênclise. E essa tentativa de adequação pode explicar a utilização do relativo qual. Não pudemos, neste estudo inicial, observar se há uma motivação sintática ou semântica para a escolha entre uma ou outra preposição. Entretanto, a variação presente nesses casos, ou seja, a ocorrência da mesma situação independentemente da preposição, sugere que esse contexto sintático é incerto para o falante. (7) Animal ao qual me transformo Animal ao qual transformo-me. Disponível em Acesso em: 15 set.2012. (8) Como lidar com as pessoas nas quais você convive? Disponível em: Acesso em: 24 ago. 2012. (9) Risco: de crédito e de mercado. Conforme explicado neste artigo, é a possibilidade de algo sair diferente do planejado. O risco de mercado acontece quando a taxa de juros (ou outro indexador de sua aplicação) varia durante o prazo do investimento e você ganha mais ou menos que o esperado inicialmente. No caso de risco de crédito, é simplesmente a possibilidade da instituição da qual você investiu falir e você não ter seu dinheiro de volta. É o famoso calote. Disponível em: Acesso em: 07 out. 2012. Os exemplos (10) e (11), fazem parte do segundo caso de regência e também revelam que o contexto sintático é opaco para esses falantes. Para eles, a função sintática do pronome é indiferente, já que utilizam preposições tanto com o objeto direto, em (10), quanto com o sujeito, em (11). O que se mantém para eles é a função anafórica do pronome, visto que realizam a concordância com o seu antecedente: eventos paranormais e pessoas, respectivamente. (10) Eventos paranormais dos quais a Ciência não sabe explicar Apesar de pouco divulgado pelo internet inúmeros Eventos paranormais exitem, alguns dos quais até mesmo a ciência não consegue explicar, conheça alguns Eventos paranormais catalogados, para os quais a Ciência e alguns dos mais influentes estudiosos não possuem quaisquer explicação. Conheça alguns deles. 1. Psicocinese Psicocinese também é conhecido http://www.fanfiction.net/s/7353110/1/Animal_ao_qual_me_transformo http://www.blogbrasil.com.br/como-lidar-com-as-pessoas-nas-quais-voce-convive/ http://www.blogbrasil.com.br/como-lidar-com-as-pessoas-nas-quais-voce-convive/ http://www.blogdoinvestidor.com.br/investimentos/qual-e-o-melhor-investimento-com-alto-retorno-e-baixo-risco/ http://www.blogdoinvestidor.com.br/investimentos/qual-e-o-melhor-investimento-com-alto-retorno-e-baixo-risco/ http://httpwwwcaixadepandoraxpgcombr.dihitt.com.br/dihitt/redir/12175683?from=story_h1 32 como telecinese e mente sobre a matéria, e é “Eventos” habilidade de mover ou manipular objetos com a mente. 2. 3. 4. 6. 7. Kennedy. 8. 9. 10. Disponível em:http://httpwwwcaixadepandoraxpgcombr.dihitt.com.br/n/curiosidades/2012/09/15/eventos - paranormais-dos-quais-a-ciencia-nao-sabe-explicar > Acesso em: 07 out.2012. (11) Pessoas nas quais passam pela minha vida e me marcam com coisas boas" Disponível em: Acesso em 06 out. 2012 4.3.2. Casos de concordância Nessa categoria enquadram-se os casos em que os falantes empregam a preposição de acordo com a regência, mas não realizam a concordância padrão com o antecedente do pronome. Neles, o que parece opaco para os falantes é o caráter variável do pronome. É o que evidenciam os exemplos (12) e (13), em que a estrutura é utilizada como uma forma fixa visto que não há a concordância nem de gênero, nem de número com os antecedentes “mulheres” e “circunstâncias”, respectivamente: (12) Quem eram as mulheres da terra ao qual a Bíblia se refere, quando caim matou Abel? Disponível em: Acesso em 30 set. 2012. (13) quais sao as circurstancias na qual eu precisaria fazer um canal? Disponível em: Acesso em 18 jun.2012. Considerando a escala de usos que estamos propondo aqui, esse caso pode ser enquadrado juntamente com o anterior, pois ambos mantêm ao menos uma das características de uso padrão da estrutura relativa. 4.3.3. Casos de substituição do pronome cujo Outra forma encontrada entre os casos de hipercorreção corresponde ao uso de qual em substituição ao pronome cujo. Como vimos, esse pronome está desaparecendo do português brasileiro, permanecendo apenas em alguns contextos de escrita mais formal. Desse modo, o espaço antes por ele ocupado passa a ser preenchido por outras estratégias, como a chamada relativa copiadora (BAGNO, 2002) ou, como apontam os exemplos abaixo, pela estrutura: preposição + pronome qual. http://httpwwwcaixadepandoraxpgcombr.dihitt.com.br/n/curiosidades/2012/09/15/eventos-%20paranormais-dos-quais-a-ciencia-nao-sabe-explicar http://httpwwwcaixadepandoraxpgcombr.dihitt.com.br/n/curiosidades/2012/09/15/eventos-%20paranormais-dos-quais-a-ciencia-nao-sabe-explicar http://www.facebook.com/pages/Pessoas-nas-quais-passam-pela-minha-vida-e-me-marcam-com-coisas-boas/230101577003484 http://www.facebook.com/pages/Pessoas-nas-quais-passam-pela-minha-vida-e-me-marcam-com-coisas-boas/230101577003484 http://perguntas.gospelmais.com.br/quem-eram-as-mulheres-da-terra-ao-qual-a-biblia-se-referequando-caim-matou-abel.html http://perguntas.gospelmais.com.br/quem-eram-as-mulheres-da-terra-ao-qual-a-biblia-se-referequando-caim-matou-abel.html http://dentistasonline.net/perguntas/index.php?qa=3089&qa_1=quais-sao-as-circurstancias-qual-precisaria-fazer-um-canal http://dentistasonline.net/perguntas/index.php?qa=3089&qa_1=quais-sao-as-circurstancias-qual-precisaria-fazer-um-canal 33 Em ambos os exemplos, fazendo a substituição inversa, notamos que essa estrutura ocupa exatamente a mesma posição em que seria usado cujo: “Morei em um imóvel alugado cujo teto desabou” e “Ford cria um jogo no Facebook cujo prêmio será um New Fiesta zerinho”, sem que seja necessária uma alteração na ordem dos termos. (14) Morei em um imóvel alugado na qual o teto desabou; posso entrar com ação contra o proprietário por isso? Disponível em: Acesso em: 10 jun. 2012. (15) Ford cria um jogo no Facebook ao qual o prêmio será um New Fiesta zerinhoVocê gostaria de ganhar um New Fiesta? Como? Simples, a proposta do game New Fiesta Time Battle, criada pela JWT para o Facebook do New Fiesta está com as inscrições abertas até o dia 16 de maio; onde para participar, o ?jogador? terá que escolher uma sala entre quatro cores disponíveis, logo após permanecer virtualmente dentro do veículo Disponível em: Acesso em: 30 set. 2012. É interessante observar que também aqui, assim como nos casos de regência, um dos fatores que parece ocasionar essas formas é a opacidade do contexto sintático. O pronome cujo marca uma relação de posse entre o antecedente e o consequente e equivale à forma do(a) qual. No entanto, o emprego de outras preposições que não o de, indica que essa noção não está clara para o falante. Desse modo, o relativo deixa de marcar uma relação sintática, operando apenas como um conectivo. 4.3.4. Casos que não seguem nem a regência, nem a concordância. Se nos primeiros casos apresentados podíamos perceber que a estrutura relativa mantinha ao menos uma marca de seu uso padrão, a regência ou a concordância, nos casos elencados aqui, as preposições utilizadas são diferentes daquelas regidas pelos verbos e a estrutura não concorda com o antecedente. Convém citar o exemplo (17); nele notamos que o autor procura imprimir certa formalidade a sua fala, o que fica evidente pela escolha de palavras como “prezados” e pelo encerramento da mensagem: “Aguardo seu retorno grato”. Essa formalidade pode ter levado o autor a fazer uso da estrutura relativa, que ele sabe ser uma forma de prestígio, própria desses contextos. http://www.meuadvogado.com.br/discuta/morei-em-um-imovel-alugado-na-qual-o-teto-desabou-posso-entrar-com-acao-contra-o-proprietario-por-isso.html http://www.meuadvogado.com.br/discuta/morei-em-um-imovel-alugado-na-qual-o-teto-desabou-posso-entrar-com-acao-contra-o-proprietario-por-isso.html http://www.oficinadanet.com.br/noticias_web/5336/ford-cria-um-jogo-no-facebook-ao-qual-o-premio-sera-um-new-fiesta-zerinho http://www.oficinadanet.com.br/noticias_web/5336/ford-cria-um-jogo-no-facebook-ao-qual-o-premio-sera-um-new-fiesta-zerinho 34 Entretanto, assim como em (15) e (16), a estrutura preposição + qual parece ser utilizada de modo aleatório, dada a variação nas preposições. Nesses contextos, essas estruturas parecem representar uma forma cristalizada, sem ou com pouca variação morfológica (em (16) há apenas uma concordância de gênero), que são usadas como elementos conectivos, mas que não contribuem para a coesão textual. (15) 95 anos do maior absurdo da qual os católicos acreditam: Milagre de Fátima Disponível em: < http://www.nihillemos.net/95-anos-do-maior-absurdo-da-qual-os-catolicos- acreditam-milagre-de-fatima/> Acesso em: 18 jun.2012. (16) Odair visita com deputado Ulysses casas populares da qual destinou emenda parlamentar - Carmo da Cachoeira 08.04 Disponível em: Acesso em: 07 out.2012) (17) devilson rodrigues de campos 19/08/2012 às 18:45 Boa noite,prezados gostaria de saber se tem como consultar se a empresa ao quAl eu trabalho recolhe os encargos do INSS. POIS HÁ RUMORES QUE A EMPRESA AO QUAL EU TRABALHO NÃO RECOLHE ESTE ENCARGO,POREM ELA DESCONTA EM MEU HOLERITE. AGUARDO SEU RETORNO GRATO. Disponível em: Acesso em: 30 set. 2012. 4.3.5. Casos de tentativa organização da escrita e de coesão Seguindo a escala de usos do pronome qual, apresentamos aqui alguns excertos em que a hipercorreção ocorre em textos que evidenciam dificuldades de organização da escrita e de coesão. Neles, a simples mudança do pronome e/ou da preposição utilizada não contribui para a clareza e compreensão do período. Em (18), o texto demonstra falta de concordância em “meus amigos continua” e “meus álbum”, o que já evidencia um domínio insuficiente da escrita. Além disso, a estrutura na qual não deixa evidente a quem ela se refere; mesmo que considerássemos que ela retoma o termo orkut (ainda que sem a concordância), ela não exerce uma função sintática na oração que introduz: não podemos dizer que seja um complemento do verbo dizer. O que notamos é que as duas orações “tenho um orkut” e “diz que foi apagado” são desconexas e que a estrutura na qual é utilizada, como tentativa de organizar o discurso. Diferentemente dos casos anteriores, em que bastaria alterar a estrutura para estabelecer a http://www.nihillemos.net/95-anos-do-maior-absurdo-da-qual-os-catolicos-acreditam-milagre-de-fatima/ http://www.nihillemos.net/95-anos-do-maior-absurdo-da-qual-os-catolicos-acreditam-milagre-de-fatima/ http://www.flickr.com/photos/odaircunha/5610665374/ http://www.pensandogrande.com.br/conheca-os-custos-dos-funcionarios-de-sua-empresa/ http://www.pensandogrande.com.br/conheca-os-custos-dos-funcionarios-de-sua-empresa/ 35 coesão, uma vez que se trata de uma situação de emprego do relativo, aqui seria necessária a reestruturação do período, por exemplo, da seguinte forma: “Tenho um orkut cuja conta parece ter sido apagada, porém meus amigos continuam me mandando recados e entrando em meus álbuns”. O mesmo acontece em (19) em que não fica claro o que o falante pretendeu comunicar. Ora, se a escrita apresenta problemas que não residem apenas na forma da estrutura relativa, podemos dizer que há aí um maior apagamento da noção das funções do pronome relativo e que seu uso se dá como organizador do discurso, mas, principalmente, como tentativa de espelhamento das variedades de prestígio. (18) tenho um orkut , na qual diz que foi apagado , porem meus amigos continua me mandando recados entrando em meus álbum Disponível em: Acesso em: 13 jun. 2012 (19) preciso de um emprego ao qual voce possa gostar do meu perfil — Vila Velha Disponível em: Acesso em: 09 out.2012. 4.4 Hipercorreção: uma questão de estilo? Esses foram os diferentes usos do relativo, com os quais nos deparamos. A sua disposição em uma escala, conforme propusemos, assume a seguinte forma: Forma padrão → forma aceita como padrão → casos de regência/concordância → substituição de cujo → ausência de regência e concordância → casos de tentativa de organização da escrita. Essa escala foi proposta com base na constatação de uma gradação no emprego de qual e variantes, rumo a um crescente distanciamento de suas funções de pronome relativo: da forma padrão tradicional, passando por situações em que a estrutura ainda mantém um nível de relação com os demais elementos do período (concordância ou regência) e por aquelas em que ele é utilizado como um conectivo, mas sem contribuir para a coesão textual, chegando, por fim, aos casos em que não há contexto de uso do pronome e ele atua como um organizador do discurso e como um índice de formalidade. http://productforums.google.com/forum/#!category-topic/orkut-pt/p%C3%A1gina-do-meu-perfil/aKldsUVxaCI http://productforums.google.com/forum/#!category-topic/orkut-pt/p%C3%A1gina-do-meu-perfil/aKldsUVxaCI http://vilavelha.olx.com.br/preciso-de-um-emprego-ao-qual-voce-possa-gostar-do-meu-perfil-iid-71833741 http://vilavelha.olx.com.br/preciso-de-um-emprego-ao-qual-voce-possa-gostar-do-meu-perfil-iid-71833741 36 Com base no que discutimos ao longo do trabalho, podemos por um lado dizer que esses usos são motivados por uma pressão social que postula como impróprio o uso repetido de que e traz como alternativa o uso de o qual; por outro eles ocorrem pela falta de conhecimento dos procedimentos envolvidos no emprego padrão dessa estrutura, fato que se dá em parte por conta do que Bagno (2011, p. 970) chama de “prescrição incompleta”, feita pelas escolas, de substituição de um pronome por outro em lugar do ensino de formas alternativas realmente eficientes, e em parte porque, como discutido na seção dedicada às regras tradicionais de relativização, as próprias gramáticas não trazem uma abordagem suficiente, clara e consistente sobre o emprego de o qual e, portanto, não contribuem para a compreensão dessa estratégia. Como reflexo disso, notamos, uma grande variação no uso dessa estrutura. Além dos exemplos já apresentados, em que há uma grande inconstância no uso das preposições e na concordância, no exemplo (20) abaixo ela ocorre dentro do texto de um mesmo falante. Em um mesmo contexto sintático, vemos o emprego de duas formas diversas: “Motivos dos quais” e “O motivo pelo qual”, mas que parecem ter o mesmo valor para o falante. Podemos até arriscar dizer que, uma das dificuldades de uso da estrutura relativa está na compreensão do sentido transmitido pelas preposições, mais do que no uso do pronome. Para isso, no entanto, seriam necessários mais dados, que permitissem a comparação entre o uso do relativo com e sem preposição. (20) Motivos dos quais o sistema Fighting Fantasy é interessante. A modelagem de Gamebook (livro-jogos) da Fighting Fantasyé muito interessante. O motivo pelo qual este sistema de RPG me fascina é a: Preparação. Preparação é um ponto importantíssimo a ser utilizado para apresentar algum jogo, principalmente em nossa sociedade moderna onde não é tolerável perder tempo. Portanto compartilho para vocês a minha visão sobre esta mecânica. Os benefícios para os aspirantes que arquitetam jogos narrativos e aos navegantes de primeira viagem. Disponível em: Acesso em: 07 out. 2012. Assim, podemos afirmar que há, em todos os casos, uma percepção incerta quanto ao contexto sintático de ocorrência da estrutura prep. + qual, condição que se torna mais evidente nos últimos níveis da escala. Ora, se o contexto sintático é opaco para o falante, percebemos que essa variação de usos não se dá, aparentemente, por uma manifestação sintática. Este estudo nos leva a considerar que, ainda que os empregos mencionados do pronome relativo sejam casos de hipercorreção, por serem diferentes daquele prescrito pela norma e por surgirem em contextos em que normalmente não seriam utilizados, o seu uso não http://www.paragons.com.br/?p=28737 37 é motivado apenas por um conhecimento insuficiente de suas regras de aplicação, mas também por uma questão de estilo. Sabemos que o emprego frequente de uma dada estrutura linguística pode levá-la a um apagamento, a uma perda de sua expressividade. Em função disso, diante das possibilidades disponíveis em cada língua, novas formas são criadas ou formas antigas são reestabelecidas, de modo que possam atender às necessidades expressivas dos falantes. Quando tratamos dos casos aceitos como padrão, vimos o uso de o qual por falantes cultos mesmo em contextos que a regra padrão aconselha o emprego de que. Ora, se este é um pronome de uso cada vez mais frequente, é possível que aquele seja empregado como forma de evitar o uso comum, isto é, como recurso de estilo. Martins (2008), ao tratar da estilística relacionada às palavras gramaticais, nos diz que sempre há a possibilidade de alteração de regras já existentes para produzir um efeito expressivo; assim, essas palavras podem perder sua função gramatical e transformar-se em simples elementos de realce. Embora no caso da hipercorreção não nos pareça que os falantes operem uma mudança das regras de modo intencional, vimos que, especialmente nos últimos casos de nossa escala, a estrutura com o relativo o qual não exerce mais suas funções prototípicas, funcionando, por outro lado, como um realce, como uma marca de prestígio. Por ser esse relativo uma estrutura de uso mais restrito, pouco comum, dada a generalização de que, acima mencionada, o seu emprego promove um destaque no texto e parece ser tido pelos falantes das ocorrências apresentadas como uma estrutura de refinamento, capaz de adequar o texto a um estilo mais formal. Ao falar sobre as diferentes noções de estilo, Lefebvre (2001) conclui: Todos os estudos que elaboraram uma noção de estilo ou de registro fizeram ressaltar o caráter funcional, em toda sociedade, da variação estilística. Escolhendo um estilo em vez de outro, um falante revela já uma grande quantidade de informação sobre si mesmo, a situação em que se encontra, o efeito que quer produzir sobre seu interlocutor, a relação que quer manter com ele, etc. Assim, seria socialmente afuncional exprimir-se num estilo único. (LEFEBVRE, 2001, p.234-5) Desse modo, parece-nos que o uso não-padrão de qual aqui analisado se dá pela tentativa de produzir um efeito de sentido de requinte e de domínio do que se está dizendo, como vemos no exemplo abaixo, em que o autor do texto procura demonstrar sua indignação com o que lhe ocorreu e que considera inaceitável. Nele, apesar de serem visíveis diversos fatores que evidenciam a falta de domínio da escrita padrão, tais como concordância não canônica (“dois mese”, “pelos transtorno”, etc.), problemas de ortografia (“mandarãn”, 38 “colção”, etc) e dificuldades de organização textual, pois as sentenças parecem ter sido apenas justapostas umas às outras, observamos o uso do pronome qual, que poderia imprimir ao texto um caráter formal. No entanto, o autor faz uso repetido do pronome, cristalizado na forma ao qual, mas destituído de suas funções padrão e em contextos que não preveem o uso do relativo como demonstra, por exemplo, o seguinte trecho: “isto depois de dez ligações para a vendedora marcia do shoping estação(ao qual a loja ja fechou)”, em que o pronome não se liga a nenhum elemento das orações. (21) comprei um colchão king size em 09/04/2009, .em fevereiro de 2010 tivemos que pedir troca,o colchão ,top de linha virou uma canoa,mesmo fazendo rodizio toda semana,ficamos exatamente dois mese,esperando o tecnico ,segundo eles estava em ferias,isto depois de dez ligações para a vendedora marcia do shoping estação(ao qual a loja ja fechou).cada vez que ligava a vendedora nunca lembrava do problema ao qual tinha que repetir tudo de novo inclusive passar fax da nota fiscal para saber do que se tratava.ela não atendia mais minhas ligações. o tecnico não apareceu mandarãn um outro colção da mesma marca,passando nove meses,o mesmo problema,tudo de novo neste caso seria a terceira troca ao qual não houve,não apareceu tecnico nem nada.fomos parar no procom,ao qual geovani fez a proposta de trocar o colchão por outro no valor de 2.400,00,ao qual não houve acordo porque minha proposta e a devolução do dinheiro mais indenização pelos transtorno que venho tendo,perdendo dia de trabalho,tem que chegar no juizado especial oito horas da manhã para ser atendida as 12;00 horas.foram varias tentativas,perdendo dia de trabalho,sem contar a dor nas costa que surgiu devido as noites mal dormida,ao qual não usamos o colção a mais de um ano.o processo se arrasta ate hoje ja se passaram 450 dias.para o dia 07/11/2012 fui intimada a ter novo julgamento ao qual a juiza pediu foto do colçhão e tres testemunhas,tem que ser pessoas que passaram ou estão passando pelo mesmo problema.quem ler esta reclamação favor contactar pelo email roseracoes@gmail.com.se precisar irei como testemunha tambem. Disponível em Acesso em 14 out. 2012. Cabe aqui retomar o resultado obtido por Labov (2008) ao tratar da avaliação que os falantes faziam da própria fala. De acordo com o linguista, eles acreditavam produzir formas padrão quando, na verdade, delas se distanciavam pela hipercorreção. Portanto, se para os falantes da variedade padrão o emprego do pronome se dá por uma motivação sintática, e as formas de hipercorreção podem causar estranhamento, para os falantes de outras variedades, que desconhecem essas regras, o que prevalece é o conhecimento do valor de prestígio a ela associado. Assim, mesmo nos casos de hipercorreção, o uso que fazem desse tipo de estrutura é tido por aqueles que o produzem e, possivelmente também por aqueles que utilizam essa mesma variedade, como positivo, como marca de um estilo formal padrão, o que leva à sua ampla reprodução. http://www.reclameaqui.com.br/3702689/splendore-colchoes/devolucao-do-dinheiro/ http://www.reclameaqui.com.br/3702689/splendore-colchoes/devolucao-do-dinheiro/ 39 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste trabalho apresentamos e discutimos o uso do pronome relativo qual e variantes, focalizando especialmente o fenômeno de hipercorreção a ele associado. Para isso utilizamos a teoria de Labov (2008) a respeito desse fenômeno e fizemos uma análise das regras de emprego dessa estrutura tanto da perspectiva tradicional, quanto da linguística. Em seguida analisamos os casos de hipercorreção que compunham nosso corpus. Comparando os casos de hipercorreção do pronome o qual apresentados por Bagno (2011) com os que foram aqui discutidos, notamos que houve semelhanças no que diz respeito à questão da concordância e do emprego da estrutura como organizador do discurso. No que se refere à regência, enquanto o linguista exibiu exemplos da forma específica o qual, nossa pesquisa tratou do emprego da estrutura preposição + o qual. Assim, se em seus exemplos o que ocorria era a ausência da preposição regida, neste trabalho os dados mostraram tanto o uso de uma preposição diferente daquela regida pelo verbo, quanto o seu emprego em funções sintáticas em que ela não é necessária, e ambos os casos foram tidos como questões de regência. Com relação às ocorrências em que o pronome exerce função de sujeito sem que haja ambiguidade, diferimos de Bagno (2011), preferindo considerá-las como formas aceitas como padrão, uma vez que foram encontradas em textos considerados como pertencentes a essa variedade. Além dos casos por ele apontados, encontramos em nossos dados, duas outras situações: O emprego da estrutura preposição + pronome qual em substituição ao pronome cujo, em decorrência do uso cada vez mais restrito deste último; e o uso de o qual sem a concordância com o antecedente e com preposição diferente da que exige o verbo, na perspectiva padrão. Nesses casos a estrutura funciona como um conectivo, mas sem que contribua para a coesão do texto. Partindo dessa análise propusemos uma escala de uso desse pronome, na qual percebemos uma perda cada vez maior das funções associadas ao relativo até os casos em que ele atua apenas como um organizador do discurso e como um índice de prestígio. O que se verificou, por meio dos dados analisados é que em todas as ocorrências, o contexto sintático se mostra opaco para os falantes. Consideramos ainda que, por esse desconhecimento das regras, o que prevalece para eles é a noção de que essa estrutura corresponde a uma marca de prestígio. 40 Assim, acreditamos que o uso que fazem do pronome é motivado pela intenção de criar um efeito de sentido de requinte, ou seja, por uma questão de estilo, uma vez que a ampla reprodução dessas formas indica que os falantes que as produzem consideram-nas como um uso positivo. Este trabalho, no entanto, corresponde apenas a um estudo inicial acerca das questões envolvidas no uso da estrutura relativa com o pronome o qual. A análise realizada foi de caráter qualitativo, sendo necessária também uma análise quantitativa, a fim de verificar com maior precisão o status desse pronome no português brasileiro, em comparação ao pronome que e a abrangência do fenômeno aqui estudado. Pretendemos também ampliar esse estudo analisando casos de hipercorreção em ocorrências do pronome com as demais preposições, para averiguar se esses casos aqui discutidos se mantêm e também para verificar se existem questões sintáticas tais como o tipo de oração adjetiva, que favoreçam o fenômeno com esse relativo. Chamou-nos também a atenção a variação no emprego das preposições, o que sugere uma falta de percepção dos sentidos por elas veiculados, fator que também poderá ser alvo de uma pesquisa mais apurada. 41 REFERÊNCIAS ABREU, Antônio Suárez. Gramática mínima para o domínio da língua padrão. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2003. BAGNO, Marcos. Cores que eu não sei o nome. In: ______ Português ou brasileiro? : um convite à pesquisa. 3 ed. São Paulo: Parábola, 2002. p. 81-97 ______ Errei, sim. A hipercorreção e suas consequências. In: ______ Gramática pedagógica do português brasileiro. São Paulo: Parábola Editorial, 2011. p. 933-981. BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. 37. ed. rev.; ampl. e atual.conforme o novo Acordo Ortográfico. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009. CASTILHO, Ataliba T. de. Nova gramática do português brasileiro. São Paulo: Contexto, 2010. CEGALLA, Domingos Paschoal. Novíssima Gramática da língua portuguesa. 29. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1987. CUNHA, Celso; CINTRA, Luís F. Lindley. Nova gramática do português contemporâneo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. LABOV, William. A hipercorreção pela classe média baixa como fator de mudança lingüística. In: ______ Padrões sociolingüísticos. Tradução de Marcos Bagno, Maria Marta Pereira Scherre, Caroline Rodrigues Cardoso. São Paulo: Parábola Editorial, 2008. p. 151- 172. LEFEBVRE, Claire. As noções de estilo. In: BAGNO, Marcos (Org.). Norma Lingüística. São Paulo: Edições Loyola, 2001. p. 203-236. MARTINS, Nilce Sant’Anna. A estilística da palavra. In: ______ Introdução à estilística: a expressividade na língua portuguesa. 4. ed. rev. São Paulo: Ed. da USP, 2008. p. 97-162. NEVES, Maria Helena de Moura. Os pronomes relativos. As orações adjetivas. In: ______ Gramática de usos do português. São Paulo: Ed. UNESP, 2000. p. 365-386. TARALLO, F. (1983). Relativization Strategies in Brazilian Portuguese. PhD. Dissertation. Philadelphia: University of Pennsylvania. Mimeo. CAPA FOLHA DE ROSTO FICHA CATALOGRÁFICA BANCA EXAMINADORA DEDICATÓRIA AGRADECIMENTOS RESUMO ABSTRACT SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO 2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA 2.1 O fenômeno de hipercorreção 2.2. As estratégias de relativização 3 METODOLOGIA 4. ANÁLISE DOS DADOS 4.1. Formas padrão 4.2. Formas aceitas como padrão 4.3. Formas não padrão 4.4 Hipercorreção: uma questão de estilo? 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS REFERÊNCIAS